Educação popular como instrumento de reorientação das estratégias de controle
das doenças infecciosas e parasitárias
Introdução
Diarréia, escabiose, verminoses intestinais, impetigo, micoses cutâneas,
doenças venéreas, infecções exantemáticas agudas, resfriados, pediculose,
pneumonia, tungíase, faringites e outras doenças infecciosas e parasitárias
fazem parte da rotina diária das famílias das classes populares brasileiras.
Numa mesma família, costuma-se observar, ao mesmo tempo, várias dessas
infecções, que têm caráter extremamente repetitivo. Muitas vezes, um membro da
família só é levado a um serviço de saúde quando é ultrapassado determinado
nível de tolerância ou quando surge alguma nova condição que facilite o acesso.
Nessa convivência diária com as doenças infecciosas corriqueiras, há elementos
de sofrimento e desespero, resistência e busca de estratégias de enfrentamento,
esgotamento e passividade. Esses elementos se interagem numa dinâmica complexa
em razão das condições materiais e sociais a que estas pessoas estão
submetidas. Os serviços hospitalares, ambulatoriais e as campanhas de saúde
pública interferem apenas pontualmente e ocasionalmente nesta dinâmica. Pouco
se tem estudado sobre como as classes populares estão entendendo, elaborando e
se apropriando das mensagens e saberes transmitidos nas ações oficiais de
saúde.
Uma vez que a ação dos serviços no meio popular é tênue, a superação da
situação de intenso adoecimento por doenças infecciosas e parasitárias,
encontrada principalmente nos primeiros anos de vida, depende do envolvimento
da população na busca de novas estratégias e do reforço às posturas de luta e
enfrentamento que sejam cientificamente respaldadas e apropriadas às condições
materiais e sociais em que vivem. Depende também da construção e
desenvolvimento de serviços e obras públicas adequadas a essas condições. No
entanto, a medicina tem concentrado seus esforços no desenvolvimento de
técnicas medicamentosas, cirúrgicas e eletrônicas, que atuam no processo saúde-
doença apenas no nível do corpo biológico e que são voltadas para o
enfrentamento de doenças isoladas. O esforço médico, em geral, corre paralelo,
dessincronizado e até em oposição ao esforço popular de combate aos problemas
de saúde. Não tem sido uma preocupação importante da Medicina a compreensão dos
saberes, das estratégias, dos significados imaginários e das contradições e
passividades do meio popular em face das doenças infecciosas e parasitárias
usuais, a fim de possibilitar uma crítica aos procedimentos médicos e
sanitários tradicionais e a criação de novas formas de abordagem, de modo a
caminhar para a integração entre o agir médico e o agir popular. Normalmente se
confia no bom senso dos profissionais para a construção dessa integração.
Outras vezes se delega esta tarefa a profissionais específicos (visitadoras
sanitárias, assistentes sociais etc.), que, atuando de forma paralela e
desvinculada da rotina de atendimentos técnicos individuais prestados, terminam
não conseguindo uma mudança significativa na globalidade das práticas de
enfrentamento das doenças infecciosas e parasitárias.
Atenção primária à saúde e o cotidiano das doenças infecciosas e parasitárias
no meio popular
Com a emergência dos serviços de atenção primária à saúde, estas questões se
tornaram fundamentais. Antes, a grande distância entre os hospitais e
ambulatórios centrais e o cotidiano da vida popular tornava impossível uma
interferência mais significativa nesse nível para os profissionais ali
situados. Mas os centros e postos de saúde representam uma inovação
institucional justamente porque possibilitam essa aproximação. A experiência
internacional, como é o caso cubano, tem demonstrado que a sua surpreendente
eficiência se dá na medida em que o serviço consegue se inserir profundamente
na dinâmica social local. Nesse sentido, é prioritário superar o fosso
existente entre a ação médica e a ação popular na luta contra as doenças
infecciosas e parasitárias.
Desde meados da década de 1970, vêm se multiplicando os centros e postos de
saúde no Brasil. Apesar de marcados pela carência material e de recursos
humanos qualificados, pela sua utilização eleitoreira por parte da classe
política e pela falta de eficiência operacional, estes novos serviços estão
assumindo uma importância central nas estratégias de combate às doenças
infecciosas e parasitárias no Brasil. O fato de estarem mais profundamente
inseridos na dinâmica social local, de terem uma constância e uma continuidade
de atuação, de integrarem ações educativas, preventivas e curativas e de serem
de fácil acesso à população, proporciona a esses serviços uma grande
potencialidade no enfrentamento do quadro de adoecimento e morte, como já foi
evidenciado em muitas experiências internacionais e em alguns municípios
brasileiros. Com o movimento de Reforma Sanitária e o processo de implantação
do Sistema Único de Saúde (SUS), eles tendem a se constituir como o alicerce da
assistência à saúde. As grandes endemias, que vinham sendo enfrentadas com
programas especiais implementados por órgãos federais ou estaduais mediante
campanhas verticais, vão, aos poucos, passando para a responsabilidade dos
municípios, onde os serviços locais de saúde são a maior ferramenta
institucional. Mas, como será visto, esta passagem não é tranqüila.
No novo contexto, diferentes concepções e propostas de organização da atenção
primária à saúde convivem e divergem entre si. Conseqüentemente, diferentes
concepções e propostas de enfrentamento das doenças infecciosas e parasitárias
no nível local também convivem e digladiam entre si.
A educação popular em saúde e as doenças infecciosas e parasitárias
A educação em saúde é o campo de prática e conhecimento do setor saúde que tem
se ocupado mais diretamente com a criação de vínculos entre a ação médica e o
pensar e fazer cotidiano da população. Mas, até a década de 1970, a educação em
saúde no Brasil foi basicamente uma iniciativa das elites políticas e
econômicas e, portanto, subordinada aos seus interesses. Voltava-se para a
imposição de normas e comportamentos considerados adequados por aquelas elites.
Para os grupos populares, que conquistaram maior força política, as ações de
educação em saúde foram esvaziadas em favor da expansão da assistência médica
individualizada.
O governo militar, imposto pela Revolução de 1964, criou contraditoriamente
condições para a emergência de uma série de experiências de educação em saúde
que significaram uma ruptura com o padrão acima descrito. Nesta época, a
política de saúde se volta para a expansão de serviços médicos privados,
principalmente hospitalares, onde as ações educativas não tinham espaço
significativo. A tranqüilidade social imposta pela repressão política e militar
possibilitou ao regime voltar suas atenções para a expansão da economia,
diminuindo os gastos com as políticas sociais. Com os partidos e sindicatos
esvaziados, a população vai aos poucos buscando novas formas de resistência. A
Igreja Católica, que conseguira se preservar da repressão política, apóia
aquele movimento, possibilitando o engajamento de intelectuais das mais
diversas áreas. O método da educação popular, sistematizado por Paulo Freire,
constitui-se como norteador da relação entre intelectuais e classes populares.
Muitos profissionais de saúde, insatisfeitos com as práticas mercantilizadas e
rotinizadas dos serviços de saúde, engajam-se naquele processo. Nos
subterrâneos da vida política e institucional, vai-se tecendo a estrutura de
novas formas de organização da vida política. Essas experiências possibilitam
aos intelectuais o acesso à dinâmica de luta e resistência das classes
populares e fazem com que comecem a conhecê-la. No vazio do descaso do Estado
com os problemas populares, vão-se configurando iniciativas de busca de
soluções técnicas construídas a partir do diálogo entre o saber popular e o
saber acadêmico.
O setor saúde é exemplar neste processo. Nos anos 70, junto aos movimentos
sociais emergentes, começam a surgir experiências de serviços comunitários de
saúde desvinculados do Estado, onde profissionais de saúde aprendem a se
relacionar com os grupos populares, começando a esboçar tentativas de
organização de ações de saúde integradas à dinâmica social local. Com o
processo de abertura política, movimentos populares, que já tinham avançado na
discussão das questões de saúde, passam a reivindicar serviços públicos locais
e a exigir participação no controle de serviços já estruturados. A experiência
ocorrida na zona leste da cidade de São Paulo é o exemplo mais conhecido, mas o
MOPS - Movimento Popular de Saúde - chegou a aglutinar centenas de outras
experiências nos diversos estados. Nelas, a educação em saúde busca ser uma
assessoria técnica às demandas e iniciativas populares, bem como um instrumento
de dinamização das trocas de conhecimento entre os atores envolvidos.
Assim, a participação de profissionais de saúde nas experiências de educação
popular a partir dos anos 70 trouxe para o setor saúde uma cultura de relação
com as classes populares que representou uma ruptura com a tradição autoritária
e normatizadora da educação em saúde.
Com a conquista da democracia política e a construção do Sistema Único de Saúde
na década de 1980, essas experiências localizadas de trabalho comunitário em
saúde perderam sua importância. Os movimentos sociais passaram a lutar por
mudanças mais globais nas políticas sociais. Os técnicos que nelas estiveram
engajados agora ocupam espaços institucionais amplos, onde uma convivência
direta tão intensa com a população não é mais possível. Mas a experiência de
integração vivida por tantos intelectuais e líderes populares, o saber ali
construído e os modelos institucionais que começaram a ser gestados continuam
presentes. Em muitas instituições de saúde, grupos de profissionais têm buscado
enfrentar o desafio de incorporar no serviço público a metodologia da educação
popular, adaptando-a ao novo contexto de complexidade institucional e da vida
social nos grandes centros urbanos. Enfrentam tanto a lógica hegemônica de
funcionamento dos serviços de saúde, subordinados aos interesses de legitimação
do poder político e econômico dominante, como a carência de recursos oriunda do
conflito distributivo no orçamento, numa conjuntura de crise fiscal do Estado.
Neste sentido, esses grupos estão engajados na luta pela democratização do
Estado, na qual o método da educação popular passa a ser um instrumento para a
construção e ampliação da participação popular no gerenciamento e reorientação
das políticas públicas.
Uma grande parte das práticas de educação popular nos serviços de saúde está
hoje voltada para a superação do fosso cultural existente entre a instituição e
a população, pois um lado não compreende a lógica e as atitudes do outro.
Nessas experiências isto é feito a partir de uma perspectiva de compromisso com
os interesses políticos das classes populares, mas reconhecendo, cada vez mais,
a sua diversidade e heterogeneidade. Assim, priorizam a relação com os
movimentos sociais locais por serem expressões mais elaboradas destes
interesses. Atuando a partir de problemas de saúde específicos ou de questões
ligadas ao funcionamento global do serviço, buscam entender, sistematizar e
difundir as lógicas, os conhecimentos e os princípios que regem a subjetividade
dos vários atores envolvidos, a fim de superar as incompreensões e mal-
entendidos ou tornar conscientes e explícitos os conflitos de interesse. Nessas
iniciativas de educação popular em saúde se dá uma grande ênfase à estruturação
de instrumentos de ampliação dos canais de interação cultural e de negociação
(cartilhas, jornais, assembléias, reuniões, cursos, visitas etc.) entre os
diversos grupos populares e os diversos tipos de profissionais.
Tendo como base posturas como essa, tem-se assistido, em alguns locais, à
emergência de novos padrões de enfrentamento dos problemas de saúde marcados
pela integração entre o saber técnico e o saber popular e pela mútua
colaboração. Nesse sentido, a educação em saúde deixa de ser uma atividade a
mais realizada nos serviços para ser algo que atinge e reorienta a diversidade
de práticas ali realizadas. Passa a ser um instrumento de construção da
participação popular nos serviços de saúde e, ao mesmo tempo, de aprofundamento
da intervenção da ciência na vida cotidiana das famílias e da sociedade. Apesar
de esse processo vir ocorrendo no Brasil de forma fragmentada em experiências e
iniciativas marcadas pela transitoriedade, tal constatação coincide com a
percepção de autores situados em outros países, como MacDonald & Warren
(1991), da Inglaterra e Austrália, respectivamente: "A educação não é um
mero componente da Atenção Primária à Saúde. Antes disto, esta é, em sua
totalidade, um processo eminentemente educativo na medida em que, na
perspectiva defendida pela Conferência de Alma Ata, se baseia no encorajamento
e apoio para que as pessoas e grupos sociais assumam um maior controle sobre
sua saúde e suas vidas (...). Grande parte do que Paulo Freire diz sobre o
processo educativo é diretamente aplicável à Atenção Primária à Saúde. Nós
afirmamos ainda mais: a metodologia educativa de Paulo Freire é uma sólida base
para se atingir uma Atenção Primária à Saúde integral" (MacDonald &
Warren, 1991:39-44).
A educação popular não é o único projeto pedagógico a valorizar a diversidade e
a heterogeneidade dos grupos sociais, a intercomunicação entre os diferentes
atores sociais, o compromisso com as classes subalternas, as iniciativas dos
educandos e o diálogo entre o saber popular e o saber científico. Mas, para o
setor saúde brasileiro, a participação histórica no movimento da educação
popular foi marcante na criação de um movimento de profissionais que busca
romper com a tradição autoritária e normatizadora da relação entre os serviços
de saúde e a população. Apesar de uma certa crise do conceito de educação
popular nos novos tempos, é ele que vem servindo para identificar e
instrumentalizar a diversidade de práticas emergentes.
Com a priorização internacional da atenção primária em saúde, tendo como marco
a Conferência de Alma-Ata em 1978, os organismos internacionais de saúde, como
a Organização Mundial de Saúde (OMS), passaram a enfatizar a necessidade de se
estudar o contexto cultural das populações para uma melhor adequação das
práticas de saúde. Mas a maioria das orientações e das novas práticas
emergentes (Campbell, 1993:2) caracterizam-se por uma utilização instrumental e
simplificadora dos dados culturais locais: as crenças, linguagem e iniciativas
da população são estudadas para fazer as mensagens educativas se tornarem mais
compreensíveis e mais atraentes. As prioridades e os conhecimentos educativos
necessários continuam sendo determinados pelo grupo de técnicos sem se deixar
questionar pelas razões, interesses e saberes da população, só que agora
procurando revesti-los espertamente com discursos locais ou associando-os com
acontecimentos e crenças daquela população. Apesar da nova roupagem
antropológica, continuam repetindo o modelo da educação bancária criticado por
Freire (1979:66): "A narração de que o educador é o sujeito, conduz os
educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os
transforma em 'vasilhas', em recipientes a serem 'enchidos' pelo educador.
Quanto mais vá 'enchendo' os recipientes com seus 'depósitos', tanto melhor
educador será. Quanto mais se deixem docilmente "encher", tanto
melhores educandos serão.(....)nesta distorcida visão da educação, não há
criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção,
na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem
no mundo, com o mundo e com os outros".
As práticas de educação em saúde baseadas no repasse de conhecimentos deixam de
lado questões importantes. Que parcelas do amplo conhecimento científico
acumulado interessam aos setores populares que estão sendo acometidos por
determinado problema de saúde? Não seria necessário saber como esses setores
constroem seu conhecimento para se chegar a uma seleção dos conhecimentos com
os quais se vai trabalhar? Não seria necessário aprender com eles como acontece
em detalhes a sua convivência cotidiana com estes problemas para então se
perceber que dimensões do conhecimento técnico podem ser úteis? Diante da
insuficiência do conhecimento científico para entender a complexidade da vida e
propor soluções, não seria necessário valorizar o conhecimento e o saber
presentes na cultura popular construído ao longo do processo histórico da
humanidade? Diante da diversidade de situações de relacionamento entre os
técnicos e a população, que momentos e circunstâncias são propícios ao
aprendizado e de que forma os vários conhecimentos são apropriados? O
conhecimento da realidade da população é útil apenas na medida em que
possibilita encontrar estratégias facilitadoras da transmissão? A questão é
simplificar e facilitar a mensagem, ou é buscar a construção de um outro
conhecimento que é resultado de uma relação entre as duas partes? (Valla, 1993:
93).
A saída metodológica que a educação popular propõe para estas questões é buscar
subordinar o ato pedagógico ao movimento dos próprios educandos em direção ao
'ser mais', tentando superar as limitações e opressões de suas vidas. Para
isso, o educador deve investir na descoberta e inserção neste movimento (de
busca e de construção) existente na dinâmica social do grupo em que atua.
"Educação popular não visa criar sujeitos subalternos educados: sujeitos
limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e
cagando em fossas sépticas. Visa participar do esforço que já fazem hoje todas
as categorias de sujeitos subalternos - do índio ao operário do ABC paulista -
para a organização do trabalho político que, passo a passo, abra caminho para a
conquista de sua liberdade e de seus direitos. A educação popular é um modo de
participação de agentes eruditos (professores, padres, cientistas sociais,
profissionais de saúde e outros) neste trabalho político" (Brandão, 1982:
42).
As práticas de educação popular nos anos 70 e 80 ficaram muito marcadas pelo
contexto de sectarismo trazido pela ditadura militar, centrando-se na dimensão
de luta política. Superado esse ambiente de sectarismo, é possível pensar uma
ampliação da afirmação citada de Brandão e, utilizando o vocabulário do setor
saúde, afirmar que educação popular é a participação de agentes eruditos no
esforço de luta pela saúde (entendida de forma ampla) que os vários cidadãos já
vem fazendo. O trabalho político é uma das dimensões desta luta. O educador é o
profissional que usa a palavra e o gesto como instrumentos de trabalho nesta
luta coletiva.
Buscando novas estratégias de enfrentamento das doenças infecciosas por meio de
uma pequisa-ação
As reflexões que seguem se baseiam em pesquisa realizada em Belo Horizonte, no
período de 1994 à 1997, como parte do Curso de Doutorado em Medicina Tropical
da Universidade Federal de Minas Gerais. Com o objetivo de contribuir na
explicitação, de forma mais clara, da metodologia de educação popular em saúde
adequada ao atual contexto institucional e analisar o seu significado no
combate às doenças infecciosas e parasitárias, buscou-se nesta pesquisa a
inserção em um centro de saúde da periferia de Belo Horizonte (Centro de Saúde
Vila Leonina, situado na região de favelas denominada Aglomerado Morro das
Pedras), onde, ao se tentar dinamizar as suas práticas educativas, procurou-se
identificar e entender os bloqueios e potencialidades existentes no
relacionamento entre os profissionais e a população. Procurou-se mostrar a
forma como as questões culturais, cognitivas e subjetivas dificultam e
potencializam o funcionamento do serviço de saúde, indicando a necessidade de
serem enfrentadas de forma explícita e sistemática pelas instituições de saúde.
Trata-se, portanto, de uma pesquisa-ação com ênfase na observação participante,
em que o envolvimento com os problemas de saúde de crianças desnutridas foi
desencadeando uma série de mudanças no relacionamento do serviço com a
comunidade local, mostrando que a educação popular não é uma atividade a mais
que se desenvolve nos serviços de saúde, mas uma atividade que reorienta a
globalidade de suas práticas. Nesse processo, verificou-se que as intensas e
freqüentes manifestações de doenças infecciosas são, muitas vezes,
conseqüências de problemas mais profundos na vida familiar, tendendo a se
concentrar em famílias vivendo situações especiais de crise que são
marginalizadas da rotina de atendimento de saúde orientado pela demanda
espontânea.
Este estudo, centrando-se na busca de esclarecimento da dinâmica cultural e
subjetiva presente no relacionamento entre o serviço de saúde e a população,
não se preocupou em medir o impacto das estratégias delimitadas durante o
processo de pesquisa. Como outras pesquisas qualitativas, partiu do pressuposto
de que as relações sociais obedecem a regras estruturais recorrentes e que a
observação de um pequeno universo (amostras estatisticamente irrelevantes, mas
cuidadosa e intensivamente observadas) concede ao pesquisador a possibilidade
de reconstituir, em ponto menor, processos que se verificam no nível mais amplo
em um universo determinado. É uma metodologia de pesquisa particularmente útil
quando se quer estudar situações e contextos globais e complexos.
Qual a possibilidade de generalização desse estudo de um problema teórico amplo
realizado em um local circunscrito, baseado no acompanhamento de um número
limitado de atores envolvidos? Os elementos estruturais e recorrentes da
realidade estudada estão presentes, de alguma forma, em outras comunidades de
periferia urbana, mas a generalização não pode ser imediata. As afirmações que
se seguem referem-se à realidade estudada. A generalização e a aplicação em
outras realidades se farão pela mediação do leitor, pela sua interpretação
aplicada aos contextos em que estiver inserido. Será o leitor quem julgará se o
texto oferece chaves de compreensão aplicáveis a sua problemática.
Conhecer as formas de manifestação dos condicionamentos sociais mais gerais na
particularidade das famílias locais
Aplicando-se essa metodologia nos grupos do programa de combate à desnutrição
do C. S. Vila Leonina, a abordagem da desnutrição, multiplicação dos ratos,
parasitoses e infecções intestinais e outros problemas de saúde resultou numa
significativa reorientação do processo pedagógico e da relação entre os
profissionais de saúde e a clientela do programa. A educação popular, na medida
em que problematiza e cria espaços de diálogo entre os atores envolvidos,
propicia a construção e difusão de um novo conhecimento que, ao mesmo tempo,
inova em relação ao conhecimento crítico em saúde e aponta para caminhos
institucionais e organizativos mais adequados à superação dos problemas de
saúde.
Já está bastante difundido entre os profissionais de saúde um conhecimento
crítico que questiona a eficácia de intervenções médicas restritas às dimensões
biológicas dos problemas de saúde. Há um amplo reconhecimento da importância de
mudanças subjetivas, sociais e ambientais para a superação desses problemas.
Têm-se proliferado estudos e publicações que discutem estas mudanças sociais e
ambientais necessárias, mas esse conhecimento não tem resultado em mudanças
significativas na prática técnica cotidiana dos serviços de saúde. Nos manuais
médicos, por exemplo, essa abordagem social e crítica tem assumido um caráter
de preâmbulo que antecede a abordagem técnica que continua inalteradamente
guiada para a intervenção no corpo biológico, principalmente mediante o uso de
medicamentos e aparelhos. Talvez isto ocorra por ser uma abordagem social e
crítica ainda bastante abstrata, sem mediações com a prática clínica concreta.
A educação popular e a pesquisa-ação contribuem justamente na medida em que
possibilitam a construção de um conhecimento de mediação entre as análises
estruturais e globais das ciências sociais em saúde e o conhecimento técnico
específico.
A respeito da diarréia infantil, muitos livros de pediatria trazem
considerações sobre a sua correlação com a pobreza, a má distribuição de renda,
a precariedade das condições de saneamento a que são submetidas as classes
populares e a baixa qualidade das escolas freqüentadas pelos pais. Porém, mesmo
nestes livros e manuais, as intervenções preconizadas continuam centradas,
quase que exclusivamente, na administração de soluções de reidratação, na
utilização ou não de antibióticos e no manejo da alimentação. O conhecimento
crítico das determinações sociais e ambientais da diarréia não resulta em
condutas operacionais, a não ser difusas recomendações de valorizar ações
educativas a respeito da higiene e da conscientização das causas estruturais da
diarréia.
Durante uma reunião da Comissão Local de Saúde do C. S. Vila Leonina, foi
discutida a morte de uma criança por diarréia. Ela vinha tendo episódios
repetidos de diarréia, que, apesar de tratados, tinham-na deixado debilitada.
No último episódio, ela faleceu, embora tenha sido devidamente medicada. A
presidente de uma das associações de moradores locais era vizinha da família
dessa criança e a visitara. Tratava-se de uma família muito pobre, com o pai
doente e a mãe trabalhando fora vários dias da semana. A alimentação básica da
criança era o leite fornecido na mamadeira. O leite era preparado (com adição
de farináceos e açúcar) no início do dia e deixado em uma panela. Após cada
mamada, a sobra do leite da mamadeira (contaminado pela regurgitação e contatos
com moscas e mãos) era misturado com o restante que estava na panela, que
apenas era levemente esquentado na véspera de nova mamada (elevando a
temperatura do leite para algo próximo à temperatura ideal de multiplicação
bacteriana). Não havia geladeira em sua casa. Com esse tipo de alimentação, a
criança recebia freqüentemente, por via oral, grandes quantidades de bactérias
patogênicas. Ela possivelmente teria sido salva se estes aspectos tivessem sido
descobertos a tempo por visitas domiciliares desencadeadas pela repetição
anterior dos quadros de diarréia. A 'correta' conduta terapêutica (em acordo
com os ensinamentos dos manuais mais atualizados) da pediatra que a atendeu não
considerou aspectos como aqueles, que não se apresentam como motivo de
interesse da pesquisa médica. A má distribuição de renda, a opressão e a
pobreza são causas de diarréia, mas atuam através da imposição de condições
materiais específicas, condutas e posturas que variam em cada família e em cada
situação social. "Que posturas são estas? Que condições são estas?"
Quais as formas de abordá-las que já se mostraram viáveis?
O conhecimento do mecanismo de reinfecção desta criança, das condições
ambientais de seu domicílio e vizinhança, da forma como sua família cuidava de
sua saúde e da dinâmica de divisão de trabalho e de relacionamento afetivo ali
existente (algo bastante particular à sua situação específica) é o que está se
chamando de conhecimento intermediário entre as análises mais gerais das
ciências sociais e o conhecimento técnico sobre a diarréia. Diante da
complexidade e heterogeneidade das classes populares, só se tem acesso a estes
aspectos particulares da clientela pesquisando no local. O conhecimento das
ciências sociais, epidemiologia, microbiologia, fisiologia e clínica médica são
fundamentais, mas insuficientes, para precisarem as múltiplas formas
particulares como as condições econômicas, políticas e culturais gerais
interagem e combinam com as condições ambientais e os agentes etiológicos, para
resultarem nos danos no corpo humano conhecidos pela patologia médica. É nesse
nível mais particular da vida social que o serviço local de saúde tem maiores
condições de intervir coletivamente.
Na abordagem clínica e educativa de pacientes com condições culturais e
econômicas semelhantes às dos profissionais de saúde, essa insuficiência do
conhecimento social e médico não é tão gritante, porque as particularidades da
clientela são intuitivamente entendidas pelo profissional por causa da
similaridade com sua própria vida. Ao mesmo tempo, as afirmações e
recomendações dos profissionais de saúde são melhor entendidas e
contextualizadas por esta clientela com condições sociais e culturais
semelhantes.
Na rotina de trabalho apressada de um serviço de saúde destinado às classes
populares, em que a infra-estrutura disponível quase sempre é menor do que a
demanda, é difícil esperar o envolvimento de seus profissionais em pesquisas
mais amplas. O método da educação popular é uma estratégia de intervenção (e
portanto mais assimilável à cultura intervencionista do setor saúde) que
prioriza a criação de espaços de diálogo em que problemas específicos são
debatidos de uma forma que valoriza a explicitação e incorporação dos saberes e
reflexões dos cidadãos envolvidos. Possibilita aos serviços de saúde a
construção de conhecimentos e práticas mediadores entre a abordagem restrita ao
biológico e aquela mais abstrata e genérica das ciências sociais. Possibilita
ainda às famílias e aos grupos populares a aquisição de conhecimentos técnicos
necessários à maior eficiência de suas lutas por melhores condições de saúde.
Não basta criticar os serviços de saúde por não abordarem dimensões coletivas
dos problemas de saúde. É preciso construir conhecimentos operacionalizáveis
que permitam fazê-lo. Na urgência dos problemas que chegam, um atrás do outro,
o profissional é pressionado a implementar técnicas que já se mostraram
operacionalizáveis, ainda que esteja consciente de seu caráter restrito e
limitado. O processo vivenciado nesta pesquisa mostrou a potencialidade da
metodologia da pesquisa-ação no delineamento de formas de intervenção coletiva
operacionalizáveis nos serviços de saúde. O acompanhamento diferenciado às
famílias em situação de risco, o apoio ao saneamento da Vila Pantanal integrado
às iniciativas de suas famílias e organizações e a construção coletiva das
propostas para o enfrentamento do problema do lixo no Aglomerado Morro das
Pedras são alguns dos exemplos.
Trata-se de uma metodologia de construção de novos caminhos de intervenção
coletiva diferente do caminho habitualmente utilizado de acionamento de
assessorias especializadas. Em vez de uma seqüência de consultorias, os vários
atores técnicos e populares envolvidos buscaram se debruçar, em conjunto, sobre
os problemas de saúde que enfrentavam, numa relação que procurava se orientar
pelo diálogo (Valla, 1993:99) e na qual os espaços educativos significavam
também momentos de compartilhamento das descobertas e de síntese. Assessorias
de especialistas externos ao serviço, se não estão engajadas no movimento de
pesquisa participativa dos problemas sanitários locais, resultam em
conhecimentos e práticas desvinculados do contexto e das particularidades da
região e dos atores profissionais e populares envolvidos.
Esse processo participativo, apesar de ser demorado e extremamente exigente de
investimento profissional, mostrou ser vantajoso, uma vez que não apenas gera
novos conhecimentos, mas os difunde e também desenvolve novas formas de
organização institucional e de relacionamento com os grupos populares. Assim, o
processo de visitas às famílias com desnutridos para melhor entendimento de sua
dinâmica interna já foi gestando também o programa de acompanhamento às
famílias de risco. Foi resultando também num aprendizado de vários
profissionais e membros da Comissão Local de Saúde e dos grupos do programa de
combate à desnutrição sobre as raízes e estratégias de enfrentamento das
conseqüências e causas desse problema.
O processo de pesquisa-ação não apenas gerou novos conhecimentos, como também
constituiu novos instrumentos de intervenção terapêutica em que a abordagem
coletiva era priorizada. Tais instrumentos de intervenção foram gestados já em
acordo com os interesses e peculiaridades dos atores locais. Resultou ainda na
constituição de novos agentes terapêuticos (profissionais ou não) e na
reciclagem e fortalecimento de outros.
Nessa perspectiva de pesquisa e ação orientada pelo método da educação popular,
os entraves institucionais, as oposições políticas, as deficiências de formação
técnica, as intrigas, os fracassos, as resistências e os conflitos são
encarados como manifestações de outras lógicas e interesses ou de dimensões da
realidade que não estavam sendo levadas em conta anteriormente. Ao invés do
enfrentamento direto e pessoal de tais dificuldades, o educador deve procurar
trazê-las para o espaço de debates, buscando estudar, traduzir e explicitar os
interesses, razões e significados simbólicos que se escondem por trás de suas
manifestações. Já que também se investe para que os atores mais subalternos
estejam fortemente presentes nestes espaços educativos e de negociação, o
enfrentamento das dificuldades será algo compartilhado. Os novos conhecimentos
e práticas, sendo uma construção coletiva, são enriquecidos pela diversidade
dos participantes e refletem a negociação e o poder dos vários atores
envolvidos.
A busca da saúde, nessa perspectiva, transforma-se num jogo em que o tabuleiro
não é mais o serviço de saúde, mas a sociedade civil. Nesse jogo, os
constrangimentos institucionais, a subordinação política, a carência de
recursos e as limitações do conhecimento científico continuam a participar como
personagens importantes que, no entanto, não conseguem segurar e imobilizar com
suas mãos a fluidez das palavras, idéias e solidariedades a se intercombinarem,
gerando práticas e saberes imprevisíveis. Assim, o trabalho em saúde adquire
sentidos e simbolismos que tornam seu cotidiano colorido e carregado de
surpresas e mistérios, ajudando a enfrentar a desgastante convivência com a
dor, a morte e o descaso político.
Doenças infecciosas e miséria.
O cuidado de famílias em situação de risco como estratégia de enfrentamento da
exclusão social
Nas últimas décadas, assistiu-se a uma significativa diminuição da importância
das doenças infecciosas como causa de morte e sofrimento para um amplo setor
das classes populares. No Aglomerado Morro das Pedras percebeu-se, no entanto,
a existência de uma ampla heterogeneidade na situação de diferentes famílias em
relação ao impacto causado por esses agravos. Para muitas famílias, as doenças
infecciosas e parasitárias corriqueiras, mesmo sendo freqüentes devido às
condições ambientais e humanas favorecedoras do contágio, são logo tratadas e
normalmente não chegam a causar repercussões mais profundas na saúde de seus
membros, manifestando-se através de quadros leves e transitórios. Para outras,
contudo, essas doenças estão sempre presentes, em grande número, entre seus
membros, resultando em intensa espoliação do organismo e na presença de
manifestações clínicas exuberantes. Só são tratadas quando assumem dimensões
mais graves. Tal situação acontece principalmente em famílias vivendo contextos
de crise, seja por desemprego, ou doenças dos pais, dependência de drogas,
atritos conjugais, presença de grande número de filhos pequenos, migração
recente, envolvimento com atividades ilícitas e perseguidas pela polícia etc.
Tais famílias têm sido denominadas de "famílias em risco" (Takashima,
1994).Entre esses dois tipos polares, existem famílias em situação
intermediária.
Estudos epidemiológicos (Mendonça, 1995) têm mostrado como a maioria das mortes
em crianças por doenças infecciosas acontecem em famílias vivendo em situações
especiais de risco. Assim, a atenção diferenciada a essas famílias pode ter um
significativo impacto na redução da mortalidade infantil. Ao mesmo tempo,
repetidos relatos colhidos nesta pesquisa indicam que essas famílias vivendo
situações de crise e com membros intensamente acometidos por doenças
infecciosas e parasitárias corriqueiras representam fontes importantes de
irradiação e contágio para o restante das famílias. É possível então sugerir
que o acompanhamento diferenciado a tais famílias possa ter um importante
impacto na freqüência e na intensidade de acometimento de muitas doenças
infecciosas e parasitárias na população como um todo.
No processo de acompanhamento a famílias em situação de crise iniciado no
Aglomerado Morro das Pedras durante este estudo, verificou-se que as freqüentes
e intensas manifestações de doenças infecciosas e parasitárias em suas crianças
eram conseqüências de problemas mais profundos na vida familiar. Assim, o
diagnóstico de manifestações intensas de patologias facilmente tratáveis com os
recursos médicos atuais passou a ser utilizado como indicador de situação
familiar necessitando de maior acompanhamento. Percebeu-se que a simples
prescrição de medicamentos para essas patologias, sem um continuado cuidado e
acompanhamento familiar, tinha poucas repercussões na situação de saúde das
crianças. Constatou-se ainda que o atendimento dos serviços de saúde a partir
da demanda espontânea termina por marginalizar este tipo de família, uma vez
que seus responsáveis têm dificuldade de competir nas filas e no cumprimento
dos prazos e prescrições para conseguirem o acesso ao atendimento necessário.
A complexidade evidenciada por trás de infecções aparentemente tão simples nos
membros destas famílias questiona profundamente a racionalidade médica
hegemônica. Esta funciona segundo um modelo racionalista que busca definir e
explicar o problema (a doença) para perseguir uma solução racional
tendencialmente ótima (a cura). A terapia não é tanto uma relação de cuidado e
atenção do médico ao paciente, mas um processo de abordagem organizado (com
teorias, normas e intervenções padronizadas) que busca definir com precisão um
diagnóstico para chegar ao prognóstico e à cura. Mas a situação de miséria
social, em que as múltiplas doenças infecciosas e parasitárias são apenas um
dos sintomas, delimitam problemas familiares concretos (marcados pelo
alcoolismo, violência conjugal, negligência, imundície, doença mental,
desespero, delinqüência, conformismo ou deficiência física) que de tão
complexos não se consegue entender com profundidade e precisão, sendo,
portanto, bastante 'não conhecíveis' e incuráveis. Apesar dos enormes esforços
para dar-lhes uma definição racional, ampliando e tornando mais complexo o
quadro de causas mediante as contribuições das pesquisas em psiquiatria social,
epidemiologia, antropologia, sociologia, nutrição e ciências políticas, esses
problemas continuam se mostrando amplamente indefinidos. Apesar dos avanços das
psicoterapias, da farmacologia, das técnicas de saneamento ambiental, das
dinâmicas educativas, das técnicas de medicina preventiva e mobilização
comunitária, a cronicidade destas situações-problema perdura ostensivamente no
contexto de uma sociedade industrializada, moderna e injusta. Uma cronicidade
que é o sinal mais evidente da impotência da medicina em alcançar a solução-
cura das doenças infecciosas e parasitárias em famílias subjugadas pela
miséria.
Diante da legitimidade do sistema de saúde, conseguida em grande parte por sua
aparência racional, esses sujeitos repetidamente infectados e espoliados se
envergonham e se afastam depois de cansarem de procurar e serem encaminhados
para diferentes profissionais, sem obterem a almejada cura. Nesse sistema
funcionando com base na racionalidade problema-solução, a solução disponível
acaba amoldando a forma como o problema é definido e classificado. Os serviços
passam a selecionar os problemas com base na sua própria competência. Ao
restante, é como se dissessem: "- O problema não é nosso".
Nesse contexto, os programas de combate à desnutrição acabam assumindo o papel
de descarga das crianças cujos repetidos problemas de saúde não são resolvidos
integralmente pelo sistema de saúde e, assim, vão tendo seu corpo degradado
progressivamente. Juntamente com os serviços de psiquiatria, as classes
especiais de crianças-problema de algumas escolas, os reformatórios e as
delegacias de polícia, que também recebem os mais fragilizados pela miséria
social, vão administrando o que sobra deste sistema de assistência social que
classifica como incoerente e insolúvel o que não se enquadra nas soluções que é
capaz de oferecer.
Reconhecer a impossibilidade de conhecer e classificar com precisão essas
situações familiares extremas e construir uma solução para a sua cura não
significa, em absoluto, renunciar a tratar e a cuidar delas. Possibilita, pelo
contrário, uma mudança de ótica profunda e duradoura que atinge o conjunto das
políticas sociais que atuam junto aos miseráveis. Tais constatações ganharam
repercussão internacional no setor saúde a partir da experiência italiana de
reforma psiquiátrica (Rotelli et al., 1990:22-33).
Os problemas das famílias em situação de risco do Aglomerado Morro das Pedras
eram muito profundos e complexos para serem curados, mas não para serem
cuidados. Cuidando de forma sistemática e persistente de problemas específicos,
dimensões mais gerais destes iam se manifestando e quase sempre tínhamos alguma
contribuição a oferecer. Nesse cuidado, ocorria progressivamente uma
aproximação entre a equipe de saúde e a família, que ampliava as possibilidades
de uma ação educativa voltada para a valorização do potencial de criatividade e
liberdade de seus membros.
Se não se pode conhecer e classificar com precisão a multiplicidade de
situações-problema impostas às famílias mais vulneráveis pela miséria social,
isto não quer dizer que não se possam buscar entendimentos parciais que
orientem os cuidados a serem prestados. Neste sentido, uma postura
problematizadora na ação educativa e o desenvolvimento de pesquisas
participativas podem esclarecer aspectos importantes.
O intenso acometimento por doenças infecciosas e parasitárias corriqueiras em
alguns indivíduos pode, portanto, ser a manifestação de situações familiares de
risco que necessitam de uma atenção orientada por uma racionalidade diferente
daquela que domina o atendimento médico nos serviços de saúde. Esses pacientes
necessitam não tanto de um atendimento voltado para classificar, diagnosticar e
tratar suas patologias específicas, mas de uma atenção diferenciada e
continuada para sua família como um todo. São famílias que, subjugadas pela
miséria, tornaram-se extremamente vulneráveis pela combinação de diferentes
particularidades de caráter social e pessoal, mostrando-se incapazes de tomar a
iniciativa de implementar e articular o cuidado pleno de seus membros. O
direito de cidadania desses membros incapazes de iniciativas próprias
(principalmente as crianças, os idosos e os portadores de doenças
incapacitantes) não pode ficar dependente de pais e parentes que estão vivendo
situações de crise. É necessário que os serviços sociais, inclusive os de
saúde, intervenham nestas famílias, responsabilizando-se pela dinamização da
atenção a seus membros enquanto durar a situação de crise familiar. A
identificação e o cuidado sistemático destas famílias em situação de risco
podem levar a um importante impacto no controle da mortalidade e morbidade por
doenças infecciosas e parasitárias (e outras patologias) em uma comunidade,
elevando a eficácia dos serviços de saúde de forma pouco onerosa.
É, portanto, fundamental a ampliação e aperfeiçoamento do Programa de Saúde da
Família em implantação no Brasil desde 1994. A atenção diferenciada a famílias
vivendo situações de risco não é uma estratégia sanitária apropriada apenas
para regiões carentes que ainda não conseguiram desenvolver serviços médicos
sofisticados, como querem acreditar muitos sanitaristas (Misoczky, 1994), mas
uma estratégia de aprofundamento da qualidade dos serviços diante da
complexidade das situações de exclusão social tão fortemente presentes até
mesmo nas regiões mais industrializadas e modernas da sociedade capitalista
contemporânea. A necessidade de a sociedade e de o Estado se responsabilizarem
por essas famílias correlaciona-se com o reconhecimento social do caráter
excludente e perverso do atual modelo de desenvolvimento econômico.
Neste sentido, os resultados desta pesquisa reforçam a ênfase que organismos
internacionais como o Unicef e a OMS vêm dispensando à priorização da abordagem
familiar (principalmente àquelas em situação mais vulnerável) na reorientação
das políticas sociais (Maurás & Kayayan, 1994:9).
Perplexidades e reações dos profissionais diante da miséria
Visitando as 49 crianças em situação de desnutrição grave mapeadas pelo Centro
de Saúde, fomos percebendo que a desnutrição é também um marcador de famílias
vivendo situações especiais de muita carência. Se, em algumas delas, a
desnutrição se devia a fatores transitórios em processo de superação, na
maioria das vezes era a manifestação de crises familiares profundas que
inviabilizavam o cuidado global das crianças. Assim, o combate à desnutrição
dependia de ações muito mais amplas do que os conselhos de normas higiênicas e
alimentares e a entrega mensal de alguns pacotes de alimento. Na equipe, começa
então a surgir uma grande dúvida e angústia: diante de problemas tão complexos
e variados, nós, profissionais de saúde, temos alguma coisa a fazer?
Além da sensação de incapacidade diante da complexidade dos problemas
percebidos, os profissionais, muitas vezes, eram tomados por momentos de
depressão. A miséria se mostra de formas muito variadas. Quando se começava a
acostumar com alguma situação, uma nova face da miséria se mostrava. O
motorista do carro certa vez comentou: "- Quando vocês saem para as
visitas vão alegres e falantes. Quando voltam, estão calados e olhando para o
chão". A favela está sempre surpreendendo. De repente estávamos em becos
de aspecto tão estranho, que nem pareciam fazer parte da favela que já
conhecíamos. Cada família causava-nos impacto por motivos diferentes. Ora era o
conflito entre seus membros, ora o alcoolismo ou a falta radical de recursos, a
sujeira, o excesso de crianças espremidas em um cômodo, os olhares agressivos,
a criança desamparada, o caos doméstico pela doença da mãe, a violência, a
falta de perspectiva, a dor ...
A dor que pulsa na miséria se expressa, às vezes, por detalhes ou
circunstâncias até pitorescos. Estávamos procurando o endereço de uma família e
descobrimos um grupo de crianças que a conhecia. Elas se prontificaram a nos
levar lá. Ficaram excitadas em entrar no carro. No caminho, uma das crianças,
pensativa, nos disse: "- Nós nunca tínhamos andado de carro antes... Só no
carro da polícia".
As visitas, no entanto, não despertavam apenas tristeza e compaixão na equipe;
despertavam também raiva e indignação com aspectos que pareciam incoerências,
desperdício e alienação naquelas famílias. Os sentimentos da equipe oscilavam
também na dependência dos entraves institucionais a que os técnicos eram
submetidos. Certa vez, um profissional explicou por que não queria ir às
visitas programadas: "- Esse pessoal(os moradores)não merece o meu
esforço. São tantas as decepções..."
Muitas constatações chocavam a equipe: a presença freqüente de televisões e
aparelhos rústicos de som em casas onde se dormia em camas com colchões imundos
e rasgados e onde não se tinha nem mesmo banheiros; a presença de jovens
aparentemente ociosos e com atitudes de pouca preocupação e empenho com o
progresso profissional e cultural; a ausência de revolta evidente apesar da
situação de precariedade existente, ao lado da falta de interesse em participar
de atividades associativas e mobilizações políticas; um certo conformismo e, às
vezes, até alegria apesar da miséria; a resistência em colocar em prática as
orientações dos profissionais, aparentemente tão lógicas; os freqüentes e
intensos conflitos dentro das famílias ou entre vizinhos e os repetidos atos de
violência narrados, quando seria tão necessária a união e o apoio mútuo; a
incoerência e a contradição percebidas em muitas de suas falas.
Um exemplo marcante da reação de raiva e indignação com as famílias aconteceu
com a assistente social que começara a fazer uma pesquisa, por meio de
entrevistas, com mães das crianças mais gravemente desnutridas do programa.
Entrevistando Carmem Lúcia, de 21 anos e cinco filhos, a maioria desnutridos,
ficou revoltada com sua apatia e irresponsabilidade. Apesar de viver uma
situação de vida precaríssima, não se dispunha a tomar nenhuma das três
iniciativas de enfrentamento propostas pela assistente social: esterilizar-se,
buscar conseguir pensão junto à previdência social para dois irmãos deficientes
físicos com quem morava (não acreditava ser viável) e entrar com ação judicial
contra os diferentes pais de seus filhos. A partir da revolta da assistente
social, discutiu-se muito se o programa de apoio aos desnutridos não acabaria
reforçando a acomodação das mães e incentivando-as a ter mais filhos. Para essa
assistente social, a raiz da desnutrição da maioria das crianças estava em
problemas de ordem psicológica que não eram abordados pelo programa. Essas
discussões polarizavam a equipe e dividiam as opiniões de outros profissionais
que se aproximavam.
Dez dias depois da entrevista de Carmem Lúcia, fomos visitá-la em casa. Era uma
casa de tijolo, não rebocada, com três cômodos separados por divisórias de
papelão. Mora com irmãos (por parte do pai) e a mãe, que, falante, logo se fez
o centro da conversa, contando sua história. Ela morava no interior e era a
filha mais velha. Tendo sua mãe morrido, assumiu o cuidado dos irmãos. Seu pai
a casou com 13 anos com um amigo e vizinho, bem mais velho, para que não
fugisse de casa e, assim, continuasse a cuidar dos irmãos. Não tinha noção de
vida sexual, chegando a se revoltar com o marido quando este, um dia, pediu-lhe
um beijo. Mas após os 16 anos passou a ter filhos quase anualmente. Quando já
tinha dez filhos, seu marido a largou para ir morar com sua madrasta (seu pai,
antes de morrer, casara-se novamente), levando todos os filhos. Estava gestante
na época e, desesperada, ficou a vagar pela cidade com fome, envergonhada de
pedir esmola. Mas uma senhora, percebendo a situação, aproximou-se e a chamou
para sua casa. Quando a filha nasceu, alugou um barraco e passou a trabalhar
fazendo serviços domésticos. Deixava a filha, Carmem Lúcia, recém-nascida,
trancada no barraco para ir trabalhar. Quando voltava, ela estava sempre suja
de fezes e desesperada. Procurando melhor salário, veio para Belo Horizonte com
Carmem Lúcia. Passou por várias favelas, sempre lavando roupa, deixando a filha
sozinha em casa para ir trabalhar. Assim, Carmem Lúcia foi criada 'largada'.
Quando ela se tornou adolescente, começou a ter companheiros, tendo morado com
vários homens, a maioria alcoólatra e sem emprego fixo. De companheiro em
companheiro, foram nascendo seus cinco filhos. Na época da visita, estava
grávida novamente. Com a morte, no interior de Minas, do pai de Carmem Lúcia,
cinco dos seus irmãos (por parte do pai com a outra esposa) vieram morar com a
mãe de Carmem, sendo um paralítico e outro com doença mental. Os filhos de
Carmem estão com muita verminose e com anemia, mas ela só os leva ao Centro de
Saúde em casos de crise. Para ela, é difícil chegar cedo para conseguir as
fichas para consulta médica e os médicos sempre pedem exames laboratoriais que
exigem repetidas idas a laboratórios distantes.
Diante da evidente complexidade da história de Carmem Lúcia, a equipe se calou.
Em muitas situações, não se encontram palavras capazes de expressar a profusão
de sentimentos, percepções e pensamentos desencadeados. Mas, no silêncio,
compartilhamos nossa estupefação. Qualquer julgamento seria precipitação.
Há um movimento da ciência de buscar enquadrar situações particulares em
padrões explicativos mais gerais desenvolvidos em estudos anteriores. Dessa
forma, busca-se trazer para o enfrentamento de uma situação particular a
experiência já adquirida. Assim, analisar e classificar a postura de uma
família ou um paciente tem sentido como estratégia de orientação dos caminhos
do cuidado e do tratamento a ser dispensado. Mas aquilo a que se assistia,
muitas vezes, era a tendência de analisar e classificar as posturas da
clientela como uma forma de avaliar o merecimento ou não dos cuidados
disponíveis no serviço. Era uma análise que, apesar de se revestir de conceitos
sociológicos e psicológicos, centrava-se num julgamento moral do morador,
buscando enquadrá-lo como acomodado ou esforçado, estúpido ou ativo, desonesto
ou bem-intencionado. Esse julgamento moral é inerente às relações humanas, mas,
na relação entre os profissionais de saúde e a clientela popular, tendia a ser
apressado, sem um movimento prévio de busca de entendimento dos comportamentos
não compreendidos inicialmente. Pelo contrário, o julgamento moral imediato
bloqueava a iniciativa de esclarecimento, e a sua enunciação como se fosse uma
análise científica conferia-lhe uma rigidez que dificultava o seu
questionamento.
Os profissionais de saúde, impressionados com a miséria, tendem a esperar que
os moradores das periferias urbanas estejam sempre mobilizados, numa constante
busca racional de melhores condições de sobrevivência. Mas, como diz a música
do conjunto Titãs: "- A gente não quer só comida. A gente quer prazer para
aliviar a dor". Assim, a televisão, o jogo, a descontração, o ócio, não
significam apenas formas de escapar da realidade, mas podem estar indicando uma
concepção de vida mais ampla do que aquela que o técnico quer impor-lhes.
Indicam que a vida vale a pena, mesmo sem perspectiva de uma saída para o
sofrimento e a pobreza que se tem que aturar diariamente.
Outras vezes, o que para o profissional é comodismo, falta de iniciativa e
apatia, para a população é uma avaliação rigorosa dos limites da sua melhoria.
A clareza de uma análise social pode ser a percepção de que a melhoria ou
solução proposta pelo técnico é, antes de tudo, um desejo de alguém angustiado
com a situação de pobreza ou de seu interesse em mostrar competência na
instituição de origem. A população convive muito proximamente com a força dos
mecanismos de coerção e exclusão sociais. A lucidez pode ser o descrédito de
determinada proposta de mudança, a não ser que se crie ou se configure uma
situação de mudança no jogo de forças políticas (Valla, 1996).
Há uma tendência de se perceber a luta popular por mudanças sociais apenas
quando ela se manifesta por formas tradicionais de mobilização política:
reuniões, formação de entidades organizadas, manifestações públicas,
enfrentamento coletivo, participação em partidos políticos. Mas a resistência e
luta política vão além destas formas. A resistência pode ser difusa: a
irreverência do humor e da ironia, o silêncio, a não-participação nas reuniões,
o olhar de desaprovação, a criação de práticas alternativas ou o discurso de
aparente aceitação, mas entremeado de sutis ressalvas que o desdizem.
A valorização dessas formas difusas de resistência ganhou importância a partir
dos estudos de Foucault (1985), que criticou as análises da esquerda sobre o
poder, na medida em que se centram basicamente nos grandes aparelhos estatais e
na burguesia. O poder seria algo mais difuso. O poder funciona e se exerce em
rede. Nunca está localizado aqui ou ali, nem está só na mãos de alguns. Não é a
dominação global que se divide e repercute, de cima para baixo, no tecido
social. A dominação geral pode funcionar porque se sustenta em micropoderes,
com relativa autonomia, que acontecem oriundos de múltiplos atores sociais. Os
indivíduos não são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre pontos de
transmissão, reorientação ou reforço dele. Para se entender o poder, é preciso
buscar perceber as táticas e técnicas de dominação no detalhe da vida social e
procurar compreender como os diversificados mecanismos de poder são utilizados,
transformados e ampliados pelas formas mais gerais de dominação. É necessário
também esclarecer como os interesses mais gerais se inscrevem, acontecem e são
reorientados no nível do cotidiano. O poder, para se exercer, precisa produzir,
organizar e colocar em circulação saberes que o tornem legítimo. A partir dessa
contribuição de Foucault, as práticas cotidianas de conformismo e resistência
que acontecem no cotidiano da vida passam a ser centrais, respectivamente, na
sustentação e na superação da dominação que marca a sociedade. Assim, a luta
pela transformação das dimensões políticas do processo de adoecimento na
sociedade se descentraliza das instâncias partidárias, do aparelho estatal de
direção política e do comando das grandes empresas para se estender também às
cumplicidades, apoios e resistências que envolvem todo o tecido social. Os
trabalhadores e cientistas sociais que até a década de 80 estiveram preocupados
essencialmente, em suas discussões, com as questões da Revolução e Contra-
Revolução, passam a se debruçar sobre os temas dos micropoderes (Neder, 1994:
35).
Somente prestando atenção nas dimensões subjetivas e culturais, podem-se
compreender muitas das razões da resignação dos pobres diante de situações
revoltantes para os técnicos. Não é a simples falta de determinado recurso
material que leva à revolta ou ao empenho na mudança. O que é considerado
necessidade para uma vida digna, em cada região, depende do padrão de vida
tradicional (as condições em que as pessoas daquele grupo social vêm sendo
historicamente criadas). O conjunto de carências aceitas como legítimas e,
portanto, considerado como uma obrigação do Estado e do sistema produtivo
varia, continuamente, em virtude das lutas sociais, da capacidade de persuasão
dos atores em disputa e dos recursos das instituições políticas e econômicas
existentes. É necessário que haja uma atividade de elaboração mental dos
indivíduos no sentido de refletir a vivência da miséria e da pobreza material,
sem o que não existirá nenhuma percepção de carência.
Desse ponto de vista, a elevação da taxa de mortalidade infantil ocasionada
pela contaminação do lençol freático das periferias e pela presença de esgotos
a céu aberto não determinaria, por si, a elaboração da percepção de carência de
equipamentos de saúde e saneamento, ainda que esta taxa pudesse chocar
enormemente os profissionais de saúde locais. Somente é possível sentir
carência de algo que já pertença a cultura local. E entre as várias
possibilidades de privilegiamento e hierarquização das várias carências
existentes entram em jogo necessariamente uma escolha individual ou do grupo
social com base em de seus valores e circunstâncias locais envolvidas. É por
isso que a população costuma rejeitar os chamados alimentos alternativos
defendidos por técnicos empenhados no combate da fome, que propõem a
substituição de seus alimentos tradicionais por alimentos mais baratos e com
maior quantidade de nutrientes. Os trabalhadores não sentem carências de x
calorias, y gramas de proteínas ou z unidades de vitamina por dia. As pessoas
têm carência de determinados alimentos, que devem ser consumidos de determinada
forma, de acordo com a tradição peculiar de cada sociedade ou de cada grupo
social nas sociedades complexas. As carências que motivam o esforço dos
indivíduos e grupos passam necessariamente pela subjetividade e pela cultura
(Nunes, 1989). São, portanto, também construídas e redefinidas nas práticas
educativas, mas, naquelas que não partam do pressuposto da existência de uma
associação linear entre a vontade da população e as carências materiais
definidas pela ciência.
Mingau quente se toma pelas beiradas
No processo de aproximação e acompanhamento das crianças desnutridas pelo C. S.
Vila Leonina, fomos descobrindo o que depois constatamos ser o princípio
norteador do Ano Internacional da Família - 1994, promovido pela ONU: "A
família como instrumento essencial de preservação, transmissão de valores
culturais, instituição que educa, forma e motiva o homem e merece uma atenção
especial de proteção e assistência" (Takashima, 1994:77-78).
A família é o meio no qual acontecem e se administram os cuidados básicos com o
corpo, ocupando, portanto, um papel central na formação e preservação biológica
dos indivíduos. É também onde se transmitem os ensinamentos mais fundamentais
para o convívio social. Mais ainda: sendo local privilegiado de vivência do
afeto, da intimidade e propiciando o sentimento de pertencimento, tem um papel
fundamental na formação da identidade do indivíduo e na construção, na
sociedade, da noção de cidadania. Mesmos entre os mais miseráveis do Aglomerado
Morro das Pedras, a família se mostrou como eixo central de sobrevivência e
preservação do mínimo de dignidade e felicidade.
Apesar da expectativa aparentemente dominante na sociedade de que o trabalho
dos serviços de saúde se concentre na preservação biológica dos indivíduos,
percebemos que não tinha sentido restringir o acompanhamento e o apoio às
famílias atendo-nos apenas aos cuidados de higiene, mudança de comportamentos
prejudiciais à saúde, tratamento e prevenção de doenças, saneamento etc. Esses
aspectos, diretamente vinculados à prática tradicional de saúde, mostraram-se,
na maioria das vezes, como campos de manifestação de problemas decorrentes de
dimensões psicossociais mais gerais. Além disso, atuar apenas para alongar a
sobrevivência biológica é um objetivo muito limitado. Sobreviver é pouco. Uma
atuação voltada de forma restrita ao biológico tem sentido dentro de uma
racionalidade econômica capitalista que se interessa essencialmente pela
reprodução da força de trabalho como forma de assegurar o controle das faltas
no emprego, a capacidade produtiva do operário e a manutenção de uma ampla
reserva de trabalhadores disponíveis para não permitir a elevação dos salários.
Isso interessa também às forças políticas dominantes, ansiosas por divulgar a
melhoria dos indicadores de saúde conseguida com os limitados recursos que
colocam à disposição das políticas sociais. Assim, o trabalho de acompanhamento
às famílias em situação de risco pelo C. S. Vila Leonina se colocava, se bem
que nem sempre muito claramente, numa perspectiva de não se restringir ao
controle de problemas de saúde específicos, mas buscando apoiar a luta daqueles
moradores pela vida, entendida de forma mais ampla. Nesse sentido, o cuidado
com as crianças desnutridas passou a ser uma estratégia de aproximação da
família e de resgate do gosto e o carinho pela vida, importantes tanto para a
criança, como para os pais. A melhora da saúde de uma criança promove a
elevação da auto-estima de toda a família, recompondo parte do sonho de um
futuro melhor, onde os filhos são centrais. A saúde, alegria e criatividade dos
filhos altera a identidade dos pais.
Apoiar a luta da família pela vida: este objetivo aparentemente simples era
sempre ameaçado pelo estranhamento e até rejeição por parte dos profissionais
aos caminhos escolhidos pelos moradores do Aglomerado. Marcados pelo
preconceito, muitas vezes eles não tinham paciência para buscar entender a
lógica destes caminhos diferentes. Não se pode contribuir para que os membros
de uma família assumam sua caminhada no sentido de serem sujeitos ativos de
suas vidas e da história da sociedade, se os tratamos de forma desprezível e
autoritária como se detivéssemos o conhecimento do melhor caminho para eles. Os
profissionais, preocupados em apoiar a luta das famílias pela vida, debatiam-se
sempre entre estes dois pólos: o desprezo e o respeito às manifestações
concretas de suas escolhas.
Ao lado da desnutrição, verminose, anemia ferropriva e infecções
dermatológicas, respiratórias ou urinárias, encontrávamos alcoolismo, conflito
conjugal, desemprego, doença mental, perseguição da polícia, briga entre
quadrilhas, desânimo com a vida, salário insuficiente, condição de moradia
desumana, falta de saneamento, rejeição social e tantos outros problemas
psicossociais que estavam muito além da capacidade da equipe de saúde. Mas
percebemos que, na medida em que íamos abordando problemas específicos de
saúde, dimensões mais gerais destes problemas iam se manifestando e quase
sempre tínhamos alguma contribuição a oferecer. No Centro de Saúde, essa
metodologia foi denominada pela expressão popular "mingau quente se toma
pelas beiradas". Atuando de forma sistemática e persistente sobre as
manifestações periféricas dos problemas mais gerais, era possível perceber
significativa influência sobre dimensões mais centrais dos problemas
familiares.
Os problemas daquelas famílias, possivelmente as mais miseráveis entre as
existentes naquela favela, eram muito profundos para serem 'curados', mas não
para serem cuidados. Cuidar significa ocupar-se, aqui e agora, dos problemas
passíveis de serem enfrentados, colocando-se à disposição de acordo com as
condições exigidas pelos mesmos e não com aquelas condições oferecidas
tradicionalmente pelo serviço. O sofrimento não se anula, mas começa-se a
remover-lhe motivos e mudam-se as formas e o peso com que esse sofrimento entra
no jogo da vida da família. Cuida-se dessas famílias em situação de risco não
como prêmio por perceber seu esforço ou sua assimilação das orientações da
equipe, mas como resposta ao direito à cidadania de sujeitos vivendo situações
que não lhes permitem buscar e lutar pelos recursos existentes nos precários e
limitados serviços de saúde destinados às classes populares. O apoio familiar
não pode ser um último teste para aquela família se tornar operativa, mas um
espaço de vida a mais no qual lhe propiciamos alguns novos suportes que possa
utilizar para recompor seu próprio caminho de vida. Fazer-se responsável por
membros incapazes de iniciativas próprias e em crise de uma família é evitar
seu abandono em nome de uma propalada liberdade que as pessoas teriam para,
inclusive, não querer cuidar de sua saúde ou da de seus dependentes, sem
deixar, no entanto, de respeitar suas diretrizes de vida.
O trabalho com famílias em situação de risco tem um percurso dinâmico em
contínua transformação, feito de tentativas, erros e aprendizagens, no qual os
objetivos mudam durante o percurso porque são modificados pelos sujeitos
acompanhados (Rotelli et al., 1990:33-35).
O eixo desse trabalho é a educação (Takashima, 1994), mas uma educação na
perspectiva sintetizada por Paulo Freire, que se centra no reconhecimento e
valorização do potencial humano para a criatividade e a liberdade, mesmo no
interior de estruturas político-econômico-culturais opressoras. No processo
educativo em que as pessoas atingem a compreensão, tanto da realidade cultural
em que estão, inseridos como da capacidade que têm para transformá-la, vão se
descobrindo e se implementando formas alternativas e libertadoras de relação
social, bem como novas formas de organização da vida social, institucional e
política (Gerhardt, 1996:168).
Responsabilizar-se por essas famílias em situação de risco não significa
necessariamente a ampliação da intervenção estatal na vida social de uma forma
a aumentar o seu controle, agora, até mesmo sobre as famílias que na
perspectiva capitalista parecem ser as mais resistentes à lógica de progresso e
modernidade. A experiência no Aglomerado Morro das Pedras aponta para uma nova
possibilidade de intervenção dos serviços de saúde, que, ao contrário de
ampliar a passividade da sociedade diante de um Estado autoritário que tenta
prover as necessidades sociais por meio de intervenções burocratizadas e
normatizadoras guiadas pela lógica cultural dos grupos dominantes, busca apoiar
as redes de solidariedade social existentes em torno dessas famílias,
procurando melhor articulá-las mediante enfrentamento de mal-entendidos
bloqueadores de sua plena operacionalização.
Cuidar de famílias em situação de risco mostrou ser também um ato transformador
da própria instituição de saúde. Estender o atendimento do Centro de Saúde para
além dos limites de seu prédio resultou no acesso a informações sobre a
dinâmica de vida e de adoecimento daquela população que foram difundidas para
outros profissionais. Resultou ainda em questionamentos a condutas antes
rotineiras, além de possibilitar o contato e o envolvimento de outros atores
sociais presentes na região, mas até então desconhecidos pelo Centro de Saúde.
Alimentou o ânimo e a criatividade de vários profissionais, ajudando a
transformar dificuldades em desafios.
Sair para a comunidade cria problemas internos no Centro de Saúde. Mas, na
gestão desses problemas se modifica a cultura dos atores em jogo. As oposições,
as reclamações pelas outras prioridades abandonadas, a necessidade de remanejar
recursos de outros setores e as novas necessidades evidenciadas com o processo
de envolvimento com a vida comunitária, antes de serem entraves, podem ser
oportunidades para discussão e aperfeiçoamento do novo modelo de assistência.
Trata-se de uma modificação institucional que nasce não de um gerenciamento
externo ou de um planejamento das instâncias hierarquicamente superiores da
burocracia do sistema de saúde, e sim da transformação progressiva das
competências existentes, das posturas profissionais, do reordenamento da
utilização dos recursos disponíveis internamente e da superação do desânimo dos
atores profissionais e populares envolvidos (Rotelli et al., 1990:36). Em
virtude do curto espaço de tempo desta pesquisa, foi possível perceber muito
mais os elementos potenciais desta dinâmica de transformação no Centro de Saúde
Vila Leonina, do que a constatar resultados bem definidos.
Superar a tradição positivista dos serviços de saúde no manejo de grupos de
risco
A epidemiologia tem insistido que o risco de adoecer e morrer se distribui
desigualmente na população. Há um movimento dos serviços de saúde no sentido de
buscar identificar os grupos de maior risco para uma atuação mais dirigida, a
fim de possibilitar maior eficácia e menor custo. A epidemiologia, refletindo o
predomínio do positivismo nas ciências da saúde e, portanto, admitindo
basicamente certezas testadas experimentalmente e validadas pelo raciocínio
matemático, tem concentrado seus esforços buscando identificar características
populacionais que estejam estatisticamente associadas ao maior risco de adoecer
e morrer. São os chamados fatores de risco. Mendonça (1995), em estudo
epidemiológico realizado em Belo Horizonte, mostrou que as mortes de crianças
por diarréia, pneumonia e desnutrição tendem a ocorrer em famílias com os
seguintes fatores de risco: precariedade das condições de moradia,
instabilidade conjugal dos pais, baixo nível de escolaridade da mãe, ausência
de acesso à rede pública de esgoto, filhos com baixo peso ao nascer, pequeno
intervalo entre as gestações e presença de fumantes na residência.
O Projeto Vida, da Secretaria de Saúde de Belo Horizonte, refletindo essa
tendência, vem procurando identificar e acompanhar (pela marcação de consulta
médica e de atendimentos de enfermagem nos centros de saúde) os recém-nascidos
(não as famílias) de risco através de variáveis já comprovadamente associadas,
por métodos estatísticos, ao aumento da mortalidade em estudos epidemiológicos
já realizados: baixo peso ao nascer, ser filho de mãe adolescente ou de mãe
analfabeta. Apesar de significar um avanço, na medida em que reconhece a
desigualdade do risco de adoecimento em uma população de determinada região
aparentemente homogênea, esse projeto é ainda limitado por definir população de
risco por fatores isolados e por centrar a priorização do apoio às crianças de
risco em atividades de cunho individual (consultas médicas e atendimento de
enfermagem) e apenas dentro do serviço de saúde, que se mostraram bastante
ineficientes, nesta pesquisa, para esse grupo. As visitas domiciliares são
utilizadas basicamente com a finalidade de trazer a criança e sua mãe para as
atividades de atendimento dentro do Centro de Saúde. Além disso, uma mãe pode
ser adolescente, analfabeta e, até mesmo, estar sem o apoio do pai da criança,
mas se estiver morando em uma família bem articulada em que os avós, irmãos e
vizinhos estejam intensamente envolvidos no cuidado da criança, o risco de
adoecimento e morte será pequeno. A vida familiar é por demais complexa para
poder ser classificada por meio de fatores de risco estanques. Muito mais
importante do que a presença de alguns fatores de risco é a forma como eles se
relacionam entre si e com os demais elementos da vida familiar e social local.
A ênfase em buscar trabalhar com situações de risco padronizadas e definidas
estatisticamente se correlaciona com o modelo de serviço que se quer construir.
Em serviços operacionalizados por técnicos desqualificados e desmotivados
(pelos baixos salários, por uma relação trabalhista autoritária e pela ausência
de apoio educativo), atendendo de forma rotinizada e geridos, à distância, pela
burocracia dos órgãos centrais de planejamento, a identificação das situações
de risco por meio de características bem definidas e padronizadas é a forma
possível de se atuar em larga escala e de modo uniforme. Tem se trazido para o
processo de reorganização dos serviços de saúde o modelo e a ciência de
administração do trabalho (o taylorismo e o fordismo) gestados na grande
indústria capitalista na primeira metade do século (Vasconcelos, 1989) e hoje
em profunda crise mesmo no mundo da produção.
Esse estudo mostrou a grande diferença de sensibilidade e acuidade na
identificação de situações de risco entre o método padronizado preconizado pelo
Projeto Vida e as visitas informais da equipe do programa de combate à
desnutrição. Para um técnico treinado e motivado, as situações familiares de
risco para a saúde se mostram nas mais diversas e surpreendentes formas de
descuido que vão se evidenciando pela convivência e diálogo amigo. No próprio
processo de identificação destas situações de risco já se inicia o apoio.
As visitas domiciliares são atividades que exigem grande disponibilidade de
recursos humanos, inviabilizando a pretensão de se visitar toda a população sob
responsabilidade de um serviço básico de saúde. É necessária, portanto, uma
estratégia que selecione inicialmente as famílias com maior potencial de risco.
Nesse sentido, a presença de crianças com desnutrição grave se mostrou um bom
marcador de famílias em situação de risco, servindo como indicador inicial de
famílias a serem visitadas. A identificação de crianças desnutridas, à medida
que pode fazer parte da rotina das consultas pediátricas, é um procedimento
facilmente operacionalizável em serviços de atenção primária à saúde. Durante
as reuniões com as mães de desnutridos, outras famílias não participantes iam
sendo apontadas no debate. Algumas famílias foram indicadas pelas lideranças
comunitárias participantes da Comissão Local de Saúde. O envolvimento dos
vários profissionais do Centro de Saúde com a proposta do programa mostrou
também ser muito importante na identificação das famílias em situação de risco,
uma vez que eles, em seus atendimentos, têm um contato muito diversificado com
a população. A miséria resulta em problemas de saúde que, mais cedo ou mais
tarde, desembocam nos serviços locais de saúde. O olhar atento do profissional
pode descobrir situações de negligência e abandono por trás de problemas
pontuais de saúde. Mas a visita domiciliar mostrou ser o mais importante
instrumento esclarecedor dessas situações.
Em 1992, 62% das crianças com menos de um ano de idade, que morreram de
diarréia e pneumonia em Belo Horizonte, eram desnutridas (Mendonça, 1995).
Essas mortes, plenamente evitáveis com os recursos médicos atuais, confirmam a
importância de se priorizarem as crianças desnutridas como grupo de risco
merecedor de acompanhamento diferenciado. A significativa queda da freqüência
de desnutridos na população em todas as regiões brasileiras, diminuindo o
tamanho deste grupo de risco, vem tornando o seu acompanhamento mais fácil de
ser operacionalizado. Entre 1975 e 1989, a prevalência de desnutrição global
entre crianças menores de cinco anos no Brasil declinou de 18,4% para 7,1%
(desnutrição definida pela relação peso para idade inferior a -2 desvios-padrão
da mediana da população de referência do National Center of Health Statistics
(Bittencourt & Magalhães, 1995:280). Mesmo entre as crianças brasileiras
menores de cinco anos pertencentes ao grupo de famílias mais pobres da
população, a freqüência da desnutrição tem se reduzido: nesse grupo (primeiro
quartil de renda familiar per capita), em 1989, 13,6% tinham desnutrição global
(Bittencourt & Magalhães, 1995:282).
O programa de combate à desnutrição no C. S. Vila Leonina deixou de ter a
recuperação nutricional como meta primeira para tornar-se uma estratégia global
de saúde no Aglomerado Morro das Pedras, por intermédio da assistência
diferenciada às famílias em situação de maior vulnerabilidade.
Mesmo a desnutrição sendo uma condição definida por características mensuráveis
matematicamente (peso e idade) de acordo com padrões e classificações
elaborados pela estatística, sua utilização como indicador de situações de
risco não resultou numa abordagem positivista, já que foi utilizado como
orientador inicial da seleção de famílias. A definição final das famílias
acompanhadas foi feita por uma avaliação baseada em análise qualitativa da
inter-relação de diferentes fatores. O combate à desnutrição, assim como aos
outros problemas utilizados como indicadores utilizados, não era o objetivo
final do acompanhamento da equipe de saúde, e sim o ponto de partida para o
entendimento e enfrentamento das repercussões da situação de miséria e opressão
naquela população. Na avaliação das várias atividades executadas, desde as
visitas até o tratamento de problemas específicos de saúde, a preocupação maior
não era a quantidade de visitas, a porcentagem de curas de problemas
específicos, o número de atividades computadas nos formulários preenchidos, o
índice de incorporação de hábitos de higiene ensinados ou a freqüência com que
ensinamentos sobre o ciclo das doenças foram aprendidos, mas sim o
fortalecimento da capacidade daquelas famílias em lutar e buscar a saúde de
seus membros.
A priorização de dimensões culturais e subjetivas na luta pela saúde
A aplicação e estudo da metodologia da educação popular num campo específico de
intervenção institucional, comunitária e familiar, como é o caso do
enfrentamento das doenças infecciosas e parasitárias, ganha sentido mais amplo
no atual contexto de construção da democracia na América Latina, em que muitos
buscam superar a separação entre a dinâmica de vida nas comunidades e na
sociedade e o funcionamento das instituições públicas. Os caminhos da
integração entre o formal e o informal estão sendo delineados, em grande parte,
com base em experiências setorizadas. Como foi constatado nesta pesquisa, em
práticas mais localizadas se torna mais clara a visualização de indicativos de
solução dos gigantescos problemas sociais que marcam as classes populares, na
medida em que se percebem suas sutis diferenciações e heterogeneidades,
questionando-se, assim, a tradição de análise generalizante e estrutural
predominante na sociologia médica. Dessa forma, tornam-se mais evidentes os
pontos prioritários de atuação, contanto que se tome a precaução de não reduzir
a abordagem desses problemas globais somente a ações localizadas.
Naquele ambiente marcado pela exclusão dos mais subalternos e onde os vários
atores se encontram e interagem freqüentemente como estranhos, sem se
compreenderem, a intervenção orientada pela metodologia da educação popular
mostrou ser bastante útil na construção de novos conhecimentos e práticas
solidárias de saúde que avançaram em direção à superação do descaso com os
problemas de saúde dos pobres urbanos. Criou-se um ambiente de maior
aproximação cultural entre vários profissionais de saúde e a população local.
Mas uma aproximação parcial.
O esforço humano de construção do diálogo entre os diferentes personagens e
grupos envolvidos nos problemas de saúde não é garantia de sucesso. O diálogo é
falível; é uma realização humana parcial e provisória; não é nem garantido pela
existência de boas intenções, nem tampouco impedido pela existência de sérias
diferenças. Contudo, mesmo tentativas fracassadas de diálogo entre as
diferenças podem nos ensinar algo: que a persistência não resolve todos os
conflitos, que alguns problemas não são solucionáveis, mas apenas
administráveis, e que um certo nível de mistério e perplexidade acompanha todos
os esforços de compreensão humana. Dar-se conta desses elementos fortalece em
nós uma saudável modéstia sobre as possibilidades e os limites de nossos
esforços comunicativos (Burbules & Rice, 1993).
Percebeu-se que as questões culturais são um elemento fundamental no
funcionamento de um serviço local de saúde. Elas estão presentes na relação
entre os diversos atores locais: moradores, organizações populares, diferentes
grupos de profissionais, chefias locais e instâncias administrativas da
Secretaria de Saúde. Tais questões culturais entravam ou potencializam as
várias propostas em andamento. Uma reforma sanitária, que enfatize a renovação
sócio-cultural e sócio-psíquica do cotidiano dos cidadãos e busque a construção
de um sistema dinâmico e eficiente que atenda de modo integral os seus
problemas de saúde, não pode depender de iniciativas educativas e comunicativas
espontâneas e, portanto, freqüentemente transitórias de profissionais e
movimentos sociais. É preciso que atividades educativas dentro da metodologia
da educação popular sejam expandidas de forma sistemática nos serviços de
saúde. A complexidade das práticas educativas e a necessidade de serem apoiadas
por uma série de atividades, que preparem e criem condições prévias ao seu
desenvolvimento, exigem profissionais qualificados com cargas horárias de
trabalho significativas dedicadas às mesmas. Os caminhos institucionais para
esta expansão não estão ainda claros, apesar da existência de algumas
experiências municipais neste sentido. Uma consideração importante neste
processo é que a habilitação para a dinamização de atividades de educação
popular nos serviços de saúde não está concentrada em nenhuma categoria
profissional específica; tem-se mostrado estar associada principalmente a uma
vocação pessoal presente em diferentes tipos de profissionais, bem como a uma
vivência anterior em projetos de educação popular integrados aos movimentos
sociais. Uma vez que a forma de encaminhamento das atividades de educação
popular em saúde depende das particularidades de cada lugar e de cada serviço,
a estratégia mais adequada de expansão destas práticas passa muito mais pelo
apoio material e educativo às iniciativas locais, do que pela difusão ampliada
de projetos elaborados por especialistas para diversos serviços.
O progresso da assistência à saúde tem estado identificado principalmente com
inovações tecnológicas: novos medicamentos, ressonância magnética, cirurgia
laparoscópica, engenharia genética, transplantes, técnicas imunológicas de
diagnóstico de alta sensibilidade e especificidade etc. Mas tão importante
quanto esta evolução tecnológica é o avanço na definição de modelos de atenção
à saúde que sejam, ao mesmo tempo, compatíveis com a realidade política,
econômica e cultural da sociedade e das instituições onde se inserem e, ainda,
contribuam para ampliar as condições de saúde de todos os cidadãos de uma forma
que respeite sua autonomia e sua dignidade. No entanto, faz parte do senso
comum a percepção de que esta construção institucional é algo que ocorre quase
que naturalmente originada do trabalho rotineiro dos políticos e dos
administradores. Muitos profissionais e amigos com quem convivi durante a
pesquisa se surpreendiam com o interesse em estudar algo que não lhes parecia
ser um problema importante da prática médica. Há um consenso de que é
fundamental valorizar ações educativas e buscar uma maior aproximação da
população, mas essas metas são vistas como dependentes apenas de maior empenho
profissional e de valorização das lideranças institucionais. Usualmente não se
percebe a imensa diversidade de possibilidades de encaminhamento dessas ações e
nem mesmo as diferentes implicações e barreiras de cada uma delas. Não se
percebe que não basta a existência de coerência técnica e administrativa numa
proposta de reorganização da atenção à saúde se ela não for compatível com as
características culturais, corporativas e econômicas dos atores envolvidos na
sua implementação. Não se percebe o fazer educativo e o aperfeiçoamento da
organização dos serviços de saúde como campo importante de pesquisa científica
que exige a participação dos diferentes especialistas do setor. Numa sociedade
regida de forma central pelo mercado, a pesquisa científica legitimada e
valorizada é aquela associada à implementação do consumo de mercadorias.
Para uma grande parcela dos profissionais e administradores do setor saúde, o
investimento em dimensões sócio-culturais e subjetivas é considerado supérfluo
no contexto de carência material que marca a atenção à saúde das classes
populares. Todavia, essa carência material existe numa sociedade que é também
de abundância em razão da revolução do processo produtivo trazida pela
industrialização. Carência e abundância convivem nas relações sociais,
justificadas e ordenadas pela cultura. A renovação dos padrões sócio-culturais
e sócio-psíquicos que orientam a vida cotidiana é um elemento fundamental na
superação da desigualdade de distribuição dos recursos materiais necessários ao
enfrentamento da doença. Além do mais, saúde é muito mais que o provimento dos
recursos materiais necessários, como nos mostra a mãe que, diante do filho
acidentado, desdobra-se em consolá-lo e reconfortá-lo com o seu carinho
enquanto o curativo dos ferimentos é realizado (Coelho, 1995). O investimento
em dimensões culturais e subjetivas é elemento central na luta pela saúde.
Precisa ser, portanto, assumido de forma explícita pelos serviços de saúde,
estudando, preparando e difundindo palavras e gestos que acontecem nos
atendimentos.