Uma abordagem histórica das representações sociais de saúde e doença
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A APRESENTAÇÃO, UMA DEFESA DE PROPÓSITOS
Quando apresento uma abordagem histórica das representações de saúde e doença,
é necessário que aponte meu ponto de vista. Devo localizar no espaço do
conhecimento o lugar de onde parte meu olhar. Desta localização depende o que
podemos visualizar.
Inicialmente, quero contar o que li há pouco num artigo de Everardo Duarte
Nunes (1992). Trata-se de uma citação de uma autora norte-americana (Fox, 1985)
sobre os quarentões como eu, quando, "na plenitude de sua melancolia", não se
tornam cinqüentões, mas, sob a ameaça do crescimento desta melancolia na década
seguinte, voltam-se para trás e tornam-se historiadores. Não sou um historiador
de ofício e talvez a constatação anterior justifique a pretensão deste ensaio.
Qual seja a de consultar o passado para melhor sentir as inquietações do
presente.
Ao trafegar numa ambientação histórica, onde as representações sociais envolvem
a saúde e a doença, faço-o através de projetos e propostas mais recentes,
ligadas a uma conformação determinada da Ciência da História. Refiro-me, então,
à ordem simbólica, que é o que dá vida à realidade, pois é onde se movimentam
os corpos e as imagens, onde se expressam as ambigüidades humanas, os
pensamentos, sensações, ações e atitudes que refletem as representações
coletivas. Neste contexto, utilizo alguns conceitos e noções que desejo
comentar. Vale dizer ainda que, ao identificar a história como um saber
interpretativo da memória coletiva (Birman, 1991) e compor minha exposição com
aportes da chamada história nova dos Annales, o recurso ao emprego de noções,
enquanto elementos mais imprecisos e mais abertos que os conceitos (Minayo,
1992), é necessário.
Vem da história nova da escola dos Annales, nascida a partir da fundação da
revista Annales D'Histoire Économique et Sociale por Lucien Febvre e Marc Bloch
em 1929, a perspectiva alternativa da "longa duração" para o tempo histórico.
Fernand Braudel, o grande historiador da segunda fase dos Annales das décadas
de 1950 e 60, atribuía ao tempo longo uma consistência maior do que ao tempo
curto da tradicional história dos acontecimentos. Uma postulação que,
posteriormente, opôs também uma história cultural ao fôlego curto de uma
história política conduzida por revoluções breves. No tempo longuíssimo, onde
Braudel visualiza "camadas de história lenta", aparentemente imóveis, movendo-
se porém na "semi-imobilidade", é que se abrigam as estruturas, arquiteturas às
vezes "de uma vida tão longa que se convertem em elementos estáveis de uma
infinidade de gerações: obstruem a história entorpecem-na e, portanto,
determinam a sua marcha" (1986).
Penso que não há como transitar numa história das representações de saúde e
doença, através da história tradicional que tem o seu fundamento nos
acontecimentos, eventos rápidos, enquanto motores da humanidade. Acredito na
plurisecularidade das relações entre os seres humanos e os seus corpos,
relações que forjam as representações de uma cultura da saúde e da doença,
admitindo o caráter provocativo que reveste tal expressão. Eis porque, mais do
que mudanças, procuro as permanências culturais na longa duração.
Uma abordagem histórica assim construída, onde as representações e sua
alimentação de vestígios imemoriais, traços da consciência e elementos do
inconsciente são o centro da atenção, apresenta problemas no que diz respeito
ao seu encaixe em uma taxonomia precisa. No âmbito da história nova, a
perspectiva que escolhi pode ser situada como uma história das mentalidades,
dominante na fase mais recente dos Annales (Hunt, 1992), ou uma história das
culturas. Para Ginzburg (1991), "o que tem caracterizado os estudos de história
das mentalidades é a insistência nos elementos inertes, obscuros, conscientes
de uma determinada visão de mundo".
Ginzburg afirma que o componente racional participaria da história da cultura,
mas esclarece, também, que para alguns autores esta última englobaria tanto a
história das idéias quanto a das mentalidades. Como persigo as permanências
culturais no tempo longo, soam-me bastante interessantes as observações de
Vovelle (1990) de que as mentalidades, "campo privilegiado da longa duração",
significariam a culminância da história social, um domínio onde "as
pertinências se inscrevem em atitudes e representações coletivas". Domínio que
Ariès (1990) remete a um "inconsciente coletivo". Para a crescente história das
mentalidades, o cultural não é subordinado ou determinado pelas relações
políticas e econômicas, mas sim o próprio espaço onde estas se manifestam.
De qualquer modo, neste texto, examino a possibilidade de uma história das
representações de saúde e doença, como elementos da ordem cultural, sob uma
escala de visualização ampla. Assim procedendo, não desprezo, como pode parecer
a princípio, o poder revelador da observação microscópica da microhistória
(Levi, 1992) ou a importância do relativismo cultural. No entanto, meu objeto
de interesse no momento é a perspectiva geral, até mesmo como fonte de
discussão para investigações mais segmentadas.
Devo considerar o que afirma Ginzburg (1991) ao alertar para o grande risco de
extra-polações indevidas decorrente da "conotação terminantemente
interclassista da história das mentalidades", embora, ao mesmo tempo, não negue
a "legitimidade de investigações desse tipo". Afinal, como percebe Le Goff
(1988), é na história das mentalidades, uma história em construção, que se acha
"o que Cézar e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus
domínios, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum".
Sem dúvida, este aspecto interclassista é hoje uma questão central do debate
travado entre historiadores de linha marxista e historiadores das mentalidades,
quando ambos os grupos assumem a predominância da cultura na formulação
histórica (Vovelle, 1991; Hunt, 1992).No entender de Herzlich (1991), ao tratar
das representações de saúde e doença,
"por ser um evento que modifica, às vezes irremediavelmente, nossa vida
individual, nossa inserção social e, portanto, o equilíbrio coletivo, a doença
engendra sempre uma necessidade de discurso, a necessidade de uma interpretação
complexa e contínua da sociedade inteira."
A autora sustenta que "o estudo das variações segundo grupos sociais ou segundo
populações particulares pode, certamente, constituir um aporte", embora tal
perspectiva não lhe pareça fundamental. Para ela o recurso à história como um
caminho para a análise das concepções da doença deve perseguir o conjunto dos
fenômenos macrossociais, a demarcação da articulação das representações de
saúde e doença com a patologia de uma época e sua configuração histórica e
ideológica (Herzlich, 1991).
Outra característica de minha abordagem, que deve ser considerada, é o fato de
que não componho, como seria coerente com as propostas da história nova, uma
"história vista de baixo" (Burke, 1992; Sharpe, 1992), contada a partir da
visão das pessoas comuns, da visão do paciente no caso (Porter, 1985). Muitas
das informações que utilizo, como algumas constantes da obra de Tamayo (1988)
que se refere aos conceitos e às noções sobre saúde e doença, são pertinentes
ao pensamento médico. No entanto, não percorro uma história institucional
pontuada pela apologia dos feitos dos grandes vultos da medicina, típica da
história tradicional. Busco as representações coletivas em uma história vaga,
borrada, forjada da lentidão dos espíritos, das mentalidades, visões de mundo.
Na discussão deste ponto na história das representações que proponho, a opinião
de Herzlich, mais uma vez, me é interessante. A autora (Herzlich, 1991) afirma
que lhe parece que
"É impossível reduzir o funcionamento das representações ao princípio objetivo
da distância que separa leigos e médicos, detentores do saber dominante. [...]
a doença está hoje nas mãos da medicina, mas ela permanece sendo um fenômeno
que a ultrapassa. [...] Em um plano mais geral, a história da medicina nos
mostra de que modo as relações entre saber médico e concepções do senso comum
podem estabelecer-se nos dois sentidos, sem uma dependência em sentido único,
mas com vaivéns entre o pensamento erudito e o pensamento de senso comum."
Sobre o mesmo aspecto, outra perspectiva que deve ser apontada com atenção é a
de Ginzburg (1991), quando faz suas colocações acerca de Bakhtin (1993) e uma
"circularidade", uma reciprocidade de influências entre culturas subalterna e
hegemônica. Ao estudar a visão de mundo do moleiro Menocchio, no século XVI, o
autor (Ginzburg, 1991) admite esta relação dialética entre cultura popular e
cultura de elite, quando anuncia a necessidade da superação de "uma concepção
antiquada de folclore", sustentada por aqueles que distinguem "nas idéias,
crenças, visões de mundo das classes subalternas nada mais do que um acúmulo
desorgânico de fragmentos das idéias, crenças, visões de mundo elaboradas pelas
classes dominantes vários séculos antes."
Ginzburg (1991) situa a segunda metade do século XVI, como o período a partir
do qual cada vez mais as classes dominantes e, conseqüentemente, a cultura das
elites se afastaram das classes populares e de sua cultura, o que teria levado
à desintegração gradual desta circularidade. Especificamente quanto à questão
da saúde e da doença, o moderno atestado de cientificidade da medicina,
oportunizado a partir do século XIX com o nascimento da clínica (Foucault,
1977), estabeleceu, com a abertura dos corpos, a hegemonia do discurso médico
sobre a doença, caracterizando a percepção do paciente, enquanto "sujeito-da-
doença" (Herzog, 1991). O domínio sobre os corpos poderá ter significado também
o domínio da cultura erudita, médica, sobre as representações de saúde e
doença. Vale dizer que é o espaço imaginário destas representações, onde se
inscrevem as relações entre os seres humanos e os seus corpos ou entre os
corpos dos seres humanos no coletivo, a matéria de uma nova história cultural
do corpo (Revel & Peter, 1988; Laqueur, 1992; Porter, 1992).
Não creio, contudo, no modelamento absoluto da memória coletiva pela cultura
médica, mesmo quando diante da doença se utilizam as tecnologias modernas, como
é o que pretende Boltanski (1989). Esta, aliás, foi minha preocupação central
ao especular sobre as permanências culturais no uso do medicamento alopático
moderno (Sevalho, 1992). Embora os historiadores da história nova sejam por
excelência medievalistas, como é o caso dos da escola dos Annales e de outros
como o citado Ginsburg, creio que muitas de suas postulações transcendam tal
amplitude de época. Penso que nas representações de saúde e doença persiste uma
certa dinâmica de influências recíprocas da órbita cultural. Assim, neste
ensaio que chega até a ambientação da microbiologia do início do século XX,
insisto na investigação de permanências culturais na longa duração do tempo
como participantes nas expressões das representações sociais de saúde e doença.
No âmbito do espaço do conhecimento do coletivo, onde se interpenetram a
história, a antropologia e a psicologia, onde habitam e se relacionam as falas,
os movimentos dos corpos e as atitudes. Onde persistem os automatismos e os
reflexos, "velharias intelectuais" (Le Goff, 1988), elementos contraditórios
combinados, vestígios encravados no tempo, semi-soterrados nos sítios da
memória, que constituem, no entender de Vovelle (1991), "o que há de mais
precioso" na história.
UMA HISTÓRIA DAS REPRESENTAÇÕES DE SAÚDE E DOENÇA
A história das representações de saúde e doença foi sempre pautada pela inter-
relação entre os corpos dos seres humanos e as coisas e os demais seres que os
cercam. Elementos naturais e sobrenaturais habitam estas representações desde
tempos imemoriais, provocando os sentidos e impregnando a cultura e os
espíritos, os valores e as crenças dos povos. Sentimentos de culpa, medos,
superstições, mistérios, envolvendo o fogo, o ar, a terra, os astros, a
organização da natureza, estão indissoluvelmente ligados às expressões da
doença, à ocorrência de epidemias, à dor, ao sofrimento, às impressões de
desgaste físico e mental, à visão da deterioração dos corpos e à perspectiva da
morte. Le Goff (1991b) aponta que
"A doença pertence não só à história superficial dos progressos científicos e
tecnológicos como também à história profunda dos saberes e das práticas ligadas
às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades".
As representações primevas de saúde e doença foram mágicas. Entre os povos sem
escrita, a doença era vista como o resultado de influências de entidades
sobrenaturais, externas, contra as quais a vítima comum, o ser humano não
iniciado, pouco ou nada podia fazer.
Também no contexto das representações mágicas, os antigos povos da Mesopotâmia
sumérios, assírios, babilônios "haviam postulado uma sociedade sobrenatural
de `deuses' concebidos à sua imagem colocada no superlativo" (Bottéro, 1991).
Estes povos forjaram "uma série de personalidades inferiores (...) aos
criadores e soberanos do universo, mas superiores às suas vítimas", os demônios
que se apossavam dos corpos, provocavam as doenças e deviam ser exorcizados.
Em uma concepção seguinte, a doença participava das crenças religiosas, era
obra dos deuses. Inicialmente era fruto do humor divino, independente do
comportamento humano. Faz parte, esta visão, das "interpretações religiosas da
doença como conseqüência da fatalidade (...) a doença-maldição" (Laplantine,
1991). Outra representação também religiosa, mais elaborada porquanto
relacional, é a de "uma conseqüência necessária provocada pelo indivíduo ou
pelo grupo (...) é a doença-punição" (Laplantine, 1991).
Certos aspectos de caráter religioso, maldições ou castigos divinos, ainda hoje
revestem as representações de saúde e doença. O medo e a culpabilidade sempre
participaram da relação do ser humano com a doença, conformando permanências
culturais. Estes aspectos resistem entre crenças ainda existentes que cultuam a
pureza como uma ligação rigorosa e permanente ao primitivo e um isolamento dos
costumes atuais, ou mesclados na cultura geral de nosso tempo. A sífilis, com
seu caráter venéreo, na primeira metade do século XX, e a presente epidemia de
AIDS, inicialmente entre homossexuais masculinos e usuários de drogas
endovenosas, trouxeram à tona uma série de preconceitos morais.
Hoje, em todo o mundo, os xamãs continuam exercendo sua função, realizando
curas através de rituais, expulsando coisas e espíritos que invadem os corpos
das vítimas e os sacerdotes ainda exorcizam os demônios. Muito a propósito,
portanto, vêm as observações de Gonçalves (1990), quando chama a atenção para o
fato de que as expressões manifestações clínicas e entidades mórbidas, de
inspiração notadamente sobrenatural, integram o jargão médico moderno,
referindo-se aos sintomas e doenças.
Os egípcios que habitaram o vale do rio Nilo há cerca de 5.000 anos
desenvolveram uma certa naturalização da saúde e da doença, junto às suas
crenças sobrenaturais, mágicas e religiosas. Admitiam a existência de um
princípio, o whdw, que aderido à matéria fecal poderia chegar ao sangue,
coagulando-o e levando ao apodrecimento do corpo, provocando o aparecimento de
supurações e abcessos. Segundo Tamayo (1988), a noção do whdw pode ter se
originado de interpretações religiosas associadas à mumificação, à conservação
dos corpos. Os egípcios acreditavam que o whdw, a partir do intestino, causava
a putrefação dos corpos e o mau cheiro. Na velhice, haveria uma absorção cada
vez maior do whdw.
Esta naturalização da saúde e da doença foi passada aos gregos, através do Mar
Mediterrâneo. Embora no Oriente chineses e hindus já relacionassem elementos da
natureza e do corpo humano, foram Hipócrates e seus seguidores, com sua
perspectiva humoral, que estabeleceram de modo mais evidente no Ocidente uma
passagem do sobrenatural para o natural no que diz respeito às representações
de saúde e doença.
As concepções dos gregos quanto às enfermidades foram anteriormente mágicas e
religiosas, onde atuavam os templos e sacerdotes do deus da medicina, Asclépio,
pai de Hygieia, deusa da saúde, e Panakeia, que dominava as artes dos remédios
das plantas e da terra. O termo pharmakon do grego arcaico significava
sacrifícios feitos aos deuses em busca de curas. Já no âmago da escola
hipocrática do século V a.C., está, no dizer de Capra (1988), "a convicção de
que as doenças não são causadas por demônios ou forças sobrenaturais, mas por
fenômenos naturais..."
A interpretação da saúde e da enfermidade pela concepção humoral está apoiada
em dois postulados básicos (Tamayo, 1988). O corpo humano é formado por um
número variável de líquidos, e a saúde é o equilíbrio entre os humores,
enquanto a doença é o desequilíbrio, o predomínio de algum dos humores sobre os
demais. Mossé (1991) percebe que
"do mesmo modo que o desequilíbrio entre os vários elementos que constituem a
cidade (grega: acréscimo meu) é fonte de perturbação e só pode ser ultrapassado
pela igualdade perante a lei (isonomia), também a cura do corpo está ligada a
um regresso ao equilíbrio".
Os gregos hipocráticos, como os chineses e hindus em outros contextos e com
complexidades diversas, acreditavam em certos sistemas de correspondência entre
elementos do corpo e elementos fundamentais da natureza. Para os gregos, quatro
humores corporais correspondiam à água, à terra, ao fogo e ao ar, sendo o
equilíbrio do sistema a condição para a saúde. Equilíbrio que devia ser
perseguido, através dos cuidados com o corpo, hábitos alimentares e exercícios
físicos, em uma convivência harmônica com o ambiente natural, onde o ser humano
era visto como parte integrada desta natureza.
A concepção humoral dos gregos, inclusive a higiene para a conservação da saúde
dos corpos e das mentes, foi continuada por Galeno, médico grego que passou
grande parte de sua vida na Roma antiga, no século II. Sigerist (1987) informa
que, então, as termas romanas não eram apenas casas de banho, possuindo
ginásios para a prática de esportes, salas de leitura e bibliotecas. Muito
antes de Galeno, entre os séculos VI e IV a.C., os romanos já haviam
desenvolvido um esboço de administração sanitária com leis sobre inspeção de
alimentos e construído aquedutos baseados na força da gravidade e esgotos.
Desde tempos imemoriais, as perspectivas da infecção, do impuro que ameaça se
introduzir nos corpos, através dos alimentos e dos ares corrompidos pelas
putrefações, revestiram as representações de saúde e doença. Os egípcios
admitiam um princípio infeccioso aderido às fezes, os romanos drenavam os
pântanos e os gregos zelavam pelos corpos e acendiam fogueiras para purificar o
ar.
Galeno era um escritor prolixo e sua obra literária individual é, talvez, a
maior da antigüidade, tendo o seu conteúdo representado dogmas durante cerca de
14 séculos, conformando o que Boorstin (1989) chamou de "a tirania de Galeno".
Até mesmo suas observações anatômicas feitas em animais, em virtude da
dificuldade para a conservação dos cadáveres e das proibições religiosas,
quanto à abertura e à dissecação dos corpos humanos, permaneceram intocáveis
por muito tempo. Os escritos de Galeno e o corpus hipocraticum foram depois
transmitidos aos médicos árabes que os traduziram e os seguiram na Idade Média,
protegendo-os assim do catolicismo romano e da Santa Inquisição.
Na Idade Média, o mundo ocidental viveu um período profundamente influenciado
pela Igreja Católica, onde as representações de saúde e doença retomaram um
caráter fundamentalmente religioso. Até o século XII, quando tiveram início os
diversos renascimentos dos conhecimentos pagãos, os árabes, no mundo islâmico,
seguiam os ensinamentos de Hipócrates e Galeno, enquanto a religiosidade
dominava a cultura e os espíritos no mundo cristão. Os hospitais do Ocidente
cristão, por exemplo, não eram recursos terapêuticos como os do final do século
XVIII, onde Foucault (1977) percebeu o nascimento da clínica moderna. Eram
casas de assistência aos pobres, abrigos de viajantes e peregrinos, mas também
instrumentos de separação e exclusão quando serviam para isolar os doentes do
restante da população. Um dos valores básicos que envolvia a existência dos
hospitais do medievo era a caridade, pois cuidar dos doentes ou contribuir
financeiramente para a manutenção destas casas significava a salvação das almas
dos benfeitores. As ordens cavaleiras de cruzados como a de São João ou dos
hospitaleiros fundaram hospitais em suas rotas (Rosen, 1980). Enquanto
representação terapêutica, estes hospitais são a analogia social das sangrias
individuais que lhes foram contemporâneas, expulsando o mau e purificando o
corpo social.
Antes de Descartes, como lembra Porter (1992), a religiosidade cristã da época
já separava corpo e mente, enquanto carne e espírito. Embora o zelo para com os
corpos não fosse tão importante, quanto aquele para com os espíritos,
permanecia uma certa necessidade de manter puro o corpo. Se para os gregos
antigos a naturalização das representações compreendia uma higiene dos corpos,
para os cristãos do Ocidente Medieval os corpos eram os receptáculos das almas
(Sigerist, 1987).
Durante a peste negra ou morte negra do século XIV, uma epidemia que pode ter
aniquilado dois terços da população européia de então, cortejos de fiéis se
auto-flagelavam pelas cidades, expiando seus pecados. Giovanni Bocaccio
escreveu então o seu "Decameron", onde conta uma centena de histórias, através
de personagens entregues ao amor e ao prazer numa vivenda nos arredores de
Florença, onde tentavam escapar das devastações da peste. Em 1347, em Veneza, e
em 1377, em Ragusa, inspirada em passagens bíblicas onde era descrito o
ostracismo dos leprosos, surgiu a quarentena. Embora a primeira teoria do
contágio seja atribuída a Girolamo Fracastoro em meados dos 1500, Botéro (1991)
cita uma carta de um rei babilônio de 1780 a.C., alertando sua esposa sobre a
possibilidade do contágio de uma certa "chaga purulenta". Nos anos 1300, ao
tempo da peste negra, um médico árabe relatava que a doença podia ser contraída
pelo contato com os doentes ou através de peças de vestuário, louça ou brincos
(Sournia & Ruffie, 1986). De qualquer modo, na visão de mundo dos cristãos
medievais, estava contextualizado o temor que a doença imprimia. A sensação de
que devia ser mantida à distância, o necessário afastamento do perigo
desconhecido pressentido, o medo do sofrimento e da morte. Ao comentar a
epidemia de peste da época e dissertar sobre uma "história do medo no
Ocidente", Delumeau (1989) afirma que
"É bem verdade que era preciso, se possível, fugir ou, na falta disso, isolar e
isolar-se (...) o bom senso popular tinha portanto razão a esse respeito contra
os eruditos que se recusavam a crer no contágio".
Nos séculos XII, XIII e XIV, danças macabras eram promovidas nos cemitérios,
pinturas e poesias mencionavam incessantemente a morte, a putrefação e o mau
cheiro dos cadáveres. Imagens de ventres rasgados devorados por vermes eram
citações artísticas constantes. No dizer de Huizinga (1978), "em nenhuma outra
época como no declínio da Idade Média se atribuiu tanto valor ao pensamento da
morte". Se o catolicismo medieval anunciava a cura para todos os males pela
religião, igualando as pessoas perante Deus, também a morte, no final da Idade
Média, as igualava enquanto a obrigatória privação final de todos.
O declínio da Idade Média resultou da sedimentação gradual de uma série de
aspectos culturais no mundo ocidental. Desde o século XII até o século XVII, em
vários momentos e em vários pontos a partir da Itália, o conhecimento pagão
renasceu. Uma racionalidade humanista de cunho profundamente individualista foi
se impondo sobre o anonimato e o cerceamento da crítica e da criatividade que o
catolicismo havia imposto. O capital mercantil afirmou-se sobre as relações
sociais feudais, com o predomínio de uma burguesia mercantil e bancária sobre
as tradições de sangue e o mando do patrimônio da terra dos senhores feudais,
nobres de linhagem (Luz, 1988). O mercantilismo surgiu com o ser humano livre
oriundo dos burgos medievais, onde circulavam mercadorias e idéias. A marcação
do tempo, antes pontuada pela chamada dos sinos para as obrigações religiosas,
passou ao domínio dos relógios e dos compromissos do comércio, ainda que os
negócios se realizassem sempre sob a invocação divina (Le Goff, 1991a). As
artes e as ciências floresceram. As línguas nacionais pouco a pouco
substituíram o latim. Os Estados nacionais se constituíram.
Desde o século XII, "o século das universidades" (Le Goff, 1989), as obras
hipocráticas e de Galeno, reintroduzidas no Ocidente pelos árabes, foram
traduzidas do grego e do árabe para o latim e para os idiomas nacionais. Como
sustenta Le Goff (1989), os produtos de valor vinham do Oriente e "junto com as
especiarias e as sedas, os manuscritos trazem a cultura greco-árabe para o
Ocidente cristão". Com o pretexto inicial de dos ímpios tudo retirar para
melhor conhecê-los e combatê-los, os conhecimentos dos árabes foram repassados
aos cristãos.
Um outro contexto científico foi se estabelecendo, conformando uma cisão entre
o ser humano e a natureza. O individualismo, a criatividade, a laicização do
saber forjaram a ambientação cultural de onde emergiu o racionalismo
científico, base da ciência moderna, modelado no empirismo indutivo e no
racionalismo dedutivo mecanicista de Francis Bacon e de René Descartes. O ser
humano que acompanhava o nascimento da ciência moderna era conquistador e
proprietário da natureza, não mais seu partícipe e observador harmonioso. Uma
perspectiva de domínio sobre o mar, a terra e os elementos inspirou e
movimentou as navegações e os descobrimentos, as ciências e as artes, mas
também isolou o ser humano, renegando-o a uma histórica solidão, enquanto
patrocinador de um desenvolvimento tecnológico profundamente antiecológico.
Esta perspectiva abriu caminho para as práticas terapêuticas intervencionistas,
ao escantear a tolerância e o reforço das reações naturais, a vis medicatrix
naturae, preconizada pelos gregos antigos.
Neste tempo de efervescência cultural, as nações e os conceitos sobre saúde e
doença proliferaram. No entanto, ao nível das mentalidades na longa duração, as
permanências são mais evidentes do que as pretensas mudanças.
O desenvolvimento da astrologia inspirou a combinação dos velhos saberes da
Mesopotâmia e do Egito com as teorias de Galeno. Nos diagramas do homem
zodiacal as partes do corpo humano foram relacionadas aos astros e signos,
indicando as melhores e piores épocas para o uso de certos remédios (Boorstin,
1989). As influências astrais estavam ligadas à ocorrência de epidemias e
participaram das "constituições" de Thomas Sydenham no século XVII e de sua
classificação das doenças, segundo as espécies botânicas. Constituições que
Gonçalves (1990) define como "agrupamentos singulares de uma espécie mórbida
vinculados a conjunção única de um certo número de influências ambientais
(...)." (Grifos meus). As participações astrais deram um sentido cósmico às
epidemias até o século XVIII, quando as influências passaram a designar
especificamente as nossas gripes de hoje.
É interessante notar a riqueza das representações registrada nos documentos
relativos à constituição pestilencial de Pernambuco, no final do século XVII. O
que pode ser visto nas descrições da epidemia de febre amarela, contidas nos
escritos do médico português Ferreira da Rosa, publicados em 1694, e nos
"Bandos de Saúde", proclamações contendo normas para controle da pestilência
mandadas executar pelo governador da província, o Marquês de Montebelo. Segundo
estas fontes, investigadas por Machado et al. (1978) e Santos-Filho (1977), na
ocorrência estaria comprometido o ar corrompido pela "qualidade contagiosa dos
astros", por vapores das águas "imóveis e fechadas", de corpos e alimentos
podres, bem como a "ira de Deus", ofendido pelos "nossos pecados". Assim, das
medidas pregadas para enfrentar a doença constavam o controle do porto, o
isolamento dos doentes, a caiação e a borrifação das casas com perfumes e
vinagre, a limpeza das ruas, a feitura de fogueiras com ervas cheirosas, o
controle da prostituição e da moral, a realização de missas, orações e
procissões, a aplicação de sangrias e a administração de purgantes aos doentes
e a lavagem "por quarenta dias" de suas vestimentas e roupas de cama.
Entre as concepções dos iatroquímicos, iatromecânicos e animistas dos séculos
XVII e XVIII, os limites eram imprecisos, nelas misturando-se invocações
divinas e espirituais com chamamentos à química e à física. Representações de
ordem ontológica, que vêem a doença como um ser externo que invade os corpos,
se imbricavam com circulações humorais, reações químicas, fermentações,
movimentos corpusculares e forças da ordem física.
A iatroquímica teve sua origem no século XVI nas proposições alquímicas de
Philipus Theophrastus Aureolus von Hohenheim, o Paracelso, que acreditava que a
vida era um processo químico e que a doença era um desequilíbrio na química do
corpo. Ao lado de suas crenças em bruxarias e demônios, Paracelso percebeu uma
química da vida nos corpos humanos muito antes de Lavoisier confirmá-la com a
demonstração de que a respiração era uma forma de oxidação, na fundação da
química pneumática, nos anos 1700. Em sua continuidade, a iatroquímica postulou
a existência de um gás espiritual, contido nos alimentos. O corpo não teria a
possibilidade de, através de um processo de fermentação, absorver quimicamente
os alimentos em decorrência do pecado original, provocando a formação de
resíduos que se combinavam com elementos imateriais e humores dos seres
humanos, originando as doenças (Tamayo, 1988). Os iatromecânicos seguiam as
analogias com as máquinas do mecanicismo cartesiano, que comparava o corpo
humano a um relógio e a doença ao seu mau funcionamento mecânico. Da
segmentação do corpo em peças e sistemas mecânicos surgiram os aparelhos e
sistemas orgânicos que abrigaram as especialidades médicas modernas. Na
perspectiva dos iatromecânicos os sólidos orgânicos funcionariam impulsionados
por forças, ao nível da estática, e os líquidos, humores, seguiriam as leis da
hidráulica (Tamayo, 1988), que foi como William Harvey descreveu a circulação
do sangue em 1628, utilizando imagens de bombas, válvulas e canais. Os sólidos
e líquidos do corpo movimentavam-se, combinando reações químicas com noções da
teoria corpuscular da física de Isaac Newton em sua visão da grande máquina do
mundo criada por Deus. Para os animistas ou vitalistas, o ânima, a alma
enquanto princípio vital, habitava o corpo humano e era responsável pelo tônus
que mantinha sua vida, sua conservação e auto-regulação. O corpo sem a alma se
deterioraria. O tônus propiciado pelo ânima se distribuiria pelo corpo, através
do sangue e com o seu desequilíbrio, que resultaria em contrações ou
relaxamentos, a doença ocorreria.
Com uma leitura do corpo humano, onde a atenção central não era colocada mais
nos humores, líquidos, os elementos sólidos passaram a participar mais das
representações de saúde e doença, alvos de forças físicas, donos de movimentos
que dão forma e expressão à vida. A imagem de fibras sólidas que se distendiam
e se contraíam foi a base da irritabilidade de Francis Glisson e Albrecht von
Haller e da excitabilidade de John Brown, nos séculos XVII e XVIII. O excesso
ou a falta de estimulação de fatores externos ao corpo possibilitaria a doença,
o que já admitia, então, uma consideração de limites mensuráveis entre o normal
e o anormal ou patológico.
Canguilhem (1990) e Foucault (1977) apontam que estímulos externos, favorecendo
contrações e distensões de fibras, debilitando nervos e cérebros, como nas
febres do solidismo de William Cullen, e movimentando tecidos constituíram o
suporte conceitual sobre o qual se assentou a medicina fisiológica de François
Joseph Victor Broussais. Para Broussais, a doença não era algo que se instalava
no corpo, mas o próprio movimento dos tecidos devido aos estímulos irritantes.
Broussais combatia, no encontro dos séculos XVIII e XIX, a clínica nascente de
Pierre-Jean-Georges Cabanis, Phillipe Pinel e Marie François Xavier Bichat, e
as classificações formuladas por seus estudos de casos à beira dos leitos dos
hospitais, devidamente transformados em instrumentos terapêuticos e
educacionais como parte dos benefícios sociais da Revolução Francesa. A
medicina fisiológica de Broussais entendia que as doenças não podiam ser
consideradas como seres particulares com identidades estabelecidas pela
nosografia de Pinel, uma localização de sinais e sintomas combinados.
Acreditava que as inflamações que conduziam às febres eram tratadas pelos
clínicos em uma concepção ontológica.
Enquanto a clínica moderna se desenvolveu nos hospitais e nos laboratórios,
onde mais tarde se abrigaram a fisiologia experimental de Claude Bernard e a
microbiologia de Louis Pasteur e Robert Koch, as idéias de Broussais inspiraram
a medicina social que surgiu com o avanço da revolução industrial no século
XIX.
Os Estados nacionais que haviam emergido do declínio da Idade Média se
desenvolveram no contexto das monarquias absolutistas e do mercantilismo. Estas
nações constituíram sua riqueza, através da quantidade de metais preciosos
acumulada, tendo, assim, que alimentar uma produção cada vez maior e colonizar
novos territórios. Como conseqüência, a necessidade de conhecer suas
populações, contá-las, era imperativa, sendo esta contagem condição para
verificação da grandeza nacional, que dependia, então, da quantidade de riqueza
circulante e do tamanho dos exércitos, o poder bélico. "O povo como elemento
produtivo, o exército como elemento beligerante precisam não apenas do número,
mas também da disciplina e da saúde" (Almeida-Filho, 1989). Contar o povo
significava, também, contar os mortos e saber a razão destas mortes. Contudo,
como acentua Gonçalves (1990), "só é possível contar após haver qualificado o
evento de uma certa forma". Certamente este foi um dos impulsos que
movimentaram os classificadores de doenças dos séculos XVII e XVIII, de Thomas
Sydenham a François Boissier de La Croix des Savages e Phillipe Pinel. Um
esforço ao qual se integrou, também, o naturalista e classificador Carl von
Lineu.
Entre os primeiros classificadores a inspiração foi a botânica. Os sintomas
foram agrupados e catalogados, segundo classes, ordens, gêneros e espécies.
Esta forma de representação social de saúde e doença assimilava certas
características como os períodos do ano de maior ocorrência das doenças, já que
estas periodicidades eram observadas nas plantas e nos pássaros (Tamayo, 1988).
À semelhança das plantas, em uma concepção ontológica, as doenças nasciam,
cresciam e morriam, possuindo também uma história natural.
Deve ser considerado que a nosografia de Pinel tendia para uma descrição de
sintomas e sinais ambientada na clínica, que postulou uma semiologia que tinha
a atenção centrada na doença, que se apropriava do doente, seu "objeto
transitório" (Foucault, 1977). Uma semiologia guiada pelos sentidos,
contextualizada no sensualismo do filósofo empirista do século XVIII Etienne
Bonnot de Condillac, onde a palpação, a percussão e a ausculta arrancavam do
corpo os segredos que a doença, o mal, ocultava do próprio doente. Assim,
enquanto a nosologia de Des Sauvages agrupava a hemoptise entre as hemorragias
e a tísica entre as febres, Pinel relacionava a dispnéia, comum na asma e nas
doenças do coração, com outras desordens em função da identificação de uma
patologia.
No entender de Foucault (1979), o esforço ordenador e classificador de
inspiração botânica da medicina das espécies envolveu uma ação terapêutica
sobre o meio ambiente, do qual brotava a doença. Este projeto de ampliação da
intervenção médica, uma penetração do conhecimento médico no domínio do
ambiente social, aplicado ao panorama mercantilista da Alemanha e da França do
século XVIII e ao capitalismo incipiente da Inglaterra industrial do século
XIX, fez nascer a medicina social no entrelaçamento de três movimentos
apontados por Foucault (1979). A polícia médica alemã, uma medicina de Estado
que instituiu medidas compulsórias de controle de doenças, a medicina urbana
francesa, saneadora das cidades enquanto estruturas espaciais que buscavam uma
nova identidade social, e, por último, uma medicina da força de trabalho na
Inglaterra industrial, onde havia sido mais rápido o desenvolvimento de um
proletariado. Destes movimentos surgiu a medicina social, impulsionada pelos
revolucionários de 1848 e suas perspectivas de reformas econômicas e políticas,
como uma empresa de intervenção sobre as condições de vida, sobre o meio
socialmente organizado pelo modo de vida capitalista conformado pela Revolução
Industrial.
Como descreve Hobsbawm (1979), o século da instalação definitiva da Revolução
Industrial foi um tempo de superlativos, onde proliferavam os estudos
estatísticos, atestados quantitativos do sucesso capitalista, e as teorias
científicas evolucionistas, surgidas da "descoberta da história como um
processo de evolução lógica". Exemplares desta forma de pensar as coisas foram
o positivismo de Augusto Comte, que influenciaria todo o conhecimento
científico do século XX, a evolução das espécies de Charles Darwin, que
estendeu as idéias da teoria populacional de Thomas Robert Malthus dos seres
humanos para os animais, e a economia política de Karl Marx.
No entanto, algo não aparecia nas estatísticas. Os graves problemas sociais do
início do capitalismo industrial, as desastrosas condições de vida e trabalho,
geradas pela formação e crescimento dos núcleos urbanos e pela necessidade cada
vez maior de expandir o capital industrial, às custas da exploração da força de
trabalho e da pobreza. Mendigos, marginais, artesãos e proletários urbanos
iniciais amontoavam-se na miséria e na imundície, e ainda que sua consciência
política não fosse única, o seu ódio aos ricos e sua revolta contra as
condições em que viviam, aliados ao despertar que a experiência da revolução
francesa havia lhes proporcionado, foram as forças motivadoras dos movimentos
libertários de 1848, que se espalharam por toda a Europa Ocidental e Central. E
foi nesta revolução européia, na assimilação de suas proposições por uma
intelectualidade burguesa, que surgiram os preceitos de uma medicina social,
controladora do meio ambiente prejudicial, terapeuta das condições de vida. Uma
medicina que se auto-reconhecia como seguidora da medicina fisiológica de
Broussais e adversária da clínica, que entendia como um projeto ontológico que
perseguia somente os sinais e sintomas da doença e não as suas causas, que a
medicina social admitia como sendo os miasmas, gases pútridos emanados da
corrupção de matérias diversas, expelidos na deterioração crítica das condições
de vida (Virchow, 1962).
A medicina de Broussais via a saúde e a doença limitadas entre si pelo excesso
ou diminuição do trabalho fisiológico normal sob a ação de estímulos ambientais
externos, entre estes os miasmas. Mas é na introdução da categoria energia nas
concepções de ambas as medicinas que Garcia (1989) percebe um interessante
ponto comum entre a medicina fisiológica e a medicina social. Energia
considerada enquanto categoria oriunda da termodinâmica da física de Newton,
que, no dizer de Capra (1988), "desenvolveu uma completa formulação matemática
da concepção mecanicista da natureza", reunindo o empirismo indutivo de Bacon
ao racionalismo dedutivo de Descartes. Para Garcia (1989),
"conceber a doença como uma variação quantitativa (...) de uma norma supõe um
homem que possa separar uma parte de si mesmo, um potencial, para que seja
utilizada por outra pessoa, para logo voltar a produzir esta mesma energia, ou
seja, supõe o operário em um sistema capitalista".
Assim, esta energia referida deve ser vista como força potencial: a força de
trabalho sobre a qual se debruçava a medicina social e o tônus normal que por
excitação, irritação, podia ter seus níveis fisiológicos normais alterados na
medicina fisiológica, estando a perspectiva da doença ligada ao desgaste
físico, à deterioração dos corpos, presente em ambas as situações. Penso que,
certamente, esta maneira de representar a saúde e a doença propiciou a
introdução futura da idéia do estresse. Como aponta Castiel (1993), as noções
relativas ao estresse se originaram de uma leitura física da distensão e da
possível deformação, perda presumível da integridade dos sólidos orgânicos do
corpo submetidos a tensões. Não há, pois, como não admitir que as capacidades
física e mental normais possam ser perdidas, quando esforços, trabalhos,
irritações, excitações levam ao cansaço, à exaustão, ao desgaste do corpo
humano, ao estresse.
Apesar da formulação de uma teoria dos miasmas ser geralmente atribuída a
Giovanni Maria Lancisi, nos séculos XVII e XVIII, com o seu estudo sobre a
malária, como um conjunto de febres dos pântanos, os maus ares já eram temidos
há muito. Estavam presentes nas representações de saúde e doença dos egípcios
antigos, das obras de saneamento e urbanização da Roma antiga, dos "ares, águas
e lugares" dos gregos hipocráticos e de suas fogueiras purificadoras, do medo
que dominou os medievais, durante a peste negra, de Fracastoro e suas idéias
sobre o contágio, dos escritos precursores de Paracelso sobre as doenças dos
mineiros, das doenças ocupacionais de Bernardino Ramazzini em 1700, da medicina
das espécies e da própria clínica, contra a qual se debatiam os médicos
sociais. Corbin (1987) confirma Bichat, um dos mentores da clínica moderna,
comparando o odor dos seus flatos ao dos anfiteatros de dissecação de cadáveres
que freqüentava e constatando o poder funesto e impregnante dos miasmas.
Numa história em que as doenças transmissíveis eram as únicas, enquanto
expressões de massa, os miasmas estiveram quase sempre associados ao contágio.
Mesmo em 1840, na época do embate entre os médicos sociais, anticontagionistas
adversários da quarentena, e os contagionistas, que tiveram a afirmação de suas
concepções na microbiologia de Pasteur e Koch, algumas doenças "miasmático-
contagiosas" eram reconhecidas por Jacob Henle (Tamayo, 1988). No entanto,
Henle, o criador dos postulados que mais tarde deram sustentação ao projeto
biologicista da microbiologia com Koch, não foi, então, devidamente
considerado. O que se assistiu até o final do século XIX foi a contraposição
entre a exclusividade do contagium vivum e a perspectiva dos miasmas.
Desde o sensualismo de John Locke e, posteriormente, de Condillac e do reinado
dos sentidos por eles estabelecido, o exercício do olfato passou a pesquisar
cientificamente os focos morbíficos nos séculos XVIII e XIX. Mesmo porque há
muito existia a crença de que o nariz, por sua proximidade do cérebro, seria o
condutor do mais nobre dos sentidos (Corbin, 1987).
Os miasmas eram telúricos, emanados das fendas e dos pântanos, embora de
qualquer modo, tenham sempre permanecido ligados aos excrementos humanos
depositados na terra e à putrefação. É assim que depois os amontoamentos e os
confinamentos humanos se tornaram importantes focos e as ações terapêuticas,
desodorizantes, se voltaram contra os cemitérios, prisões, hospitais, navios.
Foucault (1979) conta que, no século XVIII, o "Cemitério dos Inocentes", alvo
da terapêutica em Paris, era tão superlotado que os cadáveres transbordavam por
sobre seus muros. O já mencionado advento do hospital como recurso terapêutico
partiu do esforço organizador e libertador dos ares viciados de Jacques René
Tenon que, às vésperas da Revolução Francesa, pensou a separação dos doentes em
leitos individuais e a aeração do ambiente interno. E o escorbuto era
emblemático, enquanto doença comprovadamente miasmática, pois era contraído na
promiscuidade dos navios (Corbin, 1987).
Orientada pela percepção olfativa, a estratégia saneadora e terapêutica
caminhou, pouco a pouco, para além dos amontoamentos até o ambiente familiar e
a conseqüente desodorização individual, primeiro do outro e depois do próprio
dono do sentido olfativo. Uma estratégia que encontrou artefatos exemplares no
quarto e na cama de dormir individuais e nos perfumes do século XVIII, já que a
necessidade de um contínuo asseio corporal ainda era fruto de discussão.
Artefatos, como tais, inacessíveis aos pobres.
Enquanto se dava esta desodorização social diferenciada, uma questão passou a
incitar o imaginário coletivo, o fedor do pobre. É neste sentido que Corbin
(1987) afirma que "os locais de amontoamento confuso deixam de monopolizar a
análise olfativa dos observadores", quando "uma nova curiosidade convida a
desentocar os odores da miséria, a descobrir o fedor do pobre e de sua toca".
No contexto descrito do século XIX, a terapêutica política pregada pela
medicina social deve ser traduzida, também, como uma ação sobre o cheiro da
pobreza, da imundície dos pobres. A qualificação do cheiro do rico e do cheiro
do pobre foi um dos fatores que permitiram a introdução das questões sociais no
debate sobre saúde e doença. No entender de Rudolph Virchow, o mais proeminente
dos médicos sociais, as epidemias se diferenciavam em naturais, que atribuía a
fatores como o clima e as estações do ano, e artificiais, que acreditava
provocadas por "defeitos produzidos pela organização social e política" (Rosen,
1980). Assim, para Virchow, a terapêutica "ontológica" dos clínicos iniciais,
voltada para a especificidade dos sinais e sintomas das doenças, não se
adequava aos miasmas. Os agentes morbíficos dos anticontagionistas eram
reconhecidos na distinção entre ricos e pobres, sendo os mais perniciosos
aqueles expelidos no espaço olfativo, onde se estabeleciam as más condições de
vida características dos miseráveis já socialmente classificados do capitalismo
industrial.
Segundo Tamayo (1988), na metade do século XIX, pouco antes da afirmação da
microbiologia, as teorias do contágio atingiram seu maior declínio. Foi quando
o anticontagionismo dos revolucionários de 1848 alcançou sua máxima
respeitabilidade. Naquele momento, certas questões como o descrédito em relação
à especificidade das doenças e a crença na geração espontânea habitavam os
espíritos e impediam a aceitação do modelo explicativo do contágio. Além disso,
a teoria celular, que revelou o correspondente biológico do átomo da física ao
encontrar um novo elemento universal de todos os seres vivos, era jovem demais
e o desenvolvimento técnico do microscópio só tomou um impulso mais efetivo na
segunda metade do século XIX.
O microscópio ganhou maiores precisão e operacionalidade com as modificações
introduzidas pelos conhecimentos de física ótica de Ernst Abbé na indústria de
Carl Zeiss, quase 200 anos depois de Anton van Leewenhoek ter observado
microorganismos, movimentando-se em uma gota d'água, em 1678. Tamayo (1988)
sustenta que este longo desaparecimento do microscópio será esclarecido para
qualquer um que tenha a oportunidade de utilizar um destes instrumentos
fabricados até o último terço dos anos 1800 e vivenciar a experiência de longas
horas de paciência necessárias para o simples enquadramento e ajuste da imagem.
O aperfeiçoamento do microscópio, em combinação com o desenvolvimento de
técnicas laboratoriais para isolamento e preparação de material para exame,
possibilitaram a comprovação fotográfica da teoria microbiana, com os trabalhos
de Koch.
Deve ser observado que desde a abertura dos corpos, no nascimento da clínica,
foi reforçada a noção de que a doença se retirava para uma intimidade cada vez
mais inacessível do espaço interno do corpo humano (Foucault, 1977). A
patologia dos órgãos de Giovanni Battista Morgagni foi anterior ao estudo das
membranas de Bichat, tecidos similares que envolviam e atravessavam os órgãos,
expressando, como percebe Foucault (1977), "o paradoxo de uma superfície
interna (...) um elementar que é, ao mesmo tempo, universal". E esta histologia
de Bichat, por sua vez, antecedeu a patologia celular de Virchow. A procura da
doença conformou, assim, uma penetração cada vez mais profunda nos corpos, à
maneira de um zoom exploratório que prossegue nos dias de hoje, amparado pela
tecnologia moderna, em busca do elemento universal da criação, que possibilite
a compreensão da vida e o domínio sobre a morte. Na perspectiva da
microbiologia de então, o achado de uma causa microscópica da doença, deve ter
representado, também, uma conformação à visão de mundo estabelecida pela física
Newtoniana na qual tudo se originava de partículas cada vez menores, moléculas
e átomos, que se movimentavam e emitiam energia.
As idéias sobre o contágio, presentes nas representações mais remotas, se
afirmaram enquanto modelo científico de explicação do processo mórbido com as
revelações de Pasteur e Koch. O interesse de Koch pela fotografia e a
oportunidade que teve de utilizar os aperfeiçoamentos da microscopia,
possibilitaram a comprovação categórica da teoria dos germes e o afastamento do
centro do cenário das discussões sociais dos anticontagionistas revolucionários
de meados do século XIX. Afinal, não se poderia fotografar um miasma ou uma
influência.
Enquanto Koch buscou a etiologia específica com a identificação dos germes e a
melhoria das técnicas laboratoriais, Pasteur combateu a geração espontânea e
preparou vacinas, expondo ao máximo suas descobertas ao público. A experiência
com os "balões de pescoço de cisne", em 1864, em que contestou a geração
espontânea, e a vacinação de ovelhas contra o antraz na granja de Poilly-le-
Fort, em 1881, foram bastante ilustrativas deste modo de proceder de Pasteur.
Usava uma estratégia própria, cujo sucesso Saint-Romain (1991) atribui
"ao modo como passou metodicamente de um domínio ao outro, do estudo da cerveja
ao da seda, dos fermentos ao dos micróbios, do leite, do vinho às doenças dos
animais e dos homens, envolvendo na trama da sua clientela todas as camadas da
sociedade, os industriais e os agricultores, os destiladores de vinho da região
e as mães de família".
Assim é que Sournia & Ruffie (1986) assinalam que o respeitado dicionário
Littré, em 1865, definia a infecção como "a ação exercida na economia por
miasmas morbíficos", e, na edição de 1908, como "a ação exercida sobre a
economia por agentes animados pertencendo freqüentemente ao grupo das bactérias
e agindo por intermédio dos seus produtos solúveis".
No começo do século XX, a exclusividade microbiológica imperava de tal modo na
compreensão de saúde e doença, que Joseph Goldberger, em 1916, chegou a
inocular-se com material orgânico de pacientes com pelagra para provar sua
etiologia nutricional, não contagiosa. Terris (1987) conta que em Goldberger e
seus companheiros pesquisadores foi injetado sangue por via intramuscular e
subcutânea, foram-lhes aplicadas secreções nas mucosas do nariz e da
nasofaringe e lhes foram administradas placas de descamação e excretas por via
oral. Além de alguns distúrbios digestivos, nada ocorreu aos epidemiologistas,
sendo sua hipótese confirmada.
Pensando o micróbio, um ser que penetra no corpo e provoca a doença, Canguilhem
(1990) anota que
"sem querer atentar contra a majestade dos dogmas de Pasteur, pode-se até dizer
que a teoria microbiana das doenças contagiosas deve, certamente, uma parte
considerável de seu sucesso ao fato de conter uma representação ontológica do
mal".
Também no âmbito das representações deve ser anotado que, quando formulava as
bases da microbiologia, Pasteur admitia que perseguia o
"estudo exato da putrefação [...] por suas possíveis conseqüências para o
conhecimento das enfermidades que os antigos chamaram pútridas. Minhas
investigações sobre as fermentações me têm conduzido naturalmente a este
estudo, sem preocupar-me demasiado com o perigo que representa nem com a
repugnância que inspira". (Martinez-Baéz, 1972)
Passo a passo, Pasteur procurou a fermentação no leite, no vinho e na cerveja,
para, então, buscá-la no corpo humano. Ainda que os micróbios fossem os
agentes, a doença permanecia sendo a deterioração do corpo, o seu
apodrecimento, o que repugnava e cheirava mal.
No dizer de Le Goff (1991b) "da mais remota antigüidade, donde surgem os ainda
espantosos documentos da Babilônia, até o bloco operatório mais futurista, as
atitudes face às doenças em nada se alteraram".
Ainda que reconheça o caráter polêmico da afirmativa do autor, o que vejo é que
no domínio das mentalidades, onde as mudanças escorrem vagarosamente, na
lentidão da História, mesmo a luta que alimentou o assentamento da
microbiologia no século XIX, entre anticontagionistas, defensores dos miasmas
enquanto agentes morbíficos, e contagionistas, perde a nitidez de seus
contornos ao nível das representações de saúde e doença.