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BrBRHUAp0080-21072013000100003

BrBRHUAp0080-21072013000100003

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN0080-2107
Year2013
Issue0001
Article number00003

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De "filho do dono" a dirigente ilustre: caminhos e descaminhos no processo de construção da legitimidade de sucessores em organizações familiares

1. INTRODUÇÃO As empresas familiares podem ser caracterizadas pela existência de relações entre a família e a empresa que não se limitam ao âmbito da gestão, mas abrangem especialmente a esfera da propriedade e da influência da família sobre a condução dos negócios. Apesar de essas duas dimensões parecerem distintas, estudos e pesquisas mais aprofundados sobre a empresa familiar revelam que conhecer a cultura, o contexto e o modo de viver, tanto da empresa como da família, são fundamentais para ampliar a compreensão sobre as particularidades dessas organizações.

O momento da sucessão é comumente referenciado como crítico para as empresas familiares, especialmente quando não planejado. Dentre as dificuldades citadas pela literatura, incluem-se as questões pessoais, profissionais e familiares daquele que está se afastando da condução dos negócios, os problemas associados à escolha do sucessor, as dificuldades para encaminhar um processo deflagrado de forma súbita e, às vezes, traumática para a família e a empresa. E, também, os conflitos familiares, o eventual despreparo e a inexperiência de sucessores, os conflitos de geração e diversos outros. Os resultados costumam estar associados a sérias crises financeiras e de gestão, ameaças à sobrevivência e à continuidade dos negócios, conflitos e rupturas familiares, com profundas implicações para todos aqueles que, de alguma forma, se implicam na arena do conflito e do cotidiano da família e da empresa.

Grande parte das publicações sobre organizações familiares trata a questão da sucessão de forma mais pragmática no sentido de elucidar as dimensões relevantes de um processo de sucessão e de identificar elementos - particularmente aqueles relacionados ao planejamento da sucessão - que contribuam para o que comumente é referido como uma sucessão bem-sucedida. A proposta nesta pesquisa foi algo diferente dessa perspectiva, embora se reconheçam sua relevância e atualidade. Buscou-se aqui, por meio da fala de sucessores, identificar como ocorre o processo de construção da legitimidade do herdeiro-sucessor.

Parte-se do pressuposto de que a autoridade legal conferida pelo direito à herança de que herdeiros e sucessores dispõem não lhes garante aceitação, em termos do exercício da autoridade do cargo de gestor e da ocupação de um lugar dentro da organização familiar. Poder e autoridade, como ensinou Max Weber, são coisas distintas, embora interligadas. Para além do direito à propriedade, os sucessores terão de construir sua legitimidade junto à própria família, ao sucedido, aos empregados, aos clientes e aos fornecedores da empresa e, talvez, o mais importante, em relação a si próprios. Legitimidade aqui será tratada no sentido de aceitação, de justificação técnica, profissional e social para que um indivíduo ocupe determinado lugar, o que inclui necessariamente a perspectiva do próprio sujeito e do outro sobre esse processo.

Analisar o processo de construção da legitimação de sucessores de empresas familiares constitui, assim, o objetivo central nesta investigação. Buscar-se-á investigar como os sucessores foram socializados para assumir a empresa da família, como vivenciaram, na infância, a relação com a família empresária, de que forma os valores foram transmitidos no âmbito da família e da empresa, como os sucessores se veem, os conflitos e desafios que enfrentam nesse processo, seus sonhos e suas aspirações.

Este estudo encontra-se alicerçado em uma abordagem qualitativa, que permitiu um aprofundamento da realidade social das organizações estudadas, fundamentalmente a partir do ponto de vista dos atores envolvidos no processo social. Adotou-se como método o estudo multicasos, aplicado a duas empresas familiares mineiras de grande porte, o que possibilitou um exame intensivo do processo de construção da legitimidade dos herdeiros-sucessores nessas organizações, sendo uma do setor de transportes e outra do setor cafeeiro. O corpus da pesquisa foi constituído por dirigentes familiares pertencentes às duas empresas pesquisadas, tendo sido realizadas nove entrevistas. Foram também coletados e analisados dados secundários disponíveis em diversas fontes sobre as organizações estudadas. Como técnica de análise, recorreu-se à análise de conteúdo categorial ou temática (BARDIN, 1977).

O presente artigo está estruturado em quatro partes, incluindo esta introdução.

Na próxima seção, discutem-se a questão da sucessão na empresa familiar e a problemática da legitimidade. Posteriormente, são apresentados os caminhos metodológicos percorridos, a análise das informações coletadas e a discussão dos resultados. Por fim, analisam-se os aspectos considerados particularmente relevantes neste trabalho, especialmente com o objetivo de contribuir para estudos futuros.

2. A EMPRESA FAMILIAR E A PROBLEMÁTICA DA SUCESSÃO As organizações familiares, além da complexa dinâmica organizacional, configuram-se como um sistema social e político no qual as relações entre os atores englobam racionalidades, conflitos, interesses, afetividades e sentimentos (PIMENTA e CORRÊA, 2008). Assim, pensar a empresa familiar implica também compreender a dinâmica da família, uma vez que ela constitui a base das relações sociais e torna-se, conscientemente ou não, uma das mais importantes referências dos indivíduos ao longo de toda sua vida (LIMA, PIMENTEL e SOARES, 2008). A família orienta o indivíduo em sua socialização, "mapeando comportamentos desejáveis e indesejáveis em relação sempre a um determinado grupo, em um processo de controle ou ajustamento social" (CARRIERI, 2005, p.15). Ela atua como elemento mediador entre o indivíduo e a sociedade, valendo-se de aspectos afetivos e emocionais que configurarão padrões morais, éticos e socialmente aceitos. A família atua, então, como o locus da primeira socialização que um indivíduo experimenta. Para Berger e Luckmann (2004, p.175), a socialização corresponde a uma "ampla e consistente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela". Dessa forma, a família, como instância de socialização, auxilia a adequação dos indivíduos a papéis culturalmente padronizados e à formação da personalidade individual (CARRIERI, 2005). Além da socialização primária, também aquela considerada secundária, que corresponde aos processos de socialização subsequentes à primária. Está associada à interiorização de submundos que se apresentam como realidades parciais, nas quais os indivíduos absorvem conhecimentos específicos.

Outros tipos de interações sociais que não apenas com a família são experimentados pelo indivíduo ao longo da vida. A empresa familiar, nesse sentido, corresponde a um espaço institucional privilegiado de socialização uma vez que os membros da família empresária convivem desde a infância com a influência das questões empresariais na dinâmica da família. Embora a dimensão familiar seja fundamental para que se possam compreender as relações sociais que se estabelecem em empresas de propriedade familiar, é relevante refletir também sobre a situação inversa, isto é, em como a empresa pode também influenciar algumas dinâmicas familiares. Como os membros de uma família empresária são simultaneamente submetidos a uma dupla dinâmica social - o universo do trabalho e as relações no âmbito familiar (DAVEL e COLBARI, 2000) - , a inserção dos filhos nos negócios, a educação, a tradição familiar, dentre outras, são questões que perpassam as socializações, tanto na família como na empresa.

No caso das famílias empresárias, na maioria das vezes a socialização perpassa a ideia de comprometimento com a continuidade do negócio da família. Dessa forma, faz-se necessário discutir a problemática da sucessão, que é considerada pela literatura um eixo fundamental para a compreensão das empresas familiares e uma das situações mais delicadas vivenciadas pelos membros da organização, sobretudo por ser preponderante para sua longevidade. Como ressalta Machado (2008, p.186), a complexidade desse processo vai além do preparo dos sucessores e do planejamento do processo, por refletir a "existência de influências sociais e culturais que estabelecem fronteiras invisíveis" entre o indivíduo, a família e a empresa.

A sucessão é entendida como um processo contínuo e multigeracional que envolve a transferência da propriedade e da gestão da empresa para as gerações futuras ou para profissionais não familiares. A noção de sucessão como processo é também assumida por Lambrecht (2005) que, levando em consideração a reincidência da necessidade de sucessão ao longo da trajetória da empresa familiar, afirma que a sucessão deve ser apreendida como um processo contínuo de transferência que satisfaça às gerações futuras, traduzido em um plano de transição multigeracional. Assim, a família passa a ser entendida como uma esfera social, cultural e estratégica para a organização e pode ser capaz de identificar, compreender e elaborar o próprio modo de transferência da organização e de seus ativos reais e simbólicos pelas gerações presentes e futuras. Isso significa que a família passa a assumir um papel ativo na criação de um padrão para a condução do atual e dos futuros processos sucessórios, sendo ainda responsável por fomentar a educação, os valores e a formação dos sucessores.

A sucessão representa um dos momentos mais críticos vivenciados no contexto da empresa e da família empresária, marcado pela transferência do poder e do controle dos negócios (ou pela perda dele) entre os herdeiros (LEONE, 2005). No âmbito da sucessão patrimonial, observa-se uma reestruturação societária na qual os novos atores (membros da família) assumem sua condição de proprietários (não necessariamente de gestores). Por outro lado, a sucessão na gestão está associada ao momento em que o proprietário-gestor transmite ao sucessor o poder que o cargo lhe confere (GRZYBOVSKI, HOFFMANN e MUHL, 2008).

A sucessão envolve, então, múltiplas esferas que não podem ser deixadas de lado quando tal processo se aproxima, dado que o afastamento do predecessor das atividades de gestão requer ações cuidadosas, tanto para auxiliar o sucedido nesse difícil momento de desligamento quanto para construir um ambiente no qual o sucessor possa assumir completamente o cargo, desempenhar seu trabalho e conquistar sua legitimidade. Nesse sentido, o planejamento sucessório e a profissionalização surgem como práticas capazes de nortear a família e a empresa, bem como de minimizar conflitos.

O planejamento pode permitir que critérios sejam estabelecidos a priori de forma a prevenir que rivalidades, ciúmes, vaidades e disputas comprometam a continuidade do negócio. Lansberg (1999) enfatiza a relevância de se conduzir a sucessão a partir de um processo planejado e contínuo que valorize a preparação e o aprendizado. Da mesma forma, Leone (2005) aponta para a importância de que a sucessão não seja implementada abruptamente, mas por meio de um processo que tenha como pilares o planejamento e a organização e que o sucessor seja preparado para assumir o cargo, ao mesmo tempo que o sucedido seja capaz de simplificar esse processo, compartilhando com a família os critérios utilizados para a escolha do sucessor.

No que tange à preparação dos possíveis sucessores, a profissionalização surge como alternativa para aquelas empresas familiares que buscam integrar as habilidades profissionais e técnicas à sua gestão. Nesse sentido, a profissionalização envolveria a preparação do grupo familiar a fim de possibilitar que esses indivíduos desenvolvam a visão e as ferramentas indispensáveis para nortear sua compreensão acerca de questões complexas nas esferas da família, da propriedade e da gestão. Ressalta-se que a profissionalização da gestão de uma empresa familiar também pode dar-se pela contratação de profissionais que conduziriam os negócios.

A problemática da sucessão e da profissionalização encontra-se, portanto, nitidamente entrelaçada ao processo de construção da legitimidade. Para Bernhoeft (2003), a condição de sucessor traz consigo a exigência de uma legitimação, no sentido de que o sucessor, além de ter sido escolhido, precisa ser reconhecido como tal pelos demais membros da família e da empresa.

A legitimidade dos sucessores da qual se trata aqui não é aquela legal, vinculada à questão formal da herança. Apesar de ter a autoridade legal conferida pelo direito à herança e à futura propriedade da empresa, o herdeiro- sucessor terá de construir sua legitimidade junto à própria família (BARACH et al., 1988) e a si próprio, em relação ao sucedido, aos subordinados e aos demais stakeholders. Discute-se aqui a legitimidade como um processo que se na interação com o outro e envolve a conquista de espaços e de reconfiguração das relações de poder no cerne da organização. Assim, parte-se do pressuposto de que a legitimidade é uma construção sócio-histórica, imersa nas relações sociais e consistentemente ligada a crenças, normas e valores compartilhados pelos atores relevantes a um dado universo organizacional.

Para Weber (2000), um dos precursores da discussão da legitimidade como um fenômeno social, a legitimidade, como processo social, refere-se tanto à ordem social quanto ao sentido subjetivamente dado pelo indivíduo a tal ordem. Dessa forma, a validade de uma ordem social ocorre na medida em que ela reflete as crenças dos atores e, simultaneamente, as normas são incorporadas ao comportamento do indivíduo. Por sua vez, o descumprimento das normas acarretaria sanções. Weber (2000) observa ainda que, mesmo que os indivíduos não compartilhem totalmente regras, valores e crenças dos grupos sociais com os quais convivem, seu comportamento torna-se orientado por uma ordem subordinada a regras e crenças que ele presume serem aceitas pelos outros. Como a ordem social conta com um suporte coletivo, ela encontra-se reforçada como uma norma social válida e objetiva.

A concepção weberiana é adotada por muitos estudiosos da temática, que compartilham a noção de que a legitimidade é uma construção coletiva da realidade social, na qual os elementos dessa ordem estão em consonância com normas, valores e crenças que o indivíduo presume serem compartilhadas (JOHNSON, DOWD e RIDGEWAY, 2006). Nesse sentido, o termo legitimidade remete a crença, aceitação e interpretação dos agentes de que algo é considerado legítimo.

Para Berger e Luckman (2004), a legitimação permite que os indivíduos interpretem o contexto, especialmente quando suas significações não fazem tanto sentido de forma isolada e eles precisam vivenciar processos por meio dos quais os significados sejam partilhados para que sejam considerados plausíveis. O processo de legitimação constitui, portanto, um processo de explicação e justificação, como detalhado pelos autores: "A legitimação 'explica' a ordem institucional outor-gando validade cognoscitiva a seus significados objetivados. A legitimação justifica a ordem institucional dando dignidade normativa a seus imperativos práticos [...]. Em outras palavras, a legitimação não é apenas uma questão de 'valores'. Sempre implica também 'conhecimento' [...] é preciso primeiro haver 'conhecimento' dos papéis que definem tanto as ações 'certas' quanto as 'erradas', no interior da estrutura" (BERGER e LUCKMANN, 2004, p.128).

Em suas interações cotidianas, os indivíduos constroem significados acerca do que consideram correto, aceitável, adequado ou desviante. O conjunto desses significados constitui o universo simbólico, que consiste no espaço de significações compartilhadas, o que possibilita o desenvolvimento das interações sociais. Esses significados estão em constante processo de construção e reconstrução, tornando o processo de legitimação de determinada ação ou instituição dinâmico e socialmente repactuado, levando-as a ser aquilo que deveriam ser (BERGER e LUCKMANN, 2004).

Envolto por esse universo simbólico, o processo de construção da legitimidade do(a) herdeiro(a)-sucessor(a) pode ser discutido no contexto dos domínios da realidade trabalhados por Berger e Luckman (2004). Os homens, em suas interações cotidianas, constroem significados em relação às instituições, definindo, por exemplo, as características de comportamentos considerados adequados ou desviantes. O conjunto desses significados constitui o universo simbólico, que consiste no espaço de significações compartilhado que possibilita o desenvolvimento de interações sociais. Esse universo integra todos os domínios separados da realidade, unificando-os em uma totalidade dotada de sentido que os explica e talvez também os justifique. Nesse sentido, os diferentes grupos de indivíduos constituintes das instituições família e empresa podem manifestar interesses e valores diferentes e, dessa forma, construírem subuniversos compartilhados entre eles, mas diferentes do universo em questão. A trajetória nem sempre linear percorrida por alguns desses herdeiros no processo de construção de suas legitimidades será analisada nas seções seguintes, após uma breve descrição dos caminhos percorridos pela própria pesquisa.

3. PERCURSO METODOLÓGICO Na pesquisa realizada buscou-se compreender como se o processo de legitimação dos sucessores em empresas familiares, na perspectiva dos próprios sucessores e de outros indivíduos diretamente a eles ligados. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, abordagem pertinente por possibilitar a apreensão dos significados das construções, ações e relações humanas.

A fim de evidenciar algumas dimensões que estão presentes no processo de legitimação do sucessor, utilizou-se o método multicasos (YIN, 2005), para que se pudesse obter maior aprofundamento e detalhamento da dinâmica vivenciada no âmbito das empresas pesquisadas, bem como a apreensão das especificidades da dinâmica desse processo.

O corpus da pesquisa foi constituído por dirigentes familiares pertencentes a duas empresas familiares mineiras de grande porte. As duas empresas pesquisadas vinculam-se a famílias empresárias que compartilham uma longa tradição nos setores econômicos em que suas empresas estão inseridas. A primeira empresa pesquisada pertence ao setor de transportes, no qual a família empresária tem quase cem anos de tradição. A segunda organização concentra suas atividades no setor cafeeiro e é constituída por duas famílias empresárias: a primeira atua no setor mais de 60 anos e a segunda, mais de 150.

Os entrevistados foram ouvidos de forma intencional, dentre os membros das gerações atuais de dirigentes familiares que se encontram à frente da gestão das organizações. Foram realizadas cinco entrevistas na empresa de transportes, uma das quais com o presidente e fundador e quatro com diretores membros da família, estes pertencentes à segunda geração. Na fábrica de café, foram realizadas quatro entrevistas, duas das quais com membros da quarta geração de uma das famílias controladoras, uma com um membro da terceira geração da outra família e uma com um profissional de mercado, não pertencente às famílias proprietárias. Todos os entrevistados exercem cargos de diretoria na empresa.

As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e analisadas.

De forma complementar às entrevistas, foram analisados documentos das empresas (estatutos, atas de reuniões, relatórios internos, manuais e códigos de ética e de conduta), a fim de obterem-se informações adicionais sobre as empresas e o processo de sucessão. Também foram coletados dados secundários às organizações estudadas, dentre os quais se destacam recortes de jornais, informações disponibilizadas nos sites das companhias, artigos, dissertações e outras publicações acadêmicas relacionadas às organizações em questão.

As variáveis utilizadas para estruturação da pesquisa, tanto sob o aspecto teórico como também o empírico, foram sucessão e socialização. Essas duas variáveis foram operacionalizadas por meio das dimensões detalhadas no quadro a seguir.

Variáveis e Dimensões da Pesquisa

Para análise das entrevistas, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, que permite acessar as "realidades subjetivas das re-presentações simbólicas" (RODRIGUES e LEOPARDI, 1999, p.19). Buscou-se, assim, apreender o sentido atribuído pelos sujeitos a determinado fenômeno, que se concretiza na prática social e se manifesta a partir das representações cognitivas, valorativas, sociais e emocionais, de forma contextualizada (PUGLISI e FRANCO, 2003).

Considerando as várias modalidades de análise de conteúdo (MINAYO, 2008), será adotada neste estudo a análise categorial ou temática, que é descrita por Bardin (1977) como o processo de análise do texto a partir de unidades categorizadas e agrupadas analogicamente em relação aos eixos temáticos. A análise compreendeu as três fases operacionais apresentadas pela autora. A pré- análise correspondeu à etapa de sistematização do plano de análise, contando com a constituição do corpus, representado, no caso, pelo conjunto das entrevistas. A fase da exploração do material envolveu o tratamento dos dados por meio da codificação dos trechos de entrevistas empregados na análise. A terceira etapa correspondeu à interpretação inferencial dos resultados, estabelecendo-se as relações entre as análises empíricas e as questões que nortearam a pesquisa.

3.1. A empresa de transporte A empresa de transporte localiza-se no sul do estado de Minas Gerais. Fundada em 1959, iniciou suas atividades com apenas um caminhão, utilizado inicialmente para carretos na região. Ao longo dos dez primeiros anos, o fundador desempenhou todas as funções relacionadas ao negócio. No final da década de 1960 e início da de 1970, a empresa enfrentou uma grave crise, causada, dentre outros fatores, pela desorganização administrativo-financeira e por prejuízos advindos de investimentos em outras empresas. A entrada da filha mais velha no negócio remonta a esse período, quando ela tinha apenas 13 anos, e começou organizando as contas da empresa. A partir da década de 1980, mais dois filhos do fundador iniciaram suas atividades na organização, de forma similar à inserção da irmã mais velha, primeiro em funções mais operacionais e gradativamente se inserindo nas atividades administrativas da empresa. A década de 1990 é marcada pela maior participação dos filhos na gestão, fase em que o fundador passa a delegar gradualmente maiores responsabilidades e autoridade a seus sucessores. Em 1996, mais uma filha do fundador é inserida no negócio e, assim, quatro dos sete filhos passam a trabalhar no negócio da família. Entre 2000 e 2009, todos os cargos de gestão são gradativamente assumidos pela segunda geração, e o fundador não exerce mais cargo formal algum, embora seja uma presença importante na empresa e continue a atuar no sentido de assessorar e aconselhar seus filhos diretores.

3.2. A fábrica de café A origem da fábrica de café está ligada à história de duas famílias tradicionais no setor cafeeiro que se uniram, em 2004, para a fundação do negócio. Uma das famílias tem cerca de 150 anos de tradição no ramo cafeeiro, figurando, atualmente, no ranking dos principais produtores de café do Brasil.

A tradição da outra família remonta a 60 anos de experiência no processo de torrefação e no comércio de café. A aquisição de um maquinário de café por essa última família foi o ponto de partida para iniciar, em 2003, o projeto de abertura da nova fábrica de café. Assim, as duas famílias, que formavam parcerias em outros empreendimentos, iniciaram a negociação para a abertura da fábrica de café, inaugurada em 2004, na região metropolitana de Belo Horizonte.

A administração da nova fábrica de café ficou, desde o início, a cargo dos filhos dos membros de cada família empresária. Dois anos após a inauguração, a fábrica despontou entre as três primeiras indústrias de café de Minas Gerais e entre as dez maiores no ranking nacional. Embora a fábrica de café tenha menos de uma década de existência, é importante considerar a tradição no segmento cafeeiro das duas famílias vinculadas ao negócio. A fábrica de café configura- se como uma sociedade limitada, restrita a dois grupos familiares, em que cada grupo responde por 50% da propriedade. A sociedade é composta por quatro sócios de uma família e quatro sócios da outra.

3.3. O processo de construção da legitimidade A concepção weberiana de legitimidade racional-legal fornece as bases para pensar-se a legitimidade no sentido de aceitação do exercício do poder, que pode ser assegurada aos sucessores pelo direito à propriedade e pelo cargo que irão assumir. Essa concepção, também, consubstancia a análise da legitimidade como um processo histórico-social associado às crenças culturais, às normas e aos valores compartilhados (WEBER, 2000). Dessa forma, alguns elementos mencionados pelos entrevistados podem ser identificados no processo de legitimação, dentre os quais, aparecem de forma destacada: a inserção dos sucessores no negócio, a construção de sua identidade profissional, o reconhecimento dos membros da família e dos funcionários, a relação com o sucedido e/ou com o pai, a forma como se deu a transferência de poder, o papel do sucedido no processo sucessório e as disputas pelo poder, dentre outros. Em ambos os casos, é possível delinear um percurso de legitimação dos sucessores, embora as dimensões identificadas apareçam de forma absolutamente particular em cada um deles. Inicialmente, analisar-se-á a forma de inserção dos sucessores no negócio da família.

No contexto das empresas familiares, os pais, por vezes, influenciam os filhos desde cedo a reconhecerem-se como proprietários de uma empresa, levando-os a seguir o caminho dos pais, o que corrobora o argumento de Berger e Luckmann (2004, p.176) de que a família atua como o locus privilegiado da primeira socialização de um indivíduo. Dessa forma, os papéis a serem desempenhados, os comportamentos e as posturas esperados são explicitados a esse indivíduo por seus pais e, no caso de uma família empresária, a forma como a realidade é apresentada pode levar o indivíduo a identificar-se com a empresa da família, justamente por esse filho ser socializado tendo como referência o trabalho realizado pelos pais desde a fundação do negócio, muitas vezes convivendo com o universo da empresa desde a infância.

É possível inferir que esse processo pode ser identificado como um dos fatores responsáveis pelo interesse das futuras gerações em dar continuidade à administração do negócio da família. Assim, o contato dos sucessores com a empresa, ainda na infância, aparece como um elemento importante para a criação de laços de afeto e de identificação com a empresa, conforme salientam Berger e Luckmann (2004). Na socialização primária, não problema de identificação, pois a criança não pode escolher quem serão os responsáveis por inseri-la no mundo. Como resultado, a criança identifica-se automaticamente com seus pais e com a realidade apresentada por eles, o que, em tais casos, inclui a empresa como parte essencial do mundo em que ela irá habitar. Em ambos os casos, os entrevistados relataram o contato estabelecido na infância com os empreendimentos da família como um dos fatores que influenciaram sua opção de carreira e seu comprometimento com os negócios da família. Também fica claro que, com o tempo, foram desenvolvidos laços de afeto e de identificação com os negócios reforçados pelas expressões "eu fui me apegando, criando o amor pela empresa e paixão mesmo por aquela empresa que eu vi crescer", destacadas nos fragmentos apresentados a seguir.

(01) "Desde novo, desde criança mesmo, eu sempre gostei de estar na empresa... Sempre porque a empresa era perto da casa onde nós morávamos, então era normal, sem meu pai pedir, eu ir pra empresa e com isso eu acho que fui me apegando, criando amor pela empresa e não, passou a ser uma obrigação. Desde que eu não tivesse nada de trabalho de escola ou ter que estudar, eu realmente tinha que ir para a [empresa], mas esse 'ter que ir' nunca foi encarado como uma obrigação e sim como um prazer de estar ali na empresa ajudando meu pai" (E03). (Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo) (02) "O contato que eu tive era pra ir pra fazer bagunça, entendeu? [...] Era uma coisa assim... Eu nasci em 1984 e [a torrefação do avô] foi adquirida em 1984. Então minha infância foi toda , eu desde pequeno estava . Toda sexta-feira eu saía da aula e ia pra , ficava ... Como meus pais trabalhavam de oito da manhã, até as dez da noite, eu ia pra pra ficar com eles, ficar ... Então eu tinha muito dessa... dessa paixão mesmo por aquela empresa que eu vi crescer. Vi a construção de todos os prédios.

Participei da instalação do maquinário, meu pai ia e me levava com ele. Então tinha muito... As festas todas que tinha na empresa...

Então eu participei muito disso" (E07). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo) Pode-se inferir que a empresa se apresenta como uma instância de socialização para esses entrevistados, uma vez que os membros da família empresária convivem desde a infância com a influência das questões empresariais na dinâmica familiar. Assim, ainda na infância, os membros da família incorporam papéis que irão direcionar seus caminhos profissionais na empresa, pois a rotina dos pais apresenta-lhes uma realidade que os vincula diretamente com o negócio da família. Isso mais tarde tende a criar vínculos tão intensos que auxiliarão funcionários e familiares a construir uma imagem do sucessor como o candidato legítimo para dar continuidade à organização. Nem sempre a aproximação com os negócios da família aparece de forma natural ou prazerosa para o herdeiro- sucessor. Um dos entrevistados da fábrica de café ressalta seu contato forçado na adolescência com a fazenda de café da família como um elemento de forte influência para sua posterior inserção nesse universo, porém vivida inicialmente quase como um castigo.

(03) "Eu acho que o primeiro ponto que eu comecei a ser obrigado a viver o café foi por causa de uma re-beldia de adolescência. Eu fui forçado a... Eu fui corrigido pelo meu pai trabalhando, ao invés dele me bater, ao invés dele agir de outra forma... Ele falou: 'Não! que você fazendo errado, eu vou te ensinar é trabalhando pra você ser homem!'. Eu aprendi a ir pro campo, eu fui aprendendo e fui tomando gosto por aquilo. E eu comecei a ver alguns desafios.

Desafio de aprender a como plantar o café, desafio de como beber um café, como conhecer o defeito de um grão. E eu fui aprendendo e tomei gosto, logo em seguida. E quando eu tomei gosto, eu vi que esse mundo era grande, que ele tinha um grande potencial, investi muito nisso e colhi frutos disso tudo" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

Nesse sentido, torna-se evidente que a aproximação com a empresa, vivenciada na infância, exerceu um papel importante não apenas para a socialização dos jovens sucessores, mas também para levá-los a perceber o negócio como o sustentáculo financeiro responsável pela sobrevivência de toda a família. Assim, ao assumirem algumas tarefas na empresa, surgia a possibilidade de perceberem-se como corresponsáveis pelo sustento da família, entendendo as dificuldades associadas aos ganhos financeiros. Além disso, em ambos os casos a empresa aparece ligada até mesmo aos momentos de lazer da família, permeando não apenas a jornada de trabalho, mas também todo o universo familiar. Dessa forma, a família e a empresa confundem-se como instâncias socializadoras dos membros de uma família detentora de uma organização empresarial. Ainda na infância, o indivíduo internaliza o mundo de seus pais e é iniciado dentro de valores, normas e comportamentos encorajados pela família (BERGER e LUCKMANN, 2004). É possível inferir que, em ambos os casos, a empresa funciona como um elo entre os filhos e o legado dos pais, incentivando-os a inserirem-se nos negócios e a representarem papéis relacionados ao universo de seus pais, continuando a saga da família, agora como herdeiros dos negócios.

Outro aspecto importante para a compreensão do processo de legitimação é a relação sucedido-sucessor e/ou pai-filho. No caso da empresa de transportes, o fundador foi capaz de repassar seus conhecimentos para a segunda geração, cujos membros passaram por todas as áreas e funções relacionadas ao negócio. O papel desempenhado pelo sucedido em questão aproxima-se da definição de big manitu apresentada por Lambrecht (2005), em sua visão processual da sucessão. O repasse dos conhecimentos e da experiência do fundador a seus sucessores, desde os primeiros passos na empresa, foi um dos fatores que fomentaram não apenas a capacitação desses filhos, como também sua legitimação, ao conquistarem gradualmente a confiança do pai, dos funcionários, dos clientes e dos fornecedores.

(04) "Eu vi esses dois moleques trabalhar, eu falo e eu choro, eu vejo a imagem de nós descarregando o caminhão. Como se fosse hoje assim. A gente des-carregava o caminhão. Não tinha esse negócio de mandar o seu ajudante, não... saía fora, ali eu passava os conhecimentos pra eles e pra [irmã], e eu ia, subia no caminhão e desembolava. Enquanto eles gastavam dez, vinte minutos pra desenrolar o caminhão, eu gastava cinco. Eu tinha uma agilidade..." (E01).

(Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).

(05) "Comecei com treze anos. E eu comecei na parte administrativa. Onde, como nós temos conhecimento de transporte, que é como se fosse uma nota fiscal, eu fazia essa parte de colocar conhecimento em ordem, ajudar no faturamento e com o tempo passei a mexer na parte de cobrança, onde uma estratégia que meu pai adotou era colocar tanto eu quanto meu irmão pra fazer cobrança, que seria pra identificar, pra conhecer o perfil de cada cliente. Tanto o bom pagador, o mau pagador e a característica de cada um" (E03). (Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).

A fábrica de café, em contraposição, apresenta uma relação pai-filho bastante distinta. Existe um conflito intrafamiliar entre o dirigente membro de uma das famílias e seu pai, membro do Conselho de Acionistas da Fábrica. Nesse caso, verifica-se a dificuldade de separar os papéis profissionais dos papéis familiares, gerando situações em que os papéis de pai e filho se confundem com os de acionista e gestor. Dessa forma, o conflito evidenciado está nitidamente entrelaçado ao processo de construção da legitimidade do sucessor, visível a partir da busca pelo reconhecimento de sua capacidade e de sua autoridade pelo pai, perante todos os stakeholders. Nesse sentido, a interferência do pai e acionista da empresa em relação à gestão realizada pelo filho é apontada como uma ameaça à sua autoridade diante dos funcionários da fábrica de café.

(06) "É, o conflito no começo foi muito forte. Geramos altos conflitos, não foi fácil administrar. É igual briga de pai e filho, não adianta, mas ao longo do tempo cada um aprendeu a respeitar o que cada um tem de bom. Então hoje eu tenho uma credibilidade com meu pai que ele sabe que o que eu falo e ele pode me ouvir, às vezes ele tem alguma dúvida, ele até questiona, mas ele não bate de frente. Ele sabe que ali tem algum fundamento, existe alguma experiência por trás daquilo ali que eu estou falando. Então ele me escuta, às vezes ele até toma a decisão baseada no que eu falo" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

(07) "É, tinha muita presença [do meu pai] no dia a dia. Às vezes até interferindo um pouco na minha tomada de decisão em torno da gestão.

Eu ia perdendo um pouco do meu poder de gerência para ele, gerando alguns conflitos, mas, ao mesmo tempo, isso foi minimizado ao longo do tempo porque todo mundo viu que a gente tinha credibilidade pra assumir tal experiência e tal desafio que foi dado" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

Pode-se argumentar que a construção da legitimidade do sucessor tende a ser amplamente influenciada pela vivência familiar e pela forma como ele se relaciona com outros membros da família que atuam no negócio, sobretudo o sucedido e/ou o pai. Questões familiares como vaidade, rivalidade, disputas e ciúmes podem dificultar a legitimação do sucessor, principalmente por transpor para o universo da empresa questões internas da família. Além disso, como no caso em questão, o sucedido pode apresentar dúvidas ou resistência quanto ao repasse do cargo de gestão para o filho, interferindo nas decisões estratégicas tomadas pelo sucessor e esvaziando sua autoridade perante os demais membros da organização.

(08) "Não é tão simples, porque meu pai tem uma vida profissional 100% ativa. Meu pai está com 53 anos e tem uma vida ativa muito forte. E parar de trabalhar, ele não pensa nunca. Porque, ao mesmo tempo em que eu tento trabalhar e mostrar pra ele o sucesso que está tendo aqui, ele tem uma resistência. Talvez aquele sentimento ainda de ' perdendo o emprego!', ? É uma pessoa que começou do zero ali e falar: 'Nossa! Eu vou delegar isso pro meu filho, vou perder o emprego!'". (E09). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

A discussão sobre o processo de legitimação dos sucessores levanta diversas questões relacionadas ao processo de sucessão. Conforme salientam Barach et al.

(1988), o simples repasse do cargo do sucedido a seus herdeiros não garante nem implica a transferência automática de seu poder e autoridade. O sucessor não herda o mesmo respeito e a mesma confiança de seu antecessor, devendo conquistar sozinho a confiança da família, dos funcionários, dos fornecedores e dos demais públicos relacionados à esfera de atuação da empresa (BARACH et al., 1988). Esse processo constitui a essência da construção da trajetória de legitimação do sucessor, que em muitas empresas familiares, como nos casos estudados, precisa competir com uma história de empreendedorismo, sacrifícios pessoais e perseverança do fundador, uma verdadeira saga que os envolvidos geralmente projetam para o sucessor. A forma como esses processos de sucessão aconteceram e os princípios que os nortearam em cada uma das empresas pesquisadas revelam processos de legitimação que apresentam traços bastante distintivos.

No que se refere especificamente ao processo de construção da legitimidade, pode-se considerar que um deles pode ser caracterizado como gradual, enquanto o outro parece mais complexo, porque envolve a relação entre dirigentes de duas famílias diferentes. A entrada dos sucessores nos primeiros anos da empresa de transportes não apenas os muniu dos valores e dos conhecimentos sobre o negócio, como também fez com que se tornassem corresponsáveis pela continuidade da organização, compartilhando os percalços e inscrevendo os próprios feitos na trajetória da empresa. Dessa forma, a construção da legitimidade dos membros da segunda geração ocorreu como resultado de interações e negociações constantes com os demais atores, todos eles membros de uma mesma família. Assim, gradativamente, ao se legitimarem, os sucessores foram conquistando espaço e forjando uma contínua reconfiguração nas relações de poder no interior da organização.

(09) "Na época eu posso dizer que foi assim, não foi difícil, não.

Porque a [minha irmã], ela tinha um bom tempo na empresa. Então assim ela tinha... a responsabilidade tava quase toda na mão dela.

Quando nós entramos, até hoje, o pai é muito ativo... Mas a [minha irmã] tinha mais tempo com ele... Então algumas coisas da parte administrativa tava com ela. Então foi assim, como nós começamos aos 12... Vamos falar assim... Aos 15 a gente estava cuidando da operação junto com ele... e o negócio foi migrando pra gente, sabe? Foi bem tranquilo" (E04). (Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).

(10) "Então no nível de empresa, tem um histórico todo de tempo aqui dentro, tem uma coisa de paixão e empenho muito grande" (E05).

(Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).

No caso da fábrica de café, percebe-se que o conflito in-ter-familiar existente entre os sócios tornou o processo de legitimação dos sucessores ainda mais complexo e moroso. Esse conflito decorria do fato de cada um dos gestores pertencer a uma família empresária diferente. Assim, os sucessores traziam visões distintas sobre o negócio, acarretando uma disputa pelo poder, em que estavam em jogo não apenas os próprios interesses, mas também a busca pelo reconhecimento da autoridade de cada sucessor perante sua respectiva família.

(11) "Então entre eu e [meu sócio] a principal questão é que a gente tinha no início uma questão de disputa por poder. [E a disputa ocorria] em re-lação a tudo, em relação a todos. Então era uma questão de falta de maturidade mesmo, as próprias famílias tinham isso , a gente carregou das famílias" (E07). (Fábrica de café - negritos dos autores do artigo).

Por outro lado, a disputa entre os sócios chega a ser apontada por um dos entrevistados, no fragmento (12), como um ponto positivo, responsável também por sua motivação e perseverança na busca por uma posição de destaque na organização.

(12) "A disputa ela existe, não é? Ela não vai acabar nunca porque por ele ser sócio, eu sou sócio, ele é de uma família e eu sou de outra. Todo mundo aqui está disputando e, se eu não tivesse uma con- corrência, talvez eu não teria chegado onde eu cheguei. Eu acho que foi o meu maior motivador, pra eu mostrar pra todos que eu tinha a capacidade de crescer" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

A percepção por parte do dirigente e membro de uma das famílias de que a competição seria o caminho para a conquista do reconhecimento e para a ascensão ao cargo de diretor da fábrica de café pode ser mais bem entendida no contexto das sucessões ocorridas na trajetória da própria família. Quando o entrevistado relata outros processos de sucessão ocorridos na família, a competição aparece em seu discurso como um elemento inerente ao próprio processo de transferência do negócio entre as diferentes gerações de sua família, corroborando a ideia de Leone (2005) de que a sucessão envolve, dentre outros, o conflito entre sucessores pela disputa de poder. A escolha do sucessor aparece associada, dentre outras, a sua capacidade para lidar com o conflito e aquele que apresenta o melhor desempenho naturalmente passaria a liderar o negócio da família, tal como no processo de seleção natural. A competição entre os herdeiros, somada a critérios meritocráticos, aparece, assim, como a prática utilizada por uma das famílias para identificar os sucessores mais aptos para futuramente assumirem o negócio. Nesse sentido, pode-se inferir que o atual dirigente internalizou esse princípio e, a partir de sua vivência nos negócios da família, o levou consigo para a realidade da fábrica de café.

(13) "Isso eu nunca aprofundei na história da família, mas eu acredito que foi repassado naturalmente. Não é uma coisa que foi assim forçada, porque é uma coisa que acontecia, a 'seleção natural', que a gente fala. Os filhos foram despontando no negócio e acabou que o negócio ficou tão grande que foi uma seleção natural. E também depois a gente, com os nossos pais, foi também uma seleção que foi natural. A gente não teve uma data definida pra começar a trabalhar e nem uma data definida pra assumir o negócio. É uma coisa que acontece no dia a dia... E também acredito que do outro lado da família com meu tio também, com os filhos também, vai ocorrer uma seleção natural, quem desponta como o melhor perfil para aquela função, vai ganhando espaço e vai crescendo" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

Para essa família, a competência técnica aparece como uma dimensão importante da legitimidade, traduzida pela capacidade de lidar com o conflito, a assertividade das decisões e o perfil competitivo dos sucessores. Ressalta-se que a adoção de critérios meritocráticos para a escolha do sucessor pode representar uma estratégia selecionada pelo sucedido para evitar o peso da escolha entre um de seus filhos e, ao mesmo tempo, fomentar sua aceitação perante o restante da organização, ao apresentar razões objetivas no lugar de razões pessoais para a escolha do novo dirigente.

Ainda na empresa de café, um entrevistado enfatiza o significado, por vezes até pejorativo, atribuído aos indivíduos que atuam na organização e têm relação de parentesco com os donos da empresa. Nesse contexto, é como se o sucessor estivesse apenas ocupando um lugar formalmente herdado. A expressão filho do dono carrega um conjunto de significações que podem indicar como os funcionários percebem a trajetória do sucessor dentro da organização. Como obviamente o fato de ser o filho do dono não é suficiente para construir a legitimidade do sucessor, ele terá que a construir em diferentes esferas, num espaço social em que diferentes atores participam do processo. Nesse sentido, o fragmento abaixo retrata como um herdeiro-sucessor vivenciou esse momento e como foi consolidando relações de confiança, o que possibilitou gradativamente que os demais membros da empresa (re-)significassem a ideia preconcebida de que ele era apenas o filho do dono.

(14) "É isso, é uma coisa desafiante porque, quando você assume um cargo na empresa, você entra como o filho do dono e todo mundo te respeita ali porque você é filho do dono. E a gente sente isso muito nítido, o funcionário, ele te participa das coisas porque você é filho do dono, te deve satisfação. Mas, ao longo da sua construção, da sua confiança na gestão, todo mundo seu crescimento, seu desejo de crescer, sua humildade e começa a entender que você está ali porque você almeja um cargo de diretor e não porque você é filho ou sucessor. Então isso foi um desafio pra mim, que eu encarei com muita seriedade desde o começo. Até porque eu enfrentei dois desafios, eu não vim pra pra começar a trabalhar como filho do dono, mas vim também pra trabalhar com outra família que não faz parte da minha família e que tem uma visão que diverge muito da minha família. Então foram dois desafios que eu enfrentei, não foi ser filho do dono. O primeiro passo foi vencer esse, o segundo foi como mostrar pra outra família que eu tinha competência também pra ficar no negócio. E graças a Deus eu consegui convencer os dois lados.

Estou aqui e consegui convencer os colaboradores também. E também consegui passar respeito, não adianta ter confiança. Então a minha credibilidade foi tão grande que eu consegui realmente superar inclusive as minhas expectativas" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

Outro aspecto relacionado ao processo de construção da legitimidade dos sucessores diz respeito ao papel do sucedido em relação à transferência da gestão. Na empresa de transportes pesquisada, a autoridade do fundador pode ser identificada com o tipo tradicional e carismático descrito por Weber (2000). A imagem que os funcionários têm dele e a confiança nele depositada não emanam apenas de seu direito legal sobre a empresa ou na autoridade de pai perante a família, mas principalmente da construção social estabelecida em suas relações com todo o universo de atores da organização, reforçada pela trajetória de fracassos e conquistas protagonizados e institucionalizados como mitos no cotidiano da empresa. Na fábrica de café, por outro lado, observa-se a centralização do poder nas mãos dos fundadores da nova fábrica que, apesar de terem entregado a gestão para seus sucessores, ainda detêm a palavra final sobre as decisões mais importantes da empresa. De acordo com Weber (2000), é possível afirmar que, além de racional-legal, a autoridade também pode ser entendida como tradicional, sobretudo pela concentração de poder nas figuras dos patriarcas das famílias envolvidas.

No caso da empresa de transportes, a entrada precoce dos sucessores propiciou- lhes conquistar a confiança necessária por parte do sucedido, tornando o processo de transferência da gestão mais negociado e aceito pelo fundador.

Aliado a isso, o perfil do sucedido é descrito pelos sucessores como o de um professor ou entusiasta quanto à entrada dos filhos no negócio. Nesse sentido, a passagem da primeira para a segunda geração de dirigentes familiares nessa empresa leva uma marca importante de seu fundador descrito nas entrevistas como o responsável por uma transição realizada sem grandes conflitos.

(15) "Não dúvida, ele é o grande facilitador... É o grande entusiasta de que os filhos estivessem aqui e isso é tudo de bom que uma pessoa poderia deixar pros seus sucessores" (E05). (Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).

(16) "Eu acho que a transição foi muito tranquila, porque nós começamos cedo, então o professor estava do nosso lado. Então, a transição, digamos assim, a gente nem viu que existia uma transição, porque meus irmãos começaram crianças, a [minha irmã] começou criança e eu também, então foi uma coisa muito tranquila" (E05). (Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).

No caso da fábrica de café, são identificados conflitos de natureza intrafamiliar e interfamiliar, que tornam mais complexas as relações em todas as dimensões. Dessa forma, a disputa pelo poder, a meritocracia e a competição aparecem como traços característicos do processo sucessório em si e podem ser considerados componentes importantes do processo de legitimação.

Na empresa de transportes, todas as funções foram exercidas pelo fundador nos primeiros anos do negócio. Seu espírito empreendedor e sua capacidade de operacionalizar as tarefas destacaram-se em relação aos conhecimentos técnicos e ao domínio dos processos formais de gestão. A entrada da segunda geração no negócio não levou automaticamente a uma maior profissionalização da empresa, pois, devido ao pequeno número de funcionários e à pouca idade dos sucessores, os papéis que cada um desempenhava continuaram pouco formalizados, sem a delimitação de suas atribuições em relação à administração do negócio. A passagem dos herdeiros-sucessores por todos os setores da organização é, porém, ressaltada como fundamental para o conhecimento do negócio e pode ser considerada uma etapa fundamental ao processo de construção da legitimidade.

(17) "Quando a empresa era menor, a gente fa-zia de tudo. Então, eu e o [meu irmão], a gente dividia as funções, a gente fazia de tudo. que foi surgindo a necessidade de uma maior definição, realmente ficou dessa forma..." (E04). (Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).

Da mesma forma, na fábrica de café, o conhecimento e a vivência dos sucessores em todas as áreas da empresa aparecem como uma condição imprescindível para sua capacitação e para a construção de seu processo de legitimação.

(18) "Depois, com meus 19 anos, eu vim pra indústria e eu comecei o trabalho na indústria do zero, até então eu não conhecia nada de indústria. E aqui eu aprendi também todo o processo de torra, moagem, empacotamento, distribuição, vendas, sistema de gestão, tomada de decisão, relatório gerencial e foi onde eu consegui realmente chegar no cargo de direção da empresa" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

(19) "Eu passei por todas as áreas da empresa e isso me ajudou muito.

Isso em 2006, a gente comprou um sistema que não se adaptava, tivemos que fazer a troca do sistema, ficamos seis meses trabalhando toda a parte financeira, de produção. a empresa mudou, começou a crescer.

Isso entre 2005 e 2007. Depois eu assumi o Comercial. Foi uma experiência pra mim, porque daí eu comecei a entender que produzir é fácil, o difícil é vender. O difícil é sentar com cliente, é bater meta, é motivar a sua equipe a vender e eu comecei a enxergar isso" (E07). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).

A vivência em todas as áreas permitiu que os sucessores desenvolvessem uma visão mais ampla das empresas, calcada na acumulação das experiências que tiveram ao transitar pelos diferentes setores e funções do negócio. Esse percurso também é apontado pelos entrevistados como uma etapa importante para seu amadurecimento em relação à tomada de decisões, permitindo uma análise mais realista e bem fundamentada sobre os riscos e benefícios advindos das decisões gerenciais. Esse conhecimento tácito pode ser uma dimensão legitimadora dos sucessores em relação, por exemplo, aos funcionários. Ao iniciarem suas atividades em funções mais operacionais e ir aos poucos conhecendo todas as práticas administrativas e operacionais, os sucessores começam a conquistar espaço dentro da empresa e, consequentemente, o respeito, a confiança e o reconhecimento dos funcionários, que atribuem subjetivamente um sentido positivo a essa trajetória dos sucessores.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo, buscou-se delinear o processo de legitimação dos sucessores de duas organizações mineiras a partir dos desafios, dificuldades e conflitos vivenciados por eles ao longo de sua trajetória na organização. Nesse sentido, procurou-se analisar o processo de construção da legitimidade dos herdeiros- sucessores a partir dos jogos de interesses, percalços e desafios enfrentados por eles durante a busca por seu reconhecimento perante familiares e funcionários.

Um aspecto relevante identificado neste estudo foi a participação da empresa como instância socializadora dos sucessores desde a infância. A interação indivíduo-empresa se fez muito presente ao longo da socialização desses sucessores. Dessa forma, a cultura e os valores da família permitiram que esses sucessores produzissem a si mesmos de forma a identificarem-se como parte dos negócios da família e, portanto, comprometidos com sua continuidade. Nesse sentido, os filhos foram socializados tendo como referência o trabalho realizado pelos pais desde a fundação da empresa e acostumaram-se, desde a infância, com o universo da empresa. Ainda no interior da família, perceberam os papéis dos pais e, muitas vezes, identificaram-se com essa lógica, pois a rotina dos pais os vincula diretamente ao negócio da família. A empresa, então, supostamente uma instância de socialização secundária, insere- se também nos espaços de socialização primária, misturando-se ao universo que é comumente restrito à família.

Foi possível evidenciar, nas organizações pesquisadas, a forte influência desempenhada pelas relações entre pai e filho na construção da legitimidade desses sucessores. As formas como esses relacionamentos se configuraram interferiram na significação que os membros da família e os demais atores envolvidos nessas empresas elaboraram sobre o sucessor. Os casos indicaram dois diferentes caminhos para a legitimação: um a partir da construção gradual, incentivada pelo sucedido e gerada por sucessivas crises enfrentadas pela empresa, forçando precocemente a entrada da segunda geração (empresa de transportes). E outro caminho, representado por um sucessor que havia internalizado em seu ambiente familiar (socialização primária) que a competição deveria ser o principal fator a definir o processo sucessório, fazendo das disputas de poder o caminho natural para legitimar-se.

Outro aspecto importante é a forma como ocorre a transferência do poder. A condução da sucessão está diretamente entrelaçada ao processo de legitimação, uma vez que a simples designação do sucessor para o cargo que deve assumir não assegura sua legitimidade. Dessa forma, a construção da legitimidade dos sucessores entrevistados ocorreu como resultado de interações e negociações constantes com os demais atores. Assim, ao se legitimarem, os sucessores foram conquistando espaço e forjando uma contínua reconfiguração nas relações de poder no interior da organização. Nesse sentido, na fábrica de café, um dos sucessores aponta que iniciou seu trabalho na empresa como o filho do dono, sendo necessário comprovar sua competência para ser, então, aceito e ter seu trabalho reconhecido por todos na organização. Além disso, pode-se inferir que o processo de construção da legitimidade, nesse caso, foi marcado por disputas e conflitos. Na empresa de transportes, por sua vez, a inserção precoce dos sucessores possibilitou que eles se projetassem como corresponsáveis pelo sucesso da organização, em um processo gradual de legitimação ante o sucedido e os funcionários, minimizando a ocorrência de disputas entre os sucessores.

Ainda, pode ser mencionado o perfil do sucedido, que é apontado, nessa empresa, como facilitador do processo e entusiasta em relação à continuidade do negócio pelas próximas gerações.

Por fim, a experiência adquirida pelos sucessores devido à vivência em todas as áreas das empresas pode ser uma dimensão legitimadora, sobretudo em relação aos funcionários. Esse conhecimento tácito permitiu que os sucessores conquistassem o respeito, a confiança e o reconhecimento dos atores envolvidos nas práticas diárias da empresa. O processo de legitimação pelo qual passaram na busca pelo reconhecimento de seu lugar de novo dirigente perante a família e os funcionários envolveu uma construção simbólica complexa e árdua. Do lugar de filho do dono até o de sucessor legítimo, os herdeiros precisaram enfrentar inúmeras resistências, disputas e desafios. A construção da imagem do novo dirigente, em substituição à figura, muitas vezes reverenciada, do pai nunca será um processo simples, como evidenciaram os depoimentos dos herdeiros- sucessores.

A partir deste trabalho, foi possível traçar, em ambos os casos, o percurso e os percalços dos sucessores em busca de tornarem-se legítimos, aceitos, respeitados e, quem sabe, até admirados. Na perspectiva dos próprios atores desse processo, a inserção e a legitimação dos sucessores ocorrem a partir de quatro eixos fundamentais: socialização primária, desejo pessoal, aptidão para negócios e competência técnica adquirida por meio de treinamento formal. Mais do que apenas identificar esses eixos, foi possível perceber como os sucessores pesquisados vivenciam e sentem esse processo, que começa na infância e perpassa a vida adulta dos indivíduos. Os casos apresentaram processos idiossincráticos de construção da legitimidade, uma vez que as dimensões identificadas apareceram de forma absolutamente particular em cada um deles, mas a análise conjunta dos depoimentos revela elementos comuns a todos eles.

Estudos baseados na percepção do indivíduo, como o que foi realizado por esta pesquisa, conduzem a dilemas metodológicos complexos. Maior aprofundamento nos relatos levaria a realizar histórias de vida ou ainda casos clínicos, com a utilização de técnicas psicanalíticas para identificação dos elementos inconscientes que certamente influenciam suas escolhas pessoais e profissionais. Embora atrativa, essa alternativa não apenas demanda formação específica, mas também pode levar a um afastamento dos objetos de pesquisa tradicionalmente associados à ciência administrativa.

A busca por extrair elementos comuns dos depoimentos para subsidiar a compreensão acerca do que torna um processo de sucessão bem-sucedido, embora inegavelmente útil para a gestão, não é o argumento que justificaria a continuidade desta pesquisa. Assim, o desafio que encerram pesquisas dessa natureza seria exatamente o de constituir um sujeito - não necessariamente no campo psicanalítico - mas um sujeito organizacional, cujas percepções e interpretações repercutem na forma de perceber, interpretar e conduzir a organização. O próprio processo de reflexão desses indivíduos, ao relatarem sua trajetória, pode contribuir para um melhor entendimento da intrincada rede de relações que os gestores têm de enfrentar. No caso das empresas familiares, à rede usual do negócio soma-se também a rede familiar, que traz consigo um enorme complicador no campo do afeto e das relações. Embora de forma ainda incipiente, nesta pesquisa buscou-se contribuir para ampliar a compreensão de um fenômeno localizado no limiar entre o indivíduo e a organização, campo que requer ainda grande esforço teórico e metodológico dos pesquisadores da área.


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