Jogo patológico: uma abordagem terapêutica combinada
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Introdução
O jogo patológicoé um transtorno psiquiátrico reconhecido com esse statushá
pouco mais de 20 anos. Atualmente está inserido na décima revisão da
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à
Saúde (CID-10), capítulo V: Classificação de Transtornos Mentais e
Comportamentais (1993), como F63.0 (Transtornos dos Hábitos e dos Impulsos). No
Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais IV (DSM-IV), 1994,
está localizado no capítulo 14, como um dos "transtornos de controle de
impulsos não classificados em outro local".
O jogador social é aquele que pára de jogar a qualquer hora, independentemente
de estar ganhando ou perdendo. Sua auto-estima não está ligada a ganhar ou
perder, pois outros aspectos da vida são mais importantes e recompensadores do
que o jogo, no qual raramente irá ter alguma experiência de grande ganho
(Custer, 1984). Para jogadores patológicos, o jogo tem um poder de gerar tensão
importante, principalmente na perda, e essa tensão aumenta o impulso de jogar.
Eles geralmente têm inteligência superior, são muito competitivos e
trabalhadores, além de possuírem alto grau de energia, habilidades atléticas e
boas notas na escola. Normalmente têm sucessos em desafios, são atraídos por
situações muito estimulantes e não suportam monotonia ou tarefas repetitivas. O
jogo, dependendo do resultado, altera sua auto-estima, pois, se ganham, sentem-
se poderosos e importantes e, se perdem, fracassados (Custer apudOliveira et
al., 1996).
Os poucos dados disponíveis sobre a prevalência do jogo patológico sugerem uma
incidência em torno de 1% a 3% na população adulta (DSM-IV, 1994). No Brasil,
em 1998, o bingo já era o jogo preferido de 65% dos jogadores compulsivos e, em
2001, essa preferência subiu para 90% (Ballone, 2003). Apesar de existirem
milhares de casos de pessoas com esse transtorno, há escassos estudos
publicados e com pouco conhecimento quanto à prevalência e o impacto do jogo
patológico no Brasil.
Recente pesquisa constatou que entre 171 freqüentadores de casas de apostas, 75
foram diagnosticados como jogadores patológicos. Desses, a maioria era composta
de homens (87,7%) ' a metade deles casada (50,7%) ' e tinha formação
educacional de ensino médio ou superior (82,3%), empregos em regime integral
(71,6%), média de idade em torno dos 40 anos e uma renda mensal média de R$ 4
mil (Oliveira apudTavares et al., 1999).
Nos últimos anos o que se observa é um aumento de mulheres com problemas
relacionados ao jogo, assim como vem ocorrendo em relação à dependência de
álcool e outras drogas. Aproximadamente um terço dos indivíduos com o
transtorno jogo patológico é composto de mulheres que apresentam maior
propensão à depressão e à jogatina como fuga (Tavares et al., 2004).
O jogo patológico também tem sido considerado um distúrbio do espectro
impulsivo-compulsivo sem drogas, pois as sensações experimentadas por jogadores
são descritas como similares às experimentadas por usuários e dependentes de
drogas. É comum a co-morbidade com patologias de caráter não-impulsivo, como os
transtornos do humor e de ansiedade. Características específicas (fissura,
exclusão de outras áreas da vida, tolerância e síndrome de abstinência) são
apontadas como indícios marcantes e presentes no jogador patológico para o qual
o ato de jogar seria uma forma de aplacar sensações de ansiedade e de depressão
(Custer, 1984). Porém, apesar de classificado entre os "transtornos do controle
do impulso", o jogo patológico apresenta uma natureza compulsiva devido ao ato
de jogar para evitar estados emocionais desfavoráveis, o que está associado à
sintomatologia ansiosa (Tavares, 2000).
Quanto ao tratamento do jogo patológico, existem várias modalidades de
intervenção que, se aplicadas em conjunto, poderão ser mais eficazes (O'Brien
et al.,1999).
Algumas dessas intervenções são listadas a seguir:
psicoterapia individual, cujo principal objetivo apontado é incentivar o
jogador a compreender as razões pelas quais é levado a jogar e a lidar com os
seus sentimentos de impotência, depressão e culpa;
grupos de auto-ajuda como Jogadores Anônimos (JA), que seguem a mesma
proposta dos outros grupos voltados para o acompanhamento de pessoas com
problemas relacionados ao uso indevido ou abusivo de álcool e outras drogas:
Alcoólicos Anônimos (AA), Narcóticos Anônimos (NA), Nar-Anon, etc.;
terapia familiar, pois as mentiras, os enganos, a falta de confiança e os
problemas financeiros criados pelos comportamentos dos jogadores patológicos
podem criar problemas também para os familiares. Abre-se então, com a terapia
familiar, um espaço de fala e reflexão para os familiares do paciente;
tratamento farmacológico, em relação a esse auxílio terapêutico, há
resultados positivos com o uso de estabilizadores de humor e antidepressivos,
pois a melhora dos pacientes está muito associada ao alívio dos sintomas de
depressão e ansiedade que são co-morbidades à patologia.
O objetivo deste trabalho consiste em relatar o caso clínico de uma paciente
com diagnóstico de jogo patológico acompanhada com uma intervenção combinada
(psicoterapia psicanalítica e farmacoterapia).
Relato de caso
Paciente W., 37 anos, sexo feminino, parda, solteira, terceiro grau com
formação em Direito. Foi atendida no Ambulatório do Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), na Recepção do Programa de
Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (PROJAD) no ano de 2003.
Na primeira entrevista com a psicóloga de plantão, a paciente estava muito
nervosa, chorosa, sentindo-se perdida, "no fundo do poço", e sem saber mais o
que fazer. Devido ao jogo contraiu diversas dívidas, relatou estar devendo em
torno de R$ 17 mil. Referiu freqüentar bingos com certa constância (± cinco
vezes em quatro dias na semana), e que começou a jogar há cerca de cinco anos.
Também se sentia muito envergonhada, sem conseguir voltar para casa, o que a
levou a perambular pelas ruas e a pedir esmolas depois de ter perdido todo o
dinheiro que ganhou em um bingo. Apresentava-se com aparência muito descuidada,
cabelos maltratados, roupas em desalinho e fisicamente cansada. Dizia "ganhar
dinheiro não é problema, o problema é ficar com ele na mão, é uma compulsão,
não consigo me controlar" (sic). Atuava profissionalmente como advogada, mas
gastava tudo que ganhava jogando em bingos.
A terapeuta sugeriu no início do tratamento que se mantivessem em contato por
três sessões semanais, pois era preciso ocupar o tempo ocioso da paciente a fim
de evitar idas mais constantes dela aos bingos. Porém ela não comparecia a
todas as sessões, se justificando muitas vezes por não estar conseguindo chegar
a tempo. Atrasos também eram constantes, algumas vezes decorrentes de suas idas
a bingos.
O tratamento medicamentoso adotado foi fluoxetina 10mg/dia, com aumento gradual
da dose até chegar a 60mg/ dia, pois a paciente também apresentava quadro de
depressão como co-morbidade.
W. percebeu, com o decorrer de seu tratamento, que era capaz de ficar com
determinada quantia que ganhava no bingo sem precisar apostar tudo novamente,
ficando então muito feliz com esse importante passo para sua melhora. A
paciente ficou em tratamento no ambulatório do IPUB/UFRJ por praticamente um
ano, perfazendo um total de 38 sessões. Ao final do tratamento, referiu sentir
menos fissura por jogo do que antes, conseguindo guardar dinheiro e atuar em
sua área de trabalho, e continuou freqüentando bingos, mas no máximo duas vezes
por semana.
A medicação foi mantida durante todo o seu tratamento ambulatorial,
aproximadamente um ano. Ao fim de 2004, a paciente interrompeu o tratamento,
referindo estar muito ocupada em razão de estudos voltados para concursos na
sua área de trabalho.
Discussão
A abordagem teórica utilizada para a compreensão do caso foi a teoria
psicanalítica. Segundo Figueiredo (2002), para que se efetue um trabalho
clínico baseado na psicanálise e que seja diferente do campo das psicoterapias
em geral, existem três condições mínimas.
A primeira condição é que haja o contato com a realidade psíquica, cuja fonte
primária é o inconsciente do sujeito. É na própria palavra do sujeito que
começa o trabalho clínico, pois o tratamento do sofrimento psíquico só pode ser
feito pelo que aparece dessa realidade em palavras e ações prenhes de sentido.
A segunda condição é a transferência que se efetua dentro do trabalho clínico,
na relação que se estabelece entre terapeuta e paciente. De início o paciente
transmite sua queixa para o outro, aquele que o atende e que pode curá-lo.
Depois, com o decorrer dos atendimentos, a sua queixa é transformada em
questão, a transferência então deixa de ser uma expectativa imediata de cura
para se transformar em transferência analítica. A terceira condição é o
trabalho da interpretação, que é um recurso do terapeuta. Deve-se ter em mente
que uma palavra e/ou ação do terapeuta só tem valor de interpretação, como
efeito, num tempo posterior, pois o tempo para a psicanálise não é linear ou
evolutivo. Trabalha-se com uma retroação do tempo atual sobre o anterior, seja
no trauma, seja na construção da fantasia, no sintoma ou na cena analítica
(Figueiredo, 2002).
No caso clínico apresentado neste trabalho houve um interesse inicial por parte
da terapeuta em investigar a história pessoal e familiar da paciente. O
problema de W. com o jogo patológico foi compreendido, tendo como base os
conflitos familiares vividos de forma muito sofrida e traumática. Com o
decorrer do tratamento a terapeuta pôde entender, ao lado da paciente, que suas
idas a bingos eram fomentadas por uma espécie de fuga dos problemas no seu meio
familiar. W. se referia à mãe como ausente em muitos momentos de sua vida e, ao
mesmo tempo, muito controladora e invasiva. O pai se suicidou quando ela tinha
12 anos, fato que a fez sentir-se culpada.
Entre os temas discutidos no decorrer do seu tratamento, destaca-se sua
impossibilidade de entrar em contato emocional direto com tantas faltas. É como
se, de forma inconsciente, ela buscasse no jogo alguma sensação que aplacasse
e/ou que preenchesse essa falta do pai e o desamparo da mãe.
As três fases do comportamento de jogar estudadas por Custer (1984) são as
fases da vitória, da perda e do desespero. Na primeira, as vitórias tornam-se
cada vez mais excitantes e o indivíduo passa a jogar com maior freqüência,
acreditando que é um apostador excepcional. Na segunda, a atitude de otimismo
não-realista passa a ser característica do jogador patológico. A perda passa a
ser difícil de ser tolerada. O dinheiro que ganhou no jogo é utilizado para
jogar mais e, em seguida, o indivíduo emprega o salário, as economias e o
dinheiro investidos. Já na fase do desespero há um aumento de tempo e dinheiro
gastos com o jogo e o afastamento da família. Exaustões física e psicológica
são comuns, pois o indivíduo tenta de todas as formas saldar suas dívidas
contraídas em jogo.
Quando W. chegou ao ambulatório já estava na fase do desespero, pois as dívidas
que havia contraído eram exorbitantes. Ela não sabia mais o que fazer para
saldá-las, mas tinha consciência de que não conseguiria parar de jogar sem
ajuda profissional. As suas relações com a família já estavam se deteriorando,
e seu cuidado com a aparência estava completamente abandonado. Nas sessões
também não parava de chorar quando começava a falar a respeito de sua condição
psicológica na época. Sentia-se extremamente desamparada e sozinha, não tendo
mais a quem recorrer. A fase da vitória tinha passado há algum tempo. Já não
estava sentindo prazer em ir a bingos como antes, não jogava mais por diversão
e sim por impulso.
Quanto à fase da perda, pode-se dizer que antecedeu a do desespero, mas também
se observou que a paciente deslizava pelas duas fases no decorrer do
tratamento, pois enquanto não interrompeu suas idas aos bingos igualmente não
cessaram suas apostas altas de dinheiro nas rodadas, seus gastos com várias
cartelas de uma só vez e, conseqüentemente, suas perdas irreparáveis. W. via no
bingo uma solução para pagar suas contas, suas dívidas e colocava seu trabalho
em segundo plano.
É importante ressaltar que ao fim do tratamento houve a possibilidade de
controle do ato de jogar por parte da paciente. No início freqüentava bingos
com uma assiduidade de cinco vezes em quatro dias por semana, sem controle
algum de quanto havia gastado por dia. Ao final, passou a freqüentar bingos
duas vezes por semana, sabendo que não gastaria mais do que duzentos reais. Tal
valor foi estipulado pela própria paciente, que passou a ter uma percepção mais
realista sobre seus gastos no jogo. De início, ela se preocupou em como faria
para deixar de ir ao bingo, depois substituiu tal preocupação por um controle
do seu ato de jogar, fato extremamente terapêutico e eficaz para a sua melhora.
Conclusão
A paciente referida neste trabalho preencheu os critérios diagnósticos para
jogo patológico e transtorno depressivo, e obteve sucesso com o tratamento.
Além da intervenção medicamentosa, a abordagem psicológica considerada
referencial no atendimento dessa paciente foi a psicanalítica. Essa
compreensão, entretanto, não foi a única privilegiada durante o tratamento,
pois técnicas de controle do impulso de jogar (comportamentais) também foram
utilizadas. Porém, "a resposta ao tratamento parece depender menos da
orientação teórica que o terapeuta segue e mais de um programa de consultas
concatenadas, em uma ordem que faça sentido para o paciente, numa freqüência de
pelo menos uma vez por semana" (DeCaria et al., 1996 apudTavares et al, 1999).
Outra questão importante para reflexão diz respeito ao desenvolvimento de novas
estratégias de tratamento para os jogadores patológicos, visto que nesse caso a
paciente foi atendida em um ambulatório que oferece atendimento ao uso indevido
de drogas. Acreditamos que um trabalho de equipe, com profissionais mais
especializados nesse tipo de transtorno, fosse capaz de oferecer um tratamento
mais eficaz num menor espaço de tempo.