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BrBRCVHe0103-11042014000400917

BrBRCVHe0103-11042014000400917

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0103-1104
Year2014
Issue0004
Article number00917

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Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde real e possível Introdução A Constituição Federal de 1988 (CF-1988) inaugurou um novo momento político- institucional no Brasil ao reafirmar o Estado Democrático de Direitos e ao definir uma política de proteção social abrangente, reconhecendo a saúde como direito social de cidadania e inscrevendo-a no rol de um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade civil voltados para assegurar a nova ordem social, cujos objetivos precípuos são a justiça social distributiva e o bem-estar comum entre os sujeitos de direitos em suas coletividades (Brasil,_2008). A partir daí, o Estado encontra-se juridicamente responsabilizado a exercer atividades objetivando a construção dessa nova ordem social, logo um conjunto de leis, portarias ministeriais e práticas gestoras buscaram viabilizar o projeto democrático da Constituição Cidadã. Desde então, com a CF-1988 instituída, tornou-se cada vez mais frequente a interferência do Poder Judiciário em questões que são a priori de competência dos poderes executivos e legislativos. A este novo papel exercido pelo Judiciário na garantia do direito à saúde dos sujeitos atribui-se a concepção de judicialização da saúde (BAPTISTA;_MACHADO;_LIMA,_2009).

No contexto democrático brasileiro contemporâneo, o fenômeno de judicialização da saúde expressa reivindicações e modos de atuação legítimos de cidadãos e instituições, para a garantia dos direitos de cidadania amplamente afirmados nos tratados nacionais e internacionais. Esse fenômeno como uma expressão da efetivação do direito social à saúde, envolve aspectos políticos, econômicos, culturais, éticos, científicos e sanitários que vão muito além do seu componente jurídico e da gestão dos serviços de saúde (Ventura_ET_AL.,_2010).

Isto é, de reconhecimento ético-moral dos sujeitos frente às violações e injustiças sociais de forças neoliberais do capitalismo tardio, que obstruem o alcance de patamares de emancipação sociopolítica entre os sujeitos da vida coletiva, democrática e equitativa; bem como de reconhecimento sociocultural dos direitos de titularidade coletiva que vem de encontro ao pleno desenvolvimento do Estado Democrático de Direitos, efetivando as intervenções sanitárias legitimadas pelos cidadãos para o desfrute do bem-comum e de uma saúde com qualidade de vida (ARREAZA,_2014).

No âmbito da CF-1988 têm-se como princípios, além da cidadania e da dignidade da vida humana, o pluralismo político-ideológico, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa para, a partir daí, construir uma sociedade justa e solidária, assegurando o desenvolvimento da erradicação da pobreza e reduzindo as iniquidades sociais, promovendo o bem comum sem excluir gêneros, etnias, religiões, culturas e pessoas com necessidades especiais. Em que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, igualdade, segurança e propriedade privada, cabendo ao Estado assegurar esses direitos para que os cidadãos tenham condições dignas de vida (BRASIL, 2008).

Em decorrência do direito à vida, tem-se o direito à integridade física, moral e psíquica dos cidadãos, e, ao enaltecer a dignidade humana no tocante ao valor ético-social das pessoas e famílias, a proteção de sua integridade assume a feição de direito intersubjetivo fundamental, repercutindo nos direitos de educação, saúde, trabalho, moradia, seguridade social, de proteção à maternidade e à infância, à saúde mental e aos desamparados em particular.

Pois, a proteção da vida e da saúde dada por meio de políticas públicas permite o desenvolvimento de condições dignas e saudáveis de existência, visando minimizar as situações sociais desiguais, priorizando os mais frágeis, como os direitos emancipatórios do bom viver que buscam recriar condições mais propícias de vida positiva e equitativa (BARRUFFINI,_2008).

a dignidade da vida humana, por si , exigiria a garantia do direito à saúde ao lado do direito à vida, a saúde é corolário do direito à vida e da dignidade humana, constituindo uma tríade que garante o exercício dos demais direitos e liberdades positivas, e por gozarem de uma dimensão ética e moral, espraiam-se por todos os setores da sociedade sob a forma de deveres sociais e comunitários. Em que a saúde é uma das condições essenciais da liberdade e da igualdade de todos perante a lei, e o devir do seu direito, sendo inerente ao viver humano, constitui-se em um direito subjetivo e coletivo ao mesmo tempo.

Diz-se que a saúde tem uma dimensão que transcende a sua própria positivação no ordenamento jurídico, por ser uma das condições relevantes para o exercício emancipatório dos sujeitos, além de nossa Constituição ter positivado amplamente o direito à saúde (SANTOS,_2010).

Logo, a saúde é um direito fundamental da vida garantida mediante políticas públicas que visam à redução de riscos e danos, como o acesso universal e igualitário aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação, onde o dever do Estado não exclui o das famílias, das empresas e sociedade em geral; onde os níveis de saúde de uma população expressam a organização política, social e econômica do seu país. A saúde é um estado dinâmico com seus determinantes sociais, políticos, econômicos, históricos e culturais, desdobrando-se em corporeidade biopsíquica e subjetiva, tendo moderada quantidade de limitações com vivências de bem-estar, e sendo tanto objeto de desejo como uma concretude da vida social. Frente ao bem-estar social é pensada em termos de aquisições positivas de meios para o enfrentamento de infortúnios e privações pelos sujeitos da vida coletiva, em que a ampliação de bens destinados a promover uma boa qualidade de vida sob o ponto de vista biopsicossocial, é uma tarefa ao mesmo tempo individual e coletiva, tanto de promoção quanto de prevenção e assistência (ARREAZA,_2014).

A inclusão da saúde como uma dimensão da qualidade de vida e do bem-estar social aponta para uma visão abrangente dos determinantes sociais da saúde- doença, como para uma orientação sistêmica das prioridades em pesquisas e do desenvolvimento tecnológico e de suas inovações em saúde, destacando a necessidade de critérios políticos, econômicos, epidemiológicos e estratégicos da gestão em saúde. O setor da saúde é conformado por sistemas que incluem as atividades de saúde pública no seu plano coletivo, e os serviços de atenção médico-hospitalar no plano individual, em que os aspectos técnicos e de gestão do setor são condicionados pelas políticas sociais, econômicas e sanitárias de Estado, como pelo desenvolvimento científico e tecnológico existente e incorporado ao setor; onde o acesso ao sistema como um todo e aos serviços específicos em particular, como aos processos e produtos tecnológicos disponíveis, derivam de interações complexas e dinâmicas entre todas essas dimensões nucleares do campo da saúde pública (NOVAES;_GOLDBAUM;_CARVALHEIRO, 2001).

O campo da ciência e tecnologia em saúde pode ser apreendido articulando-se o núcleo central do setor saúde com as inúmeras redes que se estabeleceram entre este e as instâncias do saber científico-tecnológico, e destes com os segmentos produtivos das indústrias de saúde. As pesquisas científico-tecnológicas se constituem em atividades altamente competitivas, estruturadas e reguladas por parâmetros e normas próprias, além de estarem inseridas em contextos políticos e socioeconômicos, isso é singular para a área de inovações em saúde, de grande importância político-econômica em países desenvolvidos. Porém, essa área vem enfrentando questionamentos que se caracterizam, de modo geral, pela busca de uma melhor articulação entre os processos de produção do conhecimento e das suas condições de utilização, como do seu impacto sobre a saúde dos sujeitos e de coletivos em geral. A insuficiência das políticas tecnológicas para dar conta das necessidades da saúde pública permitiu o desenvolvimento de uma série de propostas políticas, incorporando ao seu discurso a ideia de não ser uma política apenas estatal e centralizada (NOVAES;_GOLDBAUM;_CARVALHEIRO,_2001).

Marques_(1999) argumentava, no final do século passado, que as tendências observadas no cenário internacional evidenciavam que a fronteira da ciência, todavia, estava muito mais voltada para as necessidades dos mercados e empresas de alta tecnologia do que para os desafios sociais, ambientais e da própria saúde pública. Nelas encontravam-se as razões para o predomínio, nos países desenvolvidos, de uma interpretação hegemônica frente ao seu domínio sobre a Ciência e Tecnologia (C&T). Tendo a ciência se transformado no elemento essencial das potências de primeiro mundo, razão de sua bem sucedida capacidade de competir e de acumular riquezas, passou a constituir o seu principal patrimônio e o seu maior negócio. Ainda nos dias de hoje, a afirmação de que os produtos da ciência são patrimônio da humanidade torna-se uma interpretação idealizada, que, na maioria das vezes, não encontra correspondência prática tampouco politicidade orgânica; vem daí os conflitos de interesses que cercam a apropriação dos resultados da C&T, como nos processos de transferência de tecnologias e nas transações comerciais internacionais, as quais ressaltam as divergentes visões de diferentes nações a respeito da propriedade intelectual.

mais de 50 anos, nos países desenvolvidos, a geração de bens e serviços para a saúde vem representando um dos segmentos mais presentes na economia política das inovações tecnológicas. A transição demográfica como a epidemiológica, a implantação de políticas públicas de inovação e o fortalecimento das indústrias da saúde são alguns dos fatores desse devir tecnológico globalizado, cujos impactos têm sido a crescente demanda por bens de alta densidade tecnológica, a incorporação acelerada de novas tecnologias médicas e a expressiva participação do setor privado na oferta de produtos inovadores; e cujas repercussões contraditórias têm sido status ou alienações, benefícios ou riscos, custos ou danos, como valores de troca ou de uso entre sujeitos e coletividades, podendo até gerar iniquidades sociais em saúde (GADELHA,_2003).

Ayres_(2007) defende que o ocultamento dos modos de vida e saúde historicamente específicos decorre da colonização de práticas e experiências vivenciadas pelos sujeitos em suas coletividades, essa colonização dar-se-ia por meio da hegemonia das estruturas conceituais e instrumentais das ciências biomédicas que induz a incorporação tecnológica, como pela cultura dos limites da gestão tecnocrata que seleciona e direciona as tecnologias de saúde, suscitando debates éticos e políticos sobre as escolhas a serem feitas frente às prioridades de saúde pública das coletividades em geral. Apontando-se para uma recomposição humanizadora das práticas de saúde, tornando profissionais, serviços, programas e políticas de saúde comprometidos com os sucessos práticos potencializados por meio e para além de qualquer êxito técnico no cuidado em saúde dos sujeitos de direitos, compreende-se como um modo de promover à saúde a busca socialmente compartilhada para evitar, manejar ou superar de modo mais apropriado os processos de adoecimento, indicando os obstáculos encontrados por sujeitos e coletividades à realização dos seus projetos de bem-estar comum no Estado Democrático de Direitos.

Diante do cenário exposto, o presente ensaio tem por objetivo revisitar alguns dos fundamentos sociopolíticos das tecnologias em saúde como uma construção sociohistórica e cultural e como um bem público virtuoso potencializado, contribuindo reflexivamente para uma gestão sociopolítica e democrática das inovações em saúde em termos éticos, regulatórios e jurídicos, numa perspectiva normativa dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) real e possível.

Por uma política das tecnologias em saúde como uma construção sociohistórica e como um bem público virtuoso potencializado A importância estratégica das inovações indica tanto as interações entre a pesquisa científica e as inovações tecnológicas no setor saúde, como as múltiplas influências entre a construção de um sistema efetivo de inovação e a economia nacional e o desenvolvimento tecnológico. No Brasil, onde o atraso tecnológico coexiste com o do social, a superação de ambos passa pelo fortalecimento dos sistemas de inovação, para impulsionar o desenvolvimento industrial e tecnológico que sustenta em parte o crescimento econômico do País; logo, o setor saúde se constitui num vínculo estrutural e operacional entre esses dois arranjos institucionais, implicando além dos impactos econômicos gerados por qualquer atividade inovadora, tais iniciativas nesse setor tem um impacto direto sobre a capacidade produtiva e tecnológica do País (ALBUQUERQUE; SOUZA;_BAESSA,_2004).

Nesse sentido, o reconhecimento da relevância das práticas de inovação na economia atingiu um amplo consenso entre os empresários, governantes, gestores, formuladores de políticas, como a comunidade científica. Essa constatação se deve, então, aos impactos positivos que os processos de inovação e seus produtos introduziram na economia dos países desenvolvidos, e que os emergentes também buscam, sendo responsáveis por conferir saltos de competitividade e transformações nos seus sistemas produtivos nacionais (VIANA; NUNES;_SILVA,_2011).

A política industrial e as inovações tecnológicas constituem os elementos determinantes do dinamismo das economias capitalistas e de sua posição relativa nos mercados globalizados. Todos os países que se desenvolveram e passaram a competir em melhores condições com os países ricos e avançados, associaram um complexo industrial sólido a uma base endógena de conhecimento, de aprendizado e de inovação. Porém, no setor da saúde esta visão, todavia, é problemática, uma vez que os interesses empresariais se movem pela lógica do lucro incondicional e não para o atendimento das necessidades de saúde, onde a noção de Complexo Industrial da Saúde (CIS) constitui uma tentativa de fornecer um referencial teórico-operacional que permita articular duas lógicas distintas, a sanitária e a do crescimento econômico, pois o setor saúde constitui uma frente de inovação estratégica e de desenvolvimento na sociedade capitalista do conhecimento (GADELHA,_2006).

Em princípio, a concepção de CIS envolve um conjunto articulado de segmentos e atividades produtivas que mantêm relações intersetoriais de valores de trocas e de usos de produtos e insumos, como na transferência de novos conhecimentos e tecnologias inovadoras entre as instituições de pesquisas científicas, os segmentos produtivos de inovações e o setor da saúde na prestação de serviços para os usuários do sistema, como um espaço político e econômico para onde flui toda a produção em saúde, tanto por se organizar sob as bases da lógica industrial quanto por configurar o mercado da saúde como uma construção sociopolítica e institucional. Isso confere uma dada organicidade ao complexo, permitindo articular num mesmo contexto a pesquisa, a produção, a difusão e a utilização de tecnologias em saúde, tão diversificadas como os fármacos, as vacinas, os equipamentos e insumos biomédicos, e também produtos para diagnóstico, tratamento e reabilitação, como os materiais médicos em geral.

O conceito de CIS privilegia, como elemento crítico desse sistema, a atividade produtiva inovadora, considerando que o núcleo de maior vulnerabilidade econômica do Brasil no setor da saúde, todavia, é a fragilidade do segmento industrial e empresarial na geração de inovações na saúde. A capacidade inovadora do País é determinada pelo potencial de transformação dos conhecimentos científicos em bens e serviços novos ou aperfeiçoados quanto à sua qualidade nos processos produtivos tecnológicos. Essa capacidade no País ainda é desarticulada das bases científico-tecnológicas como das necessidades do setor da saúde, principalmente pela incipiente capacidade empresarial de investir e realizar pesquisas, e desenvolver tecnologias inovadoras, como de sua dependência externa no contexto da revolução industrial e tecnológica da globalização tardia, ainda em curso nos dias de hoje (GADELHA,_2006).

O CIS tem passado por profundas transformações em sua estrutura operacional produtiva, nas estratégias com as organizações públicas e privadas, nas formas de atuação entre Estado, sociedade e ciência e tecnologia, e na reestruturação do setor saúde do País, resultando em oportunidades e desafios numa perspectiva de economia política da inovação em saúde. A lógica capitalista penetra em todos os seus segmentos produtivos, envolvendo tanto as indústrias que operavam tradicionalmente nessas bases, como a farmacêutica e a de equipamentos médicos, quanto os segmentos onde era possível verificar a coexistência de lógicas empresariais com outras que delas se afastavam, como o de produção de vacinas e o de outros produtos biomédicos, e também na prestação de serviços em saúde pública.

Gadelha_(2003) coloca que a área da saúde e o CIS com os seus setores de atividade produtiva, aliam alto dinamismo econômico, elevado grau de inovação e importante interesse social, sendo um lócus intersetorial para a concepção de políticas industriais articuladas com as políticas de saúde. Isto significa que o setor da saúde é, ao mesmo tempo, um espaço de inovação e de acumulação de capital, constituindo um segmento de geração de renda, emprego, desenvolvimento e oportunidades de investimento, como um setor que expressa as suas formas de organização institucional e de regulação das atividades mercantis e produtivas, de forma a viabilizar um padrão de incentivos e sanções que permitam a orientação de setores empresariais para objetivos de caráter social e o atendimento das necessidades nacionais e da população.

Reconhecer a natureza capitalista do setor da saúde, como a produção em massa, a lógica empresarial e financeira e, sobretudo, a dinâmica das inovações e o valor agregado é essencial para a concepção de políticas que almejem atenuar o viés inerente do capitalismo tardio entre a busca do lucro e de mercados e o atendimento das necessidades sociais e individuais. Não é desconsiderando ou negando a dinâmica capitalista que se poderá conceber políticas adequadas, pelo contrário, somente pela compreensão de sua lógica tecnooperacional é possível buscar meios efetivos para que as finalidades sociais sejam atingidas nos marcos deste sistema globalizado.

Logo, a política industrial e tecnológica é um problema da política de saúde, situando o CIS como setor crítico de desenvolvimento e intervenção, para tanto, torna-se premente a integração dos grandes segmentos do complexo, como da produção de produtos industriais e dos bens e serviços de saúde, sob uma perspectiva de que são, simultaneamente, espaços capitalistas de acumulação, inovação, crescimento econômico, como de geração de bem-estar comum, incorporando interesses sociais não subordinados à lógica dos mercados (GADELHA,_2003).

O CIS envolve então um conjunto de indústrias que produz bens de consumo e equipamentos especializados, como uma rede de serviços prestadores que demandam e utilizam os produtos gerados por setores industriais, expressando uma clara relação de intersetorialidade no âmbito do setor saúde. A princípio, destacamos os três grupos de atividades tecnológicas no contexto do CIS: o primeiro congrega as indústrias de base química e biotecnológica que produzem medicamentos, vacinas, hemoderivados, kits diagnósticos etc. Como o setor de medicamentos é liderado por um bloco de empresas farmacêuticas altamente intensivas em tecnologias, e que dominam o mercado mundial, uma tendência de as mesmas ampliarem as suas fronteiras para englobar os demais setores, como vem ocorrendo a partir dos anos 1990 na área das vacinas biotecnológicas. Desde então, essas multinacionais incorporam esse setor em busca de liderança, investindo em inovação de vacinas de alto valor agregado, além de realizarem fusões e parcerias tecnológicas no contexto do CIS; logo, seria relevante que o governo brasileiro reforçasse os investimentos com a incorporação dessa tecnologia pelas empresas nacionais, possibilitando a produção desses insumos estratégicos para a saúde pública nacional (GADELHA,_2003; HOMMA_ET_AL.,_2011).

Aliás, o Ministério da Saúde coordena as atividades que visam o fortalecimento da capacitação tecnológica nacional em imunobiológicos, pois, além de aumentar o orçamento para vários projetos de inovação em vacinas e dos seus processos produtivos, vem trabalhando para a modernização da infraestrutura produtiva biotecnológica, bem como para integrar os marcos regulatórios de Estado na obtenção de isenção fiscal pelas empresas, no uso do poder de compra do Estado e na regulação desses produtos tecnológicos do CIS (HOMMA_ET_AL.,_2011).

o segundo grupo é constituído pelas indústrias que produzem equipamentos, próteses, órteses e materiais e insumos em geral, neste grupo cabe destacar o papel da indústria de equipamentos, tanto pelo seu potencial de inovação em microeletrônica quanto pelo seu impacto nos serviços de saúde, ocasionando mudanças importantes nas práticas assistenciais e explicitando a tensão entre a lógica da indústria e a sanitária de saúde pública. Por fim, o último grupo congrega os setores prestadores de serviços de saúde constituídos por unidades hospitalares, ambulatoriais, de atenção básica e serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, esse grupo é responsável por organizar toda a cadeia de suprimentos e produtos das indústrias farmacêuticas e de equipamentos e materiais médicos, articulando a oferta e o consumo dessas tecnologias de saúde nos espaços públicos e privados como todo (GADELHA,_2003).

Por um lado, sob o ponto de vista da dinâmica industrial e das suas inovações tecnológicas, os setores prestadores de serviços se caracterizam, em parte, como uma atividade submetida à produção e ao fornecimento de produtos de alta densidade tecnológica e valor agregado, tais como as novas vacinas, os medicamentos e os equipamentos. Por outro lado, sob o ponto de vista da intersetorialidade, é o segmento dos serviços de saúde que confere organicidade ao complexo, representando o local para onde conflui toda a produção dos demais grupos industriais.

O CIS se insere em um contexto político e institucional mais amplo, conformando um sistema intersetorial de inovação e proteção social, onde se desenvolve uma dinâmica de influência recíproca entre Estado, sociedade e inovações em saúde, que estabelece, em última instância, um vínculo sólido entre o setor empresarial, universidades, institutos de pesquisa e a área da saúde. De um lado, pela intensidade de saberes e tecnologias de todas as atividades produtivas de saúde, em que as instituições de pesquisas são a fonte essencial das inovações e representam o fator crítico de competitividade do CIS. De outro lado, pelo caráter social da destinação tecnológica em saúde, onde a atuação da sociedade organizada se destaca como uma prática de pactuação da gestão em saúde, para que a política de inovação incida de modo mais acentuado.

Nesse contexto, cabe destacar o papel que o Estado cumpre na dinâmica dos setores produtivos mediante as suas ações de promoção e regulação, que na área da saúde adquirem uma extensão raramente vista em outro grupo ou cadeia produtiva do CIS, como da aquisição e uso de bens e serviços, da alocação de recursos para a saúde, dos investimentos realizados na indústria e na rede assistencial, e de um amplo espectro de práticas regulatórias que delimitam as estratégias dos agentes econômicos e gestores das tecnologias em saúde. O Estado constitui assim uma instância determinante da dinâmica industrial do CIS, graças ao seu elevado poder de compra e indução de inovações, e às suas atividades de regulação, que desempenha através de uma forte interação com a sociedade civil organizada (GADELHA,_2003). Pois, o mesmo tem um papel relevante na compatibilização das políticas de inovação com as de saúde, estabelecendo uma ampla regulação sobre os agentes econômicos, além das suas políticas públicas para o bem-estar social das pessoas, ao mesmo tempo em que induz o setor empresarial a adotar estratégias inovadoras com base nos investimentos feitos em pesquisa e desenvolvimento, em que iniciativas promissoras de inovação compartilham uma interface existente entre as políticas de saúde e o crescimento econômico (GADELHA;_QUENTAL;_FIALHO,_2003).

a Política Nacional de Ciência e Tecnologia (PNCT) é considerada uma das políticas públicas que o Estado fomenta e coordena com os produtores, prestadores, pesquisadores e usuários, em toda a cadeia produtiva, pois para ampliar a sua capacidade regulatória necessita de informações concretas dirigidas à gestão dos problemas de saúde, onde o seu papel é o de formular, em sintonia com as diretrizes do SUS, uma política tecnológica transparente, que integre de forma equânime os seus eixos condutores, fornecendo subsídios para o planejamento e a avaliação das tecnologias a serem utilizadas no setor saúde para a prestação de bens seguros e eficientes no atendimento dos interesses e das necessidades das coletividades.

Assim, a PNCT deve dirigir toda a sua cadeia produtiva de insumos estratégicos às demandas potenciais de saúde da população em geral, pois, a política industrial e tecnológica pensada de forma integral tende a estabelecer vínculos com as políticas de saúde, ampliando o acesso aos seus produtos e inovações, e a legitimar sua competitividade perante a sociedade como um todo, onde as tensões inerentes aos objetivos de ambas encontram um terreno comum para promover a ação social do Estado, revertendo-se mutuamente numa alavanca de bem-estar social e de competitividade. a construção de uma cadeia produtiva autossuficiente, balizada nas políticas de inovação em saúde, contribui tanto para a produção de novas vacinas biotecnológicas quanto para a consolidação da política dos medicamentos genéricos destinados às pessoas com menor poder aquisitivo, e/ou fragilizadas diante das contingências da sociedade capitalista (GADELHA,_2004).

O relevante é que a política tecnológica se efetue com evidências concretas do mercado das inovações em saúde, dos potenciais tecnológicos das empresas e de instituições públicas e privadas, e das prioridades de saúde da sociedade como um todo. Para tanto, é essencial a realização de pesquisas estratégicas para definir os alvos prioritários em situações específicas, e para avaliar a adequação dos arranjos institucionais frente aos objetivos de autossuficiência tecnológica e comprometimento ético-social. para articular a política tecnológica com as diretrizes do SUS, é mister fortalecer a política de inovação em saúde, conferindo um novo estatuto à dimensão social da tomada de decisão na produção de insumos e produtos, pactuando os seus objetivos de inserção competitiva com os de distribuição equitativa das inovações para os problemas prioritários de saúde da sociedade em geral (CONDE;_ARAÚJO-JORGE, 2003).

Faz-se necessário, então, uma efetiva reestruturação das instituições de ciência e tecnologia, visando a uma maior autonomia gerencial no alcance de políticas seguras e transparentes de gestão, e na transferência democrática de saberes e tecnologias na perspectiva das diretrizes do SUS, com a participação da sociedade e com o envolvimento de todos os atores no processo de inovação em saúde, direcionando a geração dos saberes bem como a utilização de seus resultados na implementação de políticas públicas frente as reais necessidades das coletividades locais. Ademais, compactuo com a tese de que inovações são bens públicos essenciais, e as iniquidades ao seu acesso são relevantes fatores das desigualdades sociais em saúde, sendo necessário para a sua superação a integração das políticas de saúde e as tecnológicas com o fortalecimento de prioridades de ambas, multiplicando os sujeitos envolvidos e os espaços de interação entre eles. Isto deve viabilizar o acesso equitativo a saberes e tecnologias pertinentes, que permitam a realização dos seus interesses e da prestação efetiva de bens e serviços para a saúde pública (PELLEGRINI-FILHO, 2004).

Cabe mencionar que as condições de saúde da população não dependem, por si , do êxito das políticas de saúde, mas da combinação virtuosa entre o crescimento econômico e o desenvolvimento social; isto é, da compatibilização entre políticas voltadas para promover a prosperidade econômica, gerando renda, emprego e oportunidades de investimento, e políticas públicas que protegem a saúde e o bem-estar das pessoas. Quando existe uma clara dicotomia entre saúde e desenvolvimento, seja porque a política econômica não busca a promoção da equidade e da inclusão social ou porque o setor de saúde não incorpora o modelo de proteção social, o resultado pode ser a existência de um par não virtuoso em que as atividades produtivas do setor de saúde podem não estar direcionadas para as necessidades reais da população (VIANA;_NUNES;_SILVA,_2011).

Esses autores lembram ainda que o Brasil foi marcado pela ausência de políticas públicas voltadas para formar um sistema nacional de inovação no setor saúde, fortalecer a indústria nacional e ampliar a sua capacidade instalada em segmentos estratégicos do CIS, cuja problemática se evidencia na grande dependência do País em novas tecnologias, fazendo com que se constitua num modelo não virtuoso de interação entre a saúde e o desenvolvimento. No entanto, com a adoção de políticas indutoras de desenvolvimento nacional e iniciativas dirigidas para a área da saúde, como a implantação da PNCT em meados dos anos de 1990, sugere-se que rumos importantes vêm sendo tomados com o objetivo de reverter essa situação de dependência e de rupturas entre a saúde e o desenvolvimento no contexto nacional.

Sob uma perspectiva global, os anos 1990 se caracterizaram por crises econômicas recorrentes, e apesar dos indiscutíveis avanços científico- tecnológicos da época, as condições de vida e saúde, para muitos, parecia estar pior do que nas décadas anteriores, onde o campo da saúde pública se deparava com problemas relativos à persistência da pobreza, ao recrudescimento das iniquidades e à exclusão social, ao desemprego e ao aumento da economia informal, ao crescimento e envelhecimento populacional, à urbanização explosiva, à instabilidade econômica e política, ao enfraquecimento das governanças em geral e dos sistemas de saúde nacionais, aos baixos desempenho e resolutividade dos serviços de saúde, ao desenvolvimento científico-tecnológico acentuado, gerando novas demandas e custos, como ao perfil epidemiológico das coletividades com persistência dos velhos problemas e emergência de novas doenças. Ao mesmo tempo, acreditava-se que, se o setor de saúde dos países passasse por transformações importantes em suas características estruturais e formas de atuação, eles poderiam contribuir em parte para a reversão ou diminuição desses problemas, como em relação ao redirecionamento das tecnologias frente às prioridades de saúde pública e ao impacto positivo na prevenção e controle das doenças emergentes e reemergentes (NOVAES; CARVALHEIRO,_2007).

Essas mudanças poderiam, então, ser efetivamente alcançadas por meio de ações políticas e econômicas contextuais e pelo desenvolvimento de políticas setoriais no âmbito da saúde pública, capazes de articular objetivos políticos, sociopolíticos e econômicos com os processos de produção, difusão, incorporação, utilização e avaliação das tecnologias de saúde. Ao longo dos anos de 1990, políticas nessa direção foram propostas com uma maior intensidade nos países desenvolvidos, mas também pelos emergentes, como no caso do Brasil, e também por diferentes organizações nacionais e internacionais comprometidas com as políticas públicas de Estado. Outra questão relevante no final do século passado foi o reconhecimento da bioética de proteção como uma questão social e, particularmente, enquanto ética biomédica e em pesquisas científicas com seres humanos, dados os seus impactos sobre os processos de pesquisa experimental, e sobre os efeitos da utilização dos seus serviços e produtos, como da efetiva incorporação da ética enquanto dimensão transformadora das práticas científicas e tecnológicas (NOVAES;_CARVALHEIRO,_2007).

Considera-se ainda que se deva estimular o desenvolvimento tecnológico e suas inovações nos setores produtores de tecnologias diagnósticas, terapêuticas, de controle e preventivas, para que sejam disponibilizados produtos prioritários para a saúde pública nacional de forma sustentável, socioeconômica e politicamente democrata. Para que essa política possa ser bem sucedida é essencial a participação das coletividades brasileiras nos processos de sua implementação, por meio das instâncias representativas hoje existentes ou das que venham a se instituir no contexto do SUS. A implementação da política de inovação em saúde deve ser acompanhada de uma expansão e melhoria do acesso organizado, da avaliação tecnológica periódica e da qualidade da atenção nos sistemas de saúde locais, para que os impactos desejados sobre a saúde e a qualidade de vida dos sujeitos e dos grupos sociais possam ser concretamente efetivados.

Em síntese, parafraseando Gadelha_(2006), não se pode tratar o desenvolvimento tecnológico e suas inovações na sociedade do conhecimento de um lado, e as políticas e práticas públicas do setor nacional da saúde de outro, como se fossem duas instâncias independentes e/ou fragmentadas. O tratamento reducionista, apenas sob uma lógica defensiva voltada para os interesses das indústrias na absorção de processos e produtos pelos serviços de saúde, faz com que as forças sociais que vinham lutando historicamente por um sistema universal e equitativo no Brasil, acabem atuando em parte, na mesma direção do modelo neoliberal do capitalismo tardio. Por sua vez, esse modelo tem procurado vetar os processos de desenvolvimento, de industrialização, e de superação da dependência externa dos países emergentes, mediante o negligenciamento de políticas inovadoras para os segmentos de maior dinamismo sociopolítico e econômico, como é o caso da saúde pública brasileira.

Propõe-se, pois, uma ruptura sociopolítica com as visões reducionistas que colocam os interesses empresariais das indústrias de saúde de um lado, e as necessidades das políticas públicas de Estado, de outro; isto é, ruptura de ordem político-institucional e com o modelo de crescimento econômico capitalista desarticulado da lógica sanitária das políticas sociais de saúde.

Um país que pretende alcançar uma condição de desenvolvimento socioeconômico e independência tecnológica em saúde requer, ao mesmo tempo, indústrias inovadoras e competitivas, como um sistema de saúde inclusivo, equitativo e desenvolvido socioeconomicamente.

Por uma gestão democrática das inovações de saúde em termos éticos, regulatórios e jurídicos no contexto do SUS real e possível Sob a luz do texto de Vázquez_(2006), entendemos que tanto uma ética reflexiva que tenta compreender e explicar a moral realmente existente, como uma ética normativa que postula e justifica uma nova moral possível e necessária, fundamentada em fins e valores de equidade, dignidade humana, justiça social e práxis emancipadora. Nesse sentido, a bioética da proteção é uma ética normativa e aplicada, pois pretende amparar os sujeitos e as populações vulneráveis em um contexto caracterizado, por um lado, pelos conflitos morais em saúde pública e, por outro, pelos problemas de saúde que poderiam ser superados com a incorporação tecnológica, mas podem não sê-lo, seja porque tal incorporação não se de forma equitativa e democrática, ou porque é realizada incorretamente implicando em novos problemas não previstos sem a prudência necessária (SCHRAMM,_2007).

Logo, a bioética da proteção se aproxima do componente moral da prática política, frente à qual ela se situa como uma mediadora lúcida e atuante a despeito daquilo que se deva saber-fazer a fim de que se torne benéfico para os sujeitos e suas coletividades, preocupando-se também com os bons argumentos para justificar a práxis da moral inovadora e suas finalidades. na gestão da saúde, o aspecto da proteção também se constitui em um compromisso ético-moral inadiável, se apreendemos a saúde pública como um campo de saberes e práticas que tem por objeto maior a promoção da saúde dos sujeitos no seu meio sociocultural e biopsíquico.

Em suma, a bioética da proteção pode ser considerada um paradigma tanto para tentar entender os conflitos na saúde e na pesquisa com seres humanos, quanto para tentar solucioná-los adotando-se meios normativos, efetivos e legitimados no seio de um Estado Democrático de Direitos. Logo, por bioética entendemos uma ferramenta pública e concreta capaz de proteger contra riscos e ameaças os possíveis vulneráveis, como em prol do desenvolvimento das potencialidades de cada sujeito para assumir a sua vida pessoal e cidadã, para então emancipar-se respeitando a pluralidade dos valores que perpassam toda a coletividade, não impondo condutas que poderiam infringir os direitos fundamentais das pessoas e de grupos particulares, a não ser que entrem em conflito com o bem-estar comum das coletividades (SCHRAMM,_2007).

A bioética valoriza o contexto do problema e o avalia segundo características de grupos sociais distintos, que, por vezes, estão em conflitos quanto à autonomia e aos direitos dos seus cidadãos. Este é o seu diferencial singular em relação à ética tradicional, a qual supunha que regras universais, abstratas e descontextualizadas poderiam resolver todos os problemas morais relativos à utilização de tecnologias da saúde pelos sujeitos de uma coletividade. É necessário considerar a diversidade moral existente nas discussões éticas, pois distintas coletividades com as suas culturas situam-se diferentemente frente a um determinado conflito moral; a bioética ao propor analisar, refletir, justificar e reorientar uma dada conduta moral, parte sempre de um diálogo pluricultural, pois diferentes visões sobre vida e morte, saúde e doença, natureza humana e culturas sociais, direcionalidade e intencionalidade, dentre outras (BRAZ,_2005).

as tecnobiociências e seu biopoder hegemônico propõem a consolidação de progressos na faculdade genética e de potenciais fisiológicos dos sistemas e processos vivos, como da natureza genofenótipa humana, para poderem, de modo determinista, intervirem sobre eles a fim de transformá-los e aperfeiçoá-los quando considerarem necessário e ou desejável, bem como legitimá-los de acordo com alguma estrutura de poder e seus ditames sobre o mundo dos viventes e da vida biopsicossocial humana. A bioética por sua vez propõe normatizar as intervenções biotecnológicas, de tal modo que possam ser consideradas moralmente corretas pelas coletividades socioculturais, no sentido dos sujeitos e seus modos de vida historicamente específicos sentirem-se suficientemente protegidos, inclusive, em seu cotidiano particular confrontado com seus meios sociais, que são, ao mesmo tempo, ecossociais, tecnológicos e socioeconômicos (SCHRAMM,_2005).

Com base nesses pressupostos, podemos dizer que, no caso das biotecnologias inovadoras em saúde, se, por um lado, resultam da expansão dos saberes científicos, originando novos processos e produtos tecnológicos, por outro, abrem-se cenários desconhecidos, gerando temores, incertezas, inseguranças e incompreensões, fazendo emergir múltiplas questões, tanto de cunho privado como aquelas de caráter público: Deve-se ou não utilizar células-tronco ou tecidos embrionários? Deve-se produzir e consumir alimentos transgênicos? Em que medida a biotecnologia pode servir a projetos eugênicos? Como ou quem regula a fertilização assistida produzida na esfera das vidas privadas, mas que ganha hoje contornos de massificação? É lícita a utilização de células-tronco como uma promessa de cura no próprio corpo para as diversas doenças crônicas e degenerativas, sem garantias de que a reprogramação das células embrionárias trará mais benefícios do que danos para os pacientes atuais e os das gerações futuras? A biotecnologia e sua vasta utilização constituem-se assim numa questão não apenas da esfera individual humana, mas também como uma questão pública e de saúde coletiva.

No âmbito da sociedade tecnológica atual, a virtualização não pode ser reduzida a um processo de desmaterialização, sendo que é a passagem de uma solução pontual a uma problemática coletiva, no qual seus limites jamais estarão definitivamente traçados (LÉVY,_2009). Logo, a virtualização é um processo do devir social no qual o corpo contemporâneo sai de si mesmo e adquire novas velocidades, espaços e tempos, isto é, um corpo desterritorializado e projetado ao longo do tempo, em que a corporeidade individual pretende-se ao corpo público e coletivo, para retornar em seguida a si mesmo, transformado biossocialmente; nesse sentido, pode-se abordar a virtualização como um processo dialético e recursivo da natureza da vida humana, com os seus devires contraditórios de reprodução biopsicossocial.

No âmbito das práticas biotecnológicas, essas barreiras encontram-se dialeticamente rompidas e moldadas simbioticamente, e, por isso, os princípios de autonomia, universalidade e equidade perdem e ganham novos significados e contornos. Se autonomia, em sentido estrito, é a faculdade de governar-se, como isso deve ocorrer em um mundo cada vez mais virtualizado? Como governar-se sob terapêuticas, riscos e estilos de vida? a despeito dos princípios de universalidade e equidade entram nesse contexto em colapso, merecendo uma atenção sistêmica e integralizada, pois essas práticas constituem e se realizam em um mundo tecnológico e virtualizado, promovendo consigo, para além de sua eficácia, a universalização dos seus efeitos deteriorantes ou benéficos nos sujeitos e em suas coletividades, que as mesmas se concretizam e se atualizam na esfera do coletivo, impactando o social (IANNI,_2007).

O caráter universal dessas práticas põe também em questão os pilares da equidade, pois, se esta é a disponibilização justa e razoável de recursos conforme as necessidades de cada coletividade, como implementá-la face aos vulneráveis e às fragilidades da vida. O que é equidade quando o corpo biossocial se atualiza e reemerge mediante sua existência na vida coletiva e social, sujeito a uma rede de intervenções tecnológicas em um mundo virtualizado. Discutir o que produzir quem deve e pode fazê-lo, quem deve e pode consumir, e quando introduzir ou erradicar novos processos e produtos, é mais do que um direito subjetivo em nossa sociedade é uma necessidade potencializada na vida social de todos os sujeitos coletivos (IANNI,_2007).

Outra questão concerne à avaliação daquilo que se pretende fornecer aos sujeitos-usuários, no campo sanitário, significa verificar a efetividade das tecnologias incorporadas pelo setor saúde, avaliando as mudanças ocorridas no estado de saúde dos sujeitos e da qualidade da atenção prestada aos mesmos, que depende em boa parte da eficiência de alocação de recursos frente à demanda em potencial da saúde pública. Essa questão diz respeito, num primeiro momento, à diretriz pragmática da melhor relação entre os custos, meios e fins, mas refere-se também aos princípios morais de não maleficência e de beneficência, visto que uma relação não eficaz entre os custos, meios, fins e benefícios acaba impactando de modo negativo a saúde dos sujeitos e das suas coletividades como um todo. De maneira geral, boa parte das tecnologias médicas tem sido útil para a saúde pública, estando os imunobiológicos e as vacinas entre os melhores exemplos de efetividade e de alcance das metas traçadas, porém, os interesses das indústrias de fármacos e equipamentos direcionam, todavia, os rumos da inovação tecnológica, como a prática médica especializada (ESCOSTEGUY;_SCHRAMM, 2000).

Outro aspecto moralmente relevante diz respeito à avaliação da prática de introduzir inovações tecnológicas antes de serem efetivamente avaliadas, pois a incorporação de novas tecnologias sem a prudência necessária, além de não relevar os riscos em potencial para a saúde individual e coletiva, ao sobrecarregar o setor saúde de custos moralmente contestáveis, torna mais difícil a retirada a posteriori daquelas que não se mostrarem efetivas ou sem a relação meios-custos-fins de forma otimizada; isto é, incorporação inapropriada das tecnologias inovadoras, sem a devida precaução com os critérios de eficácia, eficiência, segurança sanitária e alocação equitativa de recursos, como com os impactos indesejáveis gerados na saúde dos sujeitos e em suas coletividades ao longo do tempo (ESCOSTEGUY;_SCHRAMM,_2000).

Esses mesmos autores ressaltam ainda que a hegemonia do paradigma tecnobiocientífico que induz à incorporação tecnológica e da cultura dos limites da gestão tecnocrata, que seleciona e direciona as tecnologias em saúde, vem se constituindo num grande desafio aos sistemas sanitários atuais, suscitando debates éticos e políticos sobre as escolhas a serem feitas, em face das prioridades de saúde pública das coletividades em geral. a avaliação tecnológica, que diz respeito à análise das consequências dos cuidados em saúde e de suas políticas públicas, vem apresentando interfaces com a bioética da proteção que possibilita uma abordagem mais compreensiva da efetividade das tecnologias inovadoras no âmbito da saúde pública, inclusive, porque visa integrar o problema, moral e politicamente relevante, da equidade na alocação e na distribuição dos recursos disponíveis, que, sem dúvida, constitui um dos dilemas mais complexos enfrentados tanto pela bioética pública quanto pela saúde das coletividades nos meios biotecnocientíficos e da cultura de gestão tecnocrata com seu poder hegemônico reducionista.

As implicações éticas da avaliação tecnológica são reconhecidas e legitimadas pelos atores sociais da saúde coletiva, incluindo aquelas relativas aos ensaios clínicos para aferir a sua eficácia, à avaliação da boa ou da duvidosa prática médica, à forma de incorporar as novas tecnologias e à sua efetividade, como ao acesso e à alocação equitativa dos recursos disponíveis; logo a incorporação da bioética da proteção na avaliação tecnológica possibilita uma melhor compreensão das práticas de saúde e um progresso em direção ao seu aprimoramento frente às prioridades e às necessidades reais dos sujeitos e de suas coletividades (ESCOSTEGUY;_SCHRAMM,_2000).

Hoje em dia no contexto da gestão do SUS, vem se tornando cada vez mais necessário regular a incorporação tecnológica nos serviços de saúde, tanto no que diz respeito aos produtos e tecnologias médicas em geral, como em relação aos protocolos, processos de trabalho e às esferas de gestão; seja para reduzir os efeitos negativos do mercado quanto à oferta para atenção à saúde dos sujeitos, ou seja, para orientar as prioridades tecnológicas de inovação e seus impactos sobre a economia da saúde, ou ainda para gerenciar as implicações éticas e sociais engendradas pelo consumo das inovações tecnológicas, e que tais competências regulatórias exigem, por sua vez, uma tomada de decisão colegiada.

O papel do Ministério da Saúde é central no processo de incorporação tecnológica no SUS, na medida em que é a instância maior que possui a atribuição de fortalecer a PNCT, e inserido nela o estabelecimento de metas, não se atendo somente com prioridades do desenvolvimento tecnológico, mas também aos modos como se a sua incorporação. Essa atuação deve abranger, para além do SUS, os setores privados que prestam serviços no sistema supletivo de saúde, sendo que esses prestadores exercem papel de destaque na incorporação acrítica das inovações de alta densidade tecnológica, como o CIS influencia intensamente toda essa incorporação nas relações que se dão entre as empresas, os prestadores e os profissionais da saúde.

Faz-se necessário lembrar que nosso País possui ainda pouco controle sobre este processo de destinação e utilização de novas tecnologias, mesmo considerando as recentes iniciativas do Ministério da Saúde é relativamente improvável que elas possam exercer, todavia, uma influência decisiva na regulação dessas atividades que se dão no CIS, dado que a lógica da incorporação de muitos produtos de alta complexidade não adentra pelo SUS, como se no caso das terapêuticas biotecnológicas. Para os gestores, o desenvolvimento tecnológico e a incorporação de inovações se conformam cada vez mais em uma preocupação permanente, pois cresce a demanda por políticas de inovações e de transferência das mesmas em sintonia com as diretrizes do SUS (VIANA;_SILVA;_ELIAS,_2007).

A incorporação de C&T regulada contribui tanto para a resolução dos problemas de saúde e melhoria da qualidade da assistência como para a implementação de políticas públicas intersetoriais, agregando capacidade resolutiva ao setor da saúde. Não sendo possível desvincular a incorporação tecnológica em saúde dos processos sociopolíticos mais amplos, onde a complexidade da gestão em saúde refere-se, de um lado, aos aspectos operacionais da pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico, e de outro lado, aos aspectos estruturais e fomentadores das políticas socioeconômicas vigentes no País, sendo relevante considerar os aspectos territoriais, epidemiológicos e culturais da área onde se atua, e, principalmente, as condições de vida e saúde da população em geral (MONTEIRO_ET AL.,_2007).

no âmbito da judicialização da saúde verificou-se a partir de 1990, um aumento progressivo dos mandatos judiciais relativos ao direito social à saúde, onde o Judiciário e o Ministério Público revelaram contradições no âmbito normativo do SUS, como problemas de gestão em saúde pública, não equacionados pelas políticas vigentes, questionando a atuação do Executivo e criando novas demandas, visando assegurar o acesso às tecnologias inovadoras em saúde para a recuperação e a reabilitação dos sujeitos acometidos por uma doença ou agravo em particular; recolocando a questão do direito à saúde na pauta dos debates para a sua efetivação na perspectiva dos princípios e diretrizes do SUS (BAPTISTA;_MACHADO;_LIMA,_2009).

A judicialização da saúde expõe desafios e possibilidades institucionais para o Estado e a sociedade civil organizada, induzindo a geração de respostas efetivas pelos agentes do setor saúde e do sistema judiciário nacional, onde a intervenção judicial no âmbito da gestão em saúde tem sido alvo de intensos debates, ganhando destaque no Supremo Tribunal Federal por meio da realização de audiências, possibilitando o debate intersetorial entre os atores envolvidos. Entre os argumentos destacam-se os que defendem a necessidade de um equilíbrio entre a salvaguarda dos indivíduos e a dos interesses coletivos, de superar burocracias que atrasam registros de medicamentos e mantêm desatualizadas diretrizes clínicas e consensos terapêuticos, ou ainda, a necessidade de se pactuar a competência jurídico-regulatória entre os entes federativos, acolhendo a participação e o controle social em todo o processo de debate de questões tão complexas, devendo este ser retomado sempre em arena pública sob o olhar atento da sociedade (SCHEFFER,_2009).

também ponderações sobre os efeitos negativos desse fenômeno sob três principais pontos de vista: o primeiro aponta para o deferimento absoluto das petições judiciais que, ao seu tempo, podem aprofundar as iniquidades de acesso ao SUS, uma vez que favorece aos que têm maiores possibilidades de veicular sua demanda judicialmente em detrimento dos que não possuem acesso viável e ágil à justiça, colocando em risco o princípio da igualdade, em que os mesmos recorrentes ao Judiciário podem ser mais beneficiados ainda do que os que adentram no SUS espontaneamente, além de estar atendendo a possíveis demandas das indústrias de medicamentos (PEPE_ET_AL.,_2010).

o segundo efeito negativo da judicialização da saúde refere-se às dificuldades presentes na gestão da assistência farmacêutica, uma vez que a ágil resposta às demandas judiciais não previstas no planejamento dos serviços faz com que os mesmos criem uma estrutura adicional para o seu controle, utilizando-se de procedimentos de compra não usuais na gestão pública, tendo mais custos na aquisição de fármacos, equipamentos e materiais médicos diversos; o terceiro diz respeito à segurança do paciente em razão de possíveis prescrições inadequadas de novos medicamentos ou de indicações terapêuticas, onde as evidências científicas não foram ainda bem estabelecidas no âmbito do SUS. Tais fatos favorecem a introdução de novas tecnologias de forma acrítica e, por vezes, sob forte influência das indústrias farmacêuticas, onde parte dessas inovações não representa real ganho de eficiência terapêutica, mas podem, inclusive, causar eventos adversos à saúde, logo o uso de medicamentos sem registro sanitário ou fora das indicações para as quais foram registrados, pode significar também riscos e danos à saúde (PEPE_ET_AL., 2010).

Quanto aos contornos jurídicos da integralidade da atenção à saúde deve se pautar por normas técnico-científicas, pela adoção de condutas terapêuticas e de protocolos farmacológicos, como por critérios epidemiológicos na definição de políticas da saúde, e em limites para a incorporação de novas tecnologias crescentes e onerosas, voltadas muito mais para o capital do que para o bem- estar do cidadão, isto por si poderá esgotar com o decorrer do tempo os recursos da saúde pública do País; é necessário então ter critérios técnico- científicos e epidemiológicos atualizados para embasar a incorporação dessas ou daquela tecnologia, desses ou daquele medicamento ou tratamento.

Por sua vez, compete ao Judiciário coibir as omissões das autoridades públicas no setor saúde, não deixando nunca de averiguar se estão sendo aplicados os recursos financeiros de acordo com os percentuais mínimos constitucionais, se a execução dos serviços se alicerça em critérios técnicos, científicos e epidemiológicos, e se mantêm as unidades de saúde abastecidas de todos os fármacos da relação nacional de medicamentos essenciais. Esses fatos qualificam o SUS, inibindo as omissões das autoridades públicas e interesses corporativos passíveis de implodir o sistema de saúde nacional que deve ser solidário e cooperativo por excelência (SANTOS,_2009).

As políticas de saúde destinam-se a racionalizar as prestações coletivas do Estado com base nas reais necessidades da população, de forma a promover a tão aclamada justiça distributiva equitativa inerente à realidade epistêmica dos direitos sociais. Nesse sentido, Marques_e_Dallari_(2007) sustentam que as políticas públicas devem ser conhecidas pelo Poder Judiciário ao garantir efetivamente o direito à saúde nos casos concretos submetidos à sua apreciação, pois desse modo seria possível conjugar os interesses dos sujeitos com os das coletividades, formalizados mediante políticas públicas de Estado. Como o Poder Judiciário atua sob a perspectiva da justiça comutativa e sob o âmbito da microjustiça do caso concreto, julgando direitos e deveres mútuos entre ambas as partes, o desafio de incorporar a política pública de saúde em suas decisões, revela-se proeminente compatibilizar a justiça comutativa com a justiça distributiva equitativa, representada pela decisão colegiada, formalizada por meio de atos normativos compondo as políticas de assistência integral à saúde, emanados dos poderes Legislativo e Executivo do Estado.

Revela-se assim premente, como ressalta Marques_(2008), que os juízes, promotores, gestores, sanitaristas, acadêmicos e a sociedade civil organizada, entre outros envolvidos nessa problemática, continuem debatendo de forma abrangente o problema em questão e proponham soluções pactuadas para minimizar o conflito sociopolítico evidenciado. Porém, é dentro de cada instrução processual que devem ser traçados os rumos da atuação judicial por parte dos atores que a compõe, como é no âmbito de cada processo que devem ser postos os meios à disposição dos juízes, capazes de balizar a sua decisão, e também, é em cada lócus do processo judicial que o direito subjetivo à saúde deve ser confrontado com o direto coletivo e com as políticas de saúde, por meio dos autos processuais e dos saberes técnico-sanitários necessários para discutir cada caso concreto.

Sendo necessário, pois, que o Poder Judiciário avance em relação à incorporação da dimensão sociopolítica que compõe o direito à saúde, é necessário também que os gestores públicos avancem em direção à implementação de políticas da saúde no contexto do País como um todo, e em relação à organização gerencial e tecnológica na prestação de serviços da saúde, que em boa parte das vezes deixam os cidadãos sem a devida assistência integral à saúde, como sem os espaços adequados para o controle social da gestão de saúde, sem um meio comunicativo capaz de escutar e processar as diferentes demandas dos sujeitos e das suas coletividades, e também sem as informações claras a todos que necessitam de um medicamento ou tratamento; este é um cenário que frequentemente não confere ao cidadão alternativas senão buscar a tutela jurisdicional para ver garantido o seu direito à saúde (MARQUES,_2008).

Por sua vez, Machado_(2008) contribui para o debate a partir de uma reflexão sobre a atuação da sociedade, buscando na justiça a concretização do seu direito à saúde até então não garantido na prática, e o que se entende exatamente por judicialização da saúde; o autor parte da constatação de que o direito à saúde, embora garantido de forma universal e integral pela CF-1988 em seu Artigo 196, não é assegurado plenamente no cotidiano dos serviços de saúde pública do País, apontando que o SUS, apesar de ser uma política consistente, com inegáveis avanços, não consegue ofertar a todos os cidadãos que necessitam de assistência à saúde, o acesso igualitário e os cuidados integrais e equitativos preconizados na Constituição. Após discorrer sobre as várias concepções de judicialização da saúde, o autor destaca duas tendências conceituais: uma que no ativismo político do Judiciário um viés emancipatório para o exercício pleno da cidadania, e outra que atribui a este fenômeno uma forma de ampliação e aprimoramento da própria cidadania.

O que se observa no campo da saúde pública brasileira é a coexistência dessas duas tendências para subsidiar ambos os argumentos. O que está em jogo é justamente o efeito dual da diversidade epistêmica do fenômeno de judicialização da saúde, como um modo de emancipação dos sujeitos e de suas coletividades tanto no âmbito institucional do Estado Democrático de Direitos, quanto no contexto do cotidiano sociopolítico dos sujeitos por meio do devir de sua cidadania plena e coletiva, de tal modo que, nas relações democráticas de poder como uma práxis do saber agir intersubjetivo, todos tenham o mesmo direito de ver as suas necessidades representadas, como de emanciparem-se no contexto do Estado Democrático de Direitos (MACHADO,_2008; ARREAZA,_2014).

Todavia, como salienta Machado_(2008), o aporte teórico tem o mérito de lançar luz sobre essas duas tendências reais e possíveis do fenômeno de judicialização da saúde, nesse sentido, as teorias sobre a expansão do Poder Judiciário se mostram bastantes frutíferas na geração de questões relevantes ao debate sobre a necessidade de uma cidadania plena e coletiva no contexto do Estado Democrático de Direitos. Lembra-se ainda que somente estudos empíricos em saúde coletiva seriam capazes de descortinar os rumos concretos que a judicialização da saúde tem tomado, uma vez que ela é condicionada por fatores extrajudiciais, como o grau de desigualdades sociais e de iniquidades em saúde, o nível de escolaridade e de recursos econômicos, e de mobilização política dos sujeitos demandantes de ações judiciais; e do seu patamar de emancipação sociopolítica em contextos de violações e injustiças sociais de forças neoliberais do capitalismo tardio, que obstruem o alcance de novos patamares de reconhecimento ético-moral entre os sujeitos da vida coletiva, democrática e equitativa (ARREAZA,_2014).

Uma temática importante refere-se ao marketing comercial e/ou lobby exercido pelas indústrias farmacêuticas junto a setores sociais e de governo na incorporação dos seus produtos tecnológicos, podendo induzir a demanda judicial para a incorporação de novas tecnologias, como pela intensiva dependência externa das indústrias farmacêuticas nacionais, tanto no desenvolvimento de pesquisas científico-tecnológicas, quanto em relação aos custos da incorporação de tecnologias inovadoras no setor da saúde do País. Logo, o acesso equitativo à saúde e os efeitos de judicialização da saúde se relacionam às questões de alocação de recursos públicos para pesquisa e assistência, de uso das inovações de saúde, e aos problemas relativos à propriedade intelectual e às patentes em C&T, além da necessidade de um padrão de assistência para a incorporação tecnológica na atenção à saúde, que conduzam à equidade e à integralidade das ações e dos serviços, tornando a assistência farmacêutica mais efetiva e articulada (VENTURA_ET_AL.,_2010).

Tem-se assinalado que o objeto da ação judicial por vezes inclui medicamentos de competência obrigatória do Estado e registrados pelo Ministério da Saúde, como os de assistência farmacêutica básica, os estratégicos no controle de doenças e agravos, os de uso raro e de indicação terapêutica excepcional.

Mostrando que a ampliação da atuação judiciária em demandas de saúde, ao menos em parte, decorre das insuficiências da própria gestão pública, podendo até ter um desfecho benéfico na responsabilização do Estado em desenvolver práticas mais adequadas de incorporação, aquisição e alocação de tecnologias terapêuticas pela rede pública. Porém, corre-se o risco de a via judicial tornar-se o principal meio para garantir o acesso ao medicamento demandado, e assim causar prejuízos à efetividade do direito à saúde, com a violação dos princípios ético-morais legitimados, como o acesso igualitário e cuidados equitativos, e também a integridade biopsicossocial dos sujeitos, o que é contraditório que a saúde é um direito social de cidadania (BAPTISTA; MACHADO;_LIMA,_2009).

A intervenção judicial sem a devida e cuidadosa compreensão crítica das demandas de saúde tem-se limitado a determinar o cumprimento à prestação requerida por parte dos sujeitos de direito, respaldados por prescrição médica e conduta terapêutica descrita conforme os saberes médicos para os casos em particular; porém, o insumo ou procedimento requerido nem sempre é preconizado nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas estabelecidas pelo SUS, ou tampouco está incluído nas listas de medicamentos financiados pelos sistemas de saúde. Tal posicionamento do Judiciário tem resultado numa forte tensão e intensiva discussão sobre a legitimidade sociopolítica e a competência técnico- sanitária do poder judicial para decidir sobre o conteúdo e o modo como a prestação deve ser cumprida e exercida pelos gestores e profissionais do SUS.

Em princípio, esta deliberação é de competência das secretarias de saúde em conjunto com as instâncias deliberativas regionalizadas do SUS, considerando implicações orçamentárias e sanitárias que envolvem a incorporação de novas tecnologias na assistência à saúde dos sujeitos e coletividades, no âmbito dos princípios e diretrizes do SUS (VENTURA_ET_AL.,_2010).

Defende-se, pois, que a eficácia do direito à saúde necessita ser a mais ampla possível, devendo o Judiciário ponderar direitos e deveres, bens e serviços, ações e políticas, necessidades e interesses, para deliberar sobre o conteúdo e o modo como as prestações de saúde devem ser cumpridas pelo Estado na garantia do direito social à saúde dos sujeitos. Os juízes deveriam levar em conta, por exemplo, se as alternativas terapêuticas fornecidas pelo SUS podem atender as necessidades dos sujeitos sem prejuízos para o seu bem-estar, ou se a prescrição e a conduta terapêutica requerida, em face do que disponível no SUS, é o único meio efetivo para garantir a saúde desses demandantes de direitos. Essa postura deve ser um meio facilitador à própria redução da demanda judicial, uma vez que pode ser reduzida quando protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas são atualizadas com maior agilidade, e quando uma alocação programada de dado medicamento ou procedimento terapêutico tecnológico.

um descompasso entre oferta e demanda do cidadão no SUS, como um atraso na incorporação de inovações em saúde no sistema público brasileiro, que se expressa no contexto nacional sob uma crescente e onerosa demanda judicial para com os governos estaduais e municipais. Uma das principais polêmicas refere-se ao modo como uma sociedade democrática deve solucionar esse déficit entre a demanda e a oferta de novas tecnologias, relevando a escassez dos recursos públicos no setor saúde, as decisões contextualizadas e a sua justa alocação distributiva das tecnologias de saúde pública para os sujeitos mais vulneráveis frente às fragilidades da vida social (VENTURA_ET_AL.,2010).

Em relação à incorporação das inovações tecnológicas no SUS, constata-se não o frequente atraso, mas o fato de que se processa, por vezes, de forma acrítica, podendo comprometer não apenas a qualidade da prestação de serviços, como também a equidade na alocação dos recursos públicos. Destaca-se, ainda, que a incorporação de novas tecnologias na prática médica e nos sistemas de saúde deve levar em conta não os objetivos pragmáticos dos gestores na avaliação da eficácia e da eficiência das tecnologias inovadoras em saúde, mas também os saberes ético-morais da proteção e dos cuidados em saúde, otimizando direitos e benefícios como reduzindo iniquidades e malefícios, e preservando também autonomias e culturas distintas, como o acesso universal e igualitário aos bens e aos serviços públicos em potencial (ESCOSTEGUY;_SCHRAMM,_2000); que os poderes públicos reestruturem instâncias institucionais no atendimento às exigências políticas, éticas, legais, sanitárias e tecnocientíficas, como requerendo o processo regulatório das inovações tecnológicas em saúde, com ampla participação dos diversos atores sociais nesse processo, legitimando as restrições inequívocas e invariavelmente necessárias (VENTURA_ET_AL.,_2010).

O direito social à saúde dos cidadãos possui dimensões éticas, políticas, jurídicas, sócio-sanitárias, econômicas, culturais e biotecnocientíficos indissociáveis, onde a sua efetividade se inscreve a partir de um diálogo orientado por um enfoque hermenêutico crítico no plano da intersubjetividade, aliado ao enfrentamento de desafios tanto teóricos como práticos, no devir de novas instrumentalidades, para a sua concretização no cotidiano dos sujeitos da vida coletiva (AYRES,_2007). Compreender como vêm se dando os debates dentre essas interfaces na geração da base normativa que orienta leis, demandas, políticas e práticas de saúde é um passo relevante em prol da efetividade do direito social à saúde ou, pelo menos, para a ampliação do acesso à justiça e à saúde (VENTURA_et_al.,_2010); ou de toda sorte, para alcançar novos patamares de reconhecimento ético-moral entre esses cidadãos, e então emanciparem-se no âmbito do nosso Estado Democrático de Direitos (ARREAZA,_2014).

a despeito das intenções de arbitragem de problemas coletivos e da defesa dos interesses de sujeitos de direitos em face do poder de Estado, a intervenção do Judiciário no âmbito do direito subjetivo acaba por atender aos sujeitos que têm em média as melhores condições socioeconômicas de vida, residindo em áreas urbanas com baixa ou sem nenhuma vulnerabilidade social; e que por sua inclusão social, se encontram em posição privilegiada, reforçando ainda mais as iniquidades e as desigualdades no campo da saúde pública nacional. A interpretação do direito à saúde apenas na esfera individual, não se atendo à dimensão coletiva, não permite reconsiderar o problema em toda a sua complexidade, resultando em medidas que, em vez de promoverem a justiça social e o bem-estar comum, acabam por prolongar a enorme dívida social com a parcela mais vulnerável da população brasileira frente ao sistema de reprodução social capitalista (CHIEFFI;_BARATA,_2009).

Por fim, para efetivar progressivamente o direito social à saúde, nosso Estado deve aumentar os subsídios para medicamentos essenciais e intensificar a transparência e a eficiência do processo de adesão de novas condutas terapêuticas, as secretarias de saúde devem procurar compreender as causas e os efeitos das demandas judiciais para remediar eventuais falhas técnico- gerenciais. Ao invés de meramente responder a casos particulares, o Judiciário e o Executivo devem promover a saúde como um direito coletivo e assegurar o acesso universal a medicamentos que o Estado tem a competência legal de registrar, incorporar e fornecer com base nas melhores evidências disponíveis sobre a sua segurança e efetividade. Além disso, deve continuar inovando no acesso à atenção integral da saúde como direito de cidadania, consolidando um direito à saúde mais abrangente, que transcenda a medicamentos e demandas interpostas pelo Judiciário (BIEHL_ET_AL.,_2009).

Enfim, o aporte sociopolítico das tecnologias em saúde, como uma construção sociohistórica e cultural e como um bem público virtuoso potencializado, contribui reflexivamente para uma gestão democrática e sociopolítica das inovações tecnológicas de saúde em termos éticos, regulatórios e jurídicos, sob uma perspectiva normativa dos princípios e diretrizes do SUS real e possível.

Suporte financeiro: não houve


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