Contribuição do Projeto HOPE para a configuração da identidade profissional das
primeiras enfermeiras alagoanas, 1973 a 1977
INTRODUÇÃO
Este estudo tem como objeto a contribuição das enfermeiras norte-americanas do
Projeto HOPE à configuração da identidade profissional das egressas da primeira
turma do curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas -
UFAL. Este foi o primeiro Curso de Graduação em Enfermagem no estado, ano em
que o Projeto HOPE (Health Opportunity for People Everywhere), funcionando a
bordo de um navio hospital, permaneceu atracado no porto de Maceió - capital do
estado - através de um convênio entre o governo do estado, o Projeto HOPE e a
UFAL. Dentre os objetivos da vinda deste navio, ressalta-se o ensino das mais
recentes técnicas da ciência médica norte-americana e a atuação dos
profissionais no atendimento de casos de saúde de interesse científico para as
partes(1).
As enfermeiras norte-americanas atuavam em Maceió, capital do estado, como
contraparte das primeiras enfermeiras docentes, inclusive Vera Rocha, primeira
coordenadora de Enfermagem do Hospital Universitário da UFAL. Continuaram
atuando como apoio ao curso criado ao lado das enfermeiras docentes,
principalmente nas atividades práticas, por esta razão tem-se a hipótese de que
essas enfermeiras contribuíram para a configuração da identidade profissional
das enfermeiras formadas em Alagoas no recorte temporal em estudo.
Por outro lado, as demais enfermeiras docentes vieram de vários estados
brasileiros, pois até então, Alagoas não contava com nenhum Curso de Graduação
em Enfermagem, existindo apenas a Escola de Auxiliares de Enfermagem de Alagoas
- EAEA criada no ano de 1952 com a intenção de implantar também um curso de
nível superior, fato que não aconteceu(2). Portanto, em relação à categoria de
enfermagem até aquele momento, os serviços de saúde do estado contavam com
poucas enfermeiras e majoritariamente com atendentes e auxiliares de
enfermagem. As enfermeiras do Projeto HOPE contribuíram para reconfigurar este
cenário.
Neste trabalho, o termo configuração deve ser entendido como uma cadeia de
interdependência entre indivíduos que podem variar na temporariedade e
complexidade, mas que determinam a mobilidade, formação ou mesmo reprodução
social, onde cada indivíduo em particular têm suas intenções, no entanto as
transformações históricas dependem da relação indissociável entre este e a
sociedade(3), tal como defende Norbert Elias, referencial teórico que sustenta
esta pesquisa.
A ideia de configuração ajudou a entender como ocorreu o processo de composição
do corpo docente na época de criação do curso de Graduação em Enfermagem da
UFAL, período em que aconteceu um encontro de diferentes culturas, visto que
todas as enfermeiras que vieram fazer parte deste curso se formaram em outros
estados e a grande maioria também era natural de várias cidades do Brasil,
fazendo construir no micro espaço alagoano um novo tecido social da Enfermagem.
Assim, ao realizar estudos históricos a partir da "configuração" proposta por
Elias, pode-se construir novos caminhos para compreender as estruturas sociais
no recorte geográfico local. Isso porque a configuração seria uma abrangência
relacional, o modo de existência do ser social e a possibilidade de aproximação
às emergências do cotidiano(3).
Com a chegada do navio HOPE no porto de Maceió em fevereiro de 1973, Alagoas
passa a conhecer outra cultura de enfermagem, pautada no modelo anglo-americano
vigente nos EUA na década de 70, caracterizado pela atuação de uma Enfermagem
independente, científica e altamente resolutiva, representado pelas enfermeiras
que faziam parte deste projeto e que aqui permaneceram até o mês de novembro do
mesmo ano.
O trabalho destas enfermeiras, a expansão dos Cursos de Graduação em Enfermagem
no Brasil, o processo de expansão da UFAL na época e a visão do Reitor Nabuco
Lopes conformaram o momento favorável para criação do Curso de Enfermagem da
UFAL(1,4-5). Nesta conjuntura, este estudo tem como objetivo: analisar a
contribuição das enfermeiras norte-americanas pertencentes ao navio HOPE à
configuração da identidade profissional das egressas do primeiro Curso de
Graduação em Enfermagem de Alagoas.
METODOLOGIA
Estudo de cunho histórico-social, com abordagem qualitativa. O recorte social e
temporal foi o município de Maceió, no período compreendido entre 1973 e 1977,
tendo como marco inicial a notícia oficial de criação do curso e como marco
final a formatura da primeira turma em junho de 1977. As fontes primárias foram
os documentos oficiais do Arquivo Central, da Coordenação do Curso de
Enfermagem e do Conselho Universitário da UFAL, os documentos resultantes da
transcrição de 13 entrevistas de professores e colaboradores, bem como seus
arquivos pessoais (certificados, portarias e outros documentos).
Os critérios de inclusão dos sujeitos foram: ter pertencido ao corpo docente do
curso no recorte temporal em estudo; ter participado da organização e
funcionamento do curso; ter aceitado participar do estudo e ter sido citado
como participante por outro depoente. Teve apenas um critério de exclusão, qual
seja, estar impossibilitado por qualquer razão de conceder entrevista. As
fontes secundárias foram compostas por autores que abordam a História do Brasil
e de Alagoas que compuseram a conjuntura do estudo.
Para a fase de organização das informações reunidas, os documentos foram
submetidos à análise interna e externa, separando-os primeiramente pelas
categorias 'documentos oficiais' e 'documentos não oficiais'. A análise externa
se preocupou com a autenticidade do documento, ou seja, se o texto era original
ou cópia, qual a procedência ou autoria; já a análise interna objetivou a
avaliação do peso e valor das provas, isto é, do seu conteúdo, buscando
apreender o significado da declaração dentro do documento e determinar sua
autenticidade e fidedignidade.
A análise e a discussão dos achados foram orientadas pela teoria do "Processo
Civilizador" de Norbert Elias, que tem como fundamento o estudo dos efeitos do
desenvolvimento de estruturas sociais sobre os costumes e a moral dos
indivíduos(6).
Vale enfatizar que os entrevistados autorizaram a utilização de seus
depoimentos através da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido
- TCLE e que, além disto, preferiram usar seus próprios nomes, abrindo mão da
preservação de sua identidade nesta pesquisa, revelando a importância de dar
voz ao sujeito, identificando quem fala, de qual posição fala e para quem fala.
Todos os depoimentos colhidos neste estudo foram cedidos ao Grupo de Estudos D.
Isabel Macintyre, onde o estudo está registrado. Para atender à Resolução 196/
96 do Conselho Nacional de Saúde, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em
Pesquisa com Seres Humanos da UFAL, sendo aprovado como consta no processo de
nº 23065.015735/2011-40.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para Norbert Elias, o Processo Civilizador constitui-se em um movimento
abrangente de crescente diferenciação nas relações sociais e que se mantém em
progressiva expansão, através da incorporação de novos territórios e classes a
uma rede de interdependência políticas e econômicas, manifestada pela
autoconfiança de povos cujas fronteiras e identidade nacional foram plenamente
estabelecidas séculos atrás, povos estes que se expandiram e colonizaram (ou
civilizaram) outros povos(6).
Neste estudo, a analogia está nas contribuições que as enfermeiras dos Estados
Unidos que estavam prestando serviços filantrópicos no navio HOPE trouxeram
para uma instituição pública de ensino universitário que estava implantando um
Curso de Graduação em Enfermagem num estado do nordeste brasileiro, de
precárias condições de saúde, cuja cultura do trabalho de enfermeiros ainda não
era expressiva. A análise dos documentos e dos depoimentos revelou que a
cultura de enfermagem norte-americana influenciou o curso em duas
circunstâncias, como se poderá ver:
A influência norte-americana nos bastidores de criação do curso de Enfermagem
da UFAL
Até 1973, a UFAL só contava com dois cursos da área da saúde, Medicina e
Odontologia(7). Com isso, o fato de chegar a Alagoas uma Enfermagem exercida
por enfermeiras graduadas que tinham alto prestígio, lideravam os setores e
contavam com um avançado aparato tecnológico causou impacto no cenário
alagoano, inclusive na universidade, pois o navio-escola-hospital HOPE serviu
de campo de estágio para os acadêmicos de medicina e odontologia na época.
O reduzido número de enfermeiras na cidade foi claramente notado pelas
enfermeiras do HOPE. A depoente norte-americana Bárbara relata como as
enfermeiras do Projeto HOPE viam a necessidade de enfermeiras locais liderarem
os setores:
Junto com todos os avanços tecnológicos a gente viu a necessidade da
pessoa de uma enfermeira de nível superior começando a liderar os
setores. (Bárbara)
Nesse contexto, a cultura de enfermagem norte-americana, representada por essas
enfermeiras, tratou de se impor no micro espaço alagoano de várias formas. Uma
delas era a metodologia sistematizada de cuidar que as enfermeiras empregavam,
expressando a premência de haver enfermeiras nos serviços e de que elas
evidenciassem seu potencial de trabalho. Assim, tentaram introduzir no cenário
alagoano esta metodologia, que chamavam de Processo de Enfermagem. Para tanto,
além de exercê-lo na prática, promoveram seminários para capacitar docentes e
enfermeiras chefes de instituições nordestinas, como consta no livro-programa
de um seminário realizado pelas enfermeiras do navio para ensinar sua
metodologia de trabalho.
Um destes seminários aconteceu nos dias 11 e 12 de maio de 1973, contando
também com a participação de enfermeiras que ocupavam cargos importantes, como
a presidente da Associação Brasileira de Enfermagem Seção Alagoas, professora
Verônica Belmiro Chaves Donato, a diretora da Faculdade de Enfermagem da
Universidade Federal de Pernambuco, professora Desdemona Aurea Bezerra
Fernandes, e a Chefe do Serviço de Enfermagem do Hospital Agamenon Magalhães do
Recife, professora Maria Luiza Munguba(8), fato que demonstrava a articulação
do HOPE com as instituições locais e regionais de enfermagem.
No livro programa deste seminário consta que a proporção de enfermeiras por
habitantes no Brasil era de 1 para cada 11.500 pessoas, em contrapartida os
EUA, nesta época, já contava com 1 enfermeira para cada 200 habitantes(8). Na
verdade, 70% do pessoal de enfermagem do Brasil estavam constituídos por
atendentes de enfermagem, o que faz presumir que em Alagoas a situação era
ainda mais alarmante, visto que não existia nenhuma Escola de Graduação no
Estado.
As enfermeiras que ministraram este seminário colocavam que esta realidade era
causada pelo "baixo salário, falta de estímulo à profissão e falta de status
social da profissão"(8). Estas mesmas razões impediam o crescimento da
profissão, pois as poucas enfermeiras diplomadas, como elas mesmas chamavam,
praticamente só exerciam cargos de chefia, deixando de lado o cuidado direto ao
paciente, o que prejudicava a valorização da profissão, pois esta, só
conseguiria se estabelecer dependendo da competência da enfermeira em usar o
processo de enfermagem (PE)(8).
Em contrapartida, o Projeto HOPE, já no início da década de 1970 traz um livro-
programa com esta denominação, demonstrando que a cultura de enfermagem sobre o
PE era algo consolidado entre elas, o que comprovamos pelos diversos estudos
teóricos sobre modelos de enfermagem que foram criados nos EUA desde a década
de 1920(9). A depoente Lúcia também expressa como os professores, que
compuseram o corpo docente do curso, reconheciam a experiência destas
enfermeiras:
E elas eram experientes, tinham com elas a metodologia da
assistência, estavam na frente da gente há algum tempo. Mas teve
coisas boas e teve também problemas. (Lúcia Leite)
Neste depoimento também se percebe manifestações de resistências da imposição
desta cultura de enfermagem. Leve-se em conta que os EUA se consideravam um
povo de desenvolvimento e cultura mais evoluídos e que praticavam uma política
assistencialista de boa vizinhança(5), através da qual impunham uma cultura
aceita, social e historicamente, como "superior", sobre uma considerada
inferior, representada aqui pela Enfermagem alagoana. Norbert Elias explica
como tal fenômeno se desenvolve:
Duas etapas fazem parte da propagação do processo civilizador, a de assimilação
e repulsão. Na primeira, os indivíduos sobem da classe mais baixa para a
superior, e esta tenta civilizar a classe considerada inferior, que por sua vez
tende a copiar a classe evoluída. Em consequência desta primeira etapa, o poder
perante a sociedade do grupo inferior aumenta e declina o do grupo superior,
por isso denomina-se assimilação, todavia este processo acentua cada vez mais
as diferenças entre os dois grupos, concretizando uma segunda etapa denominada
repulsão, onde a rivalidade aumenta, consolidando a distância que existe entre
ambas(3).
Assim, todo este processo interessou sobremaneira aos EUA, pois seus objetivos
de cultura imperialista eram que suas práticas fossem incorporadas, no nosso
caso, a cultura de enfermagem norte-americana, como também a reafirmação dos
contrastes entre as classes. A professora Vera Rocha deixa claro como o povo
estadunidense via os nordestinos como representantes de uma cultura inferior.
Imagina os Estados Unidos para o Brasil [...] tinha pessoas com essas
características, que via os brasileiros, os nordestinos [...] como
não diria... uma sub raça. (Vera Rocha)
Essa trama acontece de forma tão dinâmica que não se consegue perceber como os
indivíduos têm que reprimir a si mesmo e a sua espontaneidade para colocar em
prática um comportamento imposto, considerado mais civilizado. Ainda assim, a
enfermeira e professora Lenir Nunes, que ingressou na UFAL em setembro de 1973,
quando o navio HOPE ainda estava em solo alagoano, coloca como via essa
interferência dos EUA:
E o pessoal do HOPE, minha filha, tenha santa paciência, só pra
brasileiro mesmo não entender que aquele navio não veio pra cá só pra
trazer beneficio. Ele veio pra levar o que a gente tinha pra lá.
(Lenir)
Outra depoente também lembra como a categoria médica via a presença dos EUA,
enfatizando a admiração inclusive pelas enfermeiras:
E aí o que era que os famosos catedráticos tinham? Admiração profunda
pelos Estados Unidos da América, né? As enfermeiras[...], mas nós
nunca deixamos a desejar. (Zandra)
Ocorre que naquela época a profissão que detinha o controle dos serviços de
saúde em Alagoas era a medicina, e o outro curso que existia em Alagoas na área
da saúde era o de odontologia, que pouco interferia na hegemonia médica. Então,
uma coisa eram as enfermeiras que faziam parte de um projeto que tinha início,
meio e fim, outra era a iniciativa de criação de um Curso de Graduação em
Enfermagem que se consolidaria na UFAL e ditaria as regras de atuação da
Enfermagem no cenário alagoano.
A autorização para o funcionamento do curso aconteceu no dia 1º de novembro de
1973, em reunião do Conselho de Ensino e Pesquisa da UFAL(10), e neste momento
o navio HOPE ainda estava atracado no porto de Maceió. Vale ressaltar que nesta
fase a professora Vera Rocha foi nomeada como docente através de concurso
público, mas já atuava anteriormente como a primeira enfermeira contratada da
UFAL, desenvolvendo suas atividades na Santa Casa de Misericórdia de Maceió,
hospital que exercia o papel de Hospital Universitário - HU, tendo como
contraparte a coordenadora de enfermagem do navio HOPE, enfermeira VeNeta
Masson(5). Vera Rocha, representava na UFAL o primeiro exemplo da cultura de
enfermagem brasileira em Alagoas. Quando o HU foi transferido para a Cidade
Universitária, Vera Rocha se tornou sua primeira coordenadora de enfermagem.
Analisando o contexto da época, a forma de composição do primeiro corpo docente
teve uma dinâmica interessante, que se estendeu para além da formatura da
primeira turma. Para Norbert Elias, a noção de configuração supera as ações
individuais, pois permite a formação de um tecido social, onde cada pessoa
pertencente a esta trama tem suas particularidades, mas que só podem ser
compreendidas nas relações que se estabelecem. Ou seja, apesar da imposição da
cultura de enfermagem norte-americana, trazida pelas enfermeiras do navio HOPE,
o que se configurou no processo de criação e consolidação do primeiro Curso de
Graduação em Enfermagem de Alagoas foi uma interdependência de pessoas, com
movimentos de assimilação e repulsa, que contribuiu para a configuração da
identidade profissional das egressas deste curso.
Contribuição das enfermeiras norte-americanas na configuração da identidade
profissional das primeiras enfermeiras formadas em Alagoas
Como a forma de composição do corpo docente foi muito diversificada, o Curso de
Graduação em Enfermagem foi o cenário de configuração social no qual se
estabeleceram relações de interdependência entre os vários atores deste recorte
temporal, onde os desdobramentos desta trama de pessoas contribuíram para a
construção da identidade profissional das egressas do curso, "isto porque as
estruturas da personalidade e da sociedade evoluem em uma inter-relação
indissolúvel"(6).
As alunas da primeira turma sofreram as influências de todos os envolvidos no
processo, mas também exerceram influência sobre estes, visto que traziam
consigo um ideal de enfermeiro pertencente ao ciclo social do qual faziam
parte. Os três primeiros grupos que vieram compor este corpo docente eram os
médicos, as enfermeiras do navio HOPE e as professoras enfermeiras Vera Rocha e
Lenir Nunes.
A Professora Lenir não estava alinhada com estes outros atores, pois trazia uma
cultura de enfermagem que aprendera no Rio de Janeiro, local onde se formara,
centro de nascimento do modelo nightingaleano no Brasil. Lenir representava uma
primeira resistência à imposição da cultura de enfermagem norte-americana e da
cultura de enfermagem trazida pelos médicos alagoanos. Depois de mais de um ano
de funcionamento do curso, o corpo docente recebe enfermeiras de vários estados
brasileiros, da Bahia, do Maranhão e do Pará, e já no ano de formatura da
primeira turma, ganha enfermeiros formados no Rio de Janeiro e no Recife.
Segundo a Professora Lenir, as primeiras dificuldades encontradas se deram logo
após a criação do curso, momento de maior interferência das enfermeiras norte-
americanas. Possivelmente Vera Rocha, que passou a fazer parte da equipe do
navio HOPE, contava com o reforço das enfermeiras americanas para colaborar nas
atividades do curso recém-criado. Tal suposição se mostrou consistente, uma vez
que, além da participação dos docentes médicos, o curso efetivamente contou com
a participação do Projeto HOPE, sobretudo pela relação, inclusive de amizade,
com a professora Vera Rocha, como Lenir afiançava.
Ela [Vera] era muito amiga do pessoal do HOPE [...]. (Lenir)
Nesta fase, as alunas do curso praticamente só tinham contato com os
professores médicos e com a professora Vera Rocha, então coordenadora do curso.
Não obstante, logo o período do ciclo básico se encerraria e era preciso
planejar o andamento do curso. Neste sentido, a professora Lenir, analisando a
conjuntura desenhada naquele espaço social e o desenho da grade curricular que
encontrara, já manifestava sua preocupação em imprimir ao curso criado uma
identidade de curso de enfermagem.
Olha, minha gente, eu vim aqui para o curso de enfermagem, para ser
enfermeira [...] enfermicina de jeito nenhum. (Lenir)
É possível perceber claramente um choque entre três culturas de enfermagem: a
dos médicos - de uma profissão meramente auxiliar -, a das enfermeiras norte-
americanas - altamente técnico-científica - que já havia influenciado Vera
Rocha, ainda recém-formada e a de Lenir, com mais tempo de formada em escola
consolidada no Rio de Janeiro e com visão de enfermagem mais abrangente e
combativa no trato das questões políticas da saúde e da autonomia da profissão.
Estes embates acabam se configurando como relações de poder, que para Norbert
Elias, são positivas uma vez que propiciam a formação social e individual de
pessoas, grupos ou instituições. Ou seja, se por um lado este sistema instala a
diferença entre as pessoas, por outro organiza e dá direcionalidade ao contexto
(11). Assim, a cultura trazida pelos docentes deve ser vista como uma estrutura
de mudança dinâmica e constante que sem dúvida influenciou na identidade
profissional dos formandos deste curso.
Visualizam-se, nesta primeira etapa do curso, três movimentos em torno do
ensino da Enfermagem que certamente repercutiram nas alunas. O primeiro
manifesta-se pela desarticulação do ciclo básico com o clico
profissionalizante, no qual os professores ministravam suas aulas para todos os
alunos da área da saúde, independente de curso. O segundo se refere a imposição
da cultura de enfermagem norte-americana, representada pela atuação das
enfermeiras do Projeto HOPE, que foi bem acolhida e aceita pela professora Vera
Rocha. E o terceiro se dá pelo movimento de resistência da professora Lenir no
que tange a atuação da categoria médica no curso e a imposição da cultura de
enfermagem norte-americana sobre o mesmo.
As funções de cada pessoa dentro de um determinado cenário são diferentes e à
medida que se configura como competição tornam-se cada vez mais diferenciadas,
gerando um ciclo, onde, ao tempo em que cresce o número de atribuições de cada
um, maior se torna a interdependência entre os mesmos, formando um tecido
social dinâmico. Portanto, pode-se dizer que os resultados a longo prazo são
praticamente não idealizados individualmente, visto que faz parte de um
processo maior, advindo de um entrelaçamento social. Obviamente as motivações
individuais estão presentes, neste caso o papel de cada docente que fez parte
do curso, no entanto as configurações sociais são consequências inesperadas da
interação entre eles(3).
Com isso, o Curso de Graduação de Enfermagem se configurou como um espaço de
interação entre vários docentes e alunas, cada um representando uma cultura
pessoal e de enfermagem. Esta rede de interação social não se refere apenas ao
somatório dos interesses de cada um, mas resulta em um novo processo de
configuração social, onde as intenções particulares perdem o seu valor.
Este emaranhado possibilitou a junção de várias visões de mundo e o encontro de
diferentes culturas de enfermagem, configurando no cenário alagoano a inserção
do ensino de graduação. Para a professora Heliana este processo foi tão
relevante que causou notável mudança, muito provavelmente pela inserção de uma
Enfermagem também científica, mas, também altamente politizada.
Que o fato de ter vindo de cada canto criou uma [...] uma
possibilidade de a gente fazer uma coisa nova, a gente teve mais
chance de começar com mais liberdade, sem estar atrelado a uma
orientação só, a coisas mais rígidas de uma escola mais antiga. Então
eu acho que a gente revolucionou um pouquinho algumas coisas aqui
[...] Então eu acho que foi bom, não foi ruim essa miscelânea de cada
canto. (Heliana)
A fala da professora Lígia é emblemática pata esta temática, pois conclui que a
possibilidade de encontrar o novo e provocar mudanças é muito maior na
diversidade do que na unanimidade:
Na diversidade você tem muito mais possibilidade de criar do que na
unidade. Porque a diversidade cria discussões. (Lígia)
Fica também evidente a riqueza cultural advinda da interdependência dessas
pessoas, onde os docentes precisaram se rearranjar para dar continuidade às
atividades inerentes ao curso, cada um trazendo uma bagagem cultural de
enfermagem significativa para o contexto que resultaria em uma nova identidade
profissional de enfermagem no espaço alagoano.
Norbert Elias considera que isoladamente o conceito de cultura é excludente e
delimitador, todavia as "construções de identidades culturais são muito
importantes para a diferenciação das nações e das regiões, pois apontam para as
questões da diferença e salientam o que há de específico e de particular entre
os povos ou entre grupos"(12). Assim, logo que o cur-so passou a contar com um
número significativo de pessoas para conduzir as disciplinas ocorreu um choque
de ideias e não poderia ser diferente, pois cada um tinha um ideal de
enfermeiro que seria formado neste curso. Nesse sentido, a professora Cristina
colocou sua preocupação em relação à necessidade de se identificar com o curso
ora criado:
Então a gente precisava ter uma identidade assim, mais da Enfermagem
para o curso, e não algo que fosse baseado no que era legal, no que
era mínimo. (Cristina)
À medida que os docentes começavam a se integrar fica mais evidente o encontro
de diversas culturas, inclusive da cultura de enfermagem norte-americana:
Então a gente encontrou a Barbara, americana que pensava de um jeito,
Vera Rocha que era alagoana formada em Recife que tinha outra forma
de ver a formação do enfermeiro, Lenir que é formada na Universidade
Federal Fluminense, não era novinha, ela já tinha experiência de
trabalho, então ela tinha outra visão e nós três [...] três recém-
formadas vindas de uma escola altamente tradicional. (Regina)
Partindo do pressuposto de que a primeira turma de enfermeiras formadas teve
uma identidade profissional própria, construída a partir deste entrelaçamento
de culturas, os depoimentos fizeram entender que os interesses individuais ou
até mesmo coletivos se perderam nesta trama, ou seja, "vários fatores de ordem
individual e coletiva interagem para produzir processos civilizadores que
ganham movimento e se autoalimentam trazendo modificações significantes que
configuram determinadas civilizações"(13).
Além das diversas culturas de enfermagem brasileiras trazidas pelas docentes a
partir de sua escola de formação e área de atuação, durante um bom tempo o
curso continuou contando com a participação das enfermeiras norte-americanas,
na manutenção do projeto em terra, como nos recorda Bárbara, que permaneceu em
Maceió após a partida do navio em novembro de 1973:
Quando o navio HOPE foi embora, você já sabe, obviamente deixou as
pessoas aqui na terra [...] se não me engano foram 5 enfermeiras
exatamente, foi eu, a enfermeira Irene, July, Sheila e Beverly, e nós
decidimos ficar [...] Então a gente ficou aqui, nosso contrato era na
verdade, por que nessa época lembro que a gente estava ainda pelo
Projeto HOPE, dando assistência a Universidade Federal de Alagoas.
(Bárbara)
O depoimento da professora Regina mostra um exemplo claro da participação do
Projeto HOPE na estrutura do Curso de Enfermagem:
Nós tentávamos construir estratégias de sobrevivência! Não podíamos
negar a supremacia americana nos aspectos técnicos e tecnológicos,
mas tentávamos mostrar que também tínhamos conhecimento de enfermagem
e que estávamos à altura do desafio de ser docente daquele curso. Uma
forma era unir o útil ao agradável: aprendíamos os aspectos que
precisávamos e no processo mostrávamos o que sabíamos. Fazíamos isso
nos mini cursos que organizávamos com as enfermeiras do HOPE, por
exemplo, mas ganhávamos sempre os embates políticos estruturais.
(Regina)
Outra pessoa que também atuou no curso representando uma posição de forte
resistência a imposição da cultura de enfermagem norte-americana foi a
professora Lígia, que ingressou no corpo docente em 1975 e logo em seguida
tornou-se coordenadora do curso, exercendo liderança reconhecida por todos do
grupo. O seguinte trecho de seu depoimento deixa claro este entendimento:
Eu nunca aceitei a interferência do HOPE no Curso de Enfermagem.
(Lígia)
A professora Lígia esclareceu que ela tinha compromisso com o desenvolvimento
da Enfermagem, onde quer que estivesse. Ela tinha um projeto de "enfermeiros"
para este cur-so bem definido, só que, por baixo desta trama, coexistem acordos
cumulativos concretizando uma ligação funcional que mistura os interesses
individuais e os projetos coletivos resultando em instituições sociais, a que
podemos denominar de redes de interação social(13).
Com base nesta reflexão da teoria elisiana, pode-se dizer que todos os docentes
envolvidos tinham uma proposta para formar as enfermeiras do curso recém-
criado, no entanto, os movimentos de imposição e resistência das diversas
culturas é que contribuíram para configurar a identidade profissional das suas
egressas. No exercício desta resistência e por ocupar uma posição de líder
perante as outras professoras, Lígia procurou seguir os caminhos legítimos
dentro da universidade. Os grupos que se juntaram a ela o fizeram por se
sentirem representados, por defenderem as mesmas ideias, sobretudo no que se
refere à formação profissional do enfermeiro, tornando-se um grupo coeso para
atender a necessidade colocada, que era construir o perfil do enfermeiro
egresso daquele curso.
É possível afirmar que o movimento de imposição e resistência por parte das
várias culturas de enfermagem pôde causar certo desgaste no tecido social
instaurado, tão necessário para a incorporação da identidade profissional nas
alunas. Isto porque as alunas também exerciam influência sobre este corpo
docente, na medida em que se socializavam com a profissão escolhida e também
assumiam uma posição questionadora perante o grupo de professores, escolhendo o
caminho que queriam seguir.
Não tem como negar a contribuição que a Enfermagem norte-americana trouxe para
as atividades práticas. Era através do sistema de contraparte que cada
professor estabelecia parceira com uma enfermeira estrangeira, que já tinha
muita habilidade com o manejo de equipamentos sofisticados. Nesta relação, as
contribuições fluíram como Lígia explica:
Então é [...] na realidade o pessoal do HOPE eles influenciaram mais,
quer dizer ajudaram as recém-formadas a concretizar a parte clínica,
só. [...] eles ajudaram sim, na parte técnica direcionada para o
adulto, pra questão lá da cirurgia, da assistência disso, daquilo e
daquilo outro. (Lígia)
A fala de Lígia confirma como as enfermeiras norte-americanas se envolveram e
ajudaram principalmente as recém-formadas, mas sem interferir na cultura da
Enfermagem brasileira que o curso imprimia aos alunos. Muito pelo contrário, o
corpo docente soube aproveitar não só a tecnologia importada, como também o
prestígio que a enfermagem norte-americana tinha na área, sobretudo perante a
categoria médica.
O diário de campo da enfermeira do navio HOPE, VeNeta Masson, publicado em
livro (International Nursing - VeNeta Masson, R.N. with contributors), traz um
relatório no qual ela propõe oitos objetivos a serem implementados para
melhorar a qualidade da assistência de enfermagem do HU e oferecer cuidados de
enfermagem eficazes. O objetivo número sete deste documento diz que a
Enfermagem, como uma profissão independente, tem que ser reconhecida,
respeitada e ocupar um lugar de maior valor dentro daquele hospital.
Como este fato se refere ao período de 1973 a 1977, as enfermeiras professoras
já haviam chegado e começaram as atividades práticas no HU, alguns destes
objetivos já tinham sido alcançados, de modo que os médicos já tinham tido
contato com esta 'enfermagem independente'. Nesse sentido, as docentes souberam
valer-se desta situação sem abrir mão da sua própria cultura de enfermagem que,
no que se refere à autonomia da profissão, em nada deixava a desejar.
Ainda assim, os Estados Unidos, através das enfermeiras do navio, representavam
uma cultura de enfermagem aceita mundialmente como superior, dando a conotação
de que estariam fazendo um processo civilizador no Brasil, e talvez estivessem.
Só que encontrou, no Curso de Enfermagem, enfermeiras com uma formação também
muito sólida, talvez não tão avançada tecnologicamente, mas certamente com uma
postura aguerrida. A depoente Lúcia traz uma fala que retrata esta compreensão:
Porque como eles conheciam as enfermeiras americanas do HOPE, eles
também estagiaram no HOPE, eles viam o trabalho da enfermeira, o quê
que elas faziam. Mas agente também contestava quando eles queriam
colocar a gente pra baixo, vamos dizer assim, né? Nós também
contestávamos porque [...] através de quê que a gente fazia isso?
Conhecimento, do conhecimento, da prática. (Lúcia Leite)
Desta forma, as configurações sociais acabam determinando as ações individuais,
fazendo com que se internalizem as regras de convivência e se modifiquem os
hábitos, costumes e cultura. Se por um lado este processo significa um profundo
autocontrole dos sujeitos, por outro propicia diversas possibilidades de
estabelecimentos de redes de interação. Em outras palavras, "o comportamento
social é ajustado de acordo com as necessidades impostas pelas percepções e
interpretações que o indivíduo faz do ambiente externo"(13).
Esta reflexão faz compreender que, todos os indivíduos que atuaram para a
formação das alunas da primeira turma do curso de enfermagem, contribuíram
significativamente para a configuração de sua identidade profissional. Ora
precisaram reprimir seus impulsos, pelo movimento de autocontrole, ora tiveram
que se impor para serem reconhecidos no cenário social que estavam inseridos.
CONCLUSÃO
Este trabalho tratou da contribuição das enfermeiras do navio Projeto HOPE à
configuração da identidade profissional da primeira turma de enfermeiras
formadas na Universidade Federal de Alagoas. Para responder aos objetivos da
pesquisa, foi preciso compreender como se deu a composição do primeiro corpo
docente e de que maneira o grupo se rearranjou no cenário alagoano, visto que
as enfermeiras norte-americanas tentaram impor sua cultura de enfermagem às
professoras enfermeiras que vieram de vários estados brasileiros, cada uma com
sua cultura pessoal e de enfermagem.
Os documentos escritos e orais permitiram dizer que as enfermeiras do navio
HOPE, tanto quanto o corpo docente, deixaram uma contribuição fundamental para
que o tecido social bordado por aquele grupo, com traços culturais, pessoais e
de enfermagem tão diferentes, configurasse a identidade profissional das
egressas à altura da necessidade social em Alagoas.
A influência da cultura de enfermagem norte-americana foi muito marcante no
curso, no entanto o movimento de resistência a essa dominação foi muito forte,
tendo como resultado um curso que conseguiu aproveitar o avanço tecnológico
trazido pelos Estados Unidos, mas também construiu uma Enfermagem singular,
resultante dessa miscelânea cultural. As contribuições das enfermeiras do navio
HOPE aconteceram tanto nos bastidores da criação do curso como na fase de
consolidação do mesmo, até a formatura da primeira turma, momento em que foram
homenageadas e homenagearam, inclusive premiando a melhor aluna da turma
(comportamento típico da cultura estadunidense).
Por esta razão, a configuração da identidade profissional das primeiras
enfermeiras formadas em Alagoas foi um processo civilizador, com todas as
nuances que compõem as relações de poder entre culturas tão diferentes, sendo
uma delas julgada superior em relação às demais e em especial diante da cultura
de enfermagem existente no estado, exercida por auxiliares e atendentes de
enfermagem, julgada pelos superiores como uma Enfermagem elementar.
No processo de resistência as enfermeiras brasileiras souberam conduzir uma
convivência pacífica, produtiva, aprendendo o que podiam aprender, mas
afirmando a cultura de enfermagem brasileira que julgavam ser necessária
imprimir neste novo espaço de exercício profissional da Enfermagem.