A arte de (sobre)viver coletivamente: estudando a identidade do Grupo Galpão
1. INTRODUÇÃO
O objetivo neste trabalho foi a compreensão da dinâmica de construção de
identidades no contexto de uma organização inserida no mercado de bens
culturais, o Grupo Galpão. Entendido como locus de pesquisa, o Grupo Galpão é
um grupo teatral composto por 13 atores sócios, fundado no ano de 1982 e
sediado em Belo Horizonte. Com quase 30 anos de história, e sucesso reconhecido
nacional e internacionalmente, o Galpão tem suas atividades sustentadas pelo
patrocínio de empresas e pela venda de espetáculos. Em 1998, foi fundado o
Galpão Cine Horto, um centro cultural em que se desenvolvem cursos e projetos
variados. São empregadas cerca de 40 pessoas na estrutura total do grupo. A
partir dessas características, acredita-se que a trajetória do Grupo Galpão
ofereça um material rico para compreender como a identidade coletiva de um
grupo artístico foi construída e reconstruída ao longo do tempo, com vistas a
manter sua sobrevivência.
O Galpão surgiu a partir da associação de quatro atores, Teuda Bara, Eduardo
Moreira, Wanda Fernandes e Antônio Edson. Eles conheceram-se em uma oficina de
teatro oferecida por dois membros alemães do Teatro Livre de Munique, em Belo
Horizonte, e, posteriormente, em Diamantina. Dos alemães, os fundadores do
Galpão herdaram as influências do dramaturgo Bertolt Brecht, que tem sua obra
reconhecida como politizada e contestadora. Além disso, o Grupo também herdou
de seus mentores a tradição do teatro de rua, o trabalho circense e a
sacralidade do teatro, como atividade digna de entrega e seriedade (BRANDÃO,
2002).
Desde sua fundação, alguns atores vieram a fazer parte do grupo
momentaneamente, outros o integraram em definitivo. Dos 13 sócios atuais, três
são fundadores e dez passaram a fazer parte do grupo a partir de aproximações
profissionais e afetivas - há quatro casais no Grupo. Apesar do crescimento no
número de membros, se comparado ao número inicial, pode-se considerar o Grupo
Galpão um agrupamento estável, pois o último sócio a integrar o grupo o fez há
mais de 17 anos.
A realidade social (e organizacional) recortada foi concebida como fruto da
construção diária dos sujeitos, como participantes ativos e interpretadores do
mundo que os cerca. Dessa forma, somente após certo tempo de convívio e de
coleta de dados preliminares é que se tornou possível especificar parâmetros
para o encaminhamento da pesquisa, que foi realizada por meio de observações
não participantes e entrevistas semiestruturadas (BERGER e LUCKMAN, 1998).
Optou-se pelo conceito de identidade, pois ele abriria possibilidades de
explorar a individualidade de cada sujeito no decorrer das interações sociais
no grupo. A articulação das identidades individuais em níveis coletivos
permitiria o entendimento dos significados coletivamente partilhados, das
restrições que a identidade coletiva impõe à identidade individual e das razões
que levam o sujeito a agrupar-se. Tais questões são consideradas centrais aos
estudos organizacionais.
Os estudos sobre identidade nas organizações têm se destacado de forma
crescente nas literaturas internacional e nacional. É possível distinguir
pesquisas sobre identidade que partem de diversas linhas epistemológicas e
abordam tanto o nível coletivo, da identidade corporativa e da imagem
organizacional, como o caráter mais subjetivista, da identidade social e da
identificação. Apesar da distinção clara entre as concepções, ressalta-se que,
ao se tratar de identidade organizacional, acaba-se mencionando aspectos da
identidade individual, o que demonstra certa complementaridade entre esses
fenômenos (CALDAS e WOOD JR. 1997; BAUER e MESQUITA, 2007). No presente estudo,
explorou-se a ligação entre os diversos níveis identitários possíveis dentro do
ambiente organizacional, entendendo que as identidades individuais e coletivas
são construídas de forma inter-relacionada.
Na pesquisa sobre o Grupo Galpão, o tema da identidade nas organizações aparece
articulado à questão da produção artística contemporânea. Entende-se que o
trabalho artístico organizado assume formatos diferenciados em relação às
organizações econômicas. Isso porque se trata de um produto cuja natureza é
altamente autoral e cujo valor assume sentidos simbólicos. A compreensão de
como se inter-relacionam as identidades de artistas contemporâneos,
principalmente quando se encontram agrupados de forma organizacional, pode
gerar contribuições relevantes para estudos tanto no campo da identidade quanto
no campo das organizações chamadas culturais ou criativas (GLYNN, 2000;
BENDASOLLI et al., 2009).
No cenário atual da produção artística, observa-se, no Brasil e no mundo, a
franca expansão do setor cutural, entendido como espaço de criação, consumo e
geração de emprego (AVELAR, 2008). É notável o crescimento de investimentos
financeiros nessa área e o número cada vez maior de pessoas que possui a arte
como ocupação principal. Nesse processo, Avelar (2008) chama a atenção para a
procura por profissionalização e formalização de uma gestão cultural.
O processo moderno de globalização e a crescente dinamização do chamado setor
cultural têm reintroduzido o debate sobre a indústria cultural, cujo cerne
estaria no fetichismo em relação aos bens culturais (DUARTE, 2002). O valor de
uso desses bens, tradicionalmente representado pela admiração estética de um
devir transcendente, passa a ser absorvido por seu valor de troca, advindo de
uma valorização social artificial gerada pelo prestígio de consumir certo tipo
de mercadoria cultural (HORKHEIMER e ADORNO, [1947] 2007).
A partir desse cenário, vislumbra-se uma tensão entre a criação de uma obra de
arte autêntica e sua mercantilização, inerente à produção artística no contexto
capitalista contemporâneo. Os dois processos envolvem práticas orientadas por
racionalidades distintas, que culminam, por sua vez, em processos de construção
identitária distintos. Reside nesse ponto o cerne do presente trabalho, em que
se busca investigar como os membros de um grupo de teatro lidam com a
construção da identidade coletiva ante os seus ideais éticos e estéticos, por
um lado, e as pressões do mercado, por outro.
O presente artigo encontra-se estruturado em cinco partes, sendo a primeira
esta introdução. Em seguida, serão apresentados os conceitos adotados a
respeito da construção da identidade. Na terceira parte, são abordados os
procedimentos metodológicos trilhados pela pesquisa. Na quarta e na quinta
seções constam, respectivamente, a análise dos dados e as considerações finais.
2. PARA ALÉM DA DUALIDADE ENTRE IDENTIDADE PESSOAL E SOCIAL: ENTENDENDO A
IDENTIDADE COMO PRÁTICA
Estudos que abordam o tema da identidade partem, geralmente, da dualidade entre
a perspectiva pessoal e a social. O conceito, nesse sentido, dividir-se-ia em
dois: a identidade para si e a identidade para os outros (imagem) (CALDAS e
WOOD JR., 1997). Contudo, neste trabalho, defende-se que é necessário que os
estudos sobre identidade sustentem uma visão mais coerente e dinâmica, que
considere tanto a importância da subjetividade quanto as determinações
externas. A identidade seria um conceito dialético,
"[...] o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e
coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos
processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos
e definem as instituições" (DUBAR, 2005, p.136).
Reforçando a ideia de que identidade-para-si e para o outro são construtos
inseparáveis, como dois lados de uma mesma moeda, Ciampa (2005) propõe a
concepção da identidade como a mesmidade de pensar e ser, ou seja, quando o
indivíduo busca ser ele mesmo, não como forma de buscar sua essência, mas de
ser ele mesmo como um ser que é determinado a partir da identidade. O autor,
aludindo ao filósofo Heidegger, defende que o ser faz parte da identidade, e
não o contrário: a identidade faria parte do ser.
Ciampa (2005) contrapõe-se à perspectiva da identidade como essência imutável
do ser, pois, nessa visão, a identidade aparece como estática, concebida
isoladamente, na condição de ser-para-si. Segundo Hall (2003), esse tipo de
concepção essencialista é típico do período iluminista, no qual o pensamento
predominantemente racionalista advogava que o ser humano deveria ser um centro
dotado de razão e de consciência, sendo sua autoconcepção construída a partir
de si mesmo, sem influência do mundo exterior. Dessa forma, a identidade torna-
se um objeto misterioso e fantasmagórico, como um fetiche. Cria-se o que Ciampa
(2005, p.146) denomina de
"identidade-mito, o mundo da mesmice (da não-mesmidade) e da má
infinidade (a não superação das contradições)".
A ideia de identidade essencialista pode contribuir para reforçar a ideologia
dominante, pois pode fazer com que as pessoas se deparem frequentemente com a
necessidade de protelar transformações, evitar a evidência de mudanças, para
que, de alguma forma, continuem sendo o que chegaram a ser em um momento de
suas vidas e aceitem a manutenção de papéis sociais que muitas vezes lhes foram
impostos.
Segundo Arendt (2004), o homem distingue-se dos demais a partir do momento em
que inicia sua atividade no mundo. Agindo, os seres humanos manifestam-se uns
aos outros e, somente assim, assumem a condição humana, tornam-se algo além de
meros objetos físicos e vão além da mera existência corpórea. O homem é o único
ser capaz de exprimir o que o diferencia dos demais, de estabelecer distinção
das outras pessoas. Só ele é capaz de comunicar a si próprio. A revelação de
alguém estaria implícita tanto em suas palavras quanto em seus atos.
Para Arendt (2004), mesmo quando as palavras e os atos estão voltados para
questões instrumentais do mundo objetivo, eles ainda conservam a capacidade de
revelar o agente por trás. Notadamente na expressiva maioria dos casos,
palavras e atos referem-se à mediação entre os homems e seus interesses
específicos relacionados ao mundo. O agente que fala e age revela-se no momento
em que estabelece relação com a realidade mundana e objetiva.
Ciampa (2005) nota a dificuldade de caracterizar alguém somente por meio de
verbos, sem o uso de substantivos e adjetivos. Contudo, ao substantivar o
indivíduo no discurso, cria-se a ilusão de uma substância de que ele seria
dotado e que se expressaria através dele. No momento em que se tenta definir
quem alguém é, constrói-se um personagem com as características que a pessoa
partilha com outras que lhe são semelhantes. Nesse processo, perde-se de vista
o que cada indivíduo possui de singular e específico. Não se diz quem a pessoa
é, mas o que ela é. Ao solidificar-se em palavras a essência viva de alguém,
essência que é fluida, corre-se o risco de tratar identidades como coisas cuja
natureza se pode dispor e nomear (ARENDT, 2004).
Para Ciampa (2005), conforme já exposto, as identidades pressupostas, tidas
como algo dado, contribuem para a manutenção do sistema da forma como ele está,
sendo cada um responsável por manter sua identidade, por ser coerente com as
expectativas alheias. Não se pode retirar o caráter de historicidade da
identidade, pois, dessa forma, ela aproxima-se mais da noção de um mito, que
prescreve as condutas corretas e reproduz o mundo social. Nesse sentido, é
crucial conceber a identidade como um processo que emerge como a história
singular de uma vida. A construção da identidade teria seu fim somente com a
morte, quando o indivíduo para de manifestar-se como sujeito (ARENDT, 2004).
A emergência de uma história de vida singular ocorre necessariamente em
interação mútua com outras histórias de vida. A construção de cada identidade
incide em uma teia de relações já existentes e nela imprime suas consequências
imediatas. A história produz-se, intencionalmente ou não, graças à interação
nesse meio (ARENDT, 2004). A partir disso, estabelece-se uma rede de reflexões,
em que as identidades se refletem e se reforçam, por meio de representações
(CIAMPA, 2005).
"Esse jogo de reflexões múltiplas que estrutura as relações sociais é
mantido pela atividade dos indivíduos, de tal forma que é lícito
dizer-se que as identidades, no seu conjunto, refletem a estrutura
social, ao mesmo tempo que reagem sobre ela, conservando-a (ou
transformando-a)" (CIAMPA, 2005, p.171).
Nesse sentido, a atividade humana no mundo pressupõe posicionamento e
revelação.
"Eliminar essa revelação - se isso de fato fosse possível -
significaria transformar os homens em algo que eles não são; por
outro lado, negar que ela é real e tem consequências próprias seria
simplesmente irrealista" (ARENDT, 2004, p.196).
Destaca-se a inevitabilidade com que os homens se revelam como sujeitos, como
pessoas distintas e singulares, mesmo quando interagem instrumentalmente,
assumem papéis sociais impostos, de forma a alcançar objetivos materiais e
mundanos e quando corroboram a estrutura das relações sociais.
Estudar a identidade como representação é entendê-la como produção, pois o
indivíduo não é exatamente algo, mas sim o que ele faz. Sendo o fazer sempre
atividade no mundo, em relação com os outros, o pesquisar sobre identidade
desloca-se de uma questão meramente descritiva para a questão "de compreensão,
de entendimento", sendo necessário "captar os significados implícitos,
considerar o jogo das aparências. A preocupação é com o que se mostra velado"
(CIAMPA, 2005, p.139).
Se a identidade se encontra expressa basicamente quando o indivíduo interage
direta ou indiretamente com o outro, somente a partir da ação no mundo é que o
indíviduo se posiciona e manifesta quem ele é em sua essência (ARENDT, 2004).
Em um contexto de relações de poder, tais movimentos interativos são mais bem
compreendidos por meio da análise do posicionamento assumido, que pode ser
estratégico ou tático. Para os dominados, isso significa assumir uma posição de
resignação ou de resistência (CERTEAU, 1994). Ademais, tal posicionamento
necessariamente se encontra orientado por uma racionalidade. Quando se age de
acordo com valores éticos e estéticos, construir-se-ia uma identidade
substantiva. Por outro lado, quando se age de acordo com fins calculados,
construir-se-ia uma identidade instrumental (RAMOS, 1981; MANNHEIM, 1986).
Para a interpretação dos sentidos e racionalidades expressos nas manifestações
identitárias, é inevitável sua transposição para o nível discursivo. Arendt
(2004) defende que a ação desprovida da esfera discursiva não é ação
propriamente dita, pois não revela seu ator e não permite sua manifestação
interativa. Para a análise da identidade, toda prática passa por sua dimensão
discursiva - mesmo as práticas não verbais seriam transpostas ao nível
discursivo, ou semiotizadas, para que o pesquisador possa desvendar seu
significado e a identidade de seu ator (FAIRCLOUGH, 2003; FOUCAULT, 2007).
A partir das conceituações expostas, propõe-se neste trabalho que estudos sobre
identidade perpassem a análise das práticas dos sujeitos. Tais práticas
revelariam identidades ao serem apreendidas por meio da semiotização, ou seja,
da interpretação dos sentidos de quem agiu. Mesmo que a ação em análise não
seja verbal, leva-se também em consideração o discurso não verbal do indivíduo.
Trata-se, dessa forma, de uma tríade de dimensões inseparáveis (identidade -
prática - discurso). É necessário reconhecer, no entanto, que o processo de
interpretação dessas dimensões será sempre falho, pois está atrelado à
interpretação de um agente exterior, nesse caso do pesquisador. O pesquisador
nunca será capaz de desvendar inteiramente a construção de sentidos do
indivíduo no momento em que ele age e, assim, também não é capaz de apreender
integralmente qual seria sua identidade. No processo de análise discursiva/
semiótica, o pesquisador irá apreender parcialmente os sentidos e a
interpretação deles sofrerá interferências de sua subjetividade.
3. CAMINHOS METODOLÓGICOS: INTEGRANDO O CONCEITO DE IDENTIDADE À ANÁLISE DO
DISCURSO
Tendo consciência das limitações epistemológicas inerentes à abordagem
qualitativa, neste estudo a pesquisadora buscou aproximar-se da realidade dos
sujeitos pesquisados por meio de entrevistas complementadas por observações.
Ademais, buscou-se restringir a análise das identidades, considerando somente o
agir no espaço (físico e simbólico) do Grupo Galpão e dando ênfase à relação da
identidade individual com a construção da identidade coletiva.
Sendo a identidade individual construída a partir das práticas discursivas e
sendo essas últimas sempre relacionadas às estruturas sociolinguísticas e aos
gêneros discursivos, a identidade individual é revelada em determinado contexto
e em relação a outras identidades, individuais e coletivas. Entende-se nesta
pesquisa, portanto, que as identidades coletivas seriam espaços em que
predominam certos gêneros de discurso, certos padrões de práticas enunciativas
(BAKHTIN, 1992). Inserido em uma identidade coletiva, o indivíduo compartilha
com os demais determinados significados, racionalidades e práticas, que
fundamentariam, em última instância, a própria razão de existência do grupo. A
figura da página 11 ilustra o entendimento das relações entre os níveis
individual e coletivo da identidade. Tal entendimento orientou as análises dos
dados coletados.
Dessa forma, buscou-se primeiramente diferenciar os elementos discursivos
pertencentes aos indivíduos e os elementos compartilhados, pertencentes às
identidades coletivas. Em seguida, analisaram-se os discursos de forma a
desvendar os aspectos ideológicos que os permeavam, tanto dos indivíduos quanto
dos coletivos. A partir disso, foi possível delinear as identidades construídas
no interior do Galpão, assim como as tensões entre racionalidades e identidades
individuais e coletivas. Em suma, entende-se, nesta pesquisa, que os espaços de
interação delimitados pelas identidades coletivas fornecem limites para
expressão das identidades individuais. Entretanto, o indivíduo teria
oportunidades de escolha quanto às identidades coletivas das quais faria parte.
Ademais, ocasionalmente, o indivíduo poderia também transformar ativamente os
espaços que lhe impõem relações de dominação (RAMOS, 1981; CIAMPA, 2005).
Articulação entre os Níveis Identitários e Discursivos
Para penetrar na realidade cotidiana do Grupo Galpão, a pesquisadora realizou
um trabalho de coleta de dados que perdurou por cerca de 12 meses. A pesquisa
de campo pôde ser dividida em três etapas. Na primeira, que representou os
primeiros oito meses de pesquisa, foram coletados dados documentais e
bibliográficos preliminares sobre o Grupo Galpão. Houve também conversas
informais com pessoas ligadas ao grupo, como amigos e familiares. Ademais, a
pesquisadora frequentou o primeiro módulo do Curso Livre de Teatro oferecido
pelo Galpão Cine Horto. Os primeiros contatos foram, portanto, observações
assistemáticas, registradas em diários de campo.
Em seguida, partiu-se para a segunda etapa da coleta de dados, que envolveu
observações não participantes e entrevistas em profundidade. Em meados de maio
de 2009, a pesquisadora iniciou o acompanhamento dos ensaios de montagem da
peça "Till: a saga de um herói torto", do Grupo Galpão. Os ensaios ocorriam de
segunda a sexta, das 14h30 às 20h00, na sede do Galpão. As observações foram
feitas até o final do mês de junho e também em três espetáculos de estreia. Em
seguida, durante os meses de julho e agosto, foram entrevistados onze atores do
Galpão. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e o diário de campo
relido.
A partir disso, passou-se para a terceira etapa: a análise dos dados. A análise
ocorreu conforme os elementos teóricos e metodológicos delimitados, seguindo as
definições dos conceitos e a Análise do Discurso (AD). Buscou-se evidenciar
textualmente os seguintes elementos: percursos semânticos; significados
implícitos da semântica e da sintaxe; relações interdiscursivas; e quatro
estratégias de persuasão - criação de personagens, relação entre temas
explícitos e implícitos, silenciamento e seleção lexical (FARIA e LINHARES,
1993; MAINGUENEAU, 2000).
Neste texto, especificamente, optou-se por apresentar as análises referentes
aos temas contidos no percurso semântico sobre os objetivos do grupo, pois ele
foi o mais revelador da dinâmica de construção da identidade coletiva. Ao longo
da exposição das análises, utilizou-se a reprodução de trechos originais das
falas dos entrevistados, com vistas a conferir maior transparência aos
processos interpretativos realizados. Os trechos reproduzidos são sempre
identificados pelos seus enunciadores, cujos nomes foram mantidos em sigilo. Os
onze entrevistados do Grupo Galpão estão representados pela sigla GG e seus
respectivos números. São destacadas em negrito as expressões que mereceram
destaque nas análises.
4. O GRUPO GALPÃO: A ARTE DE (SOBRE)VIVER COLETIVAMENTE
Conforme já exposto, o Grupo Galpão surgiu com influências de um fazer teatral
politizado, a partir das ideias de Bertolt Brecht, o que demarca um aspecto
importante para a construção da identidade coletiva do grupo. Ao longo de sua
trajetória, em contrapartida, observa-se que o Galpão logrou firmar-se no
cenário artístico a partir do recebimento de patrocínios e venda de
espetáculos. Por meio das análises a seguir, buscou-se clarear as formas como o
grupo estabelece objetivos e se organiza coletivamente para conciliar seus
ideais éticos e estéticos com as pressões do mercado de bens culturais.
Acredita-se que tal tensão sirva de fio condutor para compreender a construção
identitária do grupo.
4.1. A gênese do grupo como estratégia de sobrevivência coletiva
Com vistas a desvendar sentidos sobre a identidade coletiva do Grupo Galpão,
conforme já exposto, evidenciou-se aqui o percurso semântico sobre os objetivos
do grupo. O tema que dá início a esse percurso semântico é o da gênese do
grupo.
"E aí a gente enfim encarou a vida como... apostando no grupo como
assim profissão, como sustentação, como um projeto mais a médio e
longo prazo com uma estrutura melhor" (GG1).
"Claro que, quando nós pensamos montar um grupo, dar sequência a esse
trabalho com os alemães, a gente tinha essa ideia de ser um grupo,
né? De criar uma linguagem, de ter uma proposta a... a... a médio e
longo prazo. Não ser uma coisa imediata" (GG9).
"Investimento no ator mesmo com aulas e o Galpão sempre teve isso,
né. Antigamente vivia precaria-mente, mas ele era um grupo que ficava
ali pesquisando" (GG11).
Destaca-se, primeiramente, que o tema da gênese do grupo é permeado pela
dimensão temporal do longo prazo. Os enunciadores representam a origem do
Galpão como um momento em que os membros vislumbraram obter resultados futuros
por meio da ação coletiva. Nesse sentido, trata-se de práticas do tipo
estratégias, segundo Certeau (1994). A institucionalização de um grupo, como
espaço legítimo de união de esforços individuais, seria uma forma de viabilizar
o cumprimento da estratégia coletiva. Os vocábulos utilizados para denotar tal
processo de institucionalização nesses trechos são: grupo, projeto, estrutura,
linguagem, proposta. Esse seria o espaço a ser chamado de próprio e onde no
decorrer dos anos seria exercido o poder estratégico em prol do atingimento dos
objetivos. Ademais, os verbos apostar e investir trazem implícita a ideia de
acúmulo futuro, típica da ação estratégica.
Um dos objetivos iniciais do grupo teria sido viabilizar a sobrevivência por
meio do trabalho com o teatro.
"Isso... isso era muito claro pra nós. Que era importante que cada um
pudesse tirar o sustento do próprio trabalho do grupo. A gente se...
a gente percebia que sem isso a gente não ia poder seguir em frente,
né? Por que um trabalho que não gera o seu sustento é um trabalho
condenado ao seu fracasso, né?" (GG9).
"Mas eu percebi, eu percebo, que a primeira intenção do coletivo, de
montar um grupo, era de ser uma coisa profissional, uma coisa que
tivesse uma... horário, uma técnica qualquer de fazer espetáculo..."
(GG2).
"Eu acho que uma maneira, uma seriedade muito grande, um compromisso
muito grande com o trabalho, com a qualidade do trabalho... com a
maneira de fazer e um comprometimento muito grande com isso, né...
e... com a perspectiva de transformar aquilo num modo de vida" (GG3).
Nos trechos destacados está explícito o objetivo de obter, a partir do trabalho
em grupo, uma forma de manutenção da existência. GG9 coloca a ideia da
sobrevivência a partir do teatro como condição para o sucesso e a continuidade
do próprio grupo. Como o relato foi coletado no final de 2009, o enunciador
deixa implícita a ideia de que o grupo é bem-sucedido, já que logrou sustentar-
se por tantos anos. GG2 retoma o tema do profissionalismo, relacionando-o à
existência de normas e práticas compartilhadas. Infere-se que, somente por meio
do agrupamento de atores, é que seria possível obter tal estruturação do
trabalho. GG3 também representa a existência do grupo como uma forma de
estruturar maneiras de fazer e práticas voltadas ao resultado final dos
esforços, que deveria ser de boa qualidade e prover a sobrevivência. Nesse
sentido, a representação do grupo como uma instância provedora de manutenção da
existência de seus membros traz implícita a ideia de que o grupo deveria ser a
instância central de identificação desses indivíduos. Ao almejar que todos os
membros pudessem dedicar-se integralmente ao trabalho em grupo, como atividade
principal, infere-se o objetivo coletivo de que suas identidades estivessem
vinculadas primariamente ao Galpão e não a outras atividades instrumentais que
gerassem sustento.
4.2. A ocupação da rua como estratégia identitária
O tema da ocupação da rua é representado como uma tática vislumbrada pelo
grupo, desde sua gênese, para contornar de forma astuciosa as relações de poder
dominantes no contexto de produção teatral. A caracterização do teatro de rua
inicialmente como tática se baseia na ideia de que o grupo, ao se apresentar
nas ruas, buscava retorno imediato e oportunista, apropriando-se de um espaço
que não lhe era próprio (CERTEAU, 1994).
"Do artista ir aonde o povo está, o Galpão sempre fez isso... desde
quando começou e não como uma coisa demagoga, assim neste sentido:
'Ah, precisamos levar cultura ao povo!' Mas até como estratégia de
sobrevivência, né?" (GG4).
"Foi um dos motivos que o Galpão apareceu na rua, pra não depender de
espaços públicos, os espaços eram todos públicos, da prefeitura, do
estado e era uma dificuldade terrível" (GG11).
"A opção do Galpão de ter a rua foi o grande diferencial para
conquistar os patrocinadores, conquistar o público, porque... dentro
das salas de teatro a gente vê... o público é muito pouco, né?"
(GG2).
A prática de levar o teatro para a rua é representada como uma opção criativa e
de resistência para garantir a sobrevivência nos primórdios do grupo, a
independência dos controladores dos espaços públicos (prefeitura e estado) e a
atração dos personagens patrocinadores e público.
A tática do teatro de rua, ao tornar-se bem-sucedida e reforçar-se ao longo dos
anos, torna-se um dos elementos identitários centrais do Grupo Galpão,
integrando o objetivo estratégico coletivo de gerar o sustento por meio do
teatro. Nesse sentido, a partir de uma tática de resistência ao poder
controlador das casas públicas de teatro, a estratégia do Grupo Galpão
constrói-se e, aos poucos, o espaço da rua passa a ser apropriado e, até mesmo,
tornado um espaço legítimo do Galpão, sendo reconhecido pelo público como tal.
Portanto, trata-se de uma prática que surge inicialmente como tática e,
posteriormente, torna-se uma estratégia identitária.
"O grupo já é muito conhecido com teatro de rua e tudo, tinha uma
necessidade. O público também pedia que a gente voltasse pra rua"
(GG5).
"Vai estabelecendo uma... uma maneira, um jeito de fazer, você vai
imprimindo aquilo. Então, se de repente o Galpão resolve: 'Ah não, o
próximo espetáculo do Galpão vai ser um espetáculo aos moldes da A
Comédia da Esposa Muda', que a gente fazia com condições favoráveis
de alojamento para o público, a gente fazia para, no máximo, no
máximo 500, 600 pessoas e o que... aí você fica meio refém da sua, da
sua... acaba que o Galpão, neste sentido, fica um refém da
popularidade dele" (GG3).
"A história do Galpão tem muito dessa... dessa coisa de... de ocupar
pela primeira vez o espaço, a gente fez o primeiro espetáculo na
Praça do Correio no Rio, que depois virou espaço para espetáculo, fez
no Ipiranga em São Paulo que também virou espaço para espetáculo, fez
na Praça JK antes dessa reforma que você conhece, fez, usou pelo FIT
a primeira apresentação lá na Serraria Souza Pinto" (GG1).
"Começou com essa coisa da rua, né?, de entrar na vida, de entrar, de
ocupar, de ocupar o seu lugar, de ir se aprimorando e ocupando o seu
lugar, depois também não quis ficar... logo no início, começou já a
fazer teatro de sala também" (GG7).
Os trechos destacados trazem em comum o tema implícito da legitimidade do
Galpão como grupo de teatro de rua. À personagem público é atribuída a
responsabilidade do reconhecimento do trabalho do Galpão. GG5 representa o
público como uma figura que demanda peças de rua. Nesse sentido, atender a tal
expectativa é uma estratégia de manutenção identitária do grupo. GG3, por meio
do verbo no gerúndio imprimir, também sugere implicitamente a ideia de que, ao
longo do tempo, o Galpão construiu sua identidade calcada no teatro de rua.
Contudo, o enunciador representa o lado negativo do reconhecimento do público,
pois, passados quase 30 anos de sua fundação, o grupo não teria mais a
liberdade de realizar peças de rua nos moldes de suas peças iniciais. A partir
do adjetivo refém, infere-se que, segundo o enunciador, o Galpão teria um
número restrito de práticas possíveis, sendo sua identidade também limitada ao
que o próprio grupo reforçou durante anos. Nesse sentido, sinaliza-se a
dificuldade de empreender uma identidade coletiva do tipo metamorfose para o
Galpão, devido às pressões e expectativas de agentes externos que o grupo
precisa atender (CIAMPA, 2005). Manter uma identidade de refém, portanto, seria
praticar uma identidade instrumental.
Por outro lado, GG1 e GG7 reforçam a ideia de que o Galpão, aos poucos, se
apropriou do espaço da rua como lugar próprio. O uso do verbo ocupar traz
implícita tal ideia. Nesse sentido, o grupo teria liberdade para ocupar
legitimamente diferentes lugares nunca antes utilizados por outros grupos de
teatro. Tal prática, segundo GG1, teria constituído um traço identitário para o
grupo. GG7 enfatiza a prática do grupo de conciliar o teatro de sala com o
teatro de rua desde o início. Em outras palavras, tratar-se-ia de uma
estratégia de variação das práticas para, talvez, evitar que o grupo se
tornasse refém da própria identidade, como exposto por GG3.
"A gente procura ir em lugares onde o teatro não vai, né?... e
realmente é uma delícia você desvirginar esses lugares, sabe? Então,
eu acho que essa, pra mim, é a grande importância do Galpão na
sociedade. É ir chegando e desbravando, o que é um pouco bandeirante
neste sentido" (GG4).
"Eu acho que a gente fazendo teatro de rua, a gente tá fazendo mais
uma condição social do que teatro de palco" (GG2).
"O próprio fato da gente fazer teatro na rua, eu acho que, quando a
gente vai pra uma praça onde não interessa, todo mundo pode ir, não
interessa de onde, quem, todo mundo está ali assistindo. Em alguém
ali a gente vai despertar alguma coisa nova, com certeza. A gente tem
tido o retorno disso. Estar na rua acho que também é um projeto
social. A gente proporciona uma experiência estética, mesmo
reflexiva, através da gargalhada você pode tocar outras coisas
também" (GG6).
Além de tática de sobrevivência e estratégia identitária instrumental, o tema
do teatro de rua também é representado pelo sentido ético, o que constrói
sentidos substantivos à identificação do grupo com o trabalho na rua. Levar o
teatro a lugares inusitados e a pessoas que não costumam frequentar as casas de
espetáculos é destacado como uma prática boa e desejável. GG4 compara
metaforicamente o Galpão à figura de um "bandeirante, que desvirgina, chega e
desbrava" lugares aonde o teatro ainda não foi. Tal metáfora traçaria um
paralelo entre a função colonizadora dos bandeirantes e a função cultural do
Galpão, cuja atuação na sociedade seria a disseminação de valores culturais.
Nesse ponto, observa-se uma relação interdiscursiva com o discurso da cultura
afirmativa, o que possibilita o questionamento da existência de valores éticos
autênticos, pois o sentido implícito estaria mais próximo aos valores morais
instrumentais, suavizantes de conflitos sociais e homogeneizantes (MANNHEIM,
1986; MARCUSE, [1937] 2001).
GG2 compara as duas formas de teatro, de rua e de palco, e representa a
primeira como mais próxima à atuação social. O enunciador silencia, contudo,
sobre qual seria o conteúdo de tal atuação. GG6, por sua vez, representa
implicitamente a prática do Galpão, de levar o teatro de rua a locais que não
interessam, como calcada em valores éticos. Primeiramente, pelo fato de serem
lugares onde financeiramente não seria interessante apresentar-se. Em segundo
lugar, pelo fato de a prática do teatro de rua proporcionar experiência
estética às pessoas. Tal tipo de experiência estaria ligada a momentos de
reflexão. Infere-se que poder tocar os espectadores é considerado bom e
desejável pelo enunciador. Nesse sentido, a arte é representada como forma de
proporcionar experiências transcendentes às pessoas que assistem a ela, não
apenas ao artista que a realiza. Nesse trecho, destaca-se ainda o uso do
vocábulo praça, como aparece outras vezes no depoimento de outros membros, não
em seu sentido literal, mas para denotar lugar de atuação. O uso da palavra
praça dessa forma traça uma relação interdiscusiva com o vocabulário da
administração estratégica, como local de exploração comercial e apropriado como
espaço de competição entre organizações. Portanto, coexistem no discurso
elementos semânticos ligados à ética e à instrumentalidade capitalista. Nota-se
que a ambiguidade é um figura semântica recorrente nos depoimentos.
"É nossa grande dificuldade, às vezes maior, é isso: é uma empresa
que não é uma empresa com fins lucrativos. Nós somos sócios, mas a
gente não tem uma visão empresarial de enriquecer, então é uma
empresa peculiar, assim, estranha, nesse sentido [...] apesar da
gente sobreviver do dinheiro que ela gera, mas a gente não visa o
lucro" (GG5).
"A gente não construiu a Associação Galpão pra ficar rico com o
teatro. Isso seria uma ilusão muito grande, mas tem sempre esse
sentido artístico dali, do grupo, né?, que é decidido sempre... as
decisões artísticas são feitas em grupo, né?, numa reunião com os 13"
(GG4).
"Bem no começo, o Galpão procurava dinheiro, não para, pra fazer uma
peça. Não, se procurava, procurava dinheiro pra bancar um projeto de
um ano, que fosse. Um projeto esse que iria incluir uma série de, uma
série de outras coisas [...] um tanto de coisas enriquecedoras"
(GG7).
Nesses trechos, observa-se a presença de sentidos ambíguos implícitos ligados
aos objetivos do Grupo Galpão. O fato de os membros terem constituído o grupo
ou terem aceitado fazer parte dele, com o intuito de que o Galpão fosse a
instância provedora central de realização artística e de sobrevivência
financeira, leva à inserção do grupo no mercado de bens culturais e, ao mesmo
tempo, à busca da manutenção da criatividade e dos objetivos éticos. Muitas
vezes, essa dupla consequência gera ambiguidades nas práticas discursivas
sustentadas pelo grupo. GG5, ao caracterizar o Galpão, utiliza o vocábulo
empresa, que denota um tipo de organização com fins lucrativos, mas nega
imediatamente a busca do lucro e reconhece explicitamente a construção
paradoxal, por meio dos vocábulos peculiar e estranha. GG4 sugere
explicitamente a predominância do sentido artístico da existência do grupo
sobre o sentido financeiro. Contudo, ao citar ambos, faz pressupr sua
coexistência nas atividades coletivas. GG7, por sua vez, conta que, desde o
início, o objetivo do Galpão não era a busca de financiamento para a produção
de peças teatrais, mas sim para a manutenção de uma série de atividades extra-
artísticas desenvolvidas pelo grupo, consideradas enriquecedoras. Nesse
sentido, o enunciador deixa implícito que o sentido ético da atuação do Galpão
se sobreporia à própria atividade artística em si, negando-se a busca de
dinheiro sem tal sentido. Contudo, novamente se observa a menção às esferas
financeira, artística e ética no discurso, o que sinaliza para a coexistência
dessas esferas, e de suas distintas racionalidades, na própria prática
cotidiana do grupo.
4.3. O Galpão Cine Horto e as transformações identitárias
Ao longo das narrativas sobre a trajetória do Grupo Galpão, surgem novos
sentidos e temas ligados aos objetivos coletivos. O Galpão Cine Horto, centro
cultural fundado pelo grupo, é uma figura discursiva relevante, que sinaliza
para novos sentidos atribuídos à identidade do grupo.
"Eu acho que o grupo continua fiel a esse propósito inicial. É... é
claro que isso foi se modificando, né? É... acho que em muitos
aspectos o grupo se tornou mais flexível, existe a coisa do centro
cultural, existe uma preocupação, assim de uma transmissão também de
conhecimento, né?" (GG9).
"Mas eu achava que o Galpão não... que devia... devia orientar fogo,
no outro sentido, num sentido mais meramente artístico... mas acho
que foi uma grande ideia, acho que é um projeto maravilhoso, que dá a
oportunidade ao Galpão de prestar um serviço, né?" (GG3).
Tanto GG9 quanto GG3 são membros fundadores do Grupo Galpão. Portanto, já
faziam parte do grupo quando foram estabelecidos seus objetivos originais.
Talvez não seja mera coincidência o fato de que ambos os enunciadores atribuem
à figura do Cine Horto, implícita nas expressões centro cultural e projeto, uma
mudança nos propósitos iniciais do Galpão. Tal mudança seria um aumento no
escopo de atuação do grupo, ideia implícita nos vocábulos flexível e grande
ideia. A partir de tais expressões, infere-se que o coletivo possuía objetivos
centrais determinados e acabou admitindo objetivos novos com o passar do tempo.
A identidade coletiva do Galpão adquiriu novos sentidos, a partir de novas
estratégias e novas práticas, saindo do meramente artístico para a transmissão
de conhecimento e a prestação de serviço.
Ademais, GG3 admite explicitamente sua resistência inicial ao aumento do escopo
de atividades do grupo. Contudo, fica implícito que decisões foram tomadas,
mesmo havendo sua discordância inicial, no sentido da implementação do projeto
do Cine Horto. Observa-se, portanto, no discurso de GG3, que a representação da
identidade coletiva do Galpão sofreu alteração, de um grupo voltado à prática
da arte, para um que também presta serviços. Essa alteração, no entanto, parece
ter sido posteriormente bem aceita pelo enunciador, sentido implícito nos
adjetivos grande e maravilhoso. Assim, infere-se que não houve rompimento
identificatório por parte de GG3 em relação ao Galpão. O enunciador continua
fazendo parte do grupo e, agora, aceita todos os objetivos coletivos.
Ao contrário de GG3 e GG9, alguns membros do Galpão representam a criação do
Cine Horto como uma prática natural, decorrente dos propósitos originais do
grupo.
"O Cine Horto faz com que o grupo não se feche. Na verdade o Galpão
nunca se fechou, ele já criou o FIT, Festival de Teatro de Rua.
Então, o Galpão sempre compartilhou muito com outros artistas e o
Cine Horto ampliou isso" (GG5).
"Ficou um vácuo nessa relação do Galpão, nossa com a sociedade, já
que a gente não fazia mais o FIT. Foi aí que aparece o Cine Horto, a
possibilidade do Cine Horto" (GG1).
GG5 e GG1 representam o Galpão como um grupo que possui vocação desde sempre
para relacionar-se com a sociedade. GG5 deixa essa ideia explícita nos
advérbios nunca e sempre. Nesses trechos, a figura explícita do Cine Horto é
representada como uma estratégia de manutenção identitária do grupo, no sentido
de manter a prática de interlocução com indivíduos externos. O FIT teria sido
também uma estratégia dessa natureza, contudo foi abandonada pelo grupo.
Observa-se, em ambos os relatos, que os enunciadores empregam sentidos de
modalidade em relação ao tema da interlocução com a sociedade, ou seja, eles o
representam como um sentido a priori, verdadeiro e necessário, sendo
justificativa válida para a criação do Cine Horto. Portanto, é necessário que
haja tal preocupação extra-artística por parte do grupo. Caso contrário,
conforme exposto por GG1, haverá um vácuo.
"Acho o Cine Horto um projeto muito bacana e ele... ele... Além da
beleza do projeto em si, ele é muito legal também por causa da
demanda, porque o Galpão viaja muito e tem muita gente que quer ter
experiências próximas ao Galpão, entendeu?" (GG6).
"Essencial pro Galpão, porque o Cine Horto é... cobre uma demanda
enorme de pessoas que querem trabalhar com o Galpão, que querem
conhecer, ficar mais próximo do Galpão, né. Além de ter uma... como é
que fala? Uma vertente voltada para o social, pra comunidade e que é
muito importante pro grupo também, né? Além de tudo, possibilitar
mais janelas pra arejar mais a gente aqui dentro" (GG10).
"A gente não tá aqui todos os dias, e quem toca realmente são essas
pessoas que vieram aqui buscar o conhecimento, reciclagem e vem com
ideias também que a gente acaba descobrindo. Eu acho que é isso que
faz essa dinâmica tão bacana do Cine Horto, então eu acho que essa é
a nossa maior contribuição, não fechar, né, mostrar sempre, procurar
mostrar sempre que é possível ir um pouco além..." (GG4).
Além de estratégia de flexibilização ou de manutenção identitária, o Cine Horto
também é representado como uma estratégia de extensão identitária. Nos três
trechos acima destacados, o Cine Horto é representado como um território do
Grupo Galpão, que o representa mesmo quando seus membros não estão presentes.
Nesse sentido, o Cine Horto seria uma estratégia do Galpão que permite a
desvinculação da identidade do grupo das identidades individuais de seus
membros. O Galpão passaria a ser representado como uma entidade que engloba não
só o grupo de atores, mas também a estrutura do Cine Horto e as pessoas que
dele fazem parte. Nos trechos destacados, de GG6 e GG10, observa-se o duplo
sentido que o vocábulo Galpão assume, tanto como grupo de atores, nas
expressões Galpão viaja e essencial pro Galpão, quanto como como entidade que
pode ser legitimamente representada pela figura do Cine Horto, na expressão
próximo ao Galpão.
Embora a criação do Cine Horto denote um movimento de extensão da identidade do
Galpão, observa-se que o duplo sentido do vocábulo Galpão se mantém ao longo
dos discursos, sinalizando que há diferenças entre a identidade do grupo de
atores e a identidade da entidade Galpão. GG10 deixa explícita a existência dos
limites entre as duas identidades, ao dizer a gente aqui dentro para referir-se
aos atores do Galpão em relação às possibilidades de interação com o Cine
Horto. GG4 também explicita a diferenciação entre a gente, atores do Galpão, e
as pessoas que trabalham no Cine Horto. Nota-se que, a partir do tema do
surgimento do Cine Horto, todos os enunciadores passam a denotar a
diferenciação identitária entre o Galpão, como grupo de atores, e o Galpão,
como entidade. Tal diferenciação é muitas vezes tênue e não explícita, mas
recorrentemente se torna clara.
"Então, ela (empresa patrocinadora) tem uma... um ganho aí, da marca
associada ao Cine Horto. Que por tabela tá associado ao Galpão e o
Galpão também, por tabela tá associado ao Cine Horto, né? Então todo
esse trabalho social que o Cine Horto faz e... e ele reverte também
numa... numa boa impressão que a população tem do Galpão" (GG11).
"Embora a Petrobras patrocine aqui, mas nos olhos da mídia, nos olhos
da opinião pública, nos olhos institucionais, assim, o Galpão
desenvolve uma dezena de projetos de formação, de troca, de pesquisa,
de produção através do Cine Horto. Então o Cine Horto é meio que...
ajuda na imagem, sabe, ele justifica um pouco algumas coisas que a
gente tem" (GG1).
"Eu acho que é porque ele complementa um lado social que o Galpão não
dá... Não consegue dar porque a gente fica na coisa do espetáculo, de
representar, a gente dá oficina quando a gente viaja [...]. Mas é o
máximo que a gente consegue dar e o retorno que o Cine Horto dá é
importantíssimo pra gente. [...] O Galpão Cine Horto é totalmente, é
um peso na balança assim, que é importantíssimo. Então é uma moeda
bem valiosa" (GG2).
Por fim, a quarta representação da figura do Galpão Cine Horto é de uma
estratégia de projeção identitária perante a sociedade e os patrocinadores. Os
projetos realizados no Cine Horto serviriam para projetar uma identidade
positiva do Grupo Galpão. Tal identidade, contudo, assume implicitamente
sentidos instrumentais e artificiais. Tais sentidos são inferidos a partir das
expressões boa impressão, imagem, peso na balança e moeda valiosa. Novamente,
encontra-se implícita a diferenciação entre a identidade do Galpão (grupo de
atores) e a identidade do Galpão Entidade (entidade que engloba os atores e o
Cine Horto). Nos três trechos destacados, os enunciadores colocam-se
explicitamente cientes de que, aos olhos de personagens externos (empresas,
sociedade, instituições), as identidades do Grupo Galpão e do Galpão Entidade
misturam-se.
A manutenção de uma identidade única, englobando grupo de atores e Cine Horto,
seria uma estratégia interessante para os enunciadores, como membros do Grupo
Galpão, pois seria uma identidade instrumental para atingir fins desejáveis,
tais como patrocínios, aceitação e legitimidade. Atrelado ao sentido da
instrumentalidade, pressupõe-se o sentido da artificialidade dessa identidade,
pois os próprios enunciadores revelam claramente os limites entre o que seria a
representação autêntica da identidade do Grupo Galpão (grupo de atores que se
concentra em viajar, fazer espetáculos e algumas oficinas) e o que seria a
representação artificial da identidade do Galpão Entidade (grupo coeso de
pessoas que realiza peças de teatro e projetos sociais). Nesse sentido, os
discursos assumem novamente sentidos ambíguos, de afirmação de uma identidade
única entre Galpão e Galpão Cine Horto perante a sociedade e de implicitamente
delimitar os limites identitários autênticos no interior do Galpão Entidade.
4.4. A estruturação do Grupo Galpão
Ainda relacionado ao percurso semântico dos objetivos do Galpão, destaca-se o
tema da estrutura do grupo, ou seja, como o grupo se articulou ao longo dos
anos para atingir seus objetivos. Trata-se de um tema de relevância para
identificar a racionalidade coletiva predominante, pois quanto mais prescritiva
é a estrutura normativa de um sistema, mais ela guia o comportamento individual
no sentido da conformação de papéis e, por conseguinte, menor é o espaço para
atualização pessoal e expressão substantiva da identidade (RAMOS, 1981). No
caso do Galpão, observa-se um aumento gradativo na estruturação do grupo.
"Ainda era uma estrutura em que todo mundo fazia as coisas aqui
dentro, assim, o próprio grupo dava conta de solucionar o dia a dia,
de produção, de..., enfim, de tudo que acarreta essa estrutura"
(GG6).
"No começo, o grupo tinha uma estrutura em que os atores que tinham
que fazer tudo, a produção, divulgação [...] aí depois é que com o
tempo a estrutura foi crescendo e tal... Hoje, eu faço uma
coordenação disso" (GG11).
Os dois trechos acima destacados abordam o tema da comparação entre a estrutura
do início do grupo e como ela é hoje. GG6 indica de forma implícita tal sentido
de comparação a partir do vocábulo ainda e dos verbos conjungados no pretérito
imperfeito do indicativo, que sinalizam ações que foram habutais no passado.
GG11, por sua vez, compara explicitamente a estrutura de antes e a de hoje e
ilustra a mudança de papéis dos atores do Galpão com o próprio exemplo. O
enunciador antigamente também desempenhava várias atividades para manutenção do
grupo e, no momento em que o estudo foi realizado, ele apenas as coordenaria.
Nos dois trechos, observa-se a personagem explícita dos atores do grupo, nas
expressões todo mundo, próprio grupo e atores. Destaca-se também a personagem
implícita do pessoal de apoio, que hoje existiria na estrutura do Galpão
exclusivamente para dar suporte às atividades centrais do grupo. Essa
personagem detém, portanto, a responsabilidade pelas atividades de manutenção
estrutural do Galpão e teria aliviado a carga de trabalho para os atores.
Contudo, a falta de destaque explícito e de menção aos nomes próprios desse
grupo de personagens permite inferir que os enunciadores não atribuem grande
importância a suas identidades individuais específicas para a construção da
identidade coletiva do Grupo Galpão.
"As pessoas vão assumindo determinadas funções e tal e a gente tem um
sistema de avaliação de desempenho [...]. E aí, em função disso, a
gente faz avaliação do desempenho das pessoas e aí se define salário,
né? Cachê dos espetáculos é igual pra todo mundo que atua, que tava
no espetáculo, mas a gente tem uma diferenciação de salários em
função dessa análise de desempenho, essa avaliação de desempenho"
(GG11).
"A gente tem um caderninho de metas. Nós temos as nossas reuniões
artísticas e as reuniões mais administrativas também aqui... que tem
umas reuniões referentes à estrutura do grupo, que a gente até faz
com o Pimenta, que é um mediador, é um cara que trabalha com a gente,
pra gente conseguir conduzir bem os projetos. E temos essas anotações
artísticas, que a gente volta e meia volta a elas, vê o que a gente
cumpriu, o que a gente faz, então a gente sempre tem planos" (GG6).
"Essas reuniões de grupo são pautas mais difíceis de resolver, são
decisões mais, decisões mais difíceis de se tomar, que aí convoca os
13 e esse mediador. Junto com isso, tem uma avaliação anual, de
desempenho, vê o que cada um propôs no início do ano" (GG7).
Os trechos destacados representam a forma como os atores do grupo se
estruturavam no momento em que a pesquisa foi realizada. A partir dos vocábulos
funções, metas e planos, observa-se que há fixação de regras, metas e tarefas
para os membros. Nesse aspecto, o Galpão parece reproduzir o modelo de equipes
polivalentes para a produção artística, identificadas por Bendasolli et al.
(2009). Contudo, GG11 e GG7 explicitam que a divisão funcional entre os atores
se dá de forma espontânea e consentida por todos. Na fala de GG11, o uso do
verbo assumir no gerúndio dá o sentido de naturalidade a esse processo.
Ademais, GG7 emprega o verbo propor, que também conferiria o sentido de
compromisso, individual e ativo, pelas atribuições. Após tal divisão de
funções, a prática vigente do grupo no momento em que ele foi pesquisado era a
de realizar periodicamente uma avaliação de desempenho. Essa expressão
estabelece uma relação interdiscursiva com o discurso gerencial. A avaliação de
desempenho é um conceito legítimo do campo discursivo da gestão de recursos
humanos, notadamente em organizações econômicas. Contudo, tal ex-pressão parece
ter sido ressignificada ao ser utilizada no contexto do Grupo Galpão.
Primeiramente, por não haver uma figura de autoridade centralizadora, que
prescreve e impõe aos indivíduos seus cargos e papéis sociais. Em segundo
lugar, por ser um processo conduzido pela personagem discursiva Pimenta,
representada como um intermediador, que apenas facilitaria o processo
avaliativo, realizado por todos coletivamente. A ideia da avaliação feita em
conjunto por todos os membros está explícita no uso da primeira pessoa do
plural e das expressões a gente e os 13. Portanto, apesar da prescrição mínima
de normas, a avaliação de desempenho feita no Galpão não parece tornar seus
membros agentes passivos do processo, nem eliminaria o espaço para iniciativas
livres e substanciais dos indivíduos.
No entanto, simultaneamente, tal avaliação assume o sentido tradicional de
instrumento de gestão ao ser utilizada como meio para distribuição dos
rendimentos do grupo. Ao recompensar individualmente, diferenciando os membros
e impondo o que é válido e merecedor de salário, o sistema avaliativo acaba por
guiar de certa forma os comportamentos e por reduzir a liberdade dos
indivíduos. Nesse sentido, mais uma vez, nota-se a existência de sentidos
ambíguos nas práticas (discursivas) do grupo que, em última instância,
remeteriam à tensão entre a necessidade de existência e a de transcendência a
partir da produção artística.
"Eu acho, que essa é a grande diferença do Galpão que é um grupo que
há 15 anos é patrocinado e conseguiu com isso uma organização e uma
estrutura, que é organizado, estruturado. Justamente por isso a
popularidade que o Galpão tem. O Galpão tem um público enorme em
qualquer lugar que ele vai, isso também é uma grande diferença"
(GG10).
"Muito, pensamos sempre muito na venda do es-petáculo, né? Que tipo
de perfil que tem aquele espetáculo, né? Que tipo... claro que o... a
recepção do público é uma coisa que está sempre... muito presente na
construção do espetáculo, sempre" (GG9).
A crescente estruturação do grupo direcionaria cada vez mais suas práticas ao
atingimento de resultados positivos, entendidos como a boa aceitação do
público. GG10 explicita inter-relações entre aspectos identitários do Galpão. O
fato de o grupo possuir apoio de patrocinadores há anos e, com isso, poder
estruturar-se, reforçou seu reconhecimento externo. Portanto, a possibilidade
de estruturação possibilitou a afirmação da identidade do Galpão perante seu
público, o que resulta em legitimidade e popularidade para o grupo. Infere-se,
consequentemente, que isso trará os bons resultados, inclusive, reforçará as
interações com o personagem patrocinador, pressupondo-se o relacionamento de
troca típico do discurso do marketing cultural. GG9, por sua vez, explicita o
pensamento voltado a resultados que emerge a partir da estrutura interna do
Galpão. Novamente fica implícito que o sucesso do grupo reside na boa recepção
de sua arte por parte do público. Nessas passagens, as práticas discursivas
apontam para a representação de uma identidade instrumental do Grupo Galpão,
como um grupo que deve articular-se para produzir espetáculos que vendam e que
agradem ao público para, assim, conseguir manter a própria existência. Na
expressão venda de espetáculo torna-se explícito o sentido de mercadoria ou de
bem cultural da peça de teatro, que deverá ser comercializada. O espetáculo é o
produto final do Galpão, seu meio para obter recursos e deveria ser pensado
estrategicamente.
O tema da estruturação, em conjunto com o tema da obtenção de resultados,
justifica uma série de práticas estratégicas do grupo, que sustenta sua
identidade coletiva.
"A gente tem funcionado um pouco assim: a gente monta o espetáculo e
este espetáculo fica em cartaz durante mais assim... às vezes, fica
em cartaz dez anos, às vezes, 20. A gente é... é... como é que fala
isso? É... é... a gente promove o espetáculo, assim, bastante,
durante dois anos, o ano da montagem, mais um ano [...], já
programando turnês nacionais e tal e pápá. E, depois, ele entra num
ritmo, assim de repertório" (GG11).
"A gente tem espetáculos que são feitos dentro desse patrocínio da
Petrobras e os espetáculos que a gente vende, né? Vende pra
festivais, pra eventos, quer dizer, em princípio a gente vende pra
qualquer situação, né?" (GG9).
"A peça do Galpão, ela não é, ela não é um trabalho para, não é só
mais uma peça, é uma peça dentro de uma, dentro de uma empresa,
dentro de uma coisa que já está estruturada e agora é aquela peça
nova" (GG7).
Os três trechos destacados abordam o tema das estratégias do grupo.
Implicitamente, o objetivo dessas estratégias seria a venda de espetáculos, que
possibilitaria a manutenção da existência do grupo. GG11 descreve a estratégia
do Galpão de manter por anos várias montagens, a mais recente foi promovida
durante seus primeiros dois anos de apresentação. Nesse sentido, tal prática
constrói a identidade do Galpão como um grupo de teatro de repertório.
Implicitamente, tal identidade é reafirmada no discurso de GG9, que usa o
vocábulo espetáculos, no plural, fazendo menção às várias peças que o grupo
mantém como produtos a serem vendidos. GG7, por sua vez, representa a figura da
peça do Galpão como um produto gerado por uma estrutura empresarial. Dessa
forma, o sentido da peça nova torna-se secundário em relação ao sentido da
manutenção da empresa. Nesse ponto observam-se, novamente, sentidos
instrumentais nas práticas do Galpão, sendo a figura da peça representada como
mercadoria.
4.5. O futuro do Grupo Galpão
Para finalizar o percurso semântico dos objetivos do Grupo Galpão, destaca-se o
tema dos planos do grupo.
"Fazer um espetáculo de sala, com estrutura me-nor, não precisa ser o
elenco todo é... de muitas pessoas de... e aí a gente poder montar um
outro desse tipo no outro ano, que não haver tanta produção, tanta...
então a gente tá tentando mudar um pouquinho esse modus operandi
atual nosso" (GG11).
"Acho que fazer um teatro mais despojado, mais simples, mais... uma
coisa mais de sala, talvez que dependa menos de recursos técnicos.
Essa é pelo menos a sugestão, a proposta que tá mais presente. [...]
Eu acho que, além de ser bom como... artisticamente, pro trabalho dos
atores, do grupo. Acho que economicamente pode ser interessante
também, como uma coisa de ocupar um espaço que, normalmente, os
espetáculos do Galpão têm mais dificuldade de ocupar, né? Às vezes,
de se apresentar num lugar menor" (GG9).
O discurso predominante entre os membros entrevistados gira em torno do tema da
mudança tática. Para garantia da sobrevivência do grupo, em tempos de
imprevisibilidade e estabilidade, seria necessário criar táticas mais flexíveis
e adaptativas. Tais práticas reformulariam a estrutura do Galpão na época da
pesquisa, representada como grande e onerosa demais. Nesse sentido, reformular-
se-ia também a própria identidade coletiva, o modus operandi do grupo. O
sentido dessa mudança é permeado por aspectos instrumentais e substanciais. GG9
representa o plano de mudança tática como forma de expandir o escopo de atuação
do grupo. Contudo, ao mesmo tempo, esse enunciador reconhece que a nova prática
pode ser interessante para o desenvolvimento artístico dos membros.
Nesse sentido, o plano de realizar espetáculos menores seria uma tática de
sobrevivência do grupo, alinhada ao objetivo estratégico da venda de
espetáculos, mas, ao mesmo tempo, também representaria uma reformulação da
estrutura interna do grupo, dando maior espaço para a expressão substancial das
identidades. Seja qual for o sentido predominante que sustenta o discurso sobre
os planos do grupo, a mudança das práticas alteraria a identidade coletiva do
Galpão que estaria, portanto, aberta a modificações. A reformulação da
identidade do grupo é um movimento que deve ser legitimado pelo público,
mantendo-se, assim, o reconhecimento externo do Galpão como um grupo de teatro
que merece ser apreciado. Nesse caso, observar-se-ia uma estratégia identitária
externa (DUBAR, 2005).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise exposta, é possível considerar que a identidade do Grupo
Galpão foi construída a partir de estratégias e táticas que visavam à
manutenção da sobrevivência do grupo e, ao mesmo tempo, à realização de
objetivos éticos e estéticos comuns. Apesar de nem sempre haver consenso sobre
os sentidos das práticas coletivas, demonstrando uma mistura de racionalidades
e identidades individuais distintas, considera-se que a identidade do Grupo
Galpão apresenta coesão interna, pois seus membros parecem aceitar os objetivos
coletivos e certa prescrição mínima de funções e normas em suas práticas
diárias. Tal conclusão pôde ser inferida por meio tanto das observações
realizadas ao longo da pesquisa quanto dos discursos coletados, que apresentam
um gênero discursivo com sentidos partilhados pelos membros, o que confere um
padrão identitário às práticas discursivas do grupo. A legitimidade de sua
estrutura, seus objetivos perante os membros e o reconhecimento externo de sua
identidade garantem a manutenção identitária do grupo.
Mesmo se tratando de pessoas diferentes, os atores do Galpão conseguem
compartilhar representações comuns, que alicerçam significados coletivos à
identidade. Contudo, tendo em vista a instabilidade do mercado de bens
culturais no qual o Galpão se insere, o desafio do grupo após quase 30 anos de
existência seria reinventar suas práticas e, assim, sua identidade, porém
mantendo laços identificatórios entre os membros e entre o público e o grupo. A
estratégia de mudança identitária, vislumbrada para o futuro por meio da
alteração nas práticas de formatação dos espetáculos, seria uma forma de
contornar a situação em que o grupo se encontra: de refém das características
identitárias construídas perante o público, o grupo encontrar-se-ia refém da
própria identidade por necessitar realizar espetáculos caros e com grande
estrutura devido à expectativa de seus espectadores.
Tendo em vista o caso estudado, pode-se considerar que o caminho da
formalização estrutural, do aumento da prescrição normativa e da orientação a
objetivos comuns parece ser necessário aos grupos que buscam sobrevivência no
médio e no longo prazo dentro do mercado de bens culturais. Há pressões
externas para a formalização, que atribuem identidades virtuais do tipo
associações, Organizações Não Governamentais (ONGs), empresas, cooperativas,
entre outras. Somente dessa forma as identidades coletivas obteriam
reconhecimento e suporte de patrocinadores e outras fontes financiadoras. Por
outro lado, pode haver pressões internas para a busca de um denominador comum,
que mantenha o sentido do agrupamento e sustente a produção artística coletiva.
O equilíbrio entre essas duas pressões parece ser um constante desafio aos
integrantes de grupos artísticos. É preciso conciliar espaços de transcendência
criativa e espaços de sobrevivência econômica. Ademais, é necessária a
conciliação mínima de ideais éticos e/ou estéticos entre os membros, para que a
produção conjunta de arte ocorra; e de práticas organizacionais, para que a
interação com o mercado também aconteça.
A questão seria, nesse momento, a respeito da possibilidade de manutenção do
equilíbrio entre sistemas valorativos distintos na produção artística coletiva.
Tratar-se-ia de racionalidades diferenciadas que orientam práticas identitárias
distintas. É possível verdadeiramente que uma identidade coletiva concilie
ideais artísticos, calcados na busca pela transcendência humana, com a
conformação ao sistema de compra e venda de espetáculos, influenciado por
pressões econômicas e de mercado? Espera-se que as conclusões deste trabalho
possam contribuir para futuras reflexões no campo de estudos sobre a construção
da identidade no contexto das indústrias culturais (BENDASOLLI et al., 2009).
Aplicando-se o entendimento das identidades no sentido de práticas discursivas
ao contexto das organizações, salienta-se a importância de estudar os
indivíduos em relação aos níveis coletivos, pois, em diferentes enclaves da
vida social, tornar-se-ia possível ao indivíduo exercer sua identidade
diferentemente. Em contrapartida, rejeitando-se a concepção da identidade
estática, defende-se também a ideia de que o indivíduo é capaz de exercer uma
identidade autêntica em contextos pautados pela instrumentalidade, exercendo um
papel dialético na metamorfose da própria identidade e também contribuindo para
mudanças no contexto repressor em que se encontra (RAMOS, 1981; CIAMPA, 2005).
Cabe ao pesquisador, portanto, identificar os grupos ou identidades coletivas
que emergem no contexto das organizações e analisar a relação entre as
racionalidades coletivas e individuais envolvidas, para que, ao final, seja
desvendado o processo de construção das identidades em jogo.