Documentação do processo de enfermagem: justificativa e métodos de estudo
analítico
INTRODUÇÃO
O modelo de assistência de enfermagem orientado pelo processo de enfermagem
(PE) valoriza o planejamento das ações, as intervenções, a avaliação e as metas
específicas traçadas para cada paciente. No Brasil, a documentação do PE em
todas as situações em que o cuidado profissional de enfermagem ocorre passou a
ser exigida em 2002(1). Desde então, tal exigência tem mobilizado os serviços
de saúde no sentido de atendê-la e relatos têm sido publicados destacando
inúmeros fatores potencialmente envolvidos com as facilidades e dificuldades
para a documentação clínica segundo o PE(2).
No entanto, ainda se observa ausência de estudos empíricos correlacionais que
testem a capacidade de determinados fatores explicarem a documentação do PE nos
serviços de saúde. Assim, o projeto "Processo de Enfermagem nos Hospitais e
Ambulatórios da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo" (Projeto SAE-SES)
buscou avançar na compreensão dos fatores envolvidos na sua implementação por
meio da análise da documentação clínica de enfermagem.
Este artigo discorre sobre a justificativa e os métodos do Projeto SAE-SES.
Ressalta-se que, embora no Brasil não seja comum a publicação de artigos com o
detalhamento de métodos, essa prática é importante no caso de projetos
integrados de pesquisa para que a comunidade científica disponha de informações
suficientes para apreciar a qualidade metodológica dos estudos deles
resultantes, o que nem sempre é possível com a usual e necessária limitação do
tamanho dos textos nos periódicos científicos.
A principal finalidade do Projeto SAE-SES é ampliar o contexto no qual têm sido
considerados os fatores envolvidos na prática de enfermagem orientada pelo PE,
instrumento fundamental para a clínica de enfermagem, pois oferece referências
para as decisões fundamentais do cuidado(3).
O conceito de PE surgiu entre os educadores dos Estados Unidos da América, na
década de 1950, como um instrumento para guiar os estudantes na aprendizagem de
habilidades de pensamento crítico necessárias à prática de enfermagem(4). Os
líderes de enfermagem passaram a incentivar sua utilização nos serviços de
enfermagem por reconhecê-lo como instrumento útil para a aplicação das ideias
de cuidado total ao indivíduo(4).
Já no Brasil, o PE foi introduzido na década de 1970, por Wanda de Aguiar
Horta, para operacionalizar a enfermagem, concebida como a ciência que trata da
assistência ao ser humano em suas necessidades humanas básicas(5). Com o uso no
ensino e nos serviços de saúde, o PE acabou sendo denominado e reconhecido como
Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), embora não se saiba
exatamente a origem de tal designação. Em razão do uso intercambiável dessas
duas expressões ser disseminado, neste projeto os termos Processo de Enfermagem
e Sistematização da Assistência de Enfermagem são usados como sinônimos, apesar
de terem sido diferenciados no dispositivo legal que rege a documentação do
processo de enfermagem no país(1).
Há várias definições de PE que diferem nos aspectos que focalizam ou na ênfase
que a eles atribuem. Neste estudo, é definido como instrumento que provê um
guia sistematizado para o desenvolvimento de um estilo de pensamento que
direciona os julgamentos clínicos necessários para o cuidado de enfermagem(4),
bem como a sua documentação. O PE preconiza que a assistência de enfermagem
seja pautada na avaliação do paciente, a qual fornece os dados para que os
diagnósticos de enfermagem sejam identificados. Os diagnósticos, por sua vez,
direcionam a definição de metas a serem alcançadas. Juntos, diagnósticos e
metas, constituem as bases para selecionar as intervenções mais apropriadas à
situação específica do paciente. Realizadas as intervenções, o alcance das
metas deve ser avaliado e, dessa avaliação, retorna-se às fases precedentes,
caso as metas não tenham sido alcançadas, ou novos diagnósticos tenham sido
identificados(3).
O PE, na perspectiva adotada, é um instrumento para guiar decisões clínicas dos
enfermeiros e, como tal, refere-se a aspectos cognitivos e intelectuais dos
enfermeiros. No entanto, a documentação de enfermagem nos serviços de saúde,
quando estruturada segundo o PE, permite estimar como o processo é
operacionalizado pelos enfermeiros e, pelo menos em parte, a qualidade do
cuidado de enfermagem oferecido. A análise da documentação do PE nos serviços
de saúde configura uma forma de estudá-lo.
Em virtude dos inúmeros benefícios apresentados, o PE tem sido alvo de
discussões e pesquisas como instrumento para o cuidado de enfermagem a ser
ensinado, utilizado na clínica e no gerenciamento de enfermagem e a ser
avaliado. Além de constituir registros técnicos, científicos, legais e éticos,
e de fornecer às instituições de saúde registros importantes para fins de
faturamento, a documentação do PE subsidia a auditoria das ações de enfermagem
e, sobretudo, permite estimar a qualidade do atendimento prestado ao cliente
(6). Os serviços de saúde que não documentavam o PE iniciaram projetos para
atender à Resolução 358/2009 do COFEN(1). Mais ainda, a "implementação da SAE"
foi considerada um ideal a ser alcançado, ainda que não fossem conhecidos os
requisitos indispensáveis para tal objetivo. Essa situação tem mobilizado
enfermeiros clínicos, gerentes e pesquisadores a assumir posturas mais ou menos
favoráveis ao PE e à sua implementação.
A organização do trabalho envolve um acúmulo de funções administrativas
exigidas pela demanda das instituições de saúde. Portanto, a análise da
aplicabilidade do PE deve considerar o perfil, as demandas de atendimento
dessas instituições, as características e complexidade do paciente e o capital
humano disponível. Assim, a finalidade do Projeto SAE-SES foi avaliar
quantitativamente a influência de aspectos relativos aos serviços e
profissionais de enfermagem sobre o processo de implementação do PE. Compuseram
seus objetivos: 1) descrever as características das unidades de serviço dos
hospitais e ambulatórios e dos profissionais de enfermagem no âmbito da
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo; 2) relacionar essas características
com a documentação do PE. Foram utilizadas variáveis de recursos humanos, de
características dos serviços e relacionadas a indicadores assistenciais para
identificar fatores capazes de explicar a adequada documentação do PE.
MÉTODO
O Projeto SAE-SES foi um estudo descritivo-exploratório multinível com obtenção
de dados nos níveis da instituição, do setor ou unidade de serviço e dos
profissionais de enfermagem.
Entre 2008 e 2010, a equipe de pesquisa idealizou, elaborou e encaminhou o
projeto para agências de fomento com a finalidade de obter auxílio financeiro
para sua realização. No período de um ano, janeiro de 2011 a janeiro 2012, os
dados foram coletados segundo diretrizes determinadas pela equipe, constantes
de um manual que trazia a definição conceitual e operacional das variáveis e os
instrumentos para padronizar os procedimentos de coleta de dados.
A equipe de coletadores de dados, composta por enfermeiros, recebeu treinamento
teórico de 12 horas, de modo a permitir a obtenção de dados fidedignos e
consistentes. Um hospital de grande porte na capital de São Paulo constituiu
campo para o projeto piloto, momento em que ocorreu o treinamento prático dos
coletadores de dados, o que possibilitou à equipe o ajuste de instrumentos e
procedimentos de coleta.
Optou-se por utilizar diversas fontes de dados: 1) o serviço de arquivo médico
e estatística, para obter dados sobre a produtividade da instituição e dos
setores; 2) a diretoria de enfermagem, para obter dados sobre quantitativo e
qualitativo da equipe de enfermagem e indicadores de qualidade da assistência
de enfermagem; 3) o serviço de educação continuada, com vistas à obtenção de
dados sobre os aspectos históricos da implantação do processo de enfermagem; 4)
enfermeiro em serviço no setor e observação de prontuários, para coletar dados
sobre características operacionais da documentação do PE; e 5) enfermeiros,
técnicos e auxiliares de enfermagem foram fontes para obtenção de dados sobre
as características da equipe de enfermagem.
Cenário do estudo
Estudo realizado nos ambulatórios e hospitais da Secretaria de Estado da Saúde
de São Paulo (SES-SP). O reconhecimento de que a documentação do PE era
necessária para melhorar a qualidade do cuidado de enfermagem resultou da
implementação de indicadores de qualidade da assistência e de processos de
acreditação institucional no âmbito das instituições sob administração direta
da SES-SP. Uma vez que a implantação do PE pressupõe mudança lenta, dinâmica e
gradual que diz respeito não apenas aos exercentes da enfermagem, mas também à
gestão administrativa das instituições, a SES-SP nomeou a Comissão Central da
SAE e estruturou o Projeto Tecendo a SAE. Tal projeto objetivou melhorar a
qualidade da assistência à saúde prestada pela SES-SP nas unidades vinculadas à
Coordenadoria de Serviços de Saúde, por meio da Implantação do Processo de
Enfermagem e da Gestão para a Qualidade de Enfermagem em todas as suas Unidades
de Saúde(7). A construção e implementação desse projeto estão relatadas em
outra publicação(7).
Todos os ambulatórios e hospitais da SES/SP eram elegíveis e foram convidados a
participar do estudo. A adoção do PE não representou critério de inclusão, pois
era variável de estudo. Segundo dados da Coordenadoria de Serviços de Saúde,
estavam sob sua coordenação, na época da coleta, sete ambulatórios
especializados, seis unidades de saúde mental e 30 hospitais, localizados em
várias regiões do estado de São Paulo.
O recrutamento das instituições para participação no estudo seguiu o seguinte
fluxo: envio de carta ao Diretor Técnico de Departamento de cada hospital ou
ambulatório solicitando os devidos encaminhamentos para manifestação de
participação da instituição no estudo. Junto com a solicitação, enviou-se
documento de resposta para ser preenchido pelo Diretor Técnico de Departamento
com a sua manifestação de participação num prazo de 15 dias. Nos casos em que
não houve retorno decorridos 20 dias, fez-se contato telefônico para
identificar possíveis extravios de documentos ou outras razões para a ausência
de resposta. Se necessário, os procedimentos de convite eram refeitos,
aguardando-se mais 10 dias após o segundo envio de solicitação para a definição
das instituições participantes. A ausência de resposta nesse prazo foi
considerada como recusa em participar.
Integraram este estudo 27 hospitais, sete ambulatórios de especialidades e seis
unidades de saúde mental, o que propiciou um fecundo cenário para a
investigação das similaridades e diferenças do PE em cada contexto. A base para
as análises foi a unidade de serviço ou setor. Uma vez que a definição de
"unidade de serviço" é variável (ala, andar, setor etc.), estabeleceu-se, para
este projeto, que "unidade de serviço" dentro de um ambulatório ou hospital
seria definida pelas escalas mensais do serviço de enfermagem. Isto é, uma
"unidade de serviço" de um ambulatório ou de um hospital é a área coberta pelas
pessoas da enfermagem que compõem uma escala mensal para assistência ao
paciente. Assim, o total de "unidades" foi igual ao número de escalas mensais
de enfermagem destinadas ao atendimento dos pacientes no hospital ou
ambulatório.
Todas as unidades de serviço onde ocorresse cuidado ao paciente e cuja
instituição tivesse autorizado a participação no estudo constituíram locais de
coleta de dados. Foi considerado que cada setor apresentaria especificidades em
termos de especialidade atendida, perfil dos pacientes e dos profissionais de
enfermagem que poderiam estar associados às características operacionais do PE.
Variáveis e instrumentos
As variáveis e instrumentos estão descritos a seguir de acordo com o nível das
variáveis. O nível institucional refere-se ao hospital ou ambulatório como um
todo; o nível de unidades de serviço, às variáveis relativas a uma área de
serviço definida pelo conjunto de profissionais de enfermagem organizados em
escalas mensais de trabalho para atender a um determinado movimento de
pacientes; já o nível de profissionais de enfermagem compreende variáveis das
pessoas que atuavam na unidade de serviço de uma instituição.
Nível institucional
Além do nome, endereço e tipo da instituição foram obtidos dados para
caracterizar o ambiente de trabalho da enfermagem. Algumas variáveis previstas
como vinculadas aos setores acabaram sendo coletadas no nível da instituição
pelas razões expostas na seção de coleta dos dados.
A opção por coletar esses dados decorre da influência do ambiente de trabalho
dos hospitais na satisfação e rotatividade do pessoal de enfermagem ser bem
documentada(8'9). Neste sentido, o cenário profissional de prática de
enfermagem é compreendido como o sistema de apoio para o enfermeiro controlar a
realização do cuidado de enfermagem e o ambiente em que ele é prestado. O PE,
por sua vez, configura instrumento para a realização do cuidado de enfermagem e
a sua implantação e manutenção requerem um local de trabalho adequado. No
presente estudo, utilizou-se o Nursing Work Index - Revised (NWI-R)(8) para
obter dados sobre as características do ambiente de trabalho, pois havia
interesse em estudar as associações desses atributos com a operacionalização do
PE.
O NWI-R, traduzido e validado no Brasil em 2008(10), é composto por 57 itens,
dos quais 15 foram distribuídos, de forma conceitual, em três subescalas:
autonomia, controle sobre o ambiente e relações entre médicos e enfermeiros.
Desses 15 itens, dez foram agrupados para compor a quarta subescala: suporte
organizacional(8). Cada item é respondido usando uma escala tipo Likert que
pode variar entre um e quatro pontos. Quanto menor a pontuação, maior a
presença de atributos favoráveis à prática profissional do enfermeiro(10). Os
escores das subescalas são obtidos pela média dos escores das respostas dos
sujeitos e podem variar entre um e quatro pontos(8). Em estudo brasileiro
realizado em unidades de terapia intensiva(11), a versão brasileira do NWI-
R apresentou os seguintes coeficientes de consistência interna (alfa de
Cronbach): subescala de autonomia - 0,645; subescala de controle sobre o
ambiente - 0,732; subescala de relações entre médicos e enfermeiros -0,702; e
subescala de suporte organizacional - 0,748.
Nível de unidades de serviço
As variáveis sobre a documentação do PE, coletadas por unidades de serviço das
instituições, foram: documentação da avaliação inicial (histórico), dos
diagnósticos, da prescrição e da evolução do paciente. Considerando que a
anotação é uma prática clássica de documentação em enfermagem, especialmente
quando não se documenta o PE de forma estruturada, ela foi incluída como uma
variável no conjunto de dados sobre o PE. Investigou-se frequência, local,
suporte e responsável pela realização da documentação de cada fase.
Além dos dados para descrever a operacionalização do PE no nível das unidades
de serviço, outros foram coletados: a) caracterização geral da unidade de
serviço; b) produtividade e indicadores de qualidade; e c) quantitativo de
pessoal de enfermagem. Optou-se por caracterizar os setores segundo o tipo de
especialidade atendida (pediatria, psiquiatria, clínica geral etc.); tipo de
estrutura física (centro cirúrgico, pronto-socorro, unidade de terapia
intensiva etc.); instalações disponíveis para o serviço (número de leitos,
quantidade de consultórios e de salas de operação etc.); e quanto ao grau de
dependência estimado dos pacientes típicos da unidade. Em termos de
produtividade e indicadores de qualidade, houve coleta de dados sobre movimento
dos pacientes (admissões, transferências, altas, óbitos); procedimentos
realizados (consultas, partos, cirurgias, exames etc.); taxas de infecção, de
úlcera por pressão, flebite e não conformidade medicamentosa). Obteve-se
quantitativo de pessoal de enfermagem em termos de número de auxiliares e
enfermeiros por plantão de 6 horas e 12 horas. Computou-se o número de plantões
de 6 e 12 horas a serem realizados por mês e, após, o de leitos ativos em cada
setor/unidade. Os dados de quantitativo de pessoal, de produtividade e de
indicadores de qualidade referiram-se a três meses alternados anteriores à
coleta de dados. Adotou-se tal estratégia com vistas a reduzir o efeito da
sazonalidade nos dados obtidos. Por exemplo, se a coleta ocorreu no mês de
julho de 2010 em um determinado hospital, os dados de produtividade e
indicadores foram coletados para os meses de junho, abril e fevereiro de 2010,
calculando-se as médias mensais dos valores de cada variável.
Nível de profissionais de enfermagem
Os profissionais de enfermagem responderam a instrumentos padronizados para a
avaliação das variáveis a eles relacionadas, a fim de conhecer características
da força de trabalho em enfermagem.
Os seguintes instrumentos foram respondidos pelos profissionais: Posições sobre
o Processo de Enfermagem, Power as Knowing Participation in Change Tool, Índice
de Qualidade de Vida no trabalho para Enfermeiros, Escala de Estresse no
Trabalho e Maslach Burnout Index.
Posições sobre o Processo de Enfermagem: o instrumento refere-se a atitudes
mais ou menos favoráveis ao PE. Os enfermeiros que têm atitudes mais favoráveis
ao PE provavelmente terão mais facilidade para envolver-se nas mudanças
requeridas para implantar e manter a SAE, e aqueles que apresentam atitudes
mais desfavoráveis terão, provavelmente, mais dificuldade. Mensurou-se essa
variável por meio do instrumento padronizado Posições sobre o Processo de
Enfermagem(12). O instrumento, uma adaptação do Positions on Nursing
Diagnosis,é composto por 20 duplas de adjetivos, sendo que um dos adjetivos de
cada dupla representa uma disposição favorável ao conceito e, o outro, a
desfavorável(12). Cada dupla é separada por sete pontos equidistantes e o
respondente deve marcar um deles de acordo com a proximidade de sua disposição
com um dos adjetivos de cada dupla. A pontuação total no instrumento varia
entre 20 e 140, e quanto maior, mais favorável a atitude frente ao PE. No
estudo em que o desenvolvimento do instrumento Posições sobre o Processo de
Enfermagem foi realizado(12), as estimativas de consistência interna (alfa de
Chronbach) resultaram adequadas: para a amostra total de 1.489 auxiliares e
enfermeiros foi 0,95; para a subamostra de 889 auxiliares alcançou 0,96; e para
a subamostra de 600 enfermeiros totalizou 0,95(12).
Power as Knowing Participation in Change Tool. A percepção da enfermagem quanto
ao seu próprio poder tem sido analisada por vários referenciais teóricos
(13,14). Há duas perspectivas antagônicas nos estudos sobre o poder. Numa
delas, ele é tratado como elemento de dominação de outras pessoas - 'o poder
sobre' algo ou alguém; na outra, como elemento necessário à participação nas
mudanças nos ambientes de vida - 'o poder para' fazer algo, para participar das
mudanças. Na perspectiva do 'poder para', estudo verificou diferença de
conhecimento, envolvimento com o cuidado, entre outras variáveis, de
enfermeiros que se percebiam com mais ou menos poder(13). Na outra perspectiva,
a do 'poder sobre', a análise do discurso de enfermeiros de unidades de
internação clínica e cirúrgica identificou o conhecimento científico como valor
e meio de obter segurança no agir e assegurar o poder(15).
Neste estudo, intenciona-se conhecer a percepção de poder que a enfermagem tem
em relação às mudanças, admitindo-se que tal percepção pode se associar às
atitudes e aos comportamentos relativos à operacionalização do PE. O poder,
neste estudo, foi definido como a capacidade de participar intencionalmente da
natureza das mudanças(14). Envolve a consciência que a pessoa tem do contexto
em que se insere (Consciência), a percepção sobre o modo como ela faz suas
escolhas (Escolhas); a percepção sobre a liberdade que tem para agir
intencionalmente (Liberdade) e sobre o seu envolvimento na criação de mudanças
(Envolvimento)(14). Poder como participação intencional é estar cônscio do que
se escolhe fazer, sentir-se livre para fazer o que se escolhe, fazer
intencionalmente o que se escolheu e envolver-se na criação de mudanças(14).
A percepção de poder pôde ser avaliada por meio do instrumento Power as Knowing
Participation in Change Tool (PKPCT)(14), o qual usa a técnica do diferencial
semântico para medir o significado dos indicadores operacionais de poder:
consciência, escolhas, liberdade para agir intencionalmente e envolvimento na
criação de mudanças. O PKPCT tem as mesmas 12 duplas de adjetivos aplicadas aos
quatro indicadores operacionais de poder, totalizando 48 itens que podem variar
de 1 a 7 pontos(14). A décima terceira dupla de adjetivos de cada subescala é a
repetição invertida de uma dupla de adjetivos para testar a confiabilidade das
respostas e não é pontuada no escore total(14). O escore total do PKPCT pode
variar de 48 a 336 e não há ponto de corte: quanto maior a pontuação, maior a
percepção de poder(16). A confiabilidade nos 48 itens, verificada pelo alfa de
Cronbach, variou de 0,88 (primeira aplicação) a 0,98 (segunda aplicação) em um
estudo do tipo "antes e depois" envolvendo 60 enfermeiros brasileiros(16).
Índice de Qualidade de Vida no trabalho para Enfermeiros - versão reduzida.
Neste estudo, a qualidade de vida no trabalho é definida como percepção de
satisfação dos enfermeiros com aspectos do trabalho por eles considerados
importantes(17). Essa variável foi escolhida com base no pressuposto de que
quanto melhor a qualidade de vida no trabalho percebida pelos profissionais de
enfermagem, melhor é também a disposição para mudanças, como a implementação do
PE. Investigou-se a qualidade de vida no trabalho por meio do instrumento
Índice de Qualidade de Vida no trabalho para Enfermeiros (IQVT)(17). O IQVT é
composto por 31 itens distribuídos em quatro domínios: valorização e
reconhecimento institucional; condições de trabalho, segurança e remuneração;
identidade e imagem profissional e integração com a equipe(17). A medida no
IQVT fundamenta-se nos graus de satisfação e de importância percebidos pelos
enfermeiros(17). Cada item é pontuado em duas escalas do tipo Likert.
A primeira, que mensura a satisfação, pode variar de um, muito insatisfeito, a
cinco, muito satisfeito. A segunda escala mensura a importância e pode variar
de um, nada importante, a cinco, muito importante. O instrumento apresenta uma
questão geral sobre qualidade de vida que não entra no cálculo do escore total
do instrumento(17). Para o cálculo do escore em cada domínio, deve-se
inicialmente recodificar a pontuação dos itens de satisfação. Para tanto, deve-
se subtrair o valor três dos escores atribuídos a cada um dos cinco níveis de
satisfação e, assim, obter os valores -2, -1, 0, +1 e +2. Em seguida, os
escores recodificados são multiplicados pelos valores atribuídos na escala de
importância. O escore total é obtido somando-se os valores dos itens de cada
domínio e dividindo-se pelo número de itens respondidos. Com a finalidade de
eliminar pontuações negativas, soma-se 10 aos valores obtidos, assim a
pontuação no domínio pode variar de 0 a 20. Valores mais altos indicam melhor
qualidade de vida no trabalho(17). Em estudo com 348 enfermeiros, o IQVT
apresentou alfa deCronbach de 0,94 para o total de itens e de 0,77 a 0,92 para
os domínios(17).
Escala de Estresse no Trabalho. O estresse ocupacional, objeto de muitas
investigações, pode ser abordado do ponto de vista dos estressores
organizacionais, das respostas dos indivíduos a esses estressores ou dos
diversos aspectos envolvidos no processo estressor-resposta(18). Sob a
perspectiva do estressor-resposta, pode ser entendido como um processo em que o
indivíduo avalia as demandas do trabalho como estressores que excedem suas
habilidades de enfrentamento e resultam em reações negativas (18). O estresse
ocupacional foi avaliado por meio da versão reduzida da Escala de Estresse no
Trabalho, composta por 13 itens, cujas respostas podem variar de um, discordo
totalmente, a cinco pontos, concordo totalmente; quanto maior a pontuação,
maior o estresse apresentado(18). O instrumento consiste em uma medida geral de
estresse, cujos itens abordam estressores diversos e reações emocionais
constantemente associadas aos mesmos(18). No estudo de desenvolvimento, a
escala apresentou adequadas estimativas de validade e confiabilidade de 0,85,
avaliada pelo alfa de Cronbach(18).
Maslach Burnout Inventory. O esgotamento profissional da enfermagem, também
conhecido por burnout, parece estar envolvido nos fatores do trabalho que
contribuem para os resultados dos pacientes(19). Estudos brasileiros e
internacionais apontam que os membros da equipe de enfermagem são especialmente
susceptíveis ao esgotamento profissional devido ao conteúdo e contexto próprios
dos trabalhos que realizam(8-20). O esgotamento profissional foi introduzido
neste projeto por estar possivelmente associado a resultados das mudanças nos
serviços de saúde como a implantação do PE. Avaliou-se o burnout por meio do
instrumento Maslach Burnout Inventory (MBI) que contém 22 itens distribuídos em
três domínios: exaustão emocional, diminuição da realização pessoal e
despersonalização. A soma das respostas dos sujeitos determina a variação de
cada domínio: nove a 45 pontos para exaustão emocional, entre cinco e 25 para a
despersonalização e entre oito e 40 para a realização pessoal(21). Nos domínios
exaustão e despersonalização, quanto maior a pontuação, maior o sentimento de
exaustão emocional e despersonalização percebido pelo enfermeiro. Em relação ao
domínio diminuição da realização pessoal, maiores pontuações retratam maior
realização profissional(21).
No presente estudo foram utilizadas 5 categorias de resposta (nunca, raramente,
algumas vezes, frequentemente, sempre), o que difere do instrumento original
com 7 categorias de resposta. A opção por 5 categorias decorre da observação de
que amostra brasileira apresentou dificuldades de discriminar entre as
categorias de resposta do instrumento original(22). Estudo que realizou
avaliação das propriedades psicométricas do MBI relatadas em estudo empírico
identificou alfa deCronbach de 0,71 a 0,88 para os domínios(23).
Coleta dos dados
A Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo dispõe de sistema integrado de
dados gerenciado pelo Núcleo de Informação Hospitalar (NIH), responsável por
captar informações assistenciais e administrativas das unidades de
administração direta da SES/SP. Testes para verificar a viabilidade de coletar
dados de produtividade dos serviços diretamente do sistema de informação não
tiveram sucesso, especialmente porque os registros eram armazenados segundo
especialidades médicas e, por estarem consolidados nessa estrutura, não havia
como desentranhá-los segundo unidades de serviço por instituição, que foi o
recorte necessário para o estudo. Quanto aos recursos humanos, as solicitações
de informações por instituição na administração da SES/SP foram infrutíferas.
Por essas razões, todos os dados foram coletados localmente por assistentes de
pesquisa remunerados, os quais receberam treinamento para o estudo e foram
supervisionados presencialmente por pelo menos um pesquisador, que se
responsabilizou pelo gerenciamento da coleta e pela qualidade do material
obtido. Puderam atuar como assistentes de pesquisa estudantes de graduação de
enfermagem ou enfermeiros com experiência em PE.
As estimativas de tempo e número de equipes necessárias para a coleta dos dados
basearam-se na localização das instituições elegíveis e previsão do número de
setores existentes em cada uma, pois, até então, tais dados eram inexistentes.
Ambulatórios e hospitais da Coordenadoria de Serviços de Saúde/SES de São Paulo
foram agrupados em cinco regiões, segundo a localização no estado de São Paulo.
A Região 1 referia-se a instituições sediadas na capital do estado; a Região 2
era composta pelas instituições em municípios nos arredores da capital; a
Região 3 reunia os municípios de Itu, Sorocaba e Botucatu; a Região 4, Ribeirão
Preto, Américo Brasiliense, Santa Rita do Passaquatro e Casa Branca; e a Região
5 representava as instituições nos municípios de Presidente Prudente,
Mirandópolis, Promissão, Lins e Assis.
Agendou-se a coleta de dados em cada instituição cujo Diretor Técnico autorizou
a participação no estudo, e realizou-se contato telefônico com as responsáveis
técnicas pela enfermagem, explicando a finalidade do estudo e os procedimentos
de coleta dos dados. Os instrumentos de coleta foram enviados previamente por
e-mail, com a expectativa de que os dados a serem fornecidos pelos serviços de
informações (movimento de pacientes e produtividade) de cada instituição
estivessem disponíveis no dia da coleta de dados. No entanto, a ausência de
definições padronizadas das variáveis e a falta de padronização na metodologia
de coleta e armazenamento dos dados entre as instituições, bem como variações
nas unidades de análise em que os dados eram consolidados, exigiram que o
coletador fizesse contato com o setor de informações de cada instituição para
obter tais dados de cada unidade de serviço. Os dados de grande parte das
variáveis previstas estavam consolidados para a instituição sem, no entanto,
que se conseguisse recuperá-los por setor/unidade. Por essa razão, muitas das
análises previstas para o nível do setor só puderam ser realizadas para o nível
de instituição.
Os pesquisadores solicitaram as escalas de enfermagem e contaram os números de
profissionais em cada categoria, identificando aqueles que estavam de férias e
licença. O expediente da Diretoria de Enfermagem forneceu dados sobre os
indicadores de qualidade da assistência de enfermagem e cada unidade de serviço
foi visitada. O enfermeiro assistencial que estava de plantão aceitou conceder
entrevista, forneceu dados sobre as características operacionais do PE, por
meio de respostas a perguntas fechadas e abertas, e indicou o prontuário de um
paciente típico internado no momento da coleta para ser avaliado. O prontuário
indicado foi observado para variáveis previamente definidas sobre a
documentação do PE. Os enfermeiros assistenciais e gerentes foram convidados a
responder ao questionário Nursing Work Index - Revised (NWI-R) com o objetivo
de obter dados sobre as características do ambiente de trabalho. Os
profissionais de enfermagem que estavam de plantão no dia da coleta receberam
informações sobre os objetivos do estudo e foram convidados a responder aos
questionários Posições sobre o Processo de Enfermagem, Power as Knowing
Participation in Change Tool, Índice de Qualidade de Vida no trabalho para
Enfermeiros, Escala de Estresse e Maslach Burnout Index.
A dinâmica da coleta de dados mostrou-se flexível o suficiente para garantir a
qualidade dos dados e causar o menor impacto na rotina de enfermagem da
instituição.
Aspectos éticos
Após submissão do projeto ao Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da USP,
obteve-se autorização da Coordenadoria de Serviços de Saúde - SES/SP para
realizá-lo. Os possíveis participantes foram esclarecidos sobre o estudo e seus
procedimentos e aqueles que concordaram em participar assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido específico para cada tipo de participação.
Análise de dados
Optou-se por construir bancos de dados separados para informações
institucionais, dos setores e relativas aos profissionais de enfermagem,
mantendo-se, em cada nível, aquelas correspondentes ao nível imediatamente
superior, de forma que pudessem ser integradas em qualquer dos três níveis.
Realizou-se análise preliminar para testar a consistência dos dados,
identificar valores extremos ou erros de digitação. A base de dados deste
projeto contém informações no nível institucional (hospital ou ambulatório), no
nível de unidade de serviço de cada hospital ou ambulatório participante e no
nível do pessoal de enfermagem (enfermeiros e auxiliares de enfermagem).
Estão em andamento análises descritivas das variáveis envolvidas. Para as
análises inferenciais ou explanatórias, em que a documentação do PE é a
variável dependente no nível de unidade de serviço, ela será considerada
dicotômica (completa ou incompleta), aplicando-se a seguinte regra: completa se
houver documentação da avaliação do paciente/usuário, diagnóstico de
enfermagem, prescrição de enfermagem e evolução de enfermagem; incompleta se
faltar a documentação de uma ou mais fases do PE. Nos casos das análises em que
o PE for variável dependente no nível de instituição, ela será tratada como
contínua, e calculada como a proporção de completude da documentação do PE,
dividindo-se o número total de fases documentadas em todos os setores/unidades
por quatro vezes o número de unidades de serviço da instituição. O resultado
obtido deve, então, ser multiplicado por 100. Já a multiplicação por quatro do
total de setores/unidades da instituição visa obter o número máximo possível de
fases documentadas na instituição como um todo (avaliação, diagnóstico,
prescrição e evolução).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados obtidos deste estudo servirão para análises do ponto de vista
científico e político. Científico porque oferecerão evidências empíricas sobre
as variáveis envolvidas com a documentação do processo de enfermagem. Essas
evidências poderão confirmar ou refutar as avaliações qualitativas sobre as
relações entre variáveis de pessoal e a implementação do PE, além de ampliar a
perspectiva de análise para variáveis mais amplas, como o ambiente
organizacional. No entanto, é importante estar atento ao fato da documentação
do PE ser apenas uma extrapolação de sua implementação nos serviços. A ideia de
que o PE é um instrumento que provê um guia sistematizado para o
desenvolvimento de um estilo de pensamento que direciona os julgamentos
clínicos necessários para o cuidado de enfermagem(6) o torna intangível em sua
própria natureza; assim, a avaliação da documentação do PE provê medida apenas
indireta do grau de implementação do PE nos serviços de saúde.
Do ponto de vista político, os resultados deste estudo podem informar os órgãos
de fiscalização profissional e de acreditação de serviços sobre as exigências
ou padrões de qualidade pautados na documentação do PE. A identificação das
variáveis que explicam o grau de documentação do PE poderá nortear a definição
de estratégias e políticas capazes de promover as condições necessárias para a
boa documentação.
Ter o PE implementado e documentado em todos os encontros do usuário ou
paciente com a enfermagem é um ideal que tem desafiado a profissão e a
disciplina de enfermagem. No entanto, ter uma boa documentação do PE não
garante os melhores resultados de saúde possíveis aos pacientes/usuários que
recebem os cuidados de enfermagem. Para a pesquisa, permanece o desafio de
responder à questão: qual o impacto da implementação do PE nos resultados de
saúde dos pacientes?
Como citar este artigo: Cruz DALM, Guedes ES, Santos MA, Sousa RMC, Turrini
RNT, Maia MM, Araújo SAN. Nursing process documentation: rationale and methods
of analytical study. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016;69(1):183-9.