Estudos de associação entre transtorno obsessivo-compulsivo e genes candidatos:
uma revisão
Introdução
Os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) são descritos na
literatura médica desde o século XIX, mas provavelmente sempre acompanharam o
ser humano. Também há muito se percebe que o TOC teria um componente familiar,
que possivelmente seria hereditário. Pierre Janet, por exemplo, na sua
descrição sobre a psicastenia, em 1903, observou uma freqüência de 28% dessa
condição entre os genitores dos pacientes (Pauls et al., 1991).
Hoje há muitas evidências provenientes de estudos de epidemiologia genética,
particularmente estudos familiares e com gêmeos, de que o TOC não apenas se
agrega em famílias, mas também que seria, pelo menos em parte, geneticamente
determinado (Pauls e Alsobrook, 1999; Nestadt et al., 2000; van Grootheest et
al., 2005).
A partir dessas evidências, estudos têm sido realizados com o objetivo de se
determinar qual, ou, mais provavelmente, quais seriam os genes associados ao
TOC. Duas principais estratégias são usadas para esse propósito: os estudos de
escaneamento genômico global e os de associação.
Na primeira abordagem, objetiva-se identificar ligações existentes entre TOC e
marcadores genéticos em famílias com múltiplos indivíduos afetados e, assim,
encontrar regiões cromossômicas onde possam existir genes de suscetibilidade
para esse transtorno. Esses estudos são mais raros e, recentemente, foi
publicado o maior deles, que encontrou como candidatas as regiões cromossômicas
1q, 3q, 6q, 7p e 15q (Shugart et al., 2006).
A segunda abordagem, muito mais comum no TOC, são os chamados estudos de
associação ou estudos com genes candidatos. Nesse tipo de estudo, as
freqüências dos diferentes alelos de um determinado gene candidato são
comparadas entre um grupo de casos e um grupo-controle. Esses genes candidatos
são geralmente escolhidos por codificarem proteínas que, do ponto de vista
neurobiológico, ou a partir de considerações teóricas sobre a fisiopatologia do
TOC, podem estar associadas a esse transtorno. Significativo número de estudos
utiliza também os chamados métodos baseados em famílias, ou seja, o método de
risco relativo de haplótipos (HRR) e o teste de desequilíbrio de transmissão
(TDT) (Thapar et al., 1999). No HRR, para determinado marcador, compara-se a
freqüência dos alelos parentais transmitidos ao filho afetado com a freqüência
dos alelos parentais não transmitidos. Já o TDT, um teste de ligação, avalia a
segregação dos alelos. Qualquer que seja a freqüência nos pais, a chance de
transmissão de cada alelo é de 50%. Portanto verifica-se ligação quando há uma
distorção dessa segregação, ou seja, transmissão preferencial de um dos alelos
parentais.
Nesta revisão narrativa, nosso objetivo foi descrever e avaliar criticamente os
estudos de associação entre polimorfismos de genes candidatos e TOC publicados
até o momento.
Métodos
Realizamos uma busca na base de dados Medline utilizando os seguintes termos de
procura: obsessive-compulsive disorder (OCD) e/ou gene(s), polymorphism(s),
genetic(s). Consideramos artigos nas línguas portuguesa, inglesa, espanhola,
italiana, francesa e alemã até agosto de 2006. Também realizamos uma revisão
suplementar da literatura a partir das referências citadas pelos artigos
selecionados.
Com base nos resultados obtidos, 59 artigos foram selecionados para esta
revisão. Desses, 42 apresentaram metodologia baseada na comparação entre casos
e controles, e 22 trabalhos com famílias utilizando o TDT e/ou HRR.
Resultados
Estudos envolvendo a via serotoninérgica
A observação de que a clomipramina apresenta bons resultados no tratamento do
TOC foi a primeira indicação de que a serotonina poderia exercer papel nesse
transtorno. A clomipramina tem grande afinidade pelo sítio de recaptura de
serotonina (5HT) e baixa afinidade pelo sítio correspondente da noradrenalina
(NA). Porém seu metabólito desmetilclorimipramina inibe predominantemente a
recaptura de NA. Logo, a clomipramina não pode ser considerada verdadeiro
inibidor seletivo da recaptação de serotonina (ISRS) quando administrada
cronicamente (Zohar et al., 1988). Contudo outras evidências fortalecem a
hipótese da mediação serotonérgica na ação farmacológica anti-TOC. Por exemplo,
alguns estudos demonstraram que antidepressivos com maior ação noradrenérgica
são menos eficazes que a clomipramina no TOC. Essa diferença contrasta com a
equivalência da ação terapêutica de drogas predominantemente serotoninérgicas e
noradrenérgicas no transtorno depressivo unipolar. Posteriormente, os ISRSs,
como fluoxetina, fluvoxamina e sertralina, que, mesmo apresentando metabólitos
sem ação na recaptação de NA, mostraram eficácia no tratamento do TOC (Zohar et
al., 1992).
Gene do transportador de 5HT
O gene do transportador de serotonina é de particular interesse, pois se
postula que a magnitude e a duração da atividade serotoninérgica sejam
reguladas pelo transportador de serotonina (5HTT), que controla a recaptura de
serotonina na fenda sináptica. O gene codificador do 5HTT está localizado no
cromossomo 17 (17q11.1-q12) e tem uma seqüência de 31 kb, que é organizada em
14 éxons (Lesch et al., 1996). Na região promotora desse gene há duas variantes
alélicas, uma longa (L) e outra curta (S), que diferem entre si por 44 pares de
base. Essa mutação leva a alterações funcionais, tendo sido demonstrado que a
variante longa do transportador capta cerca de duas vezes mais serotonina do
que a curta (Collier et al., 1996).
A maioria dos estudos tem obtido resultados negativos, visto que apenas quatro
trabalhos demonstraram associações estatisticamente significativas entre casos
e controles (Tabela_1).
Outra abordagem adotada é a procura de associações, não apenas com o
diagnóstico de TOC, mas com características clínicas específicas desse
transtorno. Ao se correlacionar a resposta à fluvoxamina e ao genótipo do
paciente, achados significativos foram encontrados apenas no subgrupo
constituído por pacientes sem tiques (Di Bella et al., 2002). No mesmo ano, em
um subgrupo de pacientes com tiques, encontrou-se associação entre os genótipos
L/L, com maiores escores para rituais de contagem e repetição pela escala Y-
BOCS (Cavallini et al., 2002). Posteriormente observou-se que o alelo L está
relacionado a sintomas das esferas religiosa e somática (Kim et al., 2005), e
que o alelo S e o genótipo S/S estão relacionados a obsessões de simetria e
compulsões de contagem, repetição e arrumação (Hasler et al., 2006). Diferenças
entre os sexos também já foram observadas, com os casos do sexo feminino
apresentando maior freqüência do alelo S (Denys et al., 2006).
Genes dos receptores 5HT
Nos últimos anos, uma enorme quantidade de informações sobre a identificação e
a função dos receptores serotoninérgicos foi produzida. Até o momento já foram
identificadas sete classes de receptores 5HT (5HT-1 a 5HT-7), perfazendo um
total de 15 subtipos (por exemplo, 5HT-2A e 5HT-2C) (Graeff, 1997). O papel dos
genes dos receptores 5HT2A, 5HT2C, 5HT1Db e 5HT1B no TOC já foi estudado, mas
os resultados são inconclusivos (Tabela_2).
Assim, como observado nos estudos envolvendo o gene do 5HTT, existem evidências
correlacionando alguns polimorfismos com determinadas diferenças clínicas:
maior gravidade da doença (Tot et al., 2003; Levitan et al., 2006);
maiores escores de obsessões pela Y-YBOCS (Camarena et al., 2004);
início precoce dos sintomas e história familiar positiva (Denys et al.,
2006);
distinção pelo sexo (Lochner et al., 2004).
Estudos envolvendo a enzima triptofano-hidroxilase
Outro candidato é o gene que codifica a enzima triptofano-hidroxilase, a qual a
biossíntese da serotonina (Delorme et al., 2006). Estudos de caso-controle com
os polimorfismos T1095C (Han et al., 1999; Frisch et al., 2000) e R441H
(Delorme et al., 2006) foram negativos, assim como um estudo de família com
polimorfismo de nucleotídeo simples (SNP) (rs1800532) (Walitza et al., 2004). O
único resultado positivo foi em um estudo familiar com dois SNPs (rs4570625 e
rs4565946), mostrando significativa transferência do haplótipo G-C entre os
casos (Mossner et al., 2005). Portanto percebe-se que, dos poucos estudos que
avaliaram o gene da enzima triptofano-hidroxilase, não se estabeleceu
claramente um alvo genético definido.
Estudos envolvendo a via dopaminérgica
O sistema dopaminérgico apresenta pelo menos cinco subtipos de receptores, os
quais se expressam em quantidades variáveis nessas vias (conhecidos como D1 a
D5 ou DRD1 a DRD5) (Frisch et al., 2000).
Há várias evidências de que alterações genéticas, as quais determinam disfunção
dopaminérgica nos núcleos da base, possam estar envolvidas na etiologia de
sintomas obsessivos-compulsivos (Tabela_3). Essas alterações reforçam a relação
clinicofamiliar entre o TOC e a síndrome de Tourette (Graybiel e Rauch, 2000).
De fato, o grupo de indivíduos afetados por TOC e tiques deve representar um
subtipo genético mais dopaminérgico e diferente daqueles que não apresentam
tiques (Nicolini et al., 1996; Cruz et al., 1997; Nicolini et al., 1998; Millet
et al., 2003).
Estudos envolvendo a enzima catecol-O-metiltransferase
A catecol-O-metiltransferase (COMT) está envolvida na metabolização de
catecolaminas, como a dopamina e a noradrenalina. Há duas formas dessa enzima:
uma solúvel encontrada em vários tecidos, e outra ligada à membrana plasmática.
A forma solúvel apresenta atividades enzimáticas diferentes devido à
substituição de um nucleotídeo (uma citosina por uma adenina) na posição 158 do
gene que a codifica. Essa substituição nucleotídica acarreta mudança de
aminoácido, uma valina (alta atividade enzimática ' alelo H) por uma metionina
(baixa atividade ' alelo L), na estrutura protéica dessa enzima (Karayiorgou et
al., 1997).
Os trabalhos têm sido quase unânimes ao escolherem esse polimorfismo para se
investigarem associações com o TOC, com vários resultados positivos baseados na
distinção dos pacientes por sexo (Tabela_4).
Somente um trabalho avaliou um polimorfismo diferente (substituição C/T na
região promotora do gene adjacente ao ERE6), mas sem encontrar associações
estatisticamente significativas (Kinnear et al., 2001).
Estudos envolvendo a enzima monoamina oxidase A
A monoamina oxidase (MAO) é uma enzima que degrada uma série de aminas
biogênicas, entre elas a serotonina, a adrenalina, a noradrenalina e a
dopamina. Os subtipos A e B podem ser distinguidos de acordo com suas
propriedades bioquímicas e farmacológicas (Karayiorgou et al., 1999).
Em relação ao polimorfismo EcoRV não foram observadas diferenças significativas
entre casos e controles (Camarena et al., 2001; Hemmings et al., 2003; Lochner
et al., 2004). No entanto, ao distinguir os pacientes por sexo, resultados
positivos foram observados (Camarena et al., 2001; Lochner et al., 2004). Além
disso, houve associação estatisticamente significativa entre o polimorfismo Fnu
4H1 no éxon 8 do gene da MAO-A (vinculado ao aumento de sua atividade
enzimática) e pacientes do sexo masculino com co-morbidade e transtorno
depressivo maior (Karayiorgou et al., 1999).
Estudos com outras vias de neurotransmissão
Outras vias têm sido estudadas com resultados incertos para se estabelecer o
seu verdadeiro papel na fisiopatologia do TOC, apesar de serem considerados
alvos promissores de futuros estudos (Tabela_5).
Discussão
O estudo da etiopatogênese do TOC ainda está no início. Mesmo em relação à
genética, intensamente investigada nos últimos anos, os resultados são, na
maioria das vezes, negativos, sendo contraditórias muitas associações
positivas. Dessa forma, nenhum desses genes pode ser considerado necessário ou
suficiente para o desenvolvimento do TOC.
Interferências das co-morbidades ou das fenocópias (manifestações semelhantes à
doença em estudo, mas com origem não-genética) e da diferença étnica das
amostras avaliadas podem conduzir a resultados falsos. Resultados enviesados
também podem advir da própria complexidade etiológica da enfermidade, que teria
uma heterogeneidade genética, isto é, um mesmo fenótipo resultaria de
diferentes genes afetados em diferentes famílias.
Gottesman e Hanson (2005) fizeram a seguinte citação: "um dos obstáculos
primários ao progresso em conectar as contribuições genotípicas aos muitos
fenótipos humanos é que os traços submetidos a análises genéticas carecem de
significado biológico". Eles argumentam que, ao estudarmos o produto de um
processo que pode ter levado décadas, "nós freqüentemente temos muito feno' e
insuficiente geno' para fazer sentido do traço" (Gottesman e Hanson, 2005).
Como os diagnósticos psiquiátricos são feitos em nível de sintomas clínicos, é
provável que o caminho do genótipo/fenótipo seja longo e complexo, com muitos
exemplos de convergência e divergência. Dessa maneira, é tentador estudar
traços que são intermediários entre a apresentação clínica e seu fundamento
genético. Esses traços ou endofenótipos são mais simples do ponto de vista
genético, provavelmente por estarem associados a menos lócus genéticos
(Gottesman e Gould, 2003). Isso pelo fato de que, ao reduzir a complexidade do
marcador, também deverá ser reduzida a complexidade de sua base genética.
Ao invés de se procurar por genes codificando transtornos complexos, a pesquisa
de endofenótipos procura por genes de traços simples, idealmente monogênicos,
que acompanham as doenças e provavelmente contribuem para sua fisiopatologia.
Se os fenótipos associados a um transtorno são muito restritos e representam
fenômenos mais elementares, o número de genes necessários para produzir
variações nesses traços pode ser menor do que aqueles envolvidos na produção de
uma entidade psiquiátrica complexa (McQueen et al., 2005).
Ao se considerar como base os estudos revisados, nota-se a necessidade de se
identificar fenótipos intermediários ou endofenótipos, características essas
que podem proporcionar maior objetividade na seleção de genes candidatos na
fisiopatologia do TOC. Um passo importante para definir endofenótipos
clinicamente relevantes seria a busca de subtipos de TOC. Assim, desde os
primeiros estudos realizados no final da década passada, fatores como época de
aparecimento dos sintomas (TOC de início precoce vs. tardio), distribuição
familiar, presença de tiques e sexo dos pacientes vêm se firmando como subtipos
concretos para esse fim. Além deles, estão sendo obtidos resultados
significativos em relação à intensidade e às características dos sintomas, com
as principais dimensões sintomáticas (contaminação e limpeza; colecionismo;
simetria, ordem, contagem e arranjo; sexo e religião; agressão; obsessões e
compulsões diversas), aparentando fazerem parte de subtipos clínicos distintos.
Também se deve mencionar que, apesar de haver poucos estudos, características
como maior ou menor insight da doença e a presença de outras co-morbidades
médicas também podem, no futuro, integrar a lista de subtipos plausíveis nas
investigações a respeito da etiologia do TOC.
Conclusão
O futuro do estudo da etiopatogênese do TOC envolve, certamente, a definição de
possíveis endofenótipos em que a heterogeneidade clínica esteja reduzida. Além
disso, são necessárias reproduções dos resultados positivos em amostras de
pacientes provenientes de diferentes países antes de se aceitar um agente
ambiental e/ou um gene candidato como fator de suscetibilidade.