Condições dos treinamentos de ginastas brasileiras participantes de jogos
olímpicos (1980-2004)
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Introdução
O presente artigo aborda as condições de infraestrutura dos treinamentos em
ginástica artística feminina (GAF) durante a carreira desportiva das dez
ginastas brasileiras participantes de Jogos Olímpicos no período de 1980 a
2004. Ele é derivado de uma pesquisa mais ampla desenvolvida como tese de
doutorado "Ginástica Artística e História Oral: a formação desportiva de
ginastas brasileiras participantes de Jogos Olímpicos (1980-2004)" (SCHIAVON,
2009).
Tendo carência de estudos que abordem este assunto no Brasil, este artigo tem o
objetivo de registrar e analisar as condições de infraestrutura de treinamento
e fatos relativos a esse tema, a partir do relato das ginastas colaboradoras
desta pesquisa sobre suas carreiras desportivas, ou seja, tendo como ponto de
vista a visão das mesmas.
Entre os muitos aspectos que envolvem a preparação desportiva de ginastas de
alto rendimento desportivo, a questão da infraestrutura é um dos aspectos
importantes (DE BOSSCHER et al, 2009).
O sistema desportivo, segundo Digel (2002), depende de alguns recursos
necessários para se desenvolver: tradição olímpica ou condições históricas
específicas, base ideológica, interesse e participação nos desportos, estrutura
organizacional, estrutura de pessoal (funcionários e voluntários), finanças,
atletas, técnicos, identificação de talento, promoção de talento, treinamento,
competições, reuniões desportivas, sistema de prêmio para atletas, sistema de
prêmio para técnicos, seguro social para atletas, seguro social para técnicos,
luta contra o doping, prioridades e esquemas, tendências e aspectos específicos
de cada nação.
Digel (2002) estuda os sistemas desportivos de oito nações que se destacam em
diferentes desportos: Estados Unidos, Rússia, Alemanha, Itália, Austrália,
China e Reino Unido e verifica que entre essas potências mundiais desportivas,
apenas os Estados Unidos não possuem significativo envolvimento do Estado ou de
um sistema político desportivo, mas ao mesmo tempo possuem uma cultura de
estreita relação entre desportos e escolas.
Como exemplo do apoio e envolvimento significativos do Estado, temos o Reino
Unido, que após a classificação de 36º lugar nos JO de Barcelona, resolveu
investir fortemente na parte desportiva, contratando profissionais australianos
que já desenvolviam um modelo de sucesso em seu país (ENGLISH INSTITUTE OF
SPORT, 2008). O número de escolas de desporto tem crescido no Reino Unido, que
em setembro de 1997 eram onze, aumentaram para 67 no ano 2000, com previsão de
150 em 2004. Os especialistas dividiram o Reino Unido em sete regiões para ter
uma melhor administração dessa parte desportiva que tem sido apoiada
financeiramente por verbas vindas de jogos de loteria (DIGEL, 2002).
De acordo com o mesmo autor, a Rússia, apesar da diminuição do apoio financeiro
e a consequente diminuição da qualidade de suas escolas de desporto, possui um
forte sistema desportivo, ainda funcionando com o sucesso de grandes atletas.
Sua estrutura em 1999 era de 2113 escolas de desporto, com uma etapa posterior
de atletas chamada de Escola de desporto "Reserva Olímpica". Após esse nível
ainda há as escolas de desporto de alto rendimento e, finalmente, os centros de
atletas em condições de disputar vagas na seleção russa para JO.
Talvez esse sistema possa ser comparado somente ao da China atualmente, que tem
toda a sua estrutura desportiva apoiada no Estado (DIGEL, 2002).
Digel (2002) aponta que a China possuía, em 1998, 35 Institutos de técnica
desportiva, que são os principais no país, com 31000 atletas para 4071 técnicos
nestes centros. Além disso, havia mais 3800 escolas de desporto com quatro
níveis diferentes.
Mais especificamente abordando a infraestrutura de ginásios de ginástica
artística (GA), diversos autores (STILL, 1993; SMOLEUSKIY, GAVERDOUSKIY, 1996;
ARKAEV; SUCHILIN, 2004) ressaltam a importância de aparelhagem e materiais
adequados, devido à segurança dos ginastas em uma modalidade que envolve riscos
de acidentes pela sua característica própria de inverter o corpo e realizar
acrobacias e movimentos diferentes do cotidiano. Still (1993) considera que um
ginásio de GA deve ter toda a aparelhagem preparada para o uso e com todas as
condições de segurança, enfatizando que entre os fatores estruturais que podem
causar algum prejuízo para um ginasta estão: o edifício ou espaço do ginásio, a
aparelhagem específica da modalidade e outros equipamentos auxiliares no local.
Arkaev e Suchilin (2004) destacam também a utilização de aparelhagens
reconhecidas pela Federação Internacional de Ginástica, por possuírem
tecnologias desenvolvidas para absorção de impacto e diminuição de lesões nos
ginastas.
Segundo Bortoleto (2004), o governo da Espanha vem progressivamente investindo
em instalações desportivas, pois em 1968 cria um "Plano Ideal de Instalações
Desportivas" e em 1978, o Conselho Superior de Desporto, complementando o plano
anterior, disserta sobre a necessidade da construção de Centros de Alto
Rendimento (CAR), Centros de iniciação técnico desportiva (CITD) e centros de
promoção técnico desportiva (CPTD), efetivados na década de 80. Os resultados
destes investimentos foram nítidos, assim como o autor ressalta: "esforço
recompensado durante as olimpíadas de Barcelona com a melhor participação da
equipe espanhola de todos os tempos em um evento desta natureza" (p.317).
O Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016 em documento
que elenca os requerimentos gerais e técnicos mínimos necessários para que uma
instalação esportiva possa atender às expectativas de demandas dos atletas,
expõe os equipamentos necessários para adequado desenvolvimento da modalidade
de GAF:
Um conjunto completo de equipamentos para Ginástica Artística
Feminina (todos os equipamentos devem estar de acordo com as
especificações da Federação InternacionaI de Ginástica), sala de
treinamento de força completa, sala para os serviços de fisioterapia
e massagem, facilidade de fornecimento de gelo nas áreas de
fisioterapia e massagem (máquina de gelo), pequena sala de
conferência com equipamento multimídia (para filmagem e projeção),
vestiários próximos à área de treinamento, com chuveiros e área seca,
sanitários próximos à área de treinamento (RIO2016, 2011, p.30).
No Brasil, as instituições desportivas que organizam a GA nos estados e
nacionalmente não têm demonstrado e realizado um efetivo sistema que organize e
coordene a atuação dos técnicos ou ofereça condições mínimas de infraestrutura
para a prática da modalidade em diferentes regiões do país.
Mais recentemente em 1999 foi instalado em Curitiba-PR, sede da Confederação
Brasileira de Ginástica (CBG) naquele momento, e local onde a seleção
brasileira de GAF treinou em regime de internato desde 1999 até os Jogos
Olímpicos de 2008, o Centro de Excelência de Ginástica. Segundo Carvalho
(2007):
Com uma infraestrutura altamente desenvolvida, encontra-se o Centro
de Excelência de Ginástica, o qual conta com equipamentos oficiais e
auxiliares distribuídos em dois ginásios de sessenta por trinta e
seis metros cada qual, e uma equipe multidisciplinar formada por
treinadores especialistas nacionais e internacionais, médicos,
fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas, coreógrafos e
coordenadores que gerenciam as demandas das seleções permanentes de
GA (p.25).
Em relação às condições de infraestrutura no Brasil, durante a carreira
desportiva das ginastas foi possível revelar a partir da visão das mesmas, que,
todas, independente da geração a que pertenceram, passaram em algum momento por
condições que não eram as ideais, muitas vezes podendo ser consideradas
condições precárias de treinamento, se comparadas às condições do Centro de
Treinamento de Curitiba, chamado de Centro de Excelência, que segundo Carvalho
(2007) e Vieira e Freitas (2007 apud NUNOMURA; OLIVEIRA, 2012) possui uma
infraestrutura de alto nível.
Método
Para o desenvolvimento desta pesquisa qualitativa foi utilizado o método de
História Oral (MEIHY, 2005; SIMSON, 1988; THOMPSON, 1992). O método utilizado
baseia-se na possibilidade de receber informações de pessoas que participaram
desses importantes períodos da Ginástica Artística Feminina (GAF) no Brasil,
reconstruindo o processo de formação de ginastas (QUEIROZ, 1988). Segundo
Queiroz (1988, p.19):
História oral é um termo amplo que recobre uma quantidade de relatos
a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação ou
cuja documentação se quer completar. Colhida por meio de entrevistas
de variada forma, ela registra a experiência de um só individuo ou de
diversos indivíduos de uma mesma coletividade. Neste último caso
busca-se a convergência de relatos sobre um mesmo acontecimento ou
sobre um período do tempo.
Recorreu-se à utilização desse método, principalmente por não haver registros
disponíveis sobre a formação desportiva destas ginastas por meio de documentos
ou de outras pesquisas publicadas, além disso, é possível a partir do referido
método o levantamento de informações detalhadas referente aos acontecimentos
vividos na carreira desportiva de cada uma das ginastas que de outra forma
poderiam ter passado despercebidas.
Portelli (1997) ressalta que o diferencial da utilização deste método é a
"subjetividade do expositor" e comenta posteriormente: "fontes orais contam-nos
não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar
fazendo e o que agora pensa que fez" (p.31). Laville e Dionne (1999) corroboram
esta afirmação:
Uma maneira conhecida e comprovada, própria das ciências humanas, de
obter informação, consiste em colher os depoimentos de pessoas que
detêm essa informação. O recurso a esses depoimentos permite a
exploração dos conhecimentos das pessoas, mas também de suas
representações, crenças, valores, opiniões, sentimentos, esperanças,
desejos, projetos, etc. (p, 183).
Entre as várias técnicas de desenvolvimento do método de História Oral, o
"depoimento oral" foi utilizado nesta pesquisa. No depoimento oral, o
pesquisador propõe um tema para organizar o relato de vida das pessoas que
serão estudadas (QUEIROZ, 1988, p.21). A pesquisa, de forma mais ampla, está
focalizada em um determinado tema, a "história de vida esportiva" destas
ginastas, e mais especificamente neste artigo, o tema discorrido, gerado a
partir dos depoimentos é "estrutura física dos lugares que desenvolveram seus
treinamentos".
Participaram da pesquisa dez ginastas, apresentadas a seguir em ordem
cronológica de participação em Jogos Olímpicos: Cláudia Magalhães (1980),
Tatiana Figueiredo (1984), Luisa Parente (1988 e 1992), Soraya Carvalho (1996),
Daniele Hypólito (2000, 2004 e 2008), Camila Comin (2000 e 2004), Ana Paula
Rodrigues (2004), Caroline Molinari (2004), Daiane dos Santos (2004 e 2008) e
Laís Souza (2004 e 2008)2. O critério estabelecido para determinar o universo
da pesquisa foi: ginastas brasileiras participantes (ou classificadas) dos
Jogos Olímpicos, na modalidade de Ginástica Artística Feminina até o ano de
2004.
Segundo Queiroz (1988), as entrevistas, no caso de depoimentos orais, são
diretamente dirigidas pelo pesquisador, e foram utilizadas entrevistas não
estruturadas:
na qual o entrevistador apoia-se em um ou vários temas e talvez em
algumas perguntas iniciais, previstas antecipadamente, para
improvisar em seguida suas outras perguntas em função de suas
intenções e das respostas obtidas de seu interlocutor". (LAVILLE;
DIONNE, 1999, p.190).
O primeiro momento da entrevista é feito de forma bastante livre, a partir de
um tema amplo, que nesta pesquisa foi a história desportiva de cada ginasta
(SIMSON, 2006). Num segundo momento, o pesquisador levanta temas geradores,
direcionando para assuntos relevantes da história desportiva do colaborador,
com o propósito de aprofundar mais sobre determinados assuntos e lembrá-lo de
fatos que, muitas vezes, o próprio atleta não valoriza como parte de sua
história pessoal, ou não se aprofundou o suficiente ao falar livremente, ou
seja, assuntos que interessam à pesquisa. Para este momento da entrevista há um
roteiro, elaborado com foco em momentos de destaque da formação desportiva
destas ginastas, sendo no caso deste artigo, o tema gerador "estrutura física
dos lugares que desenvolveram seus treinamentos".
Os depoimentos transcritos foram classificados em unidades de análise, ou seja,
"recortes que agrupam em função de sua significação, que cumpre que esses sejam
portadores de sentido em relação ao material analisado e às intenções da
pesquisa" (LAVILLE; DIONNE, 1999, p.216). A cada unidade de análise foram
agrupados os relatos que as atletas proporcionavam sobre esse mesmo tema, sendo
neste artigo apresentada a unidade de análise: condições de infraestrutura dos
treinamentos.
As transcrições de cada entrevista estão disponibilizadas no Laboratório de
História Oral (LAHO) do Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).
Esta pesquisa foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética em pesquisa da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas em 27 de
março de 2007, tendo o número de parecer: 136/2007.
Análise cruzada dos dados
Entre as formas que a história oral pode ser construída a análise cruzada foi a
técnica utilizada nesta pesquisa (THOMPSON, 2002).
Na análise cruzada "a evidência oral é tratada como fonte de informações a
partir da qual se organiza um texto expositivo" (THOMPSON, 2002, p.304). Sempre
que o objetivo primordial passe a ser a análise e não a apresentação de
histórias de vida integrais, "a forma global já não pode ser orientada pela
história de vida como forma de evidência, mas deve emergir da lógica interna da
exposição" (THOMPSON, 2002, p.304). Em geral, comparando a evidência de uma
entrevista com a de outra, e associada à evidência proveniente de outras
fontes, sempre que possível (THOMPSON, 2002).
A análise da pesquisa foi realizada a partir dos dados coletados pela pesquisa
de campo nos depoimentos das colaboradoras por temas, as unidades de análise,
neste caso, as condições de infraestrutura de treinamento das ginastas.
Posteriormente, as informações de cada ginasta foram cruzadas para ser possível
estabelecer relações entre elas e, a partir disso, confrontá-las, destacando e
refletindo sobre as diferenças e, principalmente, as semelhanças nas condições
de infraestrutura na preparação desportiva das ginastas colaboradoras desta
pesquisa (THOMPSON, 2002; SIMSON, 2006).
A partir disso foi feita a análise comparativa e discussão dos dados dos
depoimentos, utilizando-se do embasamento proveniente das informações
levantadas na literatura estudada, discordando, confirmando, ou mesmo
oferecendo colaborações com novas abordagens, a principal contribuição da
História Oral ao trazer informações que não constem em registros oficiais ou
mesmo discordando dos registros existentes, como uma evidência nova, que pode
indicar o caminho para uma nova interpretação (THOMPSON, 2002).
Para a comparação entre as colaboradoras deste estudo, as mesmas foram
agrupadas por semelhanças de suas histórias como um todo, característica
inerente à história oral como forma de avaliação da coerência dos depoimentos
(THOMPSON, 2002). Deste modo, emergiram três grupos distintos (Quadro_1) e em
seguida a análise foi realizada também segundo este agrupamento.
Apresentação da análise cruzada 3
Com o aperfeiçoamento da estrutura da seleção brasileira de GAF nos últimos dez
anos, mencionada anteriormente, quanto mais contemporâneas as ginastas, de
acordo com o depoimento das ginastas, menos tempo permaneceram em situações não
adequadas de treinamento, mas todas, em algum momento de suas carreiras
desportivas, passaram por condições não adequadas de treinamento. Essa
comparação de condições tem como base os preceitos apresentados anteriormente
pela Organização dos Jogos Olímpicos de 2016, que relata como condição mínima,
possuir os aparelhos oficiais da modalidade regulamentados pela FIG (RIO2016,
2011).
De acordo com as ginastas pioneiras, as três relatam terem vivido situações com
dificuldades básicas de aparelhagem até mesmo quando estavam se preparando para
Campeonatos Mundiais (CM) e Jogos Olímpicos (JO). Uma das ginastas deste grupo
expõe que não tinha tablado4 para o treinamento da prova de Solo na sua
preparação para os JO de Seul (1988):
Tinha uma época que a gente não tinha tablado ainda e treinava só
"marcando"5 a série. De tanto treinar assim, na hora da competição eu
"marquei" a série também (risos). Foi no estadual. O arbitro viu
quando terminei a "marcação da acrobacia" correndo, olhei para um
lado, olhei para o outro e fiquei parada. Depois deixaram eu
recomeçar. Interessante...
E depois até Seul não tinha tablado para treinar. Então eu treinava coreografia
na sala de balé e treinava aquela série vai e vem de pista de Solo (sem
tablado). Então era uma época ainda sem apoio, sem condições ideais de
treinamento.
Outra ginasta do mesmo grupo também comenta sobre a falta de condições
adequadas no Brasil nas décadas de 70 e 80:
Em relação aos aparelhos, no Tijuca Tênis Clube não tinha tablado.
Era só uma passadeira de sarneige. Eram duas camadas de sarneiges
para amortecer. A gente colocava, aquele esquema de por a prancha
(trampolim) no final da passadeira (risos). Marcava para chegar com o
pé lá no final na prancha e cair no colchão fofo. Para conseguir
saltar mais. Fazia só as diagonais e o resto era no chão. Para dar
para marcar alguma coisa. Tablado só quando fui para os Estados
Unidos. Não, no CEFAM tinha tablado também. Depois nos Estados Unidos
e no Flamengo também tinha depois quando voltei dos Estados Unidos.
Mas mesmo assim no Flamengo na época não era um tablado de boa
condição, boa qualidade, então a gente mesmo assim fazia as diagonais
com colchões extras. Nos EUA não. Lá era fantástico!
Atualmente, o Clube de Regatas do Flamengo, onde treinam Daniele Hypólito e
Jade Barbosa6, apresenta boas condições de treinamento, que se aproximam às
requeridas pelo comitê organizador dos JO - RIO2016, e continua a formar
ginastas de destaque em todas as categorias, mas as condições de infraestrutura
nem sempre foram como as atuais:
Em relação a apoios recebidos, sempre foi duro. A gente treinava em
condições péssimas. E era a melhor condição do Brasil, mas era
péssima. O que nos revoltava, acho que mais era porque a gente sabia
que estava muito aquém da condição ideal, porque a gente já tinha
viajado. Então até eu viajar pela primeira vez (risos), aqui era
maravilhoso, realmente.
Aqui no Flamengo, o ginásio tinha um tablado da Copa do Mundo de 76.
Sei lá. [...] Então era um tablado que nas pontas, cada placa já não
se encontrava mais, cheio de buracos. Porque fora isso, antes era
pista. Então não dava para fazer solo neste tablado. A gente fazia um
"x" depois deste tempo, um "x" com sarneiges, para poder fazer ali.
Nossa uma loucura! Aí tinha o fosso7. Depois de um tempo o Flamengo
fez um fosso.
Então, até, por exemplo, até o campeonato sul-americano de 1984, era
num outro ginásio, muito menor, não tinha tablado, era só uma
passadeira. Aquele ginásio que dividia com o basquete. A gente corria
do lado da quadra de Basquete e ia saltar lá na sala da Ginástica. E
aí no meio a gente botava magnésio para dividir e a bola de basquete
ia no meio da nossa corrida. Então era só a pista de solo. E alguns
aparelhos do masculino, por exemplo, tinham que ser montados num dia,
desmontados no outro porque não cabiam todos num dia só. Então tinham
dias que eles faziam Argolas, tinham dias que eles faziam Barra, o
nosso por acaso ficava tudo montado. Só o Salto que montava e
desmontava também conforme a necessidade. Aí depois então, foi para o
outro ginásio, ganhou, conquistou um ginásio só, com fosso e tudo
mais. Nossa, era uma estrutura e tanto! Mas foi difícil porque
queriam botar patinação ou futsal ali. E foi dura a briga para
conseguir. Deve ter sido em 86 que fomos para esse ginásio (Ginasta
do Grupo de Pioneiras).
Ainda no grupo de ginastas pioneiras, uma delas também aborda as dificuldades e
comenta sobre uma iniciativa de melhorar as condições da GA no Brasil, já na
década de 80, com o Projeto Impacto, um centro de treinamento de ginastas no
Rio de Janeiro com bons materiais e técnicos estrangeiros:
Eles reuniram as melhores atletas do Brasil para conquistar uma
medalha olímpica de ouro. Esse era um projeto patrocinado por um
colégio. Juntaram todo mundo num lugar de treinamento, como Curitiba.
Era no CEFAM que é na Avenida Brasil (RJ). Contrataram técnico, uma
equipe toda de psicólogos, médicos. Foi bem bacana! Isso acho que foi
em 80, 81. Aí a gente ficou todo mundo treinando lá, só que o projeto
acabou. Durou, acho que um ano e meio mais ou menos.
Essa iniciativa, sem uma estrutura que oferecesse continuidade neste processo
fez com que esta ginasta buscasse a estrutura almejada em outro lugar. No
Brasil, o melhor centro, segundo depoimento anteriormente citado, era o Clube
de Regatas do Flamengo, o que na época também não correspondia às expectativas
do alto rendimento desportivo. Então esta ginasta foi para os Estados Unidos,
patrocinada pela sua própria família, onde se preparou para classificar-se para
os JO de Los Angeles (1984).
Acho que foi em 82, 83. Acho que eu tinha treze anos. Eu fui morar
nos Estados Unidos. Eu fiquei sozinha. Meu pai foi comigo, foi ver se
estava tudo bem. Aí eu fiquei lá sozinha com outras atletas que
também treinavam. Na época era o melhor centro lá. Depois teve o
Karoly (técnico da Nádia Comaneci). Então tinham atletas dos Estados
Unidos inteiro morando lá. Na casa do treinador mesmo, Dick
Monvisiel.
Fiquei lá um ano e meio. Fiquei até 83, quando eu consegui a
classificação para as Olimpíadas. Depois eu não aguentei mais, voltei
para o Brasil. Porque o treino era muito puxado na época. [...]
Então... longe de casa... tudo isso. Eu fiquei lá um ano e meio,
depois eu voltei. Quando eu voltei, eu já fui para o Flamengo, que já
era o melhor clube na época (p.195).
No mesmo grupo de pioneiras, outra ginasta não diz passar tantas dificuldades
na época, treinando na Universidade Gama Filho: "Naquela época era maravilhoso
o apoio ao esporte, na época do ministro Gama Filho, era tudo perfeito no
esquema que qualquer atleta precisava.". E expõe as condições de aparelhagem
que possuíam:
Era muito bom, tinham todos os aparelhos, a paralela nova chegou e
comprava barrote novo de fibra de vidro, vinha da Alemanha, a Gama
Filho sempre tinha. Eu acho que era no Brasil, tudo a mesma coisa em
relação à aparelhagem. A gente tinha na Gama Filho o tablado mais
moderno que existia e tinha no Brasil todo. Mas era daquele primeiro
amarelo que tinha que bater com a vassoura e martelar e prender os
ferrinhos. Quando começava a ficar quebradinho, botava colchão na
pista do centro e depois inventaram o tablado com molas. Eu acho que
a gente colocou, construiu com as molas com chapinha, todo mundo
construindo. Teve uma coisa de copiar e adaptar uma coisa que a gente
sabia que já existia no mundo, nos outros países. Depois foi
evoluindo. Quando a gente foi para o Flamengo tinha quase a mesma
coisa porque os campeonatos que tinham no Flamengo, na Gama Filho e
na Tijuca, eram os mesmos aparelhos. Devia ter na Gama Filho umas
três traves, uma baixinha, uma média e uma maior, tinha sempre uma
que era melhor. E também vendiam as capas de trave internacionais que
a gente comprava quando viajava. A gente cobria a trave, porque eu
aprendi tudo naquelas de madeira: rolamento, flic, tudo na de
madeira, ponte. Nos campeonatos internacionais as traves eram
fofinhas (risos); nossa senhora, uma beleza! Aí a gente comprou a
capa e voltava para casa com a capinha.
Mesmo esta ginasta não tendo reclamado das condições de infraestrutura do
ginásio em que treinou a maior parte de sua carreira, é possível perceber que,
em relação ao nível internacional, exposto pelas próprias ginastas desta
geração, havia certa distância do alto rendimento desportivo. A mesma ginasta
falando de seus treinos expõe as condições não tão satisfatórias:
No início eram os aparelhos e a gente fazia muito solo, solo era o
predileto do técnico (risos) e o predileto de todo mundo e era festa,
quando era solo, era tumbling (acrobacias) para os meninos e para as
meninas, como se fosse auge do treinamento e ai todo mundo fazia solo
junto naquela pista do tatame duro "pra caramba" de sarneige e
aqueles colchões todos, muito minitrampolim até no aquecimento,
corrida, minitrampolim, mortal, salto esticado, mistura de corrida
com minitrampolim. Era diversão e a gente aprendia muito duplo,
pirueta, tudo para frente, tinha muito treinamento de minitrampolim
para trás para a gente aprender. Não tinha cama elástica, eu treinei
a vida inteira sem cama elástica até aos 22 anos, quando eu fui para
o Flamengo. Tanto que eu não tinha nenhum talento na cama elástica no
fim da minha carreira, eu tinha pavor, não cresci fazendo cama
elástica (risos). Enquanto o pessoal do Flamengo sempre teve, desde
neném.
Estes depoimentos são corroborados por Oliveira e Bortoleto (2009) ao
registrarem as condições da ginástica artística masculina (GAM), abordando a
GAF em alguns momentos de sua pesquisa, quando expõem que:
na década de 80, havia poucos centros esportivos que desenvolviam
projetos de GA, sendo que a grande maioria dos que existiam não
podiam fornecer um treinamento adequado para os nossos atletas
chegarem ao alto nível, seja por dificuldades de infraestrutura ou de
aperfeiçoamento técnico. Nesta época, a maior parte dos clubes não
possuía recursos financeiros suficientes para comprar ou fazer a
manutenção dos aparelhos e equipamentos auxiliares, em sua maioria
importados, dificultando a progressão técnica dos ginastas com
segurança, eficiência e rapidez. (p.304-305)
Já no grupo de ginastas de transição, temos diferentes experiências, mas sempre
passando, em algum momento, por alguma condição de treinamento que não
apresenta condições satisfatórias para a preparação desportiva das melhores
ginastas do país.
A primeira ginasta, após as pioneiras, retrata bem esse processo de transição,
pois ainda vive muitas experiências que se assemelham ao período anterior e, ao
mesmo tempo, beneficia-se de um processo mais amadurecido e organizado no apoio
à GA brasileira, principalmente em relação às condições de infraestrutura.
Esta ginasta talvez seja entre as atletas desta pesquisa, o caso mais curioso e
particular de todas, pois treinou na academia de seu pai e patrocinada
totalmente por ele, tanto em relação ao local de treinamento, com aparelhagem
construída pelo próprio pai, como em viagens e competições, durante os cinco
primeiros anos de sua carreira de ginasta, como ela mesma relata:
No início era uma coisa assim, bem divertida. [...] Os aparelhos eram
bem adaptados. Eu acho que eu fui boa ginasta de trave porque a trave
que meu pai construiu era muito fina. Porque, realmente, a trave
oficial tem dez centímetros, mas ela é abaulada nas laterais, então
você tem a impressão que ela é mais gordinha. A minha era 10 cm e era
mais fina depois. Então, quando eu chegava na competição, eu achava
enorme, eu pensava que estava num banco sueco. Era um aparelho bem
amador mesmo.
Olha a parte de material era aquilo. Começou no tatame, depois meu
pai foi, colocou aquela barrinha que colocam no teto. Que eu lembro
tinha o tatame, tinha essa barrinha, aí construiu um plinto, um
trampolim, aí um tempo depois, sim, teve trave alta, a gente tinha o
colchão "gordo8", tinha paralelas que ele construiu também, tinha um
cavalo, tinham todos os aparelhos. E isso eu passei bastante tempo.
Os cinco anos que eu treinei com meu pai foram assim. Fui campeã em
campeonatos internacionais treinando lá, sul-americano, copas
internacionais, etc.
[...] Quando fui para São Paulo já tinha tudo. Lá no Pinheiros tinha
o solo, o solo completo que é o tablado, o meu em Brasília era pista.
Aquela pista tinha só duas placas de molas que meu pai construiu
também. Foi ele que via assim: ah! Essa mola tinha esse tamanho,
tinha uma madeira e uma espuma de densidade super baixa assim. Então,
eu tinha problema no pé. Tinha muitas dores, porque era muito
impacto.
Além dessa precariedade de aparelhos amadores, construídos pelo seu pai, a
ginasta tinha o problema de não ter muitas vezes um local fixo para treinar,
pois a academia foi ficando pequena, mas seu pai sempre se esforçava para
resolver o problema. É realmente difícil pensar que esse tipo de estrutura
tenha gerado uma ginasta classificada para os JO, o que reflete uma falta de
estrutura do país para com o desporto naquele momento. Ela relata sobre seu pai
e essas condições:
Eu o via muito empolgado, muito determinado, muito esforçado para
construir material. Às vezes, a gente não tinha lugar fixo para
treinar. A gente tinha um clube, de repente o clube: "ah... não quero
mais vocês aqui não. Vão para outro lugar". E nesses clubes, a gente
treinava no salão de festas. Então tinha que montar e desmontar,
montar e desmontar os aparelhos. Aí eu via meu pai com o colchão
"gordo" em cima do carro dele, indo para outro lugar, os aparelhos
dentro do carro. Então era assim, uma mão de obra (p.197).
Entre os relatos de condições de infraestrutura, talvez a situação mais
inadequada do ponto de vista de condições para o desenvolvimento de ginastas de
alto rendimento desportivo, conforme já mencionado, seja a desta ginasta.
A literatura confirma este tipo de situação na mesma época quando relata:
"Neste período não só os atletas e clubes sofriam com o amadorismo e a falta de
investimentos na modalidade, mas a própria CBG tinha problemas organizacionais
severos" (OLIVEIRA; BORTOLETO, 2009, p.305). De acordo com Vicelli (2008 apud
OLIVEIRA; BORTOLETO, 2009, p.305) "o amadorismo da modalidade era tão grande
que no início da década de 90, os documentos da CBG eram guardados no porta-
malas do carro da então presidente Vicélia Florenzano que assumiu seu primeiro
mandato em 1991".
Na mesma geração, as outras três ginastas mencionam as condições que
vivenciaram:
Em Santo André não tinha muita condição, assim, lembrando da
aparelhagem. Até não lembro muito assim da aparelhagem porque faz
muito tempo, mas uma coisa que eu fico sempre na cabeça era o solo,
que era de tatame9. Era um tatame de judô em que a gente fazia o
nosso treino de solo.
Então em relação à estrutura física de onde eu comecei, para a
iniciação era boa. Tinha tablado, tinha fosso, paralela, solo. Era
bem legal assim. O espaço era grande e era público! Nesse lugar
tinham vários tipos de esporte. Tinha vôlei, basquete, só não tinha
natação, se eu não me engano. Judô, atletismo, essa coisa toda. Eles
até trabalhavam com paraolímpico. Então eu comecei nesse centro e
tinha estrutura sim, uma estrutura boa. Não era de alto nível como
tem aqui na seleção brasileira, mas era um lugar bacana assim para
treinar.
Eu comecei a treinar com cinco anos em uma praça pública em Curitiba
onde a estrutura era muito precária, mas era o único local em
Curitiba que havia GO10. Tinham todos os aparelhos: o salto, a trave
e a paralela, mas eram quase que condições mínimas para fazer
ginástica. Então quando eu mudei para essa outra escola de ginástica,
que eu melhorei de nível, que era um segundo colégio particular.
[...] Então foi bem difícil assim no começo eu não tinha estrutura
médica, não tinha aparelhos apropriados, era aquela estrutura de
aparelhos de 20 anos. Então a gente treinava em um colégio, onde
ficavam os aparelhos: Bom Jesus da Aldeia, aqui em Curitiba, que era
onde a Soraya Carvalho treinava quando vinha para Curitiba
preparando-se para os JO. Então a gente começou a treinar nesses
aparelhos.
Na etapa de preparação desportiva preliminar das ginastas do grupo de
transição, uma delas expressa menos dificuldades em relação à infraestrutura
durante a sua carreira, pois sua iniciação no Centro Estadual de Treinamento
Esportivo/RS (CETE) ofereceu-lhe boas condições para o trabalho de base, onde
ela permaneceu por aproximadamente um ano e foi posteriormente indicada ao
clube Grêmio Náutico União, em Porto Alegre, que também oferecia uma boa
infraestrutura, considerando seu depoimento: "Então, no União, os aparelhos
eram melhores do que lá (CETE) e o nível já era diferente de lá também".
As outras duas ginastas desta mesma geração também passaram por um local de
iniciação desportiva, durante a etapa de preparação preliminar, e deram início
aos seus treinamentos, já na etapa de especialização inicial (ZAKHAROV; GOMES,
2003), no mesmo local, mas não durante muito tempo, pois foram indicadas para
outras entidades que ofereciam uma estrutura técnica e de infraestrutura
superior.
Uma das ginastas passou pela Academia Yashi, na cidade de São Paulo, que não é
muito comentada em seu depoimento, talvez por ter permanecido apenas um ano e,
em seguida, foi para o Clube de Regatas do Flamengo, a convite da técnica
principal de GA do clube. Ela explica sobre as suas condições de
infraestrutura:
As estruturas físicas, do Flamengo e de Santo André, eram bem
diferentes. [...] A estrutura de aparelhos, a estrutura física do
ginásio do Flamengo tinha uma coisa muito importante que é o fosso,
que para a ginástica é uma parte do ginásio que é indispensável,
porque é onde, teoricamente você se "joga" num bando de espuma para
aprender as coisas. Se "joga", porque sempre tem a ajuda do
treinador, tudo, porque uma parte muito importante também da
ginástica é o treinador. Porque é um esporte que é muito clínico.
Então, às vezes a gente faz uma coisa que a gente acha que foi
excelente, mas o treinador consegue enxergar os mínimos detalhes
daquele elemento que a gente está executando. Então um fosso nesse
sentido é muito importante, porque conforme o atleta vai evoluindo e
vai aprendendo coisas novas, é importante que se tenha o fosso porque
é uma estrutura de segurança para o atleta. [...] E no Flamengo
também tinha o campo, tinha a piscina, eram partes do clube que a
gente podia utilizar para fazer a corrida na grama, por exemplo, que
não forçava tanto.
Outra ginasta também aborda essa fase de mudanças para uma infraestrutura
melhor, o que aconteceu algumas vezes durante a sua carreira, saindo da Praça
Oswaldo Cruz após quatro anos, indo para um colégio particular aos 10 anos, que
já oferecia uma estrutura melhor e, posteriormente, passando pelo ginásio onde
era então a sede da CBG, isso já aos 13 anos de idade, no bairro Portão e,
finalmente, para a Universidade do Esporte:
E eu treinei dos dez aos treze anos, mais três anos nesse local
(colégio) e com treze a gente foi para [...] onde era a sede da CBG
(AGIPAR 11),. Eu fiquei lá dos 13 acho que aos 18 anos, dos 13 aos 17
anos, porque com 17 anos eu entrei para cá (Universidade do Esporte
12), que foi quando a gente treinou aquele ano da Olimpíada, com as
meninas aqui. Foi de 99 para 2000 e daí em 2000 a gente foi para
Olimpíada.
Sobre a estrutura dos lugares que eu treinei, na escola paranaense os
aparelhos já eram bons. Não eram muito bons, mas eram melhores que
aqueles da Praça Oswaldo Cruz. Então aquilo pra mim já era o máximo!
Já dava para fazer uma ginástica de alto nível, dava para fazer uma
série com largada que na outra não dava, tinha fosso, duas camas
elásticas (trampolim acrobático), então dava para aprender coisas
mais difíceis, educativos, tinham quatro traves de equilíbrio, na
outra tinha duas, então dava para ter mais meninas, tinha um solo e
mais um tumbling onde a gente aprendia acrobático, salto sobre o
fosso. Antes era tudo no duro (aterrissagem), neste a trave dava para
ser transferida e fazer saída no fosso, a chegada também já era um
ginásio de ginástica olímpica, já tinha corda, nesse já tinha
espaldar então já dava para fazer o circuito, tinha minitrampolim,
então tinha mais variedade, mais opções de treinar, não tinha só uma
trave, uma paralela. No outro só tinha isso.
A primeira ginasta desta "geração de transição", depois de treinar com seu pai,
durante cinco anos, passou por dois clubes: o Esporte Clube Pinheiros e Clube
de Regatas do Flamengo, e retrata as condições de aparelhagem:
O Pinheiros não tinha um solo muito bom. O salto tinha que correr lá
de fora do ginásio, junto aos associados passando. Então, tinha isso.
Mas era só o solo e o salto que não eram muito bons. No Flamengo já
tinha tudo, mas o solo também era todo esburacado. Não se compara à
estrutura que a gente ia nos campeonatos fora do país.
Em relação às mudanças de local de treinamento, três ginastas da nova geração
passaram por situação semelhante, passando por vários locais, assim como uma
das ginastas pioneiras e como uma das ginastas da nova geração. Duas das
ginastas da nova geração tiveram a trajetória similar à de uma das ginastas de
transição, tendo a formação desportiva concentrada em um mesmo lugar até o alto
rendimento desportivo. Estas duas ginastas da nova geração, chegaram mais cedo
a um local de treinamento com condições adequadas, e neste caso, em Curitiba,
condições tidas como ideais de treinamento, conforme citado anteriormente,
podendo se beneficiar a partir da etapa de especialização inicial da estrutura
adequada, de aparelhos oficiais regulamentados pela FIG, tendo inclusive, mais
de uma marca de equipamento à disposição, equipe multidisciplinar e técnicos
estrangeiros. Segundo uma destas ginastas:
Eu me lembro detalhadamente que as condições lá na praça eram bem
precárias: não tinha aparelhagem, acho que a Camila também treinou lá
na praça nesse tempo; eu, a Camila e a Ana Paula.
O ginásio que eu treinava na praça tem até hoje lá, é um cubículo, as
traves todas amontoadas, não tinha solo, era pista, depois compraram
um tablado daqueles bem ruinzinhos. Não tinha muita estrutura não,
mas dava para a gente treinar. Nas paralelas as meninas que eram
muito altas batiam os pés no teto, daí quando eu passei para o
Positivo (colégio) já era melhor, era um ginásio bom, tinha fosso,
tinha tudo. Na Agipar já era um ginásio bom mesmo. Já tinha toda
aparelhagem, tudo igual da confederação 13.
A outra ginasta desta mesma geração também fala dos mesmos espaços, com exceção
do Colégio Positivo, que ela não menciona, tendo treinado na Praça Oswaldo Cruz
e, em seguida, na AGIPAR para, finalmente, chegar à Universidade do Esporte:
Lá na Praça Oswaldo Cruz era uma estrutura, comparada à Universidade
do Esporte agora, era bem ruim. Mas tinham todos os aparelhos,
aparelhos simples, mas que a gente conseguia fazer. Não tinha
problema naquela época. [...] Era uma aparelhagem bem simples. Para a
nossa idade tinha estrutura! Daí na AGIPAR os aparelhos já eram bem
melhores. E quando começou a Seleção e a gente passou para
Universidade do Esporte já foi a melhor do mundo. Tinha um Solo, três
Traves, uma Paralela...
Já a terceira ginasta da nova geração passa por muitas entidades, com
diferentes condições, em Ribeirão Preto, São Caetano do Sul, para em 2001, aos
treze anos também ser direcionada à Universidade do Esporte como ginasta
representante de Curitiba. Ela explica sua trajetória de ginásios:
Até hoje, eu vou lá (Ginásio da Cava do Bosque/Ribeirão Preto-SP).
Quando eu comecei lá sempre tinha um tatame, esses tatames de judô.
Às vezes a gente colocava uns colchões sarneiges do lado para fazer
solo no quadrado (simulando um tablado). Tinha uma pista, que não era
para o fosso, não tinha fosso. Tinha uma paralela também. Nossa! Bem
crítica (risos). Tinha eu acho que umas três traves também, mas uma
era melhor, que todo mundo brigava para fazer naquela (risos), e
tinham duas que normalmente estavam rasgadas, então ninguém queria
ir. Acho que eu fiquei uns dois anos, três, mais ou menos lá.[...].
Eu saí de um lugar para outro porque a técnica, ela quis ir, quis
sair de lá porque não estava dando muito certo mesmo a estrutura. E
tinha um pessoal também que fazia aeróbica e a gente tinha que
dividir o ginásio às vezes, varias coisas. Ela saiu e levou a gente
junto para o colégio Moura Lacerda. A gente ficou um tempo pequeno
assim que eu me lembre lá. Não deve ter sido um ano. Aí a gente foi
para o COC (colégio). Quando eu fui para o COC eu devia ter uns nove
anos.
[...] A estrutura do COC já era bem melhor. Era trave Spieth14,
paralela e salto também. Só o solo que eu acho que não era de Spieth.
O treino já era bem mais forte, porque teve uma época que o COC era
uma das melhores equipes do Brasil.
[...] Em São Caetano a estrutura não era muito melhor que no COC,
nenhum aparelho de fora, não eram europeus, mas dava para treinar
tranquilo.
A partir da primeira ginasta do grupo de ginastas de transição inicia-se uma
melhoria da condição de infraestrutura oferecida pela CBG (OLIVEIRA; BORTOLETO,
2009), mais adequada ao treinamento de alto nível, chegando-se até o nível de
excelência que possui atualmente, comparado aos principais países de destaque
na modalidade (NUNOMURA; OLIVEIRA, 2012).
Esta primeira ginasta da geração de transição, em determinados momentos de sua
preparação para os JO de 1996, realizou seus treinamentos em Curitiba, mesmo
sendo atleta do Clube de Regatas do Flamengo, mas como proposta da CBG para seu
aprimoramento, juntamente com seus técnicos. Mas ela ainda não chegou a
usufruir da estrutura atual, realizando seus treinamentos em uma estrutura
montada no Colégio Bom Jesus da Aldeia e, posteriormente, na AGIPAR, ambos em
Curitiba.
Somente a partir das outras três ginastas da geração de transição, é que
começam a ser beneficiadas pela infraestrutura instaurada em 1999. Portanto,
todas as ginastas desde 1999 em algum momento treinaram no ginásio da
Universidade do Esporte, inicialmente em estágios de treinamento da seleção
brasileira e, posteriormente, na seleção permanente15, a partir do ano de 2002.
Uma das ginastas do grupo de transição e duas da nova geração foram ginastas de
Curitiba e, portanto, beneficiam-se anterior e integralmente desta estrutura
desde 1999. A única ginasta da nova geração não residente em Curitiba
transfere-se para a cidade a partir de 2001 e outras duas ginastas de transição
na mesma situação, somente a partir de 2002, de forma permanente.
Nesta evolução, não apenas a aparelhagem e o espaço foram melhorados, os
estudos das ginastas passaram a ser realizados no próprio ginásio, assim como
foi desenvolvido em países de destaque internacional na modalidade. Uma das
ginastas da nova geração relata:
Estudávamos aqui na Universidade do Esporte mesmo, onde treinávamos
com professor particular. Era diferente, porque quando veio a Seleção
tinham várias meninas, eu não era sozinha. Era eu e mais duas. Eram
só três assim na sala. Era diferente porque... só para gente assim...
E a gente estava acostumada com um monte de pessoas, mas acho que era
mais legal porque a gente aprendia mais, porque ele podia dar atenção
só para gente. Mas foi uma experiência bem legal assim... eu gostei.
Eu tinha um professor para cada disciplina, de Geografia e História
era a mesma, Biologia e Química era a mesma, Matemática e Física a
mesma e tinha professora de Inglês.
Nunomura e Oliveira (2012) também abordam este assunto dos estudos das ginastas
serem realizados no próprio ginásio de treinamento:
Além desta estrutura esportiva, as ginastas que cursavam o ensino
fundamental e médio, atendiam às aulas no próprio CT com professores
particulares, situação que possibilitava a continuidade dos estudos
sem prejuízo dos treinos. Diferentemente, aquelas que cursavam o
ensino superior eram beneficiadas com bolsas de estudo e frequentavam
as aulas no período noturno (p.380).
As outras duas ginastas do grupo da nova geração relatam suas visões sobre a
evolução de infraestrutura em seus depoimentos:
Com a evolução, eles foram colocando duas Paralelas, dois Solos de
marcas diferentes para a gente se acostumar, porque as Copas do
Mundo, cada Copa é uma aparelhagem: Spieth, AAI16, American etc. E a
gente não se habituava, como a gente tinha só uma aparelhagem. Ia
para a Copa e era aparelhagem diferente, era bem mais difícil. Então
decidiu-se colocar dois Solos de marcas diferentes, Traves de marcas
diferentes, Paralela também e Salto, para a gente se habituar aos
dois aparelhos, aí dependendo da Copa, da França era aparelhagem,
vamos supor Spieth, aí a gente treinava. Nos Estados Unidos é AAI, e
a gente treinava na AAI.
Sobre a comparação com outros países em relação à estrutura toda e
treinos, acho que agora aqui está bem parecido com o de fora, com o
pessoal de fora. O ginásio também. Acho que está tudo bem parecido.
Só que o Brasil é um país muito novo na ginástica. Então, as russas,
elas vieram com a ginástica deles de antes. Então eles sempre foram
bons porque tiveram uma base. E aqui eles começaram agora, e a gente
já está bem. Imagina se a gente começasse antes. A gente podia ser um
dos melhores. Acho que é mais base mesmo que falta.
Da mesma forma, Oliveira e Bortoleto (2009, p.308) corroboram os depoimentos
das ginastas sobre a evolução de infraestrutura: "não podemos deixar de
mencionar que atualmente a CBG e os clubes possuem uma melhor infraestrutura de
aparelhos oficiais e suplementares se comparado ao período inicial do nosso
estudo"17, principalmente porque a partir de 1999, houve uma preparação de
infraestrutura para receber os técnicos ucranianos, posteriormente receber a
seleção permanente de GAF e impulsionar esta modalidade internacionalmente, com
apoio de órgãos públicos e patrocinadores.
Nunomura e Oliveira (2012) também abordam a importância da estrutura do Centro
de Treinamento de Curitiba para os resultados obtidos pela GAF:
Assegurou às ginastas aparelhos e equipamentos auxiliares dentro dos
padrões internacionais. Esta condição contribuiu para a rápida
evolução técnica, física e, também, psicológica, pois a qualidade dos
equipamentos forneceu maior segurança no aprendizado e na execução
dos elementos de risco e de dificuldade (p.382).
Neste processo de depoimentos de condições de infraestrutura na preparação
desportiva de ginastas brasileiras participantes de Jogos Olímpicos,
positivamente é possível notar uma transformação e um desenvolvimento nas
condições pelas quais as diferentes gerações relataram passar, porém é
importante destacarmos que estes depoimentos trazem informações sobre um grupo
seleto de ginastas de destaque em um país de grandes dimensões territoriais, o
que não representa, certamente, as condições de todo um país. Isto é possível
perceber pelo resultado do estudo desenvolvido com técnicos de GA no Brasil:
De acordo com os técnicos, um país com as dimensões do Brasil
necessita de vários polos de treinamento que atendam às diferentes
regiões. Esta ausência de CT18 nos estados, principalmente, naqueles
com tradição na modalidade também foi citado como um ponto negativo
deste sistema centralizado em Curitiba devido ao deslocamento das
ginastas para outra região. Essa polarização da modalidade gerou
outro problema que, segundo os técnicos, culminou com prejuízos às
instituições que desenvolviam a modalidade no Brasil (NUNOMURA;
OLIVEIRA, 2012, p.384).
Considerações finais
Com base nos objetivos propostos no presente artigo de registrar e analisar as
condições de infraestrutura de treinamento de ginastas brasileiras
participantes de JO de 1980 a 2004, a contribuição deste estudo neste registro
é apresentar dados até então inexistentes, pois não há qualquer registro sobre
o assunto e sobre ginastas brasileiras com tal detalhamento, próprio do tipo de
pesquisa e método escolhidos.
Ao mesmo tempo, é importante salientar que estes registros trazem a visão
destas ginastas sobre o contexto vivido, portanto o estudo mostra um olhar
sobre o processo, o olhar das principais ginastas do país no referido período e
protagonistas das histórias de suas carreiras desportivas. Segundo Thompson
(2002):
grande parte da evidência oral oriunda da experiência direta é
preciosa exatamente porque não pode provir de nenhuma outra fonte. É
inerentemente única. Claro que sua autenticidade pode ser avaliada.
Não pode ser confirmada, mas pode ser julgada (p.307).
Alguns dados não poderão ser confirmados, mas certamente poderão ser julgados
do ponto de vista da coerência interna, da conferência com outras fontes e de
colocar a evidência em contexto mais amplo (THOMPSON, 2002), avaliações
realizadas durante a análise cruzada dos dados.
Em relação a algumas congruências desenvolvidas nesta pesquisa, a partir dos
depoimentos das ginastas brasileiras participantes em Jogos Olímpicos
corroborados pela literatura apresentada, foi possível perceber um
aperfeiçoamento nas condições de infraestrutura e organização desportiva a
partir do início da década de 90. Este aperfeiçoamento é novamente impulsionado
no final da década de 90, com o início da contratação de técnicos ucranianos,
com o estabelecimento de uma seleção brasileira permanente e investimento nas
condições de infraestrutura de equipamentos e ginásio visando um direcionamento
aos Jogos Olímpicos de Atenas (2004) e Pequim (2008). Segundo Oliveira e
Bortoleto (2009) esta transformação está diretamente relacionada ao aumento no
suporte financeiro advindo do governo federal através da Lei Agnelo/Piva de
2001 e da Lei de Incentivo ao Esporte de 2006.
Essa soma de investimentos trouxe avanços significativos para um país, até
então sem tradição na modalidade, que não pensava em ter uma equipe entre as
melhores do mundo tão rapidamente. Foram conquistadas vagas nas Competições de
"Final por Equipes"(CIV) e "Final Individual por Aparelho" (CIII), assim como
medalhas em Campeonatos Mundiais, por Daniele Hypólito (CIII), Daiane dos
Santos (CIII) e Jade Barbosa (Individual Geral/CII).
Foi também possível verificar que, apesar desta transformação positiva ao longo
dos últimos 30 anos, em muitos momentos de suas histórias desportivas, as
ginastas afirmam ter passado por treinamentos em condições de equipamentos e
ginásio não adequadas ao treinamento de ginastas de alto rendimento desportivo,
a partir dos parâmetros estabelecidos por documentos e pela literatura nesta
pesquisa. Isto não impediu os títulos conquistados pelas mesmas, mas pode ter
dificultado outros, certamente.
A partir destes depoimentos, sobre as condições de infraestrutura vividas por
estas ginastas, pode-se também estabelecer relações ou verificar influências
sobre outros aspectos da formação desportiva das mesmas, como a decisão sobre o
encerramento da carreira de algumas destas ginastas por falta de condições de
infraestrutura, assim como algumas lesões diretamente relacionadas às más
condições de aparelhagem nos treinamentos (SCHIAVON, 2009).
As limitações do estudo devem-se ao fato de ser apresentada, neste artigo, a
perspectiva da ginasta e não também de outros sujeitos que viveram este mesmo
contexto, além dos dados representarem condições das ginastas de maior destaque
no Brasil de 1980 a 2004, o que pode não retratar a realidade brasileira como
um todo, não podendo, portanto, serem generalizados, mas trazendo reflexões aos
profissionais do desporto e dirigentes, nos direcionamentos para que a GA seja
uma modalidade de excelência no Brasil.