Sexualidade e corpo: o olhar do sujeito através das imagens em vídeo
Introdução
As reflexões aqui desenvolvidas têm origem em um trabalho anterior (Vargas,
1998) cuja análise estrutura-se em torno de dois eixos: as imagens do corpo
produzidas em vídeo, no que concerne às representações do corpo e da
sexualidade e suas relações com o discurso de profissionais de saúde na
interação com as imagens em práticas de educação no campo da saúde.
Neste artigo, busca-se contemplar o significado atribuído às dimensões sexuais
e reprodutivas do corpo, na ótica de profissionais de saúde, mediado pelos
chamados vídeos educativos. Tem-se como propósito indicar o contexto que
informa e oferece as possibilidades de relações que o vídeo apresenta entre
sujeitos - enunciador e representado, que compõem o texto - e profissionais de
saúde em suas ações, com base em uma reflexão sobre o processo social de
recepção de mensagens através de imagens, em contexto educativo. Ao buscar
compreender a relação dos sujeitos com a tecnologia, pretende-se uma
caracterização dos discursos sociais em termos das representações e dos valores
modeladores do olhar e da percepção do sujeito sobre as imagens produzidas.
Assim, o universo desse estudo encontra-se circunscrito às representações do
corpo e da sexualidade, emergentes no atual contexto das abordagens educativas
no campo da saúde e presentes nas imagens em vídeo, que se ligam a determinadas
práticas sociais e significados, modeladores da construção de gênero, da
experiência da sexualidade e da reprodução.
O universo do estudo abrange parte de uma produção em vídeo que se alinha,
direta ou indiretamente, às formulações e reivindicações mais recentes oriundas
dos movimentos sociais pela saúde, emergentes principalmente na década de 80.
Esses movimentos, que se convencionou chamar gay, étnico, mulheres etc. -
grosso modo e guardando suas devidas especificidades -, tentam ampliar a visão
da abordagem das questões de saúde, historicamente 'naturalizadas' e tratadas
de um ponto de vista biomédico. Apontam, assim, para seus condicionantes e
determinantes sociais, em especial as questões culturais implicadas na
constituição das identidades sociais. Tomando esse tipo de produção
preferencialmente nesta investigação, tem-se como pressuposto que a utilização
e difusão dos vídeos compõem as estratégias de ampliação desses movimentos,
alcançando o interior das práticas nos serviços de saúde.
Pretendemos ater-nos no presente artigo ao delineamento de alguns aspectos
modeladores da percepção dos profissionais e dinamizadores dos discursos sobre
o corpo, destacando o que emerge como relevante nas concepções que apóiam a
abordagem da sexualidade e das relações entre os gêneros. Privilegia-se a
atribuição de sentidos aos eventos relacionados ao corpo e a construção do
significado como uma relação social, enfatizando-se a dimensão valorativa dos
fenômenos sob observação. A opção de análise, centrada na relação do sujeito
com a tecnologia e com ênfase na verificação do sentido, pauta-se na
compreensão de ser a significação do corpo ligada à sexualidade uma questão
central na constituição dos sujeitos e das identidades sociais na modernidade
(Costa, 1996; Heilborn, 1996). O objeto dessa investigação insere-se, portanto,
numa problemática situada no interior das ciências sociais, encontrando-se
circunscrito à identificação dos discursos, expressos pelos sujeitos, que
informam na atualidade práticas voltadas à promoção do comportamento
preventivo, à ação educativa e à conscientização dos direitos sociais.
Contextualização do objeto
O desenvolvimento de recursos educativos alternativos visando à intervenção nos
campos da saúde e da educação relacionada às doenças sexualmente transmissíveis
(DST)/AIDS e uso indevido de drogas (Monteiro et al., 1994) indica a
importância da avaliação dos fundamentos e impacto dos usos de materiais no
campo educativo, reafirmando a necessária consolidação de linhas de pesquisas e
investigação sobre a produção e avaliação dos recursos articuladas à formação
de recursos humanos. No que se refere ao uso do vídeo, atesta-se, por parte do
profissional de saúde, a existência de uma demanda explícita por vídeos que
abordem determinadas temáticas e questões contempladas em seu trabalho
educativo. O que se denomina análise de demandas, no setor saúde, encontra-se
tradicionalmente apoiado em modelos de avaliação das ações e programas onde
prevalece a utilização de indicadores econômicos, tecnológicos e de qualidade
dos serviços prestados à população, com vistas à verificação de acesso,
cobertura, utilização, eficácia, satisfação do usuário, objetivos, processos e
resultados das ações. A importância desses indicadores no campo da saúde
coletiva é hoje amplamente reconhecida, assim como seus limites (Deslandes,
1997; Silver, 1992). Promover uma escuta mais atenta e exercitar a
identificação de questões que estejam mais próximas das necessidades e dos
valores da clientela-alvo dessas práticas faz-se necessário. Ressalta-se a
quase inexistência de estudos que avaliem a recepção de mensagens produzidas em
vídeo.
Quanto ao universo do vídeo, este caracteriza-se por uma essencial
heterogeneidade e, enquanto fenômeno da imagem eletrônica, é múltiplo,
variável, instável e complexo (Machado, 1996). Depara-se ainda com uma
imprecisão conceitual do termo "vídeo educativo" que se encontra
pouco problematizado do ponto de vista teórico. Não se pretende, no entanto,
centralizar a discussão sobre a caracterização da especificidade do que se
convencionou chamar vídeo educativo, mas, sim, indicar o contexto de produção,
destacando seu caráter educativo, que comumente o identifica e o distingue.
Cabe ressaltar que é precisamente o caráter de intervenção, característico das
práticas e ações de saúde configuradas pelos movimentos pela melhoria da saúde,
que enquadra a produção em questão como sendo de caráter educativo. Deve-se
considerar, no entanto, a necessidade de identificar elementos que dêem alguma
coerência a esse universo aparentemente caótico. Assim, o olhar sobre as
imagens volta-se para a exposição de algumas características que identificam um
conjunto específico de produção. As informações colhidas de levantamento
quantitativo realizado em acervos de bibliotecas (institucionais e ONGs),
catálogos, folders informativos e entrevistas com profissionais de serviços de
saúde permitem compor um quadro da produção dos vídeos educativos em termos de
suas características mais gerais quanto à temática, ao público e ao gênero de
produção. Contudo, tal caracterização não se torna suficiente ao delineamento
dos contornos de utilização da produção em vídeos, pois deixa à margem alguns
elementos fundamentais do processo comunicativo e inerente ao trabalho
educativo. Um dos elementos que constitui em particular interesse é a interação
do sujeito com as mensagens educativas, apreendida a partir da interpretação
feita pelos profissionais de saúde sobre as imagens produzidas em vídeo.
Considera-se ser inerente a esse processo, com as características recortadas, a
inscrição no discurso dos profissionais das dimensões sexuais e reprodutivas do
corpo por sua vez modeladas por determinadas concepções e representações acerca
da saúde, do corpo e da sexualidade. Tem-se como perspectiva que, na interação
com as mensagens e no processo de identificação (Borges, 1996:135) dos
sujeitos, concorrem inserção social, pertencimento cultural e valores morais
expressos subjetivamente nas questões problematizadas pelo coordenador ao
proceder à leitura ou utilizar o vídeo com determinada intencionalidade
educativa.
A imagem tem se mostrado como uma linguagem poderosa no campo da comunicação,
cujo desafio consiste em conhecer seu potencial nos processos e nas práticas de
caráter educativo. Por tratar-se de vídeos, há ainda uma característica
particular, qual seja a imagem em movimento, que lhe confere um estatuto
específico nesse campo de produção. Não obstante o reconhecimento dessa
especificidade, tem-se como propósito destacar, nesse conceito, sua função de
representação da realidade como um dos aspectos privilegiados na análise dos
fenômenos em comunicação. Aumont (1993) considera a imagem como mediadora de
representações e propõe que "toda representação é relacionada por seu
espectador - ou melhor, por seus espectadores históricos e sucessivos - a
enunciados ideológicos, culturais, em todo caso simbólicos, sem os quais ela
não tem sentido" (1993:248). Sua importância analítica encontra-se,
portanto, nas relações essenciais que mantém com o objeto de investigação em
termos de sua vinculação com o domínio do simbólico, o que confere à imagem uma
posição de mediadora entre espectador e realidade.
Essa opção teórica metodológica impõe que sejam contempladas questões até então
não devidamente desenvolvidas em análises de vídeos com finalidade educativa,
sabidamente escassas, como apontado por Siqueira (1998). Uma delas diz respeito
à necessidade de pôr em evidência o contexto de produção valendo-se da
construção histórica dos discursos sobre o corpo e a sexualidade, que não só
informam a esfera de produção (incluem-se aqui produtores e usuários de
recursos educativos), como também extrapolam a experiência imediata dos
sujeitos envolvidos nas ações educativas. Outra questão diz respeito ao
desenvolvimento de um aporte teórico-metodológico que dê sustentação às
análises dos fenômenos culturais como mediação necessária à comunicação em
saúde, a fim de oferecer subsídios à avaliação do uso de recursos educativos
preventivos, uma vez que tal uso encontra seus limites em uma visão
instrumental dos processos de educação e de comunicação que se impõe no
cotidiano das práticas, na abordagem de seus conteúdos e, conseqüentemente, na
utilização dos vídeos e na avaliação de seus resultados. Assim, o objeto
insere-se também numa problemática ampla circunscrita ao debate atual dos
modelos de educação e de comunicação que informam o comportamento e as
intervenções no campo das ações preventivas e assistenciais em saúde (Pitta
& Meira, 1990; Abrasco, 1992; Schall & Struchiner, 1995).
Isto posto, cabe ressaltar que não se pretende aqui analisar ou esboçar
propostas de modelos de intervenção ou alcançar respostas conclusivas, mas,
antes, buscar outros ângulos de visão que contribuam e somem esforços na
superação dos dilemas colocados às intervenções educativas em saúde na
atualidade. É pertinente reconhecer que as questões pontuadas oferecem o apoio
necessário à opção por um determinado tipo de interpretação, dentre outras, que
se pretende realizar sobre as imagens em vídeo. O esforço empreendido se faz no
sentido de enfatizar, no processo comunicativo - mediado pelo vídeo educativo
-, a importância de serem contempladas, em grupos culturalmente definidos, as
representações e valores modeladores da subjetividade, que posicionam o sujeito
na estrutura social. No âmbito das políticas públicas e ações educativas/
comunicativas, dilemas e impasses têm-se apresentado mediante as atitudes
aparentemente contraditórias de homens e mulheres em termos do comportamento
sexual e reprodutivo na prevenção e proteção contra o vírus HIV (Barbosa &
Villela, 1994). Nessa direção particularmente rica, tem sido a contribuição
antropológica na análise dos comportamentos dos sujeitos impulsionado pela AIDS
(Guimarães, 1994a, 1994b, 1996; Knauth, 1995, 1996, 1998), onde o tema da
sexualidade emerge como central pelas próprias características de transmissão
da doença e de configuração da epidemia. Esses estudos sobre o contexto
cultural que agencia a vulnerabilidade feminina mediante a epidemia, ao
revelarem a existência de uma lógica cultural específica regida por valores
morais, tentam explicar a aparente contradição identificada no comportamento
não preventivo dos sujeitos sociais, em situações comprovadas, onde os mesmos
não se encontram totalmente desinformados sobre a doença. O que se tenta
afirmar nesses estudos é a positividade da cultura do segmento popular, o que
implica poder olhá-lo por uma ótica diferente da que o remete à
"ignorância" ou à "falta de informação" (Leal, 1995a),
ótica esta, embora exaustivamente denunciada, ainda bastante prevalente. A
análise sobre o sentido da proteção em jovens de camadas populares (Monteiro,
1999) indica a necessidade de incorporação das representações sociais,
presentes na percepção desse grupo, nas estratégias preventivas propostas para
o enfrentamento da epidemia. Oferece ao debate, no campo preventivo, uma
interessante contribuição ao destacar as percepções e as práticas de proteção
dos jovens relacionadas à doença. Esses estudos mais uma vez colocam em
evidência a AIDS como um dos maiores problemas a ser enfrentado na atualidade
em termos de políticas públicas e também como propiciadora de debates
relacionados aos sentidos do corpo, à sexualidade e às identidades sexuais. No
que se refere a um recorte analítico mais amplo, afinado com as vertentes mais
tradicionais dos estudos antropológicos sobre a 'construção' da Pessoa e do
Corpo, podem-se identificar vários investimentos em análises dos fenômenos
pautados na experiência da doença, do sofrimento e do mal-estar designados, na
cultura ocidental moderna, como doença e saúde (Duarte & Leal, 1998).
As práticas que compõem o conjunto de ações em saúde de caráter educativo,
quando analisadas historicamente, revelam a presença do projeto hegemônico da
medicina nas práticas de saúde. Constitui-se, portanto, como um conjunto de
práticas autoritárias, normalizadoras e disciplinadoras de condutas, ficando o
corpo, tomado como "indivíduo biológico", subordinado às ações
médicas (Oshiro, 1988:10-18). Borges (1996), problematizando os limites das
intervenções educativas, tendo como base o campo da psicanálise, chama a
atenção para o mal-estar no trabalho de educação em saúde. Este se expressa
pelo desconforto gerado naqueles que se ocupam da tarefa de educar quando
deparam, como no dizer da autora, com "corpos rebeldes" e
insubordinados em relação às orientações educativas preventivas (Borges, 1996:
20-35). Outros estudos indicam ainda os limites das intervenções pautadas
apenas na informação e na responsabilidade individual e/ou ressaltam a
existência de problemas de comunicação entre os atores envolvidos nessas ações
(Oshiro, 1988; Pamplona, 1990; Vieira, 1990; Assis, 1992; Melo, 1993; Pereira,
1993; Chatel, 1995; Leal, 1995a, 1995b; Heilborn & Gouveia, 1997).
Assim, parte das motivações presentes nessa investigação encontra-se na
necessidade de desenvolver uma reflexão que vá além do reconhecimento de que
tanto as práticas, quanto as produções em vídeo, constituem-se em estratégias
de sensibilização para uma abordagem mais atualizada e menos 'naturalizada' dos
temas de saúde. Reconhece-se que a produção em vídeo caracteriza-se por seu
caráter estratégico de ampliação do debate das questões de saúde para o
conjunto da sociedade. Pretende também, dessa forma, influir nas políticas
públicas e alcançar a rede de serviços visando reconfigurar modelos
assistenciais mais afinados com o que se considera demandas e necessidades de
saúde. No entanto, não se pretende perder de vista que temas e conteúdos, mesmo
os mais progressistas e considerados necessários para a mudança do
comportamento preventivo, são determinados historicamente. Além disso, sua
abordagem encontra-se sob forte influência do modelo biomédico hegemônico ainda
prevalente em grande parte das análises e intervenções no campo da saúde.
Parece persistir ainda a idéia de serem os eventos relacionados ao corpo, entre
os quais se inclui a reprodução humana, considerados como um processo
eminentemente biológico ou natural que se efetiva de modo externo às relações
sociais (Loyola, 1992:94). Tem-se como propósito, considerando tratar-se de
profissionais de saúde que funcionam como mediadores das práticas relacionadas
à clientela dos serviços de saúde, não só reafirmar o uso de vídeos como
recurso de comunicação nos processos educativos, mas também interrogar seu
potencial e seu real aproveitamento enquanto meio facilitador para o alcance
dos sujeitos a quem se destinam as mensagens educativas.
O processo de investigação: algumas considerações metodológicas
Alguns pontos, que dizem respeito às opções teórico-metodológicas adotadas,
devem ser considerados como intrínsecos à metodologia utilizada. Em primeiro
lugar, vale dizer que tais opções estão determinadas por questões internas
relativas tanto ao quadro teórico de referência, quanto ao contexto social e as
condições institucionais que em seu conjunto influenciaram o direcionamento
teórico e prático da pesquisa.
Buscando suprir as necessidades decorrentes do tipo de análise proposto,
contou-se com o aporte teórico e a contribuição de diversas áreas do
conhecimento. Assim, este estudo pôde ser beneficiado por reflexões teóricas
oriundas de campos diversos, como o das teorias da recepção, metodologias de
avaliação da recepção de mensagens e dos estudos cinematográficos constituídos
com base na experiência do cinema. Como não poderia deixar de ser mencionado,
beneficiou-se também das reflexões e contribuições do pensamento freudiano,
embora não esteja aqui proposto tratar teoricamente as questões valendo-se de
conceitos do campo da psicanálise. Pode-se, assim, percorrer um caminho
conceitual que possibilita um deslocamento do olhar da produção para a esfera
da recepção de mensagens, concebida também como um núcleo de significação, e
então descrever o que este pólo faz com o que é produzido por um outro. No
entanto, nesse percurso, apresentam-se alguns dilemas que devem ser
explicitados por serem compreendidos como parte do processo de reflexão
teórico-metodológico no sentido indicado por Lopes (1994), em análise de
modelos metodológicos de pesquisa em comunicação. Dessa forma, depara-se com
uma questão que diz respeito ao como levantar, tendo como base o quadro de
referência adotado, os dados empíricos no que concerne aos discursos sobre o
corpo na abordagem da sexualidade, como um fenômeno de comunicação mediado pelo
vídeo educativo. Tal questão refere-se, também, ao como descrever esse
processo, ciente da insuficiência de publicação de textos voltados à
metodologia no campo da comunicação (Lopes, 1994), confirmada em revisão
bibliográfica específica sobre vídeo. Siqueira (1998) compartilha dessa opinião
indicando que muito pouco se tem investigado em relação a materiais educativos,
dentre os quais se incluem os vídeos e sua utilização no campo da saúde. A
análise deste autor está voltada para a identificação da construção da
intencionalidade pedagógica dos vídeos educativos e para um contexto de
produção ligado em sua gênese ao ensino superior. Já Langenbach (1993) reflete
sobre algumas modalidades do uso do vídeo como recurso de sensibilização no
contexto escolar, apontando para a necessidade de se repensar e reestruturar o
processo educacional com ênfase na construção coletiva do saber. Podem-se
relacionar ainda outros trabalhos, entre teses e artigos, com características e
recortes específicos na abordagem do vídeo como meio de comunicação. Alguns
textos, como os da FASE (FASE, 1989) e de Ceccon (1989), indicam uma tendência
na produção e utilização do vídeo como instrumento de comunicação popular e de
intervenção educativa visando à reflexão e à ação numa perspectiva de educação
popular. Nestes artigos, os trabalhos da FASE e do CECIP (Centro de Imagem de
Criação Popular) são indicados como sendo a base da experiência na abordagem do
vídeo popular. Romano (1990) propõe-se a estabelecer as relações entre o vídeo
popular e o contexto político e ideológico dos movimentos sociais (toma como
exemplo os movimentos sindicais, movimento de mulheres, de associação de
moradores etc.). Já em Melo (1993), encontramos o uso do vídeo especificamente
por grupos feministas como um meio de apoio às suas ações comunicativas da
realidade social e como uma sistematização das informações dispersas sobre a
temática da mulher. Numa perspectiva antropológica, Paula (1996) reflete sobre
o uso do vídeo na construção social da identidade cultural, através do qual os
discursos sobre o mundo indígena e não indígena são reproduzidos. Pôde-se,
ainda, ter acesso a um projeto de avaliação do vídeo educativo (Rozemberg,
1995a, 1995b) produzido para - e com a participação de - moradores de área
endêmica de esquistossomose no campo da saúde. A diversidade de enfoques e
problematizações encontradas possibilitou entrever a existência de extensa
variedade de aplicações e recortes teóricos sobre o vídeo. Portanto, procurou-
se identificar os elementos teóricos e as estratégias metodológicas que melhor
pudessem oferecer alguma coerência à análise, visto que, sobre a temática do
corpo e da sexualidade relacionada ao vídeo, com ênfase na recepção de
mensagens, não se encontrou nenhum estudo.
Assim, a presente análise voltou-se à compreensão dos modos como os vídeos são
consumidos por determinado grupo social, não apenas baseando-se em seus
conteúdos, mas também valendo-se da caracterização das condições sociais de
produção e consumo dos chamados produtos culturais. Nesse sentido, pauta-se na
idéia de consumo como também como espaço de produção de sentido (Lopes, 1994:
56). Seguindo na direção dessa caracterização, uma classificação dos vídeos por
segmentos da população ou público específico para o qual estariam direcionadas
tais mensagens pode ser encontrada nas sinopses dos conteúdos e dos títulos,
ambos indicando as temáticas abordadas e o público-alvo. No entanto, constitui-
se um problema teórico-conceitual, que deve ser enfrentado em análises
posteriores, o fato de se pensar a recepção das mensagens em vídeos educativos
por um grupo social a que se denomina, genericamente, clientela dos serviços
públicos de saúde ou segmento populacional definido a partir das ações de
saúde. Isso determinou a opção pelo profissional de saúde como informante
privilegiado do estudo, pois, em se tratando de vídeos, depara-se com um
mediador fundamental, que elege o recurso para o desenvolvimento de suas ações
educativas e proporciona o acesso necessário ao vídeo junto à clientela.
Sendo assim, ainda estamos instalados no pólo da produção, considerando que
profissionais de saúde, através de suas práticas, são também componentes dos
segmentos sócio-político-institucional, formuladores dos discursos e das
concepções predominantes sobre o corpo na abordagem da sexualidade. Não estamos
considerando a veiculação de vídeos via satélite, o que teoricamente conferiria
maior autonomia da recepção, mas sim a utilização restrita no âmbito dos
serviços de saúde. Detivemo-nos, dessa forma, em aprofundar como esses
profissionais lidam com os discursos revelados pelas imagens, indicando os
pontos de contato e mediações de sua ação junto à clientela. Através das
estratégias metodológicas adotadas, tentou-se abranger um número maior (e
possível) de ângulos de visão que permitissem efetuar o recorte necessário aos
propósitos do estudo.
Material e método
Em se tratando de pesquisa qualitativa que tem como universo empírico as
imagens em vídeo e o discurso dos profissionais de saúde, o estudo incluiu:
levantamento e classificação dos vídeos disponíveis; observação participante;
realização de grupos de discussão e entrevistas no período de junho a setembro
de 1996. O trabalho de campo foi feito em dois postos de saúde (zonas norte e
sul do Rio de Janeiro) e no Centro de Treinamento da Secretaria Municipal de
Saúde (SMS) do Rio de Janeiro (RJ). Compuseram a amostra nove profissionais
(três enfermeiras, uma psicóloga, duas assistentes sociais, duas nutricionistas
e uma auxiliar de enfermagem), todas do sexo feminino, que desenvolvem
atividades educativas e assistenciais voltadas à clientela nos serviços
públicos de saúde. Parte desse grupo tem como função principal atividades cujo
objetivo é a formação de equipes multiprofissionais nos cursos oferecidos pela
SMS/RJ. Pretendeu-se a inclusão de profissionais com esses dois tipos de
atribuições na amostra. Assim como a inserção efetiva do profissional em
atividades educativas, a disponibilidade e o interesse em participar do
trabalho de campo.
Levantamento dos vídeos
Um banco de dados das imagens (sessenta títulos) produzidas nas décadas de 80 e
90 foi organizado a fim de oferecer um conjunto de informações que comporiam o
universo pesquisado. Como parte dessa atividade, procedeu-se a uma leitura de
todos os títulos vistos e ordenados, com o auxílio dos catálogos das
bibliotecas, com referência a: produção, realização, direção, duração, público-
alvo, gênero (documentário/ficcional), ano de produção, participação em
mostras, prêmios recebidos e sinopse do material produzido. Por vezes,
observou-se uma não-distinção em relação a produtores e realizadores, o que
pode ser atribuído à especificidade do campo desse tipo de produção. A
estruturação desse banco foi resultado de levantamento realizado em três
bibliotecas que possuem acervo de vídeo e em catálogos de organizações
governamentais e ONGs disponibilizados para consulta, respectivamente:
Biblioteca Central/Fundação Oswaldo Cruz e Biblioteca da Escola Nacional de
Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz - ambas vinculadas ao Departamento de
Comunicação e Saúde/Centro de Informação em Ciência e Tecnologia/ Fundação
Oswaldo Cruz (ex-Núcleo de Vídeos); Biblioteca do NUTES/UFRJ (Núcleo de
Tecnologia Educacional para a Saúde/Universidade Federal do Rio de Janeiro);
ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS); CNDM (Conselho Nacional
de Direitos da Mulher); ECOS (Estudos e Comunicação em Sexualidade Humana);
IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas); REDEH/CEMINA
(Rede de Defesa da Espécie Humana) e SOS Corpo/Recife (SOS Corpo, Gênero e
Cidadania). A seleção dos exemplares que comporiam a amostra foi realizada
observando-se alguns critérios, a saber: a variedade de temas de saúde que se
relacionam direta ou indiretamente à sexualidade, como os vídeos voltados, por
exemplo, à contracepção, à gestação, às DST/ AIDS etc.; a diversidade de
público-alvo a quem o material se destina, como adolescentes, educadores,
mulheres etc.; e participação e prêmios recebidos em mostras de vídeo. A título
de ilustração, pode-se indicar, como resultado mais geral da atividade de
levantamento dos vídeos, a caracterização dos seguintes temas contemplados
pelos exemplares: AIDS (abordagem da morte associada à AIDS; sensibilização de
profissionais de saúde; impacto da epidemia nos jovens; prostituição; mulheres
na relação com parceiros; a descoberta da sorologia positiva; sexualidade;
homossexualidade; trabalho comunitário; possibilidade de cura; o risco de
contaminação para as mulheres; meninos de rua; tabus e formas de contágio);
parteiras; o interesse sexual na idade madura; aborto; relações de gênero;
casamento; sexualidade feminina; sexualidade na adolescência; sexualidade e
reprodução; questão populacional; contracepção; drogas; movimento feminista;
prática educativa; prostituição; contracepção e gravidez; laqueadura tubária;
geração de renda; assistência perinatal e pré-natal; parto; condição feminina;
DST; educação sexual nas escolas; novas tecnologias reprodutivas. As
informações reunidas sobre o acervo foram disponibilizadas para o Banco de
Materiais Educativos organizado pelo LEAS (Laboratório de Educação Ambiental em
Saúde, Departamento de Biologia/Instituto Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz),
cujo objetivo consiste na organização, divulgação e desenvolvimento de linhas
de investigação sobre esse tipo de produção no campo educativo preventivo.
Quanto ao público, em sua maioria, dirigem-se a três grupos: a adolescentes,
mulheres, população em geral. Embora os vídeos abordem a sexualidade e
temáticas afins, destaca-se um único exemplar dirigido aos homens, com ênfase
na homossexualidade masculina. Logo, essa produção estrutura-se com a ausência
de representação do masculino.
Realização de grupos de discussão
Três vídeos (Julieta e Romeu - ECOS, 1996; Uma Vezinha Só - ECOS, 1996; Entre
Quatro Paredes - ABIA/TV ZERO, 1995) que fazem parte do universo da pesquisa
foram exibidos aos profissionais e assim se caracterizam: 1) Quanto ao gênero:
dois ficcionais (Julieta e Romeu e Uma Vezinha Só) e um documentário (Entre
Quatro Paredes), sendo o primeiro dos ficcionais premiado em mostra de vídeos.
2) Quanto ao tema: abordam contracepção, gravidez na adolescência, negociação
do uso do preservativo, aborto e sexualidade. 3) Quanto ao alvo: público em
geral, adolescentes e mulheres. Pretendeu-se diversificar o enfoque e a forma
utilizada na abordagem dos temas. Foram realizados cinco grupos, compostos por
profissionais de uma mesma unidade de saúde e mistos. A discussão levantou
aspectos relacionados aos conteúdos e formas, adequação público/mensagem,
impressões gerais causadas pelas imagens e cenas mobilizadoras, bem como a
temática predominante e o que esteve ausente na abordagem.
Observação participante
Realizada em dois contextos: o primeiro em uma unidade de saúde da zona sul com
profissionais que utilizam vídeos em suas dinâmicas; os grupos contaram, em
média, com 15 mulheres pertencentes ao segmento popular; o segundo em um curso
para 21 auxiliares de enfermagem da rede pública. Obteve-se um total de oito
observações de atividades coordenadas pelos profissionais de saúde, com duração
média de quatro horas cada uma.
Entrevistas
Semi-estruturadas com profssionais de saúde da rede pública que utilizam vídeos
em suas atividades.
Cabe, por fim, ressaltar que, embora o estudo tenha tido essa abrangência, no
presente artigo não estaremos analisando a totalidade das informações geradas
pela investigação. Uma análise mais completa dos dados reunidos encontra-se
descrita no trabalho de Vargas (1998), anteriormente citado.
Perspectivas de análise
Em termos conceituais, tanto a imagem, quanto o olhar do sujeito sobre o vídeo
educativo, interesse específico deste artigo, são vistos na ótica
antropológica, sociológica e de alguns estudos apoiados na teoria
psicanalítica, conforme já indicado. Os conceitos de corpo, gênero,
sexualidade, identidade social e imagem apóiam a análise das relações entre o
contexto da produção videográfica à realidade social objetiva/aspectos
subjetivos, culturais e simbólicos que vinculam-se à clientela/público receptor
que se encontram presentes na interpretação dos profissionais de saúde.
Em se tratando das imagens do corpo, no que concerne ao comportamento sexual e
reprodutivo, a indicação dos discursos prevalentes na abordagem da sexualidade
constitui-se em uma dimensão teórica importante, onde se destaca o corpo como
construção social (Boltanski, 1979) e simbólica, e não somente como biológico.
Busca-se relativizar as categorias que apóiam a construção dos discursos, na
explicação dos eventos que se ligam ao corpo no interior de sistemas culturais
particulares, haja visto a atribuição de valor dada a esses eventos através das
classificações dicotômicas de comportamentos e atitudes segundo os sexos
observada em toda sociedade (Héritier, 1978; Duarte, 1986; Heilborn, 1993;
Bourdieu, 1995). Dessa forma, assinala-se a existência de diferentes lógicas
ordenadoras das representações, expressas nos discursos, que fundam as
concepções sobre sexualidade, identidade, comportamento sexual e demais
categorias que historicamente procuram explicar os eventos relacionados ao
corpo sexuado. Isso implica proceder-se a uma relativização da idéia de sexo
para se discutir a questão da sexualidade, que decorre do reconhecimento da
inexistência de um referente maior ou exclusivo dessa (Costa, 1996). Nesse
sentido, a sexualidade é compreendida como uma construção social baseada nas
diferenças fundamentais entre os sexos com base em uma abordagem não
essencialista. A palavra sexo, nesse enfoque, passa a designar a caracterização
anátomo-fisiológica dos seres humanos com vistas à desconstrução do mito da
essência sexual, base da experiência ou da concepção de sexualidade modernas.
Apoiada numa concepção de identidade social construída por um "conjunto de
marcas sociais que posicionam um sujeito em um determinado mundo social",
Heilborn (1996) define-a como "a moldura possível onde os sujeitos podem
existir e se expressar". Postula ainda que a "modelação da
pessoa" comporta simultaneamente três dimensões: a primeira delas diz
respeito aos atributos e traços que constituem classificatoriamente o sujeito
(indicadores de estratificação social, idade, gênero etc.); a segunda, ao modo
como esses atributos inserem-se no campo das significações sociais, e, por
último, uma terceira dimensão seria a expressão de tais marcas mediante
determinados valores que tomam corpo em significados que articulam a imagem de
si e a relação com o outro (Heilborn, 1996:137). Destaca que esse processo é
simultaneamente exterior ao sujeito e objeto de uma interiorização.
Quanto à definição de gênero, o conceito tem sua origem na noção de cultura que
"aponta para o fato da vida social e os valores que a organizam - como,
por exemplo, tempo, espaço ou a diferença entre os sexos - são produzidos e
sancionados socialmente, através de um sistema de representações"
(Heilborn, 1994: 1). Assim, o que está convencionado para a utilização do
termo, enquanto categoria, é que ele possibilita uma distinção entre as
dimensões anátomo-fisiológicas dos seres humanos e as dimensões culturais
atribuídas a cada um dos sexos. Baseada na proposição Dumondiana (Duarte, 1986)
da universalidade da hierarquia como ordenamento do mundo social, Heilborn
busca as razões que expliquem a constante estrutural de assimetria na montagem
das relações entre os gêneros (Heilborn, 1993, 1998).
A emergência dos discursos e as imagens do corpo
São recentes os estudos que abordam a sexualidade e as questões relacionadas à
reprodução humana no campo da pesquisa social, largamente ignoradas durante a
maior parte do século XX. Embora ignorada do ponto de vista da constituição das
ciências sociais, a experiência da sexualidade, através dos estudos das
ciências biomédicas, esteve intimamente ligada ao corpo concebido do ponto de
vista de sua existência biológica. Estudos recentes, impulsionados, em parte,
pelos movimentos ocorridos no âmbito da sociedade, como desdobramentos dos
movimentos sociais, a partir dos anos 60, tentam romper com os modelos
explicativos pautados na racionalidade médica, que relegaram à marginalidade as
questões culturais implicadas na constituição das identidades sociais. Esse
questionamento possibilitou a abertura para análises mais abrangentes dos
fenômenos e questões referentes à sexualidade e reprodução, ressaltando suas
dimensões políticas e sociais. Desde então, a questão dos direitos sexuais e
reprodutivos têm sido amplamente debatidos.
É também recente a consolidação do vídeo, enquanto meio de produção de
mensagens, como suporte de manifestações culturais e de resistência, marcado em
sua origem por sua vinculação à indústria cultural e ao aparecimento de novas
tecnologias no final dos anos 50. Tais manifestações refletiam o clima
político/cultural da época que incidia diretamente tanto na constituição deste
campo, quanto na tônica das produções em vídeo, por influência da vinculação de
seus realizadores aos movimentos sociais. Aqui se incluem os movimentos pela
democratização da saúde articulados aos diversos grupos engajados nas lutas
pela igualdade de direitos. Os grupos mobilizados em torno de questões e lutas
específicas (de etnia, feminista, gay etc.), guardando suas particularidades,
produziram uma gama de materiais e instrumentos de intervenção política, em
particular no campo do vídeo. As produções, portanto, em sua gênese, mantêm
relações com um contexto conjuntural mais amplo da sociedade brasileira em suas
dimensões estruturais e ideológicas, como demonstrado por Melo (1993) em
análise específica sobre a produção feminista em vídeo.
Tais tentativas, seja no campo teórico de politização das questões de saúde,
seja através de iniciativas de produções independentes no campo da comunicação,
com conseqüente questionamento da ordem de comunicação vigente, apresentavam-se
como respostas alternativas ao saber hegemônico e à predominância das mensagens
veiculadas pelos meios de massa. Assim, compreendemos que o processo de
veiculação das mensagens e dos conteúdos representados por imagens através dos
chamados vídeos educativos, quando analisado à luz das atividades educativas em
saúde, deve estar referido ao momento histórico de sua produção e utilização.
Os vídeos que compõem o universo desta investigação vinculam-se a um tipo de
produção que encontra suas raízes na expansão dos movimentos de mulheres e do
movimento homossexual masculino. Desdobrando-se nos anos 80, esses movimentos
buscam legitimar culturalmente determinadas práticas e relações entre os sexos,
apontando as contradições presentes no universal sistema de dominação das
culturas tradicionais, em especial nas relações entre os gêneros. Também
encontra suas raízes nas diversas vertentes dos movimentos alternativos e de
educação popular, tornando-se, sob a influência destes, instrumento político e
de intervenção. Em Hollanda (1993), pode-se encontrar uma referência conceitual
para se pensar sobre os pressupostos orientadores de metodologias (Valla &
Stotz, 1993) sobre participação popular.
No contexto brasileiro, no decorrer da década de 80, a partir dos marcos
iniciais de luta pela igualdade de direitos sexuais e reprodutivos, programas
voltados às intervenções nas questões de saúde junto às mulheres foram
desenvolvidos, assim como ações e materiais educativos com o objetivo de
minorar os reflexos das desigualdades sociais nas condições de saúde de homens
e mulheres. Ressalta-se aqui a especificidade da participação dos setores
feministas no campo da saúde, o que derivou a elaboração de propostas no campo
das políticas públicas objetivando o atendimento das chamadas demandas
femininas (PAISM, 1983).
Educação e comunicação: elementos para se pensar a recepção das imagens em
contexto educativo
As atuais tendências das investigações no campo da comunicação social,
constituídas a partir da trajetória latino-americana da pesquisa nessa área
(Melo, 1985; Orozco & Jacks, 1993; Lopes, 1994; Barbero, 1995; Leal, 1995b;
Neto, 1995), indicam uma tendência à relativização da subordinação do receptor
ao texto. Nesse caso, a recepção é concebida como processo mediado e o receptor
é visto como sujeito da engrenagem, ativo, que age através de associações,
transferências, projeções e avaliações que fazem dele um leitor detentor de uma
decisão interpretativa sobre o texto que lhe é ofertado. Dessa forma, pode-se
considerar que a relação dos sujeitos com as imagens em vídeos é de natureza
simbólica, definida pelo estoque cultural e pela posição que cada usuário ocupa
no cenário social, modeladores de sua subjetividade.
Em se tratando de relações comunicativas sobre saúde e doença, no âmbito da
prevenção, as representações do corpo humano, sejam elas hegemônicas, ou
contra-hegemônicas, serão sempre produções simbólicas (Lefèvre, 1995). Supõe-
se, assim, que na produção em vídeo encontra-se representado um determinado
tipo de receptor das mensagens, para o qual são dirigidas as mensagens
educativas, no senso comum denominado público-alvo, geralmente pertencente às
camadas populares. Detendo-se nas formas através das quais as mensagens
educativas expressam representações sobre a sexualidade, tenta-se pôr em
evidência como o corpo em imagens - corpo da clientela, público-alvo das ações
- apresenta-se como estrutura componente dos vídeos. Pode-se supor a existência
de uma determinada visão de um outro, constituído culturalmente e posicionado
na estrutura social, que se encontra expresso na construção de determinados
tipos ou estereótipos. Assim, pretende-se avançar na compreensão de que o
sentido não se encontra restrito ao campo da mensagem em si, em termos de seus
conteúdos, mas enfeixado em relações sociais concretas.
A interação com as mensagens, considerada como relacional e produto de uma
atividade interpretativa realizada pelos profissionais, distingue-se do face a
face, origem de todas as formas de interação social. Ressalta-se que o processo
interativo comporta uma dimensão relacional, já que origina uma imagem do outro
- que é, ao mesmo tempo, imagem de si próprio, conforme Iser (1979). Ao se
considerar o sujeito que olha a imagem, o espectador ou então o receptor das
mensagens veiculadas em imagens, deve-se ter como parâmetro que a visão efetiva
destas realiza-se em um contexto multiplamente determinado: contexto social,
contexto institucional, contexto técnico, contexto ideológico (Aumont, 1993).
Os sentidos do corpo: o olhar do sujeito sobre as imagens
As reflexões a seguir apóiam-se nas seguintes questões, implicadas no esforço
de construção de parâmetros para leitura dos vídeos: os discursos em torno da
constituição das identidades sociais; a significação do corpo ligado à
sexualidade como central à constituição das identidades na modernidade; a
emergência destas formas discursivas em práticas e materiais de natureza
educativa.
Considerou-se a questão da sexualidade de difícil abordagem e, na interpretação
dos profissionais, emerge relacionada aos comportamentos dos personagens
representados, com ênfase especial, nos tipos femininos. Foi assinalada, em uma
das interações, uma certa dificuldade por parte de uma personagem feminina em
falar sobre sexo, referido aqui a práticas sexuais e reprodutivas, bem como
sobre assuntos considerados tabus, como: relações sexuais com alguém do mesmo
sexo, a masturbação, o aborto etc.
"Na verdade é difícil fazer um vídeo sobre sexualidade..."
"Então eu queria muito um vídeo que botasse essas coisas(...) mais claras
e mais presentes no cotidiano de qualquer pessoa, seja ela assim, assado, que
essas coisas existem no cotidiano de qualquer classe, qualquer... E assim
queria um vídeo(...)que mostrasse(...) mais lugar comum. Entendeu?"
A necessidade de se compreender o que é comum na experiência da sexualidade
surge através de uma demanda por um vídeo que pudesse mostrar as experiências
vividas no cotidiano de qualquer pessoa, sugerindo a existência de uma
percepção homogeneizadora da sexualidade. A acertiva de que, na cultura
ocidental, a identidade sexual constituiu-se numa das dimensões centrais da
identidade social das pessoas vincula-se a uma perspectiva construtivista.
Nesta perspectiva, "a sexualidade não possui uma essência a ser desvelada,
mas é antes um produto de aprendizado de significados socialmente disponíveis
para o exercício dessa atividade humana" (Heilborn, 1996:137). Na
percepção do profissionais, pode-se vislumbrar ainda uma tendência a não
enfatizar a diversidade cultural dos segmentos sociais nos quais encontram-se
inseridos os sujeitos-alvo das ações comunicativas/educativas. Uma das
personagens femininas, identificada como dona de casa teria tido, na ótica dos
profissionais, maior dificuldade em falar sobre sexo. Contrastada com os demais
tipos femininos, a dona de casa, pertencente ao segmento popular, surge como
representação daquela que "não tem intimidade absolutamente alguma com o
uso da camisinha" e parece mais embaraçada para falar, em relação às
demais, de assuntos relacionados a sexo. Tal compreensão tende a desconsiderar
o contexto social e a coexistência de diferentes códigos culturais como em
análise de Duarte (1987), que indica a existência de outras lógicas ordenadoras
das representações e valores presentes na interpretação das experiências da
classe trabalhadora urbana. Cabe ressaltar aqui que se pretende afirmar as
práticas e os comportamentos sexuais como experiências de importância subjetiva
para mulheres e homens pertencentes aos diversos grupos, no entanto tais
experiências não ganham relevância como objeto de discurso para os segmentos
populares. Dito de outra forma, a sexualidade parece não se constituir em
objeto específico do discurso e nem como referência básica para a definição
identitária desses segmentos sociais. Antes, o sexo, para determinados grupos,
emerge subsumido a uma ordem moral familiar (Ropa & Duarte, 1985). Na
apreensão das regras que constituem a moralidade dos grupos sociais, encontra-
se implicada, em termos analíticos, a questão da demarcação das fronteiras
simbólicas em relação a outros grupos ou identidades socais. Deve-se, portanto,
levar em conta o lugar de relevância que ocupa a instância familiar na
organização dos grupos sociais em geral (Durham, 1983) e, em particular, na
constituição das identidades em grupos populares (Duarte, 1987:215).
Ao descreveram as imagens, os profissionais elegem, num espectro de
possibilidades, questões que se referem às suas experiências e relativas aos
atendimentos junto à clientela, às experiências de natureza subjetiva e ligadas
à esfera pessoal deixando entrever sua percepção acerca dos eventos e
comportamentos sexuais e reprodutivos. Essas experiências parecem se
constituir, em última instância, em medida de avaliação das imagens produzidas.
Pode-se, assim, identificar, como recorrente na narrativa dos profissionais, um
tipo de interpretação sobre as imagens produzidas que se caracteriza por sua
relação entre as situações encenadas e a realidade, deixando entrever a maneira
como concebem a chamada vida real. Dessa maneira, revelam almejar uma
fidelidade das situações representadas à realidade manifestada por meio da
crítica aos comportamentos dos personagens e das diversas situações
apresentadas, notadamente quanto: ao contexto da situação encenada, ao grau de
informação dos personagens sobre os temas de saúde e aos estereótipos e tipos
femininos e masculinos representados.
"Eu achei interessante é que justamente os argumentos são as várias -
facetas da própria realidade, da própria vida. Então, eles trabalham com as
diversas possibilidades porque, de repente, você pode até... A gente critica
achando que ela tá bem informadinha, mas você, em determinado momento, pode ter
uma menina com muita informação, uma outra que não tenha tanta, a grande
maioria e tal. Então, eu acho que jogar com esta multiplicidade de opções e
possibilidades é o que é o interessante do vídeo, né, e as informações que ele
também vai passando."
"Eu achei também interessante foi o fato de que quando eu comecei a ver eu
disse: 'Ah, não! Esse vídeo tá muito... tá muito fácil, tá muito óbvio, eu acho
que eu não vou gostar dele'. (...) E cada vez que você achava: 'Não! Isso aí
também é impossível', aí mudava. Aí te dava essas outras versões. Outros
ângulos. Quando você achava: 'Não, esse adolescente está muito certinho, muito
orientado, muito informadinho...', quando você achava que era isso: 'Não, esse
vídeo não tá legal, não é a realidade', aí ele muda."
No discurso dos profissionais, as construções do masculino e do feminino são
tomados como elementos de referência na descrição das imagens por meio dos
personagens. No que concerne à dimensão reprodutiva do corpo, na representação
do masculino e do feminino, relacionada à temática gravidez na adolescência,
pode-se ver destacada a já reconhecida interioridade feminina em oposição à
exterioridade masculina, em face das questões reprodutivas, conforme o
segmento:
"Eu acho que foi reflexo da realidade sim. Historicamente o homem fica
numa posição muito cômoda, né? E que prá ela não incomoda tanto pensar, o que
ele [o vídeo] coloca, a história da barriga mesmo. Já a mulher, tendo ou não
acesso aos serviços, ela tem uma preocupação de não engravidar... não digo nem
em relação à DSTs ou AIDS, não. Mas a gravidez é uma coisa muito concreta e
muito imediata; então eu acho que [o vídeo] reflete nesse sentido sim."
Observou-se, em uma das interações, uma percepção de que as meninas, quando
comparadas aos meninos, apresentam-se mais bem informadas sobre assuntos
sexuais e reprodutivos. Em relação aos rapazes, foi perceptível uma certa
recusa quanto aos tipos representados e um certo mal-estar mediante a
representação do comportamento de um adolescente em uma situação específica de
aborto.
"Porque é aquela história, se a gente quer chamar o homem prá discussão,
construir uma relação nova, não é? Porque é que tem que só reforçar os
estereótipos? Claro que, por um lado,(...)reforçando os estereótipos,(...)na
discussão, você vai pontuar... Mas, ali[referindo-se ao vídeo]eu acho que,
principalmente para adolescente, já tem que começar a acontecer a quebra desse
estereótipo, como aconteceu lá no outro vídeo, né?"
"Mas eu foco muito o comportamento do menino que o tempo todo não teve a
menor reflexão. De repente, se ele tivesse tido uma reflexão, uma
sensibilização, essa coisa do aborto fluía até de outra forma, se tivesse um
envolvimento dele."
Várias tentativas foram feitas a fim de discernir os elementos geradores de
mal-estar na produção das imagens sobre uma situação específica de aborto. Nas
tentativas de elucidação das causas do desconforto gerado pelas imagens, foram
apontados o comportamento masculino, o tema aborto, a caracterização do
atendimento médico etc. A referência à família ganhou ênfase pela ausência
dessa representação na abordagem desse tema. No entanto, a questão não parece
se reduzir a uma definição de conteúdo ou do tema abordado. As explicações
oscilam, além das representações referidas ao gênero, entre a forma de
abordagem e sua adequação para o público-alvo - o adolescente -, conforme
verificado na seguinte seqüência discursiva:
"A imagem é pesada, mesmo."
"E eu não sei nem se é o tema aborto, porque, por exemplo, o vídeo do
Jabaquara é aborto também. E eu gosto, é um vídeo que eu gosto de assistir,
entendeu?"
"Se é vinculado ao tema. Eu acho que pro(sic)público-alvo, que é
adolescente, o tema deveria ser veiculado de uma forma, não sei de alguma outra
forma mais leve, né? Poderia ser, de repente, até uma história parecida, mas,
sei lá, os profissionais poderiam ter outro tipo de conduta, né? Não sei."
"É, porque eu já vi um vídeo, não me lembro qual, que tinha situação de
aborto, mas era de outra forma, abortava, mas... não ficava essa coisa pesada
como você fala, né?(pausa)Agora, realmente, o menino me..."
"É, eu senti falta da família ali. Eu senti falta da família nesse vídeo.
A família estaria..., em algum momento teria que ter família."
"Pelo tipo de menina que está se delineando, pelo perfil dela, a família
iria perceber, a escola. Tá descontextualizado nesse sentido, porque ela
passa..."
A família, como um dos temas clássicos dos estudos antropológicos, tem sido
recorrentemente considerada, nas análises, como uma instituição fundamental de
socialização, que agrega valor nas diversas posições ocupadas pelos sujeitos na
estrutura social - o que parece ser um consenso entre os autores. No entanto,
as discordâncias a respeito do tema parecem mais numerosas e parecem agregar-se
em torno das mudanças e transformações da família na atual sociedade moderna
(Durham, 1983; Salem, 1985; Da Matta, 1987; Figueira, 1987; Velho, 1987). Logo,
na ótica dos profissionais, as situações vivenciadas pelos personagens parecem
representadas fora de contexto. Uma questão importante ainda a ser destacada
relaciona-se ao papel de mediador do profissional na utilização do vídeo e sua
percepção sobre o caráter complementar desse recurso no contexto das práticas
educativas, conforme expresso nos fragmentos abaixo:
"Mas eu, particularmente, acho que isso não é o mais... não é o
fundamental, porque isso você pode tirar de quem está assistindo."
"Pois é, mas aí é que entra o papel do coordenador. Eu acho pesado esse
vídeo pra estar trabalhando com adolescente."
"Eu acho que, por exemplo, poderia se discutir esse vídeo com a família,
quer dizer, a família tá ausente, cadê a família? Quer dizer, a própria falta
da família ali poderia ser uma questão pro(sic)público, né? Aonde está a
família? Que não apareceu nessa história aqui. Já que em algum momento ela
deveria entrar."
Deve-se atentar, aqui, para o fato de que o lugar ocupado pelo coordenador
encontra-se definido por uma determinada posição que ele tem no cenário
institucional. Suas ações encontram-se determinadas por diversas
racionalidades, sejam elas técnicas e políticas informadas pelas instâncias
governamentais, ou mesmo por movimentos sociais que alcançam a rede de
serviços. Essa heterogeneidade coloca, em última instância, grandes
contradições para os atores envolvidos nas ações que interagem no cenário do
setor saúde. Uma delas diz respeito a possíveis dissociações entre as
orientações dirigidas à clientela em termos do comportamento preventivo e as
condutas e atitudes pessoais e subjetivas do próprio coordenador, geradoras de
conflitos, em particular quanto ao uso de métodos contraceptivos e
preservativos com vistas à prevenção da AIDS.
"Mas, por exemplo, assim, em relação ao uso da camisinha: eu não uso
camisinha, como deveria ser usado, mas aí...(...)Eu não uso, mas eu não estou
jogando a culpa nas costas de ninguém (...)e nem quero deixar de falar que é
importante, entendeu?"
"(...)Eu fiz ligadura, não me arrependo, e eu sei que há toda uma pressão,
todo um discurso no sentido contrário, entendeu? Eu nunca me senti cômoda para
trabalhar no planejamento familiar.(...) A mim incomoda. Eu não vejo isso como
uma coisa pessoal aqui da gente não. É que levanta contradições, que, digamos
assim, chegam a me sufocar."
"(...)E eu acho que é mais ou menos isso: a gente acaba muitas vezes
repetindo algumas coisas que ouve, milhões de discursos que são considerados
teoricamente corretos e que você não dá uma parada, entendeu? Pra sacudir e ver
profundamente o que é."
Assim, pode-se reconhecer a importância do papel mediador do coordenador nos
processos educativos comunicativos. Faz-se necessário, ainda, relativizar as
explicações do sentir e agir humanos, referidos ao gênero e ao sexo, a fim de
possibilitar uma compreensão da experiência sexual que recoloque o discurso do
sujeito como pólo de significação. Acredita-se que esse caminho possa revelar
outros ângulos distintos daqueles socialmente instituídos e legitimados. Isso
está colocado genericamente como questão para toda a ação educativa preventiva,
mas parece ser ainda mais complexo em se tratando da abordagem da sexualidade
nesse campo. Finalmente, não se pretendeu abarcar a multiplicidade de aspectos
passíveis de análise, nem tampouco oferecer respostas conclusivas. Nossa
intenção consistiu em indicar a necessidade de que sejam consideradas, nas
ações e produções de materiais, as concepções do corpo e da sexualidade como
mediações culturais determinantes do processo educativo comunicativo,
modeladores da subjetividade e da percepção dos sujeitos em variados contextos.
Considerações finais
Pode-se dizer que os vídeos educativos, identificados como um recurso para a
reflexão, potencialmente promovem uma identificação e sensibilização do público
para os temas de saúde. No entanto, eles podem estar cumprindo, em primeira
instância, uma função de ilustração dos discursos que informam as práticas no
campo da saúde na atualidade, colocando-se à parte na exploração do imaginário
social que perpassa de forma diferenciada o comportamento preventivo dos
sujeitos pertencentes a grupos culturalmente definidos. Não se pode determinar
como ocorre a recepção das mensagens para o chamado segmento popular, pois
encontra seus limites de compreensão dessas questões na delimitação do objeto
dessa investigação. Portanto, sugere-se a realização de outros estudos que
contemplem a recepção das mensagens pelos diversos grupos aos quais as estas
são destinadas. Acreditamos que a compreensão das lógicas que regem os
discursos sobre o corpo ganha importância à medida que oferece um caminho de
questionamento dos estreitos limites de uma visão normativa da sexualidade que,
engendrada nos meandros do tecido social, desafia os processos de comunicação
voltados à intervenção educativa. Sua relevância também reside no
atravessamento dessas concepções por práticas sociais desenvolvidas em
diferentes contextos, envolvendo ao mesmo tempo realizadores, produtores e
receptores das mensagens educativas. Cumpre, assim, buscar a atribuição do
significado pelos sujeitos sociais que se constituem singularmente através do
olhar que lançam sobre os discursos que lhes são ofertados e pelas ações
intervencionistas que recaem sobre seu corpo.
Ao refletir-se sobre as práticas educativas e de comunicação no campo da saúde,
emergentes num mundo onde a diferença se apresenta como ameaça e não como
abertura ao novo, pode-se reconhecer que as possibilidades de mudança do ângulo
de visão sobre os fenômenos que acometem o corpo humano encontram-se restritas.
A abertura e a possibilidade de construção de novos olhares de ruptura de um
saber racional, seja ele qual for - até mesmos os mais progressistas -, que
fala pelos outros, encontram-se na maneira como aprendemos e ensinamos a ser
sujeitos e como construímos e descrevemos as imagens do outro, por meio das
formas discursivas emergentes no cotidiano, ou dos discursos materializados em
imagens. Com isso, pretendemos, fundamentalmente, tentar iluminar a nossa forma
de ver, perceber e reconceber práticas comunicativas e determinados processos
estruturadores da prática social que tradicionalmente tem sido cenário de
intervenções disciplinadoras sobre vida, sexualidade e morte.