Vigilância epidemiológica em doença de Chagas
Introdução e antecedentes
Decorridos praticamente 55 anos desde que Emmanuel Dias formulou o esquema
básico para o controle dos triatomíneos domiciliados, os programas de controle
da doença de Chagas em toda a área endêmica, hoje, se defrontam com o tema da
vigilância epidemiológica como um dos maiores desafios a enfrentar em suas
etapas mais avançadas (Dias, 1944, 1957; Dias, 1997; Rocha-e-Silva, 1979;
Coura, 1997). Já Carlos Chagas assinalava que o controle da doença se
encontrava ligado a decisões políticas e a um esquema que levasse em conta a
população afetada, seus interesses e seus direitos de cidadania (Chagas, 1981).
A rigor, concorda-se que a transmissão vetorial do Trypanosoma cruziconstitui-
se na forma mais importante de transmissão da doença de Chagas humana (DCH),
sendo para isso fundamental a ocorrência de mínimas densidades do triatomíneo
infectado colonizando a vivenda humana (Rabinovich et al., 1979; Litvoc, 1985;
Dias & Coura, 1997). Nessa perspectiva, a DCH se distribui em bolsões ou
clusters, que se superpõem naturalmente à distribuição dos triatomíneos
domiciliados nas áreas endêmicas, sendo universal a observação de que o combate
sistemático a esses vetores reduz drasticamente ou elimina a expansão da doença
(Dias, 1957; Forattini, 1980; WHO, 1991; Schmunis, 1997). Por sua vez, o
controle da transmissão vetorial resulta, a médio prazo, na geométrica redução
das outras principais formas de transmissão da DCH, a transfusional e a
congênita, através da progressiva diminuição da infecção entre doadores de
sangue e mulheres grávidas (Dias & Coura, 1997; Schofield & Dias,
1999). A vigilância epidemiológica, inicialmente entendida como uma fase ou
etapa do programa antivetorial, hoje é assumida como uma estratégia de ação e
compreende, além do componente entomológico, outros elementos da cadeia
epidemiológica da tripanossomíase (Dias, 1991, 1993a). Nos anos 60, Gamboa
provou, na Venezuela, um esquema misto de vigilância entomológica (Dias, 1988)
através dos sensores de Gomez-Nuñes (1965), com revisão periódica por agentes
de saúde, que funcionou por algum tempo e foi posteriormente proposto para
ampliação (não concretizada) por Gonzalez et al. (1987). Historicamente, o
esquema proposto por E. Dias (1957) já contemplava a instalação de uma atenção
permanente e horizontalizada para as situações de muito baixa densidade do
triatomismo domiciliar, a ser lograda após a fase de ataque químico ao vetor
sob cobertura ideal e com a devida continuidade e contigüidade nas ações (Dias,
1957). Essa situação materializou-se em Bambuí, Minas Gerais, Brasil, quando,
ao final de 1973, foram observadas a virtual eliminação do Triatoma infestansdo
município e a redução dos índices de infestação do vetor secundário, o
Panstrongylus megistus, a menos que 4% dos domicílios existentes. Em paralelo,
desapareceram os casos agudos da moléstia e a prevalência da infecção, medida
por sorologia em populações infantis não selecionadas, fora reduzida a níveis
próximos a zero nos grupos etários inferiores, indicando a virtual interrupção
da transmissão da DCH no município. Situação semelhante ocorria no Estado de
São Paulo, já não se justificando, em ambas, a continuação de rociados em massa
contra triatomíneos que eventualmente invadiam algumas habitações (Dias, 1974,
1993b; Rocha-e-Silva, 1979; Souza et al., 1984). Para Bambuí, em caráter
experimental, foi instalado um sistema municipal de vigilância epidemiológica
(VE) com participação comunitária através de um consórcio entre a população, o
professorado rural, a Prefeitura e o Instituto Oswaldo Cruz, sob a assistência
do então DNERu (Departamento Nacional de Endemias Rurais). Esse esquema
envolveu diferentes atores, teve caráter de ações compartidas entre a
população, o sistema de ensino, a Prefeitura e um órgão federal. Além disto,
foi antecedido por um levantamento soroepidemiológico e seguiu monitorizado por
levantamentos periódicos. Ao que se sabe, foi o primeiro esquema de vigilância
epidemiológica com participação comunitária contra a doença de Chagas
efetivamente instalado e até hoje em funcionamento (Dias & Garcia, 1978;
Dias, 1991). Em São Paulo, pouco depois, instalou-se uma vigilância
entomológica ativa, com pesquisa regular de focos e expurgo seletivo nas
unidades positivas pela SUCEN (Superintendência de Controle de Endemias) (Souza
et al., 1984). Em 1975-1976, um sistema híbrido entre o Estado de Minas Gerais
e o DNERu (posteriormente SUCAM Superintendência de Campanhas de Saúde
Pública), colocou em vigilância entomológica grande área no Vale do
Jequitinhonha, com notificação de focos por agentes municipais (principalmente
professores) e rociado através de equipes do Centro Regional de Saúde de
Diamantina. Em 1978-1979, experiência semelhante e com grande participação
comunitária se instalou na região do Chaco, Argentina, sob o comando do
Programa Provincial com sede em Resistencia (Argentina, 1986; Dias 1988).
Dessas quatro experiências pioneiras, as duas primeiras persistem até hoje, em
funcionamento e efetivas, sofrendo algumas modificações operacionais ao longo
do tempo. No Vale do Jequitinhonha, pouco a pouco, o sistema foi sendo
desativado, por causa da falta de adesão dos municípios e da progressiva
desativação do papel executivo do Centro Regional. No Chaco, o programa também
foi desacelerado por câmbios políticos que resultaram em afastamento dos
técnicos responsáveis. A partir dos anos 80, principalmente com a evolução
técnica e a prioridade política conferida ao programa brasileiro, este teve de,
cada vez mais, assumir atividades de vigilância, em virtude da boa evolução de
seus resultados, principalmente a partir de 1984, produto de um modelo
semelhante ao de Bambuí (Dias, 1987, 1991). Desde o final dos anos 80,
atividades de VE na luta antichagásica se fizeram necessárias em vários países
que, com a evolução de seus programas, se acercavam de níveis mínimos de
triatomíneos domiciliares, como a Argentina, o Uruguai e o Chile. Em 1991,
formulada a Iniciativa do Cone Sul para a Eliminação do T. infestans e Controle
da Transmissão Transfusional da Doença de Chagas, ampliou-se a demanda por
sistemas eficientes e viáveis de VE, já entendida como estratégia e, hoje, já
proposta para países ainda de elevada endemicidade, como Bolívia e Paraguai
(Dias, 1988; Schofield & Dias, 1999). De modo geral, os modelos de controle
da DCH foram centrados basicamente no combate ao vetor e formulados a partir
dos esquemas clássicos da luta antimalárica, verticalizados e centralizados.
O início das experiências de VE, ocorrido no Brasil, coincidiu com tempos de
exceção política em que a participação comunitária era desestimulada, quase
inviável. Experiências poucas, até então, geralmente mostravam fracasso e/ou a
rápida desativação dos sistemas implantados, geralmente manejados de fora e
verticalmente, pouco participativos, que não tomavam em conta nem os interesses
nem as peculiaridades da população: geralmente duravam enquanto permanecia o
agente externo e o suporte financeiro do ensaio (Dias, 1991). A partir dos
trabalhos de E. Dias, nos anos 50 e 60, verificou-se que a sustentação de
esquemas de vigilância horizontalizada iria depender em muito de agentes e
recursos externos e de uma forte motivação da população (Dias & Garcia,
1978). Um exemplo disso ocorreu em Bauru, São Paulo, Brasil, no início dos anos
70: um esquema de vigilância entomológica instalado pelo então Serviço de
Profilaxia da Malária, envolvendo postos de notificação em escolas, chegou a
funcionar notificando casas positivas, para expurgo, tendo sido desativado
"por razões administrativas" (Rocha-e-Silva et al., 1970).
Tecnicamente, grandes inversões em recursos humanos em estruturas federais ou
estaduais pesadas não se justificavam para o controle de eventuais e raros
focos adventícios ou residuais de triatomíneos em áreas já trabalhadas. De
igual modo, a densidade baixa de triatomíneos reduzia em muito a sensibilidade
da pesquisa entomológica de um agente de saúde, tornando caras e pouco eficazes
as visitas domiciliares realizadas periodicamente por equipes regionais. Por
outro lado, não existiam detectores passivos de triatomíneos que fossem
eficazes permanentemente, em especial, no peridomicílio, âmbito em que os
inseticidas eram menos efetivos e em que ocorria a maioria dos focos de
triatomíneos, especialmente no Brasil. Somando-se a tudo isto, ao final dos
anos 60 ainda não se dispunha de insumos e estrutura para ampliar o contexto da
VE na DCH, mormente em bancos de sangue e no nível do indivíduo infectado. Os
ensaios de Bambuí, entre os anos 1972 e 1974, estabeleceram um modelo
compatível de vigilância entomológica com participação comunitária e reforçaram
a validade da soroepidemiologia como instrumento de vigilância e de medida de
impacto (Dias, 1991, 1993b). Os então naturais óbices à participação, frutos do
momento político, foram contornados através do consórcio institucional
(Prefeitura, Instituto Oswaldo Cruz, DNERu) e do envolvimento de toda a
população, motivada através do interesse e da capacitação de professores rurais
do município (Dias & Garcia, 1978). De maneira simples, depois de
continuada capacitação, professores rurais do município sensibilizaram toda a
população rural para a melhoria de suas casas e para a atenção a possíveis
triatomíneos nas mesmas. A população passou a capturar os insetos suspeitos
(com alto nível de acerto quanto a triatomíneos) e a enviá-los às escolas
rurais, transformadas em sentinelas avançadas do sistema e encarregadas de
fazê-los chegar à sede municipal. Até hoje, funcionários da Prefeitura
Municipal e da Fundação Oswaldo Cruz recolhem essas notificações e realizam a
visita domiciliar para pesquisa e borrifação, sempre que se trata do vetor da
esquizotripanose. Aos poucos, esse modelo foi sendo melhorado, a partir de
muitas experiências e discussões na SUCAM (hoje FNS). É importante lembrar que,
então, o Programa Nacional já lograra cobertura integral da área endêmica
brasileira e, como produto, colocara várias centenas de municípios livres do T.
infestans, além de inúmeros outros com taxas de infestação domiciliar abaixo de
5%, com espécies nativas e ubiqüistas. Ao mesmo tempo, consolidava-se a
abertura democrática do País, e a participação popular era incentivada em todas
as áreas, especialmente na da Saúde, culminando na 8a Conferência Nacional de
Saúde, em Brasília, em 1986. Esta, retomando Alma-Ata, plasmou um sistema
nacional descentralizado, com maior execução de ações nos níveis periféricos,
priorizando as ações de prevenção e a rede básica de saúde, alicerçada nos
princípios da eqüidade, da universalidade e do controle social. A
descentralização dos grandes programas, a começar pelo de malária, passou a ser
uma tendência progressiva em toda América Latina. Também avançava a questão
transfusional em vários países endêmicos para DCH, aprovando-se leis,
eliminando-se a doação de sangue remunerada e ampliando-se a cobertura de
seleção sorológica de doadores. Na década de 80, por sua vez, o tratamento
específico da doença, ainda que já mostrando efetividade em casos agudos e em
crianças de baixa idade, parecia deixar muito a desejar nos casos crônicos que
constituíam a imensa maioria dos infectados (Dias, 1988). Tudo isso,
principalmente no Brasil, fez com que a última década se caracterizasse, de um
lado, pelo progressivo desmonte do antigo programa vertical e, por outro, pelos
desafios à instalação de uma VE sustentada nos níveis periféricos e ampliada
nas estratégias da soroepidemiologia, no aumento da cobertura dos bancos de
sangue e, mais recentemente, do tratamento de casos crônicos de baixa idade
(Dias, 1998). Entre 1986 e 1989, a SUCAM já considerava amplamente a questão da
VE como forma de consolidar os sucessos já alcançados no controle do vetor, mas
também já entendendo que nos novos tempos era necessária uma mudança na forma
de atuar. Numa série de seminários (realizados em João Pessoa, Belo Horizonte e
Londrina), com a participação da SUCEN, da comunidade acadêmica e de técnicos
do programa argentino, entendia-se que a luta antivetorial mostrava novo perfil
epidemiológico e pressupunha uma VE que contemplasse os seguintes pontos:
a) Uma baixa densidade de vetores domiciliados, que tornava difíceis e
ineficazes os usuais métodos de pesquisa domiciliar por agentes de saúde;
b) A proporção cada vez maior de focos residuais ou adventícios ao nível do
peridomicílio;
c) As mudanças sociais dependentes do modelo econômico, causadoras de intensas
migrações rurais, levando à urbanização da doença; e
d) As cada vez maiores modificações ambientais de causa antrópica, gerando
profundas mudanças fauno-florísticas e estabelecendo novos espaços abertos em
áreas de colonização recente, por exemplo, na Amazônia Brasileira (Dias, 1994).
De forma geral, o esquema montado ainda prevalece, transformando-se as antigas
visitas periódicas de técnicos federais por agentes municipalizados e
vinculados aos sistemas locais de saúde, aptos a sensibilizar a população,
criar e supervisionar pontos estratégicos de notificação de triatomíneos
("PITS"), rociar as vivendas positivas e participar de outras ações
de saúde pertinentes ao perfil epidemiológico local (Dias, 1997). Para maior
efetividade e cobertura, esses agentes foram dotados de motocicletas e, em
muitos casos, diante de baixas densidades regionais, um mesmo agente se ocupa
de dois ou mais municípios, que funcionam em consórcio para a VE. Para as
situações de baixíssimo triatomismo, ou na periferia de áreas endêmicas, foi
estabelecido o que se chamou de "vigilância institucional", numa
época em que os sistemas locais de saúde ainda estavam sendo esboçados: agentes
regionais visitam os municípios em questão e nestes desenvolvem amplas
atividades de sensibilização sobre a doença e seu controle. A partir daí,
deixa-se instituído um sistema simples de detecção de triatomíneos e sua
notificação, pela população, a um órgão ou agente municipal, geralmente alocado
no centro de saúde. Esse centro notifica ao Distrito Regional da FNS ou ao seu
agente mais próximo, que procede à avaliação do caso e toma as providências
pertinentes.
Estas mudanças não se deram com facilidade e tinham implicações com a cultura
dos próprios agentes e das instâncias de administração. Em 1991, escrevia-se:
"Transition from the vertical attack phase to the horizontal surveillance
is not simple. It represents more than mere modification of administrative and
technical approach, requiring a complete change in thinking by those directly
involved with the programme and the community. In Latin America, governments
have tended to be very centralised, which has weakened the decision-making
power of the municipalities. Moreover, field operations have traditionally
taken priority over epidemiological considerations, and planning has been
carried out in a bureaucratic way that emphasizes attainment of technical
objectives and at the expense of epidemiological or social targets" (Dias,
1991:80). Os anos 90 se caracterizaram por uma evolução política na concepção
dos sistemas de saúde, em geral, e da VE. Na 9a Conferência Nacional de Saúde
(1992), entendeu-se a municipalização como o caminho fundamental, chegando-se a
votar pela imediata extinção da Fundação Nacional de Saúde (FNS, ex-SUCAM e
FSESP Fundação de Serviços Especiais de Saúde Pública), o que causou grande
reação da comunidade científica brasileira, através de manifesto e
representações da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (Dias, 1998). O
sumário desmonte da Fundação pegaria milhares de municípios despreparados, e o
controle das endemias, que se horizontalizava gradualmente, iria ao caos. Não
havendo quem assumisse o risco e as responsabilidades decorrentes, o processo
foi sustado e mesmo a 10a Conferência, quatro anos depois, entendeu que a
descentralização deveria ser responsável e gradual, a partir de amplas
negociações e discussões em todo o País. Ao mesmo tempo, descentralizava-se o
clássico Serviço de Malariologia na Venezuela, levando à paralisação quase o
total das ações anti-Chagas. Na Argentina, ao fim dos anos 80, a
descentralização também se impôs de maneira muito rápida e radical, gerando
muita dispersão e perdas de recursos da luta antichagásica, anteriormente
levada por um programa nacional (Argentina, 1986). No Uruguai, atingidos níveis
de triatomismo domiciliar baixíssimo, o País entrou todo em vigilância pelos
idos de 1994, tanto por razões epidemiológicas, como também pela assustadora
desativação de seu Programa Nacional, que ficou reduzido a menos de duas dúzias
de técnicos (Salvatella & Rosa, 1995). O Chile, também logrando excelentes
resultados contra seu principal vetor, o T. infestans, também ampliou sua VE na
imensa maioria das áreas endêmicas, num sistema misto de agentes regionais e
lideranças locais, especialmente vinculadas às Unidades de Saúde e de Ensino
(PAHO, 1993; Schofield & Dias, 1999).
O presente artigo analisa a evolução da vigilância epidemiológica contra a
doença de Chagas, na transição do milênio e diante dos novos desafios e
perspectivas que se apresentam, mais particularmente em relação às experiências
e à realidade político-social do Brasil.
Diferentes esquemas, possibilidades e requerimentos da vigilância
epidemiológica contra doença de Chagas
Por definição, a VE se supõe permanente e deve ser sustentada e ampliada nos
diferentes níveis de promoção da saúde. Como estratégia, a VE se aplica a todas
as etapas do programa contra a doença e objetiva a prevenção e a redução do
agravo em todas as suas formas de transmissão e de evolução mórbida. Como fase
operacional, se refere de modo genérico à transmissão vetorial e se instala
quando a taxa de infestação domiciliar se reduz a 5% ou menos das unidades
domiciliares existentes em um município. Esse limite foi estabelecido pela
observação direta e por modelos matemáticos, que o colocam praticamente no
limiar da transmissão da DCH pelo triatomíneo, também não se justificando,
nessa situação, campanhas maciças com inseticidas na região em causa (Dias,
1957; Freitas, 1963; Rocha-e-Silva, 1979; Souza et al., 1984; Dias, 1987).
Considerando como base o controle do vetor, de maneira geral, os principais
atores da VE são a própria comunidade, os sistemas locais de saúde e educação e
instituições de saúde pública ("malariologias", programas nacionais,
fundações ou superintendências de saúde). As unidades básicas de vigilância são
os municípios ou microregiões epidemiológicas, eventualmente as localidades.
Com a evolução do conceito de vigilância e das novas políticas de saúde,
praticamente, não mais se adota o modelo de vigilância ativa e vertical, no
passado levado a cabo por grandes instituições centralizadas que visitavam os
municípios e faziam a pesquisa triatomínica casa-a-casa, rociando seletivamente
aquelas achadas positivas. As grandes tendências depois de Alma-Ata prevêem
ações de VE horizontalizada e integrada na comunidade, com participação desta e
amplo controle social. Os princípios básicos desse modelo sanitário foram
adotados pela 8a Conferência Nacional de Saúde do Brasil, em 1986, sendo
incorporados na Constituição de 1988, de maneira geral, sob a égide do conceito
de "Saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado". Esses
princípios se aplicam genericamente ao espírito da VE em doença de Chagas,
podendo dividir-se em termos das ações e da gestão conforme o esquema
apresentado na Tabela_1.
São os mesmos princípios da medicina familiar e do modelo clássico de atenção
primária à saúde, que modernamente se espera serem perpassados para maior
eficiência, pelos enfoques de gênero e de inter e transculturalidade. O modelo,
como um todo, se aplica preferencialmente às regiões e/ou populações menos
desenvolvidas, onde ocorrem grandes desequilíbrios sociais, como é o caso
pertinente à tripanossomíase americana (Dias, 1988, 1991). Como pontos
fundamentais e críticos para a realidade presente da doença de Chagas,
destacam-se, quanto à ação, os desafios da sustentabilidade, da credibilidade e
da eficiência. Quanto à gestão, praticamente todos os enunciados são pontos-
chave, aqui se entendendo a integralidade como relativa à visão de conjunto da
doença, tanto em seus níveis de agravo e de prevenção como em suas relações com
outras doenças e problemas da comunidade. A questão da culturalidade se observa
cada vez mais presente, na medida em que a doença e seu controle são
pertinentes não somente ao setor da saúde, mas envolve múltiplos parceiros na
educação, na comunicação, nas áreas do trabalho e da produção, no âmbito
político, etc.
Pragmaticamente, a VE em doença de Chagas se faz sobre o vetor domiciliado,
sobre a transmissão transfusional e sobre os casos agudos e congênitos, assim
como sobre a evolução dos casos crônicos. Conforme o momento e a região,
predomina em importância um ou outro desses setores, geralmente sendo
prioritários o vetor, a transmissão transfusional e os casos crônicos, por sua
maior transcendência. A experiência corrente demonstra que, de modo geral, o
controle eficaz do vetor se reflete positivamente e vai minimizar a médio prazo
as demais formas de transmissão, sendo, portanto, fundamental em todas as áreas
rurais endêmicas, de onde provem a imensa maioria dos infectados. Por seu
turno, a urbanização desenfreada e as intermináveis migrações humanas fazem
crescer o risco da doença transfusional, sendo esta a prioridade em áreas
urbanas (Dias, 1994). Todavia, em algumas cidades como Tegucigalpa, Guayaquil e
várias da Bolívia (Sucre, Cochabamba, Santa Cruz, Tarija, Tupiza, etc.), o
problema do vetor é muito importante no âmbito urbano. Para uma visão de
conjunto, a Tabela_2 resume as principais situações a serem enfocadas na VE
contra a doença de Chagas, com as respectivas estratégias básicas. Em termos
gerais, a ausência de colônias intradomiciliares de triatomíneos, o impedimento
da doação de sangue infectado e o pronto tratamento do recém-nascido infectado
constituem-se nos principais objetivos de uma VE sobre a transmissão do
parasito a indivíduos suscetíveis. Já quanto às pessoas infectadas, o objetivo
básico primário é reduzir a morbidade e frenar a evolução para formas graves,
além de reforçar-se educativamente a não-doação de sangue pelo indivíduo
infectado. Casos agudos tornam-se cada vez mais raros nas áreas bem
trabalhadas, mas não podem ser menosprezados durante a vigilância, pois indicam
transmissão ativa e balizam a necessária investigação epidemiológica.
Secundariamente, e com impacto menor, o tratamento específico nos casos
indicados (especialmente congênitos e eventuais agudos) faz reduzir de modo
relativo a população circulante do T. cruzi, reduzindo-se, assim, o risco da
propagação da doença (Dias, 1997). Assinale-se que essa visão da VE em doença
de Chagas é essencialmente teórica, sendo muito raros os casos de sua aplicação
em regiões mais amplas e em rotinas não experimentais. Não obstante, as
ferramentas e estratégias disponíveis já têm sido empregadas com sucesso, em
escala menor, em várias oportunidades, no Brasil, Argentina, Uruguai e Bolívia
(Salvatella & Rosa, 1995; Dias, 1997; Guillén & Alfred, 1999). Na
prática corrente, a maioria dos esquemas de VE/Chagas se limita à vigilância
entomológica, com ou sem apoio de soroepidemiologia (Dias, 1993a, 1997, 1998).
<formula/>
Para efeitos práticos, a instrumentação e a execução de uma VE contra a DCH,
nos diversos níveis, pressupõem uma série de premissas já estudadas por vários
autores e que são, a seguir, sumariadas (WHO, 1983; Dias, 1986, 1991):
Os equipamentos, insumos e recursos humanos para iniciar e sustentar o
programa devem estar disponíveis e nunca em falta. Os insumos necessários devem
ser facilmente adquiridos. Os gastos exigidos devem ser mínimos para a
população (geralmente pobre), sendo os principais custos pertinentes ao
governo, nos seus diferentes níveis, que também deve ser o encarregado pela
organização do esquema e pelo suprimento e estoque dos principais insumos.
Os métodos devem ser discutidos e planejados com a comunidade e serem
compatíveis com as práticas, crenças e atitudes locais e regionais. Mais que
isso, como a vigilância contra a esquizotripanose geralmente não é a maior
prioridade nas áreas afetadas, as atividades e estratégias do programa devem
ser fortemente vinculadas com outros projetos da população, especialmente os de
saúde, de educação e de desenvolvimento social.
A manutenção de centros ou instituições regionais de referência (core-groups)
constitui-se numa necessidade fundamental para prover suporte técnico e
garantia de qualidade para as atividades periféricas. É o caso de unidades de
entomologia, de atenção médica, de laboratórios de referência sorológica, de
pontos de referência à educação, etc., que, atualmente, no Brasil, têm sido em
geral supridos pelos Distritos Sanitários da FNS.
O papel da comunidade é definido de acordo com as características de cada
população ou região, através de ampla negociação e da identificação de
elementos facilitadores e dificultadores. De modo geral, a existência de
sistemas de saúde e de educação organizados e, principalmente, de comissões
locais de controle ou promoção social facilita em muito o funcionamento regular
da VE. No caso do Sistema Único de Saúde do Brasil, como se verá adiante, seu
formato teórico se faz bastante favorável a uma VE contra a doença de Chagas,
em moldes ideais.
Como elementos fundamentais à logística e à estratégia da VE, sobejamente
comprovados em várias observações e seguimentos, estão a coerência do sistema e
a rapidez da resposta às notificações e problemas surgidos. No primeiro caso,
as combinações acordadas e os papéis definidos ao princípio e ao longo do
processo devem ser de conhecimento geral da comunidade e dos atores do
processo, ficando, especialmente, bem claros os elementos técnicos e o comando
do mesmo. Igualmente, todas as notificações e problemas apresentados devem
receber uma resposta, o que sustenta a participação comunitária.
Quanto à rapidez do atendimento, é óbvio que quanto mais rápida for a
intervenção (focos de triatomíneos, casos humanos a tratar, situações
epidemiológicas a investigar, etc.), tanto maior será o benefício decorrente, o
que também reforça a coerência do sistema e a participação dos interessados
(Dias & Garcia, 1978).
A rede básica de saúde e os conselhos municipais devem participar tanto no
planejamento quanto na execução e na avaliação da VE, incorporando-se nesta
outros aspectos de interesse à população, como a melhoria e o manejo da
habitação, a atenção médica ao infectado e os aspectos previdenciários e
trabalhistas do chagásico.
Deve ser dado especial destaque aos aspectos de educação e organização
social, nos moldes entendidos por Paulo Freire (educação como espaço à criação
e à liberdade) e por Hortência de Hollanda (saúde como espaço à compreensão da
vida). Em particular, é fundamental que o espaço formal da educação seja
necessariamente envolvido no processo da VE contra a doença de Chagas, nas
regiões pertinentes.
É imperioso que o processo leve em conta a maturação das instituições
envolvidas, tornando-as mais democráticas e próximas de seus próprios
servidores e das populações onde atuam.
O componente de investigação deve ser permanentemente vinculado à VE, como
forma de aprimorá-la em seus aspectos técnicos, educativos e conceituais.
Situação atual da vigilância epidemiológica em diferentes esquemas e países
Com o desenvolvimento dos programas de controle na última década, especialmente
enfocando o vetor e a transmissão transfusional, uma série de avanços e
problemas tem se apresentado como escopo para o futuro imediato. O controle
vetorial realizado na Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela, em
paralelo com melhorias evidentes no sistema de hemoterapia, tem colocado a VE
como a maior prioridade programática para esses países, na virada do milênio.
Outros países, como Bolívia e Paraguai, ora iniciando seus programas, também já
incorporam as estratégias de VE na própria fase de ataque ao vetor. De maneira
geral, aqueles países onde o principal vetor é ou foi o T. infestans, de
início, tiveram como principal desafio a sua eliminação, como premissa às
atividades da Iniciativa do Cone Sul (WHO, 1997; Schofield & Dias, 1999).
Considerando a experiência já acumulada, no Brasil e outros países sul-
americanos, hoje já se implanta ou prepara a VE como estratégia em todas as
regiões endêmicas trabalhadas, independentemente da fase operacional. A grande
tendência é a vigilância passiva, ou seja, os focos de triatomíneos, residuais
ou adventícios, sendo detectados pela própria população, devidamente capacitada
e minimamente organizada nesse sentido. Historicamente, desde os trabalhos de
Bambuí, em 1974, na verdade, o sistema tem tido uma natureza mista, sendo a
população detectora/informadora e agindo uma instituição ou governo como
estimulador, supervisor e efetor. Outras vezes, o sistema tem sido montado
pelos antigos programas nacionais ou regionais de controle da doença de Chagas
(SUCAM, SUCEN, Programas Nacionais de Chagas ou Malária, etc.), na medida em
que se esvai a fase de ataque em termos da progressiva redução dos índices
triatomínico-tripanosômicos em nível domiciliar. Trata-se também de adequar a
boa relação de custo-efetividade dos clássicos programas verticais (Dias, 1987;
Oliveira Filho, 1989; Schofield & Dias, 1991; Akhavan, 1996; Basombrio et
al., no prelo). Em geral, até aqui, os países têm-se restringido à vigilância
contra o vetor, não se encontrando sistemas participativos envolvendo a
população nos campos da transmissão transfusional ou congênita, tampouco em um
sistema organizado para atenção médica. Um desdobramento imediato dessa
preocupação tem sido a lenta mas progressiva tendência à implantação de
serviços de assistência ao chagásico, em algumas regiões estratégicas,
geralmente aproveitando a universidade (Campinas, Uberaba, Belo Horizonte, São
Paulo, Londrina, Recife, Caracas, Córdoba, Cochabamba, Santiago, Montevidéu,
Assunção) e/ou instituições (Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Belém,
Jujuy, Santa Cruz de la Sierra, Tegucigalpa, Buenos Aires, etc.). Como
constatação, verifica-se que uma das maiores falhas dos sistemas nacionais de
vigilância até aqui implantados (Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela)
tem sido a falta de participação formal e contínua dos respectivos sistemas
nacionais de educação, o que é lamentável por causa do enorme potencial de
trabalho conjunto. Isso parece ser ligado a diversos fatores que distanciam as
instâncias de promoção social nos países em desenvolvimento, como a grande
rotatividade de autoridades, a falta de coordenação dos governos, a falta de
estímulo ao trabalho conjunto, a falta de sintonia entre os programas formais
de educação e as realidades e interesses locais, etc. (Briceño-León, 1993;
Dias, 1993a). Não obstante, como atividade supletiva, isoladamente os
ministérios e instituições de saúde desses países têm improvisado algum
material educativo e informativo sobre a DCH e as atividades de vigilância,
para distribuição entre pessoal técnico, professores e população. São exemplos
dessa iniciativa o Manual para Vigilancia, da Argentina (1986), as publicações
no Uruguai (Salvatella & Rosa, 1995) e Doença de Chagas: Textos de Apoio,
da SUCAM (1989). Na Bolívia, o Ministério da Saúde tem incentivado os
promotores de saúde das localidades e municípios a revisarem periodicamente as
vivendas rurais e a formularem um gráfico contínuo da taxa de infestação, que é
apresentada à população e serve para a orientação das atividades de rociado e
melhoramento da habitação (Guillén & Alfred, 1999).
Perspectivas no Brasil: VE e Sistema Único de Saúde
Os horizontes de uma VE atuante no Brasil, para hoje e para o futuro, mostram-
se cada vez mais vinculados à implementação e ao bom funcionamento do Sistema
Único de Saúde (SUS), que começou a ser implantado a partir da 8a Conferência
Nacional de Saúde, em 1986, com base na descentralização, na eqüidade, na
universalidade, nas ações predominantemente em nível periférico e no controle
social. Tem sido um processo lento e progressivo, entravado por uma cultura
imediatista, curativa, centrada em hospitais, de um lado, e por tremendos
interesses políticos e financeiros, de outro (Dias, 1998). Não tem sido fácil
romper essas barreiras para a simples execução das tradicionais ações médicas e
curativas, muito menos para o controle de endemias que, muitas vezes, são
restritas a populações rurais, pobres e politicamente inexpressivas. O panorama
que se divisa pode ser otimista, em sua perspectiva logística e ética, mas é
muito preocupante no nível operativo e de sustentabilidade. No plano histórico,
a inserção no SUS da VE contra a DCH é possível, urgente e necessária, até
porque as clássicas estruturas de controle estão sendo ativamente desmontadas
por determinação da política globalizante e neoliberal hoje vigente no Brasil e
em outros países endêmicos. Esses aspectos podem ser analisados através de seus
elementos positivos e negativos, sendo urgente que deles tomem ciência os
gestores do SUS, os políticos e a população. De concreto, a VE deveria
consolidar e aprimorar os grandes avanços obtidos no controle da DCH em nosso
país, havendo risco de que isso não aconteça por falta de uma reflexão
consistente e responsável, assim como pela não viabilização do SUS, ou pela
incompetência para nele inserir-se essa vigilância. Elementos favoráveis e os
desfavoráveis a esse desideratum precisam ser discutidos. Em seu marco teórico,
a descentralização se mostra como um importante caminho, beneficiando
diretamente a população e dando-lhe rapidez, integralidade e eficiência nas
respostas quanto a uma VE em doença de Chagas. Como princípio geral, é consenso
de que as ações municipalizadas e em conjuntos regionais de resolução mostram-
se tecnicamente exeqüíveis, mas dependem de organização, disponibilidade,
competência e mecanismos de sustentabilidade. Alguns elementos envolvidos na
experiência brasileira podem ser apontados na Tabela_3, num exercício não
terminado para a reflexão e aprofundamento para os diferentes protagonistas.
<formula/>
A Tabela mostra em conjunto uma série de perspectivas e problemas. Como tem
sido apontado, está posto um dilema importante na condução da VE, em
particular, contra a doença de Chagas no Brasil, e, como um todo, no tocante
aos programas de controle de endemias. A descentralização que vem ocorrendo é
teoricamente correta, mas não tem sido acompanhada pela preparação racional dos
níveis periféricos para assumir as tarefas correspondentes (Dias, 1998). De
maneira sucinta, em nome da modernidade e da racionalidade administrativa, o
governo brasileiro está desmontando rápida e inexoravelmente suas antigas
estruturas de controle de endemias e saneamento básico para populações pobres,
em nível federal. Na instância estadual, é flagrante o enfraquecimento das
secretarias estaduais de saúde, em termos de suas antigas ações finalísticas,
inclusive em termos de medicina curativa, de laboratórios de serviço e
referência, e mesmo de ações de coordenação e supervisão técnica aos diversos
programas. Do quadro acima, os elementos facilitadores existem e, de alguma
forma, têm impulsionado as mudanças, como se assinalou em 1996, na 10a
Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, através do conjunto de temas
denominado "O SUS que Deu Certo". Ali, basicamente, verificou-se que
as ações descentralizadas são possíveis mediante clareza e competência técnica
de gestores e gerentes, aliadas ao envolvimento correto e consciente da
comunidade e a um esquema que funcione e que apresente financiamento
sustentável, tudo isso respaldado por um contexto político eticamente correto.
Entendeu-se que o SUS é ainda muito jovem e incipiente; há bastante o que
aprimorar e amadurecer. A população brasileira, representada nessa Conferência,
reviu a questão das ações contra as endemias e votou unanimemente pela reversão
da decisão de 1992 de simplesmente desativar a Fundação Nacional de Saúde, em
nome de um processo responsável e construído por toda a sociedade. Como
elementos bastante positivos, algumas experiências de consórcios municipais de
saúde e de programas inteligentes de saúde familiar (PSF) acenam com
perspectivas concretas de seu aproveitamento para ações locais e microregionais
de controle de endemias. Já uma expectativa inicial, postulada desde 1986, de
criação de centros regionais de controle de zoonoses (CCZs) que se
encarregariam destas ações, tem apresentado implementação muito lenta e de
baixo impacto, salvaguardadas importantes exceções, como o CCZ de Uberlândia,
Minas Gerais, que funciona bem. Na verdade, esses centros ainda têm
dificuldades a superar, como a de manterem-se em funcionamento com parcos
recursos, desenvolver experiência em pesquisa e serviços nas endemias
prevalentes, alcançar abrangência regional, escapar às nuances políticas locais
e regionais, etc. Além do mais, ficam sobrecarregados com patologias urbanas
agudas, como a dengue, e de rotinas pesadas, como as de raiva e de animais
peçonhentos. Entende-se que ampla discussão é necessária para um melhor
funcionamento desses centros. O mesmo tem acontecido, mutatis mutandis, com
laboratórios regionais de serviço e referência (Dias, 1998). Lamentavelmente,
as instâncias mais representativas do Governo não compareceram à 10a
Conferência e, na seqüência, tem sido açodado o desmonte das instituições, sem
discussão nem planejamento. Basta ver o quadro das demissões incentivadas e da
não reposição de vagas por aposentadoria em todo o Ministério da Saúde e, nas
secretarias estaduais, o não andamento da Norma Operacional Básica/96 NOB/96
(Brasil, 1996), as perdas importantes de técnicos e especialistas, o
enfraquecimento visível do processo do SUS como um todo. A Gerência de Doença
de Chagas da FNS, em Brasília, estima em, pelo menos, 60% a perda de recursos
humanos do Programa Nacional de Controle da Doença de Chagas, como um todo,
havendo Estados com o programa praticamente parado, como Tocantins e Alagoas
(em fase de "ataque" e de transição) e Paraná (praticamente todo em
fase de VE). Não tem havido a respectiva reposição da perda do recurso humano
pelos governos regionais ou municipais, em virtude dos funcionários desviados
de função e aposentados. O que têm feito algumas coordenações regionais, como
Goiás e Minas Gerais, é priorizar as áreas tradicionais de dispersão do T.
infestans, para, ali, racionalizar seus recursos humanos, em galopante redução.
Neste ponto, tem sido fundamental o bom funcionamento da Iniciativa do Cone Sul
para a Eliminação doTriatoma infestanse a Interrupção da Transmissão
Transfusional da Doença de Chagas, que tem induzido os países a priorizar essas
atividades (Schofield & Dias, 1999). Ao lado da falta de cultura e de
experiência para ações como a VE/DCH em níveis mais periféricos, os problemas
mais evidentes têm natureza política e dependem pouco de técnicos e cientistas,
que em suas reuniões e congressos constatam a situação e fazem apelos
geralmente inócuos às instâncias de decisão. Tudo isso é agravado pela evolução
natural dos fatos políticos e administrativos no nível das instituições
envolvidas. Uma contradição essencial nesse contexto se verifica entre os
pressupostos essenciais de democracia e participação, estabelecidos no SUS e
alardeados pelos governos, e a postura autoritária e não participativa assumida
por autoridades federais e estaduais de nosso País, quando impõem regras,
prioridades, decisões, cortes orçamentários e esquemas de trabalho totalmente à
revelia da população. Em paralelo, a cumplicidade se estabelece de forma
aleatória e obscura, entre Executivo e Legislativo, com a ausência do
Judiciário, no loteamento dos cargos técnicos e na condução de programas
balizada por interesses político-partidários. De outro lado, grandes interesses
se defrontam frente ao "negócio" da saúde, gerando competições
freqüentemente obscuras e quase sempre em detrimento da população. Nesse
quadro, o SUS naturalmente se defronta com grandes dificuldades, gerando
desânimo e perda de credibilidade (Dias, 1998). O que se observa hoje no Brasil
em termos da luta contra a doença de Chagas é, ao mesmo tempo, estimulante
(nível de controle obtido) e preocupante (consolidação do trabalho por uma VE
eficiente e sustentável). As boas notícias correm por conta da minimização da
transmissão vetorial, atestada por inúmeros inquéritos soroepidemiológicos,
assim como pelo avanço do controle transfusional, que hoje cobre mais de 90%
das transfusões realizadas no Brasil (Dias & Schofield, 1998).
A VE para doença de Chagas que agora se impõe tem de ser ampliada e
consolidada, nas perspectivas de sua construção histórica e, principalmente, no
contexto do Sistema Único de Saúde. Em outras palavras, a vigilância já
formulada e estabelecida em suas bases operacionais terá maior ou menor sucesso
de acordo com a evolução do SUS como um todo e com as competências locais. Não
parece haver outra saída, desde que o modelo clássico não pode mais ser
exercido pelas grandes estruturas como a FNS e a SUCEN, em vias de desativação.
De prático, o SUS tem se estabelecido como alternativa teoricamente viável,
embora muito ameaçado por questões particulares, problemas políticos, má
gestão, falta de liderança e uma enorme rotatividade de seus gestores e
gerentes. Salvo em caso de epidemias, não têm sido suas prioridades as ações
preventivas (incluindo o saneamento básico) e o controle de endemias,
especialmente as rurais. De forma geral, constata-se que a situação da VE em
doença de Chagas no Brasil não é boa, não está realmente inserida no SUS e
requer imedi-atos encaminhamentos. Como já visto, Estados e municípios, em
geral, estão abarrotados de problemas e ausentes do processo. Falta-lhes
experiência, portanto a sua prioridade em do- ença de Chagas não é
significativa. Por sua vez, a FNS também se debate nos estertores de sua
transformação de agente efetor para agência de coordenação e repasse de
recursos, um processo atabalhoado que se trava em Brasília, longe das bases,
com poucos parceiros e interlo- cutores, provavelmente determinado de cima para
baixo e sem muita chance de modificações.
Uma_possibilidade_prática
Baseada nestes fatos, a Coordenação Regional da FNS em Minas Gerais, entre 1995
e 1997, procurou, ao máximo, reciclar seus técnicos e pessoal de campo,
envolvê-los com as forças do SUS e fazer deles especialistas em saneamento e
controle de endemias ligados aos municípios e ao Estado, operando como agentes
de catálise, capacitação e supervisão. Uma tese levada à 10a Conferência
Nacional de Saúde e 3a Conferência Estadual de Saúde, aprovada em plenário,
contemplava essas possibilidades sem desativar sumariamente a Fundação em
detrimento dos municípios e população, mas estabelecendo um processo gradual e
responsável de transição. Reforçando-se as ações finalísticas nos municípios,
propôs-se a coexistência (ou inserção) dos distritos sanitários da FNS com as
instâncias regionais da Secretaria de Saúde, mantendo-se nesses níveis
regionais estruturas e pessoal capacitados a formar, supervisionar e dar
referência às ações na região, inclusive mantendo-se uma reserva de pessoal
capacitada a realizar ações supletivas e de emergência em municípios mais
carentes. Em particular, para Minas Gerais, uma série de hipóteses de trabalho
que se buscava, à época, envolvia as ações da FNS com os programas estaduais de
Saúde da Família e de Consórcios Intermunicipais de Saúde, ambos muito
pertinentes às atividades de saneamento, VE e controle de endemias (Dias,
1996). Um problema seria a questão fundamental do financiamento das ações de
VE, ainda pendentes na Norma Operacional Básica/96 - NOB/96 (Brasil,1996),
especialmente no nível dos municípios mais pobres. A questão orçamentária
poderia ser compatibilizada pela NOB/96, à época, prevendo-se adicionais de
controle de endemias e vigilância epidemiológica, diretamente repassados aos
municípios conforme critérios populacionais e epidemiológicos, reservando-se ao
Estado o necessário pressuposto para a manutenção e provimento dos programas e
estruturas no nível estadual/regional (Dias, 1996, 1998).
Desafios presentes e necessidades de investigação
Por tudo acima assinalado, seria ingênuo pensar que o controle da DCH está
terminado no Brasil, em vista dos bons indicadores hoje conhecidos. Também não
se pode esperar que a necessária vigilância se estabeleça em geração
espontânea, ao largo da implantação do SUS e dos intermináveis decretos de
Brasília, cada vez mais burocráticos e menos participativos. No presente, a
situação confortável da baixa transmissão poderá resultar, a curto-médio prazo,
numa progressiva perda da vontade política e da competência técnica para o
controle da esquizotripanose. Provavelmente, uma eventual recrudescência do
problema se dará de forma lenta e progressiva, exatamente nos bolsões de
pobreza e nas regiões politicamente menos representativas, e, também, de acordo
com as densidades e a capacidade de domiciliação dos triatomíneos locais.
Fatores de conforto e tranqüilidade para os centros de decisão correspondem à
evolução lenta da doença, à lenta recuperação das populações dos triatomíneos
domiciliados, ao progressivo esvaziamento das populações rurais e,
naturalmente, à anomia (invisibilidade) das populações chagásicas, em geral
(Dias, 1988; Briceño-León, 1993). Há riscos concretos de uma recuperação do
triatomismo domiciliar nessas áreas mais deprimidas, se não se consolida uma VE
minimamente atuante, assim como em áreas novas, de colonização recente, como a
Amazônia, a partir de migrações humanas e de focos naturais (Forattini, 1980;
Schofield, 1994; Diotaiuti et al., 1995; Dias & Coura, 1997). Esses riscos
são, em parte, diminuídos pelo próprio processo de adaptação dos triatomíneos à
vivenda humana, que é lento e requer simplificações genéticas, biomorfológicas
e de comportamento (Schofield, 1999). Os principais horizontes e necessidades
da VE na luta antivetorial são o envolvimento sustentado da população, um
melhor componente educativo nos programas, a luta no peridomicílio, a captura
de triatomíneos em baixas densidades e a questão da domiciliação de espécies
silvestres e ubiqüistas. No campo da transmissão transfusional, o panorama no
Brasil e em vários países é mais otimista, em relação à atual tendência de
aumento de cobertura nos bancos oficiais e privados. Porém, alguns
aprimoramentos técnicos são ainda oportunos, especialmente quanto à
simplificação de uma boa sorologia para serviços menores, ao melhoramento da
quimioprofilaxia e à melhor indicação médica da hemoterapia (Schmunis, 1997).
Para a transmissão congênita, os grandes problemas têm sido a detecção precoce
do caso e o pequeno grau de cobertura especializada para gestantes e recém-
nascidos nas áreas endêmicas, também não existindo drogas ou outros esquemas de
prevenção para a gestante infectada (Dias, 1997). Seguem as pesquisas por
melhores fármacos para a terapêutica específica e para a quimioprofilaxia nos
diversos casos de transmissão, ainda pendente na comunidade científica uma
vacina com os necessários poderes antigênicos e inocuidade. Para os indivíduos
já infectados, a vigilância se volta para a detecção do caso e seu manejo
precoce, buscando-se prevenir as doações de sangue e de órgãos, de um lado, e a
morbi-mortalidade pelas formas mais graves da doença, de outro (Dias, 1997).
A situação presente preocupa mais em relação à transmissão vetorial, desde que
são mínimos os níveis de prevalência da infecção chagásica entre doadores de
sangue e gestantes, no Brasil (Dias & Coura, 1997). Os maiores desafios,
nesse contexto, prendem-se à domiciliação de espécies secundárias e silvestres,
um processo geralmente lento e dependente de alta pressão triatomínica e de
câmbios adaptativos nas espécies em questão (Schofield, 1998). A motivação da
população e a manutenção de seu interesse e participação constituem outros
aspectos essenciais, um problema que tende a agravar-se com a progressiva
diminuição de casos, da morbi-mortalidade e de triatomíneos domiciliados (Dias,
1991, 1993a). Já do lado da doença instalada e da prevenção das formas graves,
a VE se depara com problemas, principalmente de diagnóstico, de cobertura
médico-assistencial e de competência dos profissionais envolvidos (Dias, 1991,
1997; Salvatella & Rosa, 1995).
Em termos gerais e espelhando todo o contexto das atividades contra a doença de
Chagas no Brasil no momento atual, a realidade da VE deixa a desejar e pode ser
resumida na seguinte série de críticas e observações pontuais:
apresenta grande dificuldade de implantação (indicadores, agentes,
negociação);
encontra-se praticamente restrita à entomologia (pequeno avanço em
soroepidemiologia);
no campo, está restrita aos PITs, com baixa supervisão;
trata-se de um sistema pouco aberto ao SUS e à educação formal;
é um tema pouco articulado com outros agravos e problemas da população;
é também pouco aberto a outros temas da própria doença de Chagas;
as atividades são pouco priorizadas nas instituições (FNS, SUCEN,
Secretarias);
há pouca criatividade no nível da população;
a atividade tem pouca sustentação como programa;
é pouco sustentada laboratorialmente;
é pouco móvel e resolutiva nas questões mais amplas da comunidade;
ainda apresenta dúvidas e confusões técnicas;
ainda é lenta, como resposta, em muitas regiões ou comunidades;
ainda está longe da cultura municipal, que prioriza a atenção médica.
Da experiência acumulada, especialmente no Brasil, Argentina e Uruguai,
observa-se, na prática de uma VE instalada, uma série de constrangimentos que
vêm sendo apontados há algum tempo e que merecem análise quanto aos
encaminhamentos presentes e futuros. Como mais imediatas e tradicionais, as
questões de vigilância entomológica têm sido dominantes, mas, hoje, se
incorporam novos componentes. De maneira simplificada, as principais perguntas
seriam (Dias, 1987, 1991, 1997; Tonn, 1991; Salvatella & Rosa, 1995):
a) Como_manter_uma_vigilância_contínua_em_áreas_com_progressiva_redução_da
endemicidade?
Aqui interagem fatores políticos, educacionais e de motivação populacional. Os
agentes de vigilância devem estar municipalizados e ser capazes de exercer
atividades de educação e outras tarefas de proteção à saúde, sintonizadas aos
diferentes interesses e prioridades locais. O estímulo externo é importante, em
termos de avaliações e supervisões periódicas. No contexto do SUS, os
resultados e problemas relacionados à VE/Chagas devem ser levantados e
debatidos nas conferências e nos conselhos municipais e regionais de saúde.
b) Como_controlar_os_triatomíneos_no_peridomicílio_e_detectá-los_em_baixas
densidades?
Trata-se de problemas ainda não bem resolvidos e muito importantes na fase de
VE. A detecção de raros triatomíneos passa por atenção constante da população,
o que deve ser motivado e instruído. Pesquisas sobre sensores e iscas de
atração seguem em curso, mas sempre apresentam problemas de durabilidade e
efetividade no peridomicílio. Em termos de luta química, novas formulações e
moléculas têm sido ensaiadas, mas com resultados geralmente pobres. A repetição
mais amiúde do rociado (semestral) mostrou resultados satisfatórios em Minas
Gerais e Pernambuco, mas a relação de custo/benefício não foi estabelecida
(Dias, 1997). O que tem sido mais eficiente, em observações e experimentações
recentes, é o manejo físico do peridomicílio pelos moradores, diminuindo ou
afastando fontes de alimentação e esconderijos viáveis para os triatomíneos
(Dias, 1997; Cassab et al., 1999).
c) Como_prover_uma_boa_e_rápida_epidemiologia_com_vistas_às_necessidades
regionais_e_municipais?
Trata-se de criar autonomia e competência no próprio município, com registros e
rotina que permitam a tomada imediata de decisões. A padronização dos dados e
apurações pode ser provida pelas instâncias regionais, com a consolidação
periódica dos dados e como referência técnica e laboratorial (ver acima, tese
levada à 10a Conferência Nacional de Saúde (Dias, 1996)).
d)Como_manter_a_qualidade_do_programa_nos_níveis_periféricos?
A melhor resposta é a supervisão técnica periódica, realizada por equipes
regionais e debatida nos conselhos e conferências municipais. Indicadores de
participação comunitária, de conhecimento da população, de impacto quanto às
ações educativas (por exemplo, melhoramento e higiene de habitações), de
produtividade de postos de informação, etc. devem ser cotejados com resultados
soroepidemiológicos tomados regularmente.
e)Como_integrar_o_controle_do_vetor_com_outras_atividades_em_saúde_e_em_doença
de_Chagas?
Esta é uma das vantagens do trabalho municipalizado e, em princípio, gerenciado
pela unidade local de saúde. O(s) agente(s) local(is) de VE devem capacitar-se
para atuação em outros temas e atividades além do controle dos triatomíneos,
trabalhar com a comunidade, desenvolver ações educativas, etc. Os laboratórios
locais e regionais de sorologia devem capacitar-se à soroepidemiologia em
doença de Chagas, ao controle de doadores de sangue e ao diagnóstico da
esquizotripanose para os pacientes do SUS, ampliando-se também para outros
problemas regionais. No caso dos consórcios intermunicipais, será muito
facilitada a racionalização de bancos de sangue e de atenção ao chagásico, de
acordo com a capacidade humana e institucional da microregião. Havendo
programas locais de agentes comunitários ou de saúde da família, uma grande
série de oportunidades se abre à VE/Chagas, não apenas envolvendo o agente
local, mas também agindo como fatores de estimulação e de detecção de casos e
situações encontrados na comunidade (Dias, 1996).
f) Como_prevenir_a_expansão_da_doença_de_Chagas_para_novas_áreas?
Este tem sido um problema para toda a América, como fruto das intensas
migrações humanas (Schmunis, 1997). Em particular, encontram-se as novas
fronteiras agrícolas, especialmente a Amazônia, e os perímetros de cidades
grandes, tanto na área endêmica como na não endêmica. Isto acontece tanto pelo
carreamento passivo de triatomíneos e pelos desbalanceamentos de focos
naturais, como pela migração de indivíduos já infectados, aumentando-se o risco
de transmissão transfusional, por transplantes e congênita. Uma outra situação
emergente, nos espaços urbanos, é a reativação da infecção chagásica já
instalada mediante superinfecção de agentes imunodepressores, como o HIV (Dias
& Coura, 1997). Todas essas situações pressupõem uma atenção permanente, em
forma de VE, priorizando-se, especialmente, os casos humanos e as transfusões
de sangue, e, eventualmente, a detecção e controle domiciliar do vetor. Nas
áreas de malária, no Brasil, a FNS já envolve os laboratórios específicos que,
ao examinarem centenas de milhares de lâminas de pessoas febris, estão atentos
para a detecção eventual do T. cruzicirculante, o que tem acontecido e ensejado
a investigação do caso por agentes regionais e/ou locais de saúde (Dias, 1991).
g) Como_enfocar_a_VE_nas_formas_transfusional_e_congênita_de_transmissão?
Este é o caso básico para o funcionamento do SUS em seus distintos níveis. Para
a transmissão transfusional, os problemas básicos no Brasil são a ampliação
para 100% da cobertura à seleção sorológica de doadores e o encaminhamento
daqueles infectados à necessária atenção médica e previdenciária. Ambas
atividades se coadunam perfeitamente com o funcionamento do SUS e devem estar
afetas aos gestores municipal e regional. No caso da via congênita, os modelos
de VE idealmente partem do diagnóstico precoce em gestantes, já no pré-natal,
com acompanhamento da criança e tratamento específico precoce, quando houver
transmissão. Ao revés, num modelo mais simplificado, propõe-se para áreas
endêmicas uma sorologia convencional das crianças aos seis meses de vida
(detecção de IgG próprio da criança, significando infecção), para tratamento
imediato das positivas e atenção médica a suas mães (Dias, 1997). São funções e
estratégias também pertinentes à rede básica de saúde e aos correspondentes
gestores, aqui estando implícitos tanto a capacitação e a motivação dos
profissionais de saúde para o problema quanto a existência e bom funcionamento
de laboratórios locais ou regionais.
h) Como_armar_a_VE_sobre_os_indivíduos_já_infectados?
Como acima, trata-se basicamente de desenvolver uma estrutura de diagnóstico e
tratamento, em complexidade crescente, nas áreas endêmicas. Os principais
níveis de entrada serão os bancos de sangue, os inquéritos soroepidemiológicos
e a demanda espontânea da população, estes sendo geralmente casos sintomáticos.
Como regra básica, admite-se que a maioria dos casos agudos se enquadra bem no
tratamento ambulatorial, assim como mais de 85% dos casos crônicos.
Investigação_necessária
A VE em doença de Chagas, embora formatada em seus aspectos essenciais e
demonstrada na prática sua viabilidade, ainda carece de aprimoramento em alguns
pontos existentes e para enfrentear situações novas ou desconhecidas,
requerendo pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Um risco concreto frente aos
bons indicadores epidemiológicos conseguidos em áreas bem trabalhadas é o da
redução da pesquisa e da capacidade crítica de técnicos e administradores de
programas em relação a novas situações e ao resíduo epidemiológico, como
aconteceu com a malária em tempos recentes (Dias, 1998). Em doença de Chagas,
isso já se faz sentir através da redução substancial de recursos e interesse
para a pesquisa, por parte de diferentes agências de financiamento. Não
obstante, há importantes necessidades de investigação, especialmente em VE,
sentidas tanto nos aspectos operacionais e aplicados como nos mais básicos
(principalmente aqueles mais voltados para o diagnóstico, a terapêutica e o
comportamento de vetores silvestres e secundários). Como um apêndice a este
tópico, a Tabela_4 resume os campos de maior interesse para a investigação em
VE, apontados por pesquisadores e técnicos de programa em diversos seminários,
publicações e grupos de trabalho (Dias, 1974, 1986, 1997; Rocha-e-Silva, 1979;
Souza et al., 1984; Argentina, 1986; Gonzalez et al., 1987; WHO, 1991;
Salvatella & Rosa, 1995).
<formula/>
À guisa de conclusão, dir-se-ia que a VE em doença de Chagas é viável e
necessária, mas ainda não está terminada em sua formulação. As principais
perspectivas residem hoje na inserção dessa vigilância nos sistemas locais e
regionais de saúde, amparada por efetiva participação comunitária. Os maiores
problemas residem especialmente na sua continuidade, desde que, com o tempo e a
esperada redução dos índices de transmissão, diminuem o interesse e a
prioridade. Por outro lado, a implantação e o bom funcionamento dos sistemas de
saúde em áreas deprimidas são complexos e a população tende a ficar desamparada
com o desmonte das tradicionais estruturas mais centralizadas que se
encarregavam do controle da doença de Chagas. O impasse está criado, prevendo-
se recrudescência do triatomismo domiciliar e da incidência da doença nas áreas
mais pobres e menos organizadas. Por tudo isso, cabem ainda várias
investigações, ao lado de um esforço adicional pela reorganização da vigilância
possível, em cada país afetado.