Ideologia gerencialista e subjetividade do trabalhador no terceiro setor
1. INTRODUÇÃO
Neste artigo, expõe-se a relação conflituosa entre o sujeito e a organização
ambientalista contemporânea, descrevendo e analisando as formações discursivas
que sustentam os embates entre as racionalidades substantiva, baseada em
valores, e prática, que é calculativa e finalística. Apoia-se fortemente em
teoria e procedimentos da sociologia clínica e da psicodinâmica do trabalho,
sendo o artigo produto de pesquisa qualitativa e descritiva, baseada em estudo
transversal de casos. O objetivo principal da pesquisa foi analisar os efeitos
do avanço da ideologia gerencialista sobre a subjetividade de profissionais do
terceiro setor. Buscou-se também, como objetivos secundários: identificar, no
discurso dos entrevistados, traços da ideologia gerencialista; verificar como o
sujeito simboliza e articula, em termos discursivos, os conflitos de
racionalidade decorrentes da adoção da ideologia gerencialista; e analisar como
o sujeito reage e, eventualmente, se defende ou adere a estratégias
gerencialistas bem como os efeitos do gerencialismo sobre a identidade
profissional do trabalhador no terceiro setor.
Na primeira parte do texto, são apresentados os elementos fundamentais do
referencial teórico utilizado no estudo, definindo-se o terceiro setor e a
ideologia gerencialista. Também se discutem as forças motrizes das
reestruturações gerencialistas, que são a imposição do discurso organizacional
e a mobilização psíquica. Explicam-se, ainda nessa etapa, as formas de
transferência de tecnologias gerenciais entre os diferentes setores de
agenciamento da sociedade.
Num segundo momento, disponibilizam-se as definições e os procedimentos
metodológicos que orientaram o desenvolvimento do estudo. Finalmente, são
analisados os resultados das entrevistas e apresentadas as considerações
finais, que incluem as principais conclusões do estudo e agendas de pesquisa
decorrentes.
2. SOBRE O TERCEIRO SETOR, SUA RACIONALIDADE ESPECÍFICA E OS CONFLITOS A ELA
INERENTES
Wolfe (2002) explica que durante muito tempo Estado e mercado dominaram a forma
de se pensar o desenvolvimento, mas vinham, historicamente, gerando
insatisfações. Sucessivas crises econômicas e de governabilidade já nos anos
1970 os puseram em cheque, abrindo espaço para um terceiro ator e uma
diversidade de projetos políticos calcados em novas identidades e significações
viabilizadas pela modernidade (Ferrarezi, 2007).
Franco (2001) conta que os velhos modos de se ver a sociedade não eram
adequados para a nova realidade, estabelecendo como alternativas as relações e
analogias encontradas no Quadro_1.
A expressão terceiro setor, que trata de organizações privadas de interesse
público, trouxe precisão às discussões sobre as organizações que não fazem
parte nem do Estado nem do mercado. No Brasil, o termo surgiu com força na
segunda metade dos anos 1990. Essa década viu reformulações significativas da
legislação voltada para o setor público não estatal, com o surgimento das
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, ou OSCIPS.
As organizações do terceiro setor atuam em um espaço situado entre as lógicas
dos interesses privado e público. Uma é orientada pela dinâmica competitiva e
pressão do mercado e a outra pela promoção do bem-estar da sociedade. Dessa
forma, oscilam entre duas racionalidades, uma instrumental e outra substantiva.
Uma seria finalística, de caráter utilitário, mais afinada com a lógica do
mercado; a outra teria caráter emancipatório, com base em valores e na
autonomia do sujeito ante os processos dos quais participa (Ramos, 2006).
Os conflitos decorrentes do confronto dessas duas racionalidades se dão,
basicamente, em duas dimensões: social e intrapsíquica. O âmbito social estaria
coberto pela definição dada por Bobbio, Matteucci e Pasquino (1983), a qual
entende o conflito como uma dentre várias formas possíveis de interação entre
indivíduos, grupos e coletividades. O aspecto econômico, mais especificamente a
luta por recursos escassos, apresenta-se como elemento importante da definição;
seria possível estabelecer que tanto os meios materiais para sustentação das
organizações quanto o próprio poder de afirmação ideológica por trás das
tomadas de decisão estariam no centro das disputas relacionadas a
reestruturações no terceiro setor.
No polo individual, conforme definem Laplanche e Pontalis (2010, p. 89),
"fala-se de conflito quando, no sujeito, opõem-se exigências internas
contrárias". No caso do choque das racionalidades substantiva e
finalística, o conflito pode ser manifesto ou latente. No primeiro caso, trata-
se do atrito, claramente elaborado do ponto de vista discursivo, entre um
desejo (de ser útil à estratégia, por exemplo, ou de fazer parte) e de um
imperativo moral forte, como filiação ideológica, formação familiar ou
religiosa. Já o conflito latente se expressa mais sutilmente, em sintomas,
perturbações de caráter e mudanças de comportamento.
O surgimento de conflitos, em si, não seria um problema, uma vez que eles fazem
parte da vida, são ubíquos e inevitáveis, delimitando grupos e campos de
alteridade (Coser, 1956; Dahrendorf, 1959). Também o conflito intrapsíquico é
apresentado, na teoria freudiana, como elemento constitutivo do sujeito,
"já inscrito de forma pré-subjetiva como conjunção dialética e originária
do desejo e da interdição" (Laplanche & Pontalis, 2010, p. 92). O
problema estaria no fato de as empresas modernas o negarem, recalcando-o via
processos de antecipação e compensação (Pagès, Bonetti & Gaulejac, 2008).
A organização do terceiro setor pode se diferir de uma empresa de interesse
privado em vários âmbitos, mas a valorização da democracia como forma de tratar
o conflito no desenvolvimento de seus processos de negócio parece ser a mais
relevante (Rothschild & Milofsky, 2006). A maneira como se busca atingir as
metas pode importar mais aos protagonistas do que a própria meta em si.
Portanto, o trabalhador do terceiro setor tem, também, suas peculiaridades.
Como afirmam Nogueira e Rossini (2007, p. 75), ele participa de uma cadeia
específica de geração de valor, "tendendo a se relacionar de maneira
intrínseca com o resultado de seu trabalho e com aqueles que o financiam,
gerando relações de trabalho difusas". Tal fato certamente incide sobre
sua autopercepção, suas representações psíquicas e visão de mundo, sobre sua
identidade, pois os significados têm papel mediador nas relações dos indivíduos
com o mundo ao seu redor (Barthes, 1992). Também pesa o fato de os próprios
atos reais, como o trabalho, o consumo e o amor, serem, como diz Castoriadis
(1982, p. 142), "impossíveis fora de uma rede simbólica".
A explicitação do debate sobre a adoção de práticas de mercado no setor público
tem como marco inicial um ensaio publicado em 1886 por Woodrow Wilson
(Denhardt, 1993). Em The Study of Administration (Wilson, 1887), aquele que
viria a ser o 28o presidente dos Estados Unidos prega o ajuste das funções
executivas para o estabelecimento do cargo público - o qual estaria
imbuído, segundo ele, de santidade - como um fundo de confiança pública.
Para ele, esse ato estaria atrelado à dissociação da atividade pública de
interesses partidários, o que implicaria a adoção de uma lógica negocial
(businesslike) e a aquisição de capacidades para melhorar métodos de trabalho.
Com o avanço do terceiro setor, sobretudo pela institucionalização de sua
relação com o Estado, as organizações privadas de interesse público passaram a
ser avaliadas com maior seriedade, sendo cobradas em termos de sua capacidade
gerencial, seus impactos e, principalmente, accountability. Ademais, o aumento
da importância do setor nos processos de desenvolvimento do país demanda ganhos
de escala pouco factíveis em regimes de gestão precários. A profissionalização
dessas organizações seria legitimável pela necessidade de ganhos de eficácia,
eficiência e efetividade. Mendes (1999, p. 60) aponta um movimento no sentido
da profissionalização das organizações brasileiras do terceiro setor já nos
anos 1980, mas na esteira de organismos internacionais "que alteraram seus
quadros de pessoal e abandonaram a prioridade do perfil militante em favor do
perfil profissional especializado, o que foi prontamente assumido pelas ONGs
brasileiras". Essa tendência já era notada em outros países desde os anos
1970, ainda que com diferenças de contorno (Bhatt, 2000; Ebrahim, 2005).
A busca por congruência com o meio externo gerou uma corrida a programas de
reestruturação organizacional. Para Landsberg (2004) e Rothschild e Milofsky
(2006), não haveria dúvida sobre a tendência de as organizações do terceiro
setor abraçarem, quase que exclusivamente, conceitos e técnicas do setor
lucrativo e da indústria.
Há uma crença quase religiosa nos métodos provenientes da iniciativa privada e
a propagação de promessas que poucas vezes podem ser cumpridas, especialmente
no terceiro setor. Isso porque a política faz parte do cotidiano dessa esfera
de agenciamento, mas é algo que se quer recalcar na lógica corporativa.
"Por mais que esses modelos, tais como a GQT (Gestão da Qualidade Total)
prometam certo nível de liberdade de autonomia, de enriquecimento vertical da
tarefa, esta existe de modo que não haja o envolvimento no estratégico",
diz Siqueira (2009, p. 246). O compromisso, nas transferências de tecnologia
gerencial, deve ser trocado pelo controle.
Os modelos são importados por isomorfismo mimético ou coercitivo ou via criação
e adaptação de instâncias formais de educação, entre elas currículos
universitários ou, mais recentemente, programas de MBA, universidades
corporativas e cursos de especialização (Mumford, 1995; Mendes, 1999; March,
2007). Landsberg (2004) também menciona a importação pelo terceiro setor de
quadros empresariais que se encarregariam de impor, seja pela via prescritiva
ou do sequestro de subjetividade, o novo modelo e sua cultura subjacente. As
consequências podem ser vistas na discussão sobre o fenômeno que Landsberg
(2004) cunhou de non profit paradox. As pessoas do mundo business são
contratadas por sua influência, seu prestígio, dinheiro e pela proficiência nos
negócios. Ocorre a imposição de sistemas gerenciais - e até de léxico
- do mundo negocial, o que gera distanciamento entre a camada gerencial e
a diretamente ligada à missão organizacional. Como resultado, os conselhos
diretivos são subutilizados, pouco contribuindo à missão e mais se atendo a
questões relativas à dimensão financeira da estratégia.
Os gerentes também se distanciam da missão, fixando-se na construção e
manutenção de normativa que garanta o controle do sistema gerencial, na relação
com financiadores e na captação de recursos (Lowell, Silverman & Taliento,
2001), o que os separa, igualmente, de atividades ligadas à missão. Esse
panorama contribui para um distanciamento psicológico entre os corpos gerencial
e programático, o que resulta em dificuldade de comunicação entre os dois
campos estabelecidos, um orientado à missão e o outro à saúde financeira. Dessa
forma, afirma Landsberg (2004, p. 3), as organizações meramente "acabam
trocando um problema por outro".
3. DISCURSO GERENCIALISTA E MOBILIZAÇÃO PSÍQUICA DO TRABALHADOR
A literatura pesquisada trata do gerencialismo como uma ideologia pelo fato
dele incorporar um conjunto de crenças e valores associado a um grupo
operacional de práticas. Além disso, por trás dessas crenças geralmente há um
projeto de poder (Fromm, 1961; Gaulejac, 2007). Os valores gerencialistas são,
muitas vezes, vistos como antidemocráticos (Denhardt, 1993), contrastantes com
a liberdade individual e a autonomia e voltados para o fortalecimento do papel,
poder e prestígio dos gerentes (Scott, 1992; Edwards, 1998). Fala-se também do
gerencialismo como sinônimo de modelo gerencial genérico, baseado em premissas
economicistas estabelecidas na esteira da globalização e de reformas
liberalizantes, e que estaria para a gestão como a tirania está para a
monarquia, uma deturpação de regime de natureza aviltante, controladora e
usurpadora. Aceleração, precarização das relações de trabalho e primazia dos
aspectos econômicos são também ideias muito associadas a essa ideologia e às
práticas decorrentes de seu exercício (Dejours, 2007; Gaulejac, 2007; Siqueira,
2009).
Ademais, os novos sistemas de gestão vêm trocando o controle rígido dos
superiores por aquele feito pelos pares e pela própria pessoa (Ball, 2005;
Gaulejac, 2007). A autogestão e a individualização de ações geram agendas
individualistas, intensificando o jogo de interesses privados, como apontam
Araújo e Sachuk (2007). O equilíbrio dessas agendas privadas é bastante
complicado e incide sobre a percepção de justiça, sobretudo distributiva (Sousa
& Mendonça, 2009). Um fator importante também apontado por Ball (2005, p.
544) é que as reformas gerencialistas não ocorrem "de uma vez por
todas", sendo, geralmente, "um atrito constante, feito de mudanças
incrementais maiores e menores, mudanças essas que são em grande número e
discrepantes", o que prolonga indefinidamente o estado de tensão e alerta
do sujeito.
Fairclough (1995, p. 6) define discurso como "uso da língua vista como
forma de prática social", entendendo o texto como "elemento que tanto
se cria como se repete", sendo objeto de forças centrípetas (normativas) e
centrífugas (criativas). Apresenta as instituições sociais como aparatos de
interação verbal, nos quais o discurso se estrutura em função de projetos de
poder, podendo se conceber como formas de significar um domínio específico de
práticas sociais em função de perspectivas particulares. Tal fato permitiria
gerar gêneros específicos de discurso, com distintas vozes, estilos, modos e
processos, com impactos relevantes na subjetividade.
Pabst (2008) vê a empresa moderna como o lócus preferencial para a construção
de comunidades de sentido, resultantes de esforços discursivos bastante
calculados. Essas constituem substrato perfeito para a criação de um imaginário
organizacional abrangente, maternal, que o indivíduo possa abraçar como seu. As
práticas discursivas gerencialistas se valem de elementos do contexto
contemporâneo, tais como o determinismo econômico e a centralidade do trabalho
na vida do indivíduo, para construir vínculos capazes de sustentar, via
sequestro da subjetividade, os objetivos estratégicos do sujeito e da
organização (Halford & Leonard, 2006; Araújo & Sachuk, 2007). Gaulejac
(2007) fala de um sistema "managinário", no qual trabalhador e
organização realizam uma espécie de simbiose. O sujeito encontra na organização
um conduíte para canalizar as suas frustrações e energia narcísica, enquanto a
organização viabiliza seu projeto gerencialista, provendo ao sujeito a
excitação permanente, a oportunidade de vencer e aplacar angústias. Tal
afirmação converge com a visão de Ball (2005), que define as reestruturações
organizacionais como reformas de subjetividades.
Neste estudo, entende-se por subjetividade um processo mental, íntimo (ligado
ao self), que expressa intencionalidade; indica autonomia e
autodesenvolvimento, reflexão e posicionamento crítico em relação à realidade,
estabelecendo, concomitantemente, identidade e noção de alteridade. Dada a
orientação epistemológica deste trabalho, faz-se uma articulação entre a
posição das estruturas organizacionais e do sujeito no fenômeno estudado. A
estrutura é entendida pelos componentes tecnocráticos que se impõem na adoção
da ideologia gerencialista. O sujeito, seguindo o proposto por Dejours (2007,
p. 29), é "aquele que vivencia afetivamente a situação em questão".
As definições constitutivas abaixo foram instrumentais neste estudo.
Deleuze (2008, p. 93) talvez tenha oferecido a definição mais palatável para o
leigo ao explicar, em seu ensaio sobre a obra de Hume, a subjetividade como
"um movimento de desenvolver-se a si mesmo". Um movimento marcado por
mediação e transcendência, em que o sujeito se faz sujeito pela capacidade de
crer e inventar, construindo-se a si mesmo e se ultrapassando na medida em que,
ao buscar refletir-se, cria o outro. Lacan (1985) deixou também importantes
questionamentos sobre a subjetividade. Assim como no caso de Foucault e
Deleuze, não a define diretamente, mas indica um caminho a partir de discussões
acerca do entendimento do sujeito. Diz ele que "o sujeito é ninguém",
é decomposto, despedaçado, encontrando sua unidade "na imagem, ao mesmo
tempo enganadora e realizada do outro, ou, igualmente, por sua própria imagem
especular" (Lacan, 1985, p. 74).
As mesmas ideias surgem na obra de Foucault (2004) quando da discussão do
cuidado de si mesmo, engendrada a partir de estudos da filosofia grega. Em vez
de definir, o autor pergunta, na esteira de questionamentos feitos por
Sócrates: "o que é esse sujeito, que ponto é este em cuja direção deve
orientar-se a atividade reflexiva, a atividade refletida, esta atividade que
retorna do indivíduo para ele mesmo. O que é este eu?" (Foucault, 2004, p.
51). O Vocabulaire de Psichosociologie(Barus-Michel, Enriquez & Lévy,
2006), ainda que não traga verbete específico para a palavra, indica que a
subjetividade seria um atributo natural do sujeito e estaria ligada à projeção
dele no mundo e a um "projeto de ser", uma intenção de futuro.
As práticas discursivas, cada vez mais controladas e sofisticadas, têm papel
relevante na (re)construção do sujeito. Faria e Meneghetti (2007, p. 133)
explicam que "é através do discurso que o indivíduo torna-se capaz de
conhecer e de construir a si e ao outro, de reconhecer o outro como si mesmo,
de colocar-se no mundo das trocas materiais e simbólicas". Tratando,
ainda, do polo individual, pode-se falar da idealização, apontada por Enriquez
(2001a) como outro dispositivo de negação do sujeito em favor do coletivo. Para
o autor, trata-se de "um mecanismo central que permite a toda sociedade
instaurar-se e manter-se e a todo indivíduo viver como um membro essencial
desse conjunto, correndo um mínimo possível de riscos" (Enriquez, 2001b,
p. 32).
Siqueira (2009) expõe duas modalidades usadas pelas organizações para dobrar o
sujeito à ideologia gerencialista pela via da afetividade. Por meio da
fascinação e da sedução, as organizações impõem sutilmente sua cultura,
dominando o inconsciente do indivíduo, minimizando seu desejo de liberdade e
"deixando pouca margem tanto para o pensamento como para a postura/ação
crítica dentro e fora da empresa" (Siqueira, 2009, p. 83).
Conclui-se que, no contexto presente, ao contrário do que se via em tempos de
práticas predominantemente totalitárias e explícitas de controle, a dominação e
a sujeição do trabalhador se dão de forma sutil, pela gestão do inconsciente.
Assim, estruturas e discursos organizacionais aninhados no terceiro setor podem
ocultar, por trás de propostas humanistas, mecanismos contrários à emancipação
e ao desenvolvimento humano (Araújo & Sachuk, 2007).
4. ASPECTOS METODOLÓGICOS DO ESTUDO
O presente trabalho apoia-se fortemente em teoria e procedimentos da sociologia
clínica, sendo produto de pesquisa qualitativa e descritiva baseada em um
estudo transversal de casos. O objetivo principal foi analisar os efeitos do
avanço da ideologia gerencialista sobre a subjetividade de profissionais do
terceiro setor.
As organizações selecionadas para este trabalho fazem parte do que se entende
comumente como grupo conservacionista, com foco em atividades circunscritas ao
tema ambiental. Estudaram-se dois subgrupos distintos: um composto por agências
cosmopolitas, sediadas em metrópoles, gerencialmente bem equipadas e
financiadas por grandes grupos empresariais; outro formado por aquelas com sede
em região periférica (Amazônia) e que estão na ponta ou frente de trabalho, em
contato mais direto com os beneficiários. Estas se desempenham com recursos
bastante modestos, quando não precários.
Dez trabalhadores de quatro organizações (Quadro_2) foram abordados, sendo três
sujeitos classificados como "desistentes", pois representam
importante grupo de trabalhadores de organizações cosmopolitas e afirmam haver
deixado postos com salários e privilégios pouco comuns por questões pessoais,
divergências ideológicas ou de valores.
A coleta de dados ocorreu por entrevistas individuais, semiestruturadas,
realizadas presencialmente. As conversas foram registradas em meio eletrônico,
com posterior anotação de elementos não verbais ou intertextuais relevantes.
O processo de entrevista contemplou as orientações de Mendes (2007) no sentido
de abrir espaço para o estabelecimento de vínculos (simbólicos, afetivos,
ideacionais) e para a apreensão de conteúdos psíquicos latentes.
5. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O estudo utiliza, para a consecução de seus objetivos, análises de discurso
baseadas no material levantado, seja em pesquisa documental ou nas entrevistas
e anotações de campo a elas associadas. A análise do discurso e do
interdiscurso (Caregnato & Mutti, 2006) busca, pela via da
interpretação, encontrar indicadores da ideologia gerencialista na fala dos
entrevistados. Foram procurados, também, na observação dos gestos e da retórica
dos entrevistados, traços de conflito de racionalidade.
O elemento político sempre esteve presente no discurso e na práxis dessas
organizações. A ideia de conspiração visando à transformação social caracteriza
a sociedade civil organizada. A palavra pode ser tomada no sentido tanto
popular como estrito (neste caso, de inspirar conjuntamente). Encaixa-se bem na
análise da obra de Freud feita por Enriquez (1991, p. 32) em Da Horda ao
Estado, na qual o autor afirma, concordando com o fundador da Psicanálise, que
"o primeiro projeto, aquele que permite exatamente a tomada de contato e o
estabelecimento de relações comunitárias, só pode ser uma conspiração contra um
outro, contra um poder vivenciado como maléfico".
Fairclough (1995, p. 221) afirma que "a problemática de linguagem e poder
é fundamentalmente uma questão de democracia", razão pela qual acredita
ser relevante o papel dos analistas de discurso na formação de uma
"consciência crítica da linguagem". Foucault (apud Burchell, Gordon
& Miller, 1991, p. 56) fala ainda da análise do discurso como meio para
detectar "as mudanças que afetam seus objetos, operações, conceitos e
opções teóricas", o que faz muito sentido no estudo do avanço da ideologia
gerencialista no terceiro setor, quando se toma a mudança como algo maior do
que um processo de sucessão.
Para a busca, nos conteúdos e sentidos, de padrões comuns aos casos, definiram-
se, seguindo Eisenhardt (1989), categorias a partir de elementos sugeridos pela
pergunta de pesquisa e a literatura existente. Essas categorias permitiram,
considerando o modelo apresentado abaixo, buscar similaridades e contrastes
intra e interunidades.
Categoria 1: Estabelecimento da ideologia gerencialista no terceiro setor
Objetivo A - identificar, no discurso dos entrevistados, traços da
ideologia gerencialista.
Ideias centrais associadas - pressão; avaliação/medição; burocracia
excessiva ou opressiva.
Categoria 2: Conflitos de racionalidade e intrapsíquicos
Objetivo B - verificar como o sujeito simboliza e articula os conflitos
de racionalidade decorrentes da adoção da ideologia gerencialista.
Ideias centrais associadas - valores versus benefícios; cooptação/compra;
acomodação.
Categoria 3: Mecanismos de defesa e adesão à estratégia gerencialista
Objetivo C - analisar como o sujeito reage e, eventualmente, se defende
ou adere a estratégias gerencialistas.
Ideias centrais associadas - luta; reação; adesão.
Categoria 4: Subjetividade e identidade pessoal e profissional
Objetivo D - analisar efeitos do gerencialismo sobre a identidade
profissional do trabalhador no terceiro setor.
Ideias centrais associadas - dúvida quanto ao futuro; sentimento de
pertença; posicionamento político.
O produto das entrevistas confirmou a viabilidade das categorias pré-
estabelecidas, apresentando verbalizações e manifestações não textuais que
validam as hipóteses aventadas na fase de desenho do estudo: trabalhadores das
organizações estudadas vêm assimilando a ideologia gerencialista; tal contexto
gera conflitos de racionalidade e intrapsíquicos; e trabalhadores desenvolvem
mecanismos variados de reação ao fenômeno, havendo perda de identidade
profissional. Ademais, tanto os elementos de conteúdo quanto os discursivos
corroboram e reforçam o referencial teórico que sustenta este trabalho, como se
pode ver na análise dos achados, desdobrada a seguir.
5.1. Categoria 1: Estabelecimento da ideologia gerencialista no terceiro setor
Dado que a primeira característica do gerencialismo é o fato de ele constituir-
se como ideologia, inicia-se a discussão dos resultados com a fala de um
desistente de uma das organizações cosmopolitas:
U1I4 - A gente focava muito na luz e não trabalhava o que
estava na sombra. E, às vezes, o mais importante está na sombra.
Quando utilizo esse tipo de linguagem, a luz, por exemplo, são os
documentos que dizem que há gestão democrática, os discursos falam em
gestão democrática, as propostas dizem que foram construídas
democraticamente e participativamente, só que as decisões, as tomadas
de decisões são muito complicadas, elas são feitas em pequenos grupos
que são gerenciais [...] muitas vezes, as aspirações dos funcionários
são levadas a esses fóruns e instâncias, mas elas são simplesmente
colocadas como uma questão cartorial. Não há democracia.
As palavras acima suscitam reflexão sobre a capacidade que o trabalhador tem de
captar os projetos de poder exercidos de forma implícita nas organizações. A
sensação de que há muito acontecendo "nas sombras", e que se trata de
ação intencional de poucos afetando a vida de muitos, gera sentimento de
injustiça já por si, capaz de causar sofrimento e descrença nos esforços
públicos, na política. É disso que Gaulejac (2007, p. 55) parece falar ao dizer
que a "opacidade reina soberana". Em um mesmo trecho, o profissional
angustiado sintetiza o conflito hoje vivido no terceiro setor ao afirmar a
coexistência de aspirações - que denotam sentido de missão, ligado à
racionalidade substantiva - e o tratamento cartorial delas, um claro
indicador da racionalidade prática, finalística. A clareza de visão do
entrevistado mostra a subjetividade em pleno exercício. Há um evidente
contraponto entre a posição ocupada pelo sujeito e pelo outro, bem como
reflexão sobre como o seu eu se comporta nesse arranjo.
Na busca pela satisfação de quem as sustenta, as organizações pedem ou aceitam
a opinião dos financiadores na escolha de formas de organização. Muitas vezes,
a cartilha já é entregue juntamente com a oferta de apoio, como relatou U1I1.
Num recente movimento de ampliação de suas parcerias, a organização A obteve
vultosa quantia para aumentar uma de suas vertentes de trabalho, mas a um preço
extremamente alto para os funcionários e novos colaboradores. Relatou-se que
uma das exigências do banco apoiador foi que a ampliação dos quadros fosse
feita via contratos por produto e não pelo regime de Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), utilizado para os funcionários da casa. Tal fato confirma
outros dois indicadores do estabelecimento da ideologia gerencialista, que são
a precarização das relações de trabalho em função da necessidade de aumento da
rentabilidade financeira e a primazia dos aspectos econômicos nos arranjos
estratégicos.
O fato de os trabalhadores do terceiro setor situarem-se em um campo
supostamente humanista não os tem poupado de esforços que os aproximam, em
termos do entendimento deles como um capital aplicado a resultados, das pessoas
e máquinas coordenadas em uma linha de produção industrial. O trabalho em si
- e não somente a empresa, como propôs Foucault (2004) - converte-
se em um conduto econômico, de modo que o trabalhador "passa a ser, nas
análises econômicas, não somente um objeto, o objeto de uma oferta e de uma
demanda em forma de força de trabalho, mas um sujeito economicamente
ativo" (Foucault, 2004, p. 229). Torna-se mais comum a aplicação de
sistemas de mensuração de competência, de produtividade e de capacidade
relativa de incidência sobre os resultados da organização, o que força os
indivíduos a buscar um estado mental de entrega aos fluxos e processos de
negócio, geralmente desenhados conforme uma racionalidade exógena e alheia à
sua história de vida e aos seus valores.
As ideias de aceleração e reificação, comuns na empreitada gerencialista, e da
dificuldade de com elas se lidar surgem constantemente nas falas dos
entrevistados. Para explicar a dinâmica brutal da organização, usam-se
metáforas relativas às propriedades das máquinas ou a cataclismas naturais,
contra os quais a força humana - mesmo no caso dos obstinados -
luta com muita dificuldade.
U1I1 - Nesse jogo, é uma questão de sensibilidade e você entra
no trem andando. Você tem de correr para pegar o bonde, ele não vai
parar para você entrar. E o bonde e os trilhos estão indo por essa
onda da objetividade. E cada vez mais a gente se distancia da
subjetividade.
U1I4 - É uma coisa louca. Quando você entra, você já cai no
vulcão. Automaticamente, você estando dentro daquela ONG, tem que se
virar.
Gaulejac (2007, p. 63) afirma que a gestão "se torna uma metalinguagem que
influencia fortemente as representações dos dirigentes". Esse sistema de
contêineres de significado não necessariamente garante que os próprios
conteúdos estejam presentes, que a organização efetivamente opere sobre eles.
Dessa forma, o discurso gerencialista, com seu léxico peculiar, dá a sensação
de que se vive em uma organização moderna e eficiente, justa e humanista, que
é, na verdade, totalmente distinta da vivida no dia a dia, daquela percebida
subjetivamente pelos trabalhadores.
Existe uma preocupante aparência de estabilidade e correção dada pela
formalidade nos diversos subsistemas das organizações cosmopolitas estudadas,
inclusive de gestão de pessoas. Investe-se em formação, respeitam-se os
direitos trabalhistas e raramente há, segundo informam os entrevistados, quem
faça horas extras, salvo a "equipe do financeiro". Há espaço até para
o exercício de práticas tidas comumente como esotéricas, mas que servem como
válvula de escape para as pressões do lado mais hardcore da organização. Mas,
levantado o véu da objetividade, surgem nódoas que mesmo alguns dos
entrevistados preferem não ver ou discutir. Cruzando informações dos
entrevistados, descobre-se, por exemplo, que o fato de não se permitir as horas
extras está atrelado à exigência de instalação do ponto eletrônico, que
evidenciaria qualquer esforço além do horário normal, gerando custos adicionais
para a organização. Não há mais uma possível correspondência entre o volume
excedente de trabalho e horas adicionais que a ele se possam dedicar. Há que se
trabalhar mais em menos tempo e o resultado é o acúmulo de falhas, que vai
aumentando a frustração dos trabalhadores e a insatisfação dos chefes, numa
espiral que termina em cinismo, doença ou demissão.
Conforme se discute em Pagès et al. (2008, p. 158), a organização hipermoderna
caracteriza-se por uma "substituição do Ego dos indivíduos pelo ideal
coletivo apresentado pela organização". Ocorre uma dissolução de qualquer
instância crítica e da censura de eventuais formações discursivas que possam se
contrapor à narrativa oficial. Com esse movimento, o trabalhador faz seus os
interesses do empregador, que não mais tem que se valer de coerção explícita
para obter os resultados que busca.
U1I3 - Não posso reclamar disso porque eu escolhi ir para a
organização A. Eu tenho uma gratidão. Por outro lado, a única coisa
que eu preciso controlar mais é a mim mesma.
As entrevistas mostram ser comum o adoecimento, que se plasma de diversas
maneiras e em diversos níveis. Não se trata de algo que afete somente os
diretamente implicados, mas a todos aqueles que tomam conhecimento do fato.
Siqueira (2009) conecta o estado mental do autogestor, sempre em busca da
superação, com o tema da doença no trabalho:
No intuito de se destacar das outras pessoas e ser uma espécie de
herói a ser seguido, mas com a fantasia de herói caindo por terra em
pouco tempo, sobram inúmeros problemas para o indivíduo, boa parte
deles o acompanhando pelo resto da vida e comprometendo não apenas a
sua saúde, mas também a maneira como ele se relaciona com outras
pessoas (Siqueira, 2009, p. 197).
Siqueira (2009) segue explicando que o contexto presente, no tocante à cultura
organizacional predominante, leva o sujeito ao seu limite emocional, de modo
que há cada vez mais pessoas doentes. Apesar disso, a organização limita-se a
lidar com o tema no campo discursivo e nas formalidades funcionais, tais como
provimento de planos de saúde e direito a licenças. O que não se faz,
entretanto, é discutir abertamente o papel dela como causadora desses problemas
(Siqueira, 2009).
Igualmente preocupante é a tolerância ao sofrimento subjetivo, aceitando-se a
psiquiatrização do problema, tomado como algo normal, um dado da realidade que
pode bem ser fruto da debilidade do indivíduo e não da pressão do contexto. Com
isso, conforme expôs Gaulejac (2007), a organização externaliza os custos da
doença, tirando de si a responsabilidade pelos seus impactos. O trabalhador,
com medo de se mostrar efetivamente débil, também minimiza o problema tentando
mostrar sua thick skin.
U1I3 - Eu já tive um surto bipolar, eu me tratei, fui ao
psiquiatra. Simples assim. Demorou um pouquinho. Isso tem um remédio
que resolve […] Desde que você treine a pessoa e desde que ela tenha
o mínimo para ser adequada àquele ambiente, desde que ela tenha o
mínimo de expertise para trafegar no meio ou na função em que ela
está querendo ficar, para mim, tudo é possível, com maior ou menor
dor.
A visão da dor como algo aceitável e, portanto, gerenciável e conversível em
prazer tem sido estudada desde os anos 1980 pela psicodinâmica do trabalho. O
entendimento do processo de psicodinâmica do reconhecimento, pelo qual o
indivíduo confere valor e sentido ao sofrimento, convertendo-o em prazer,
significou um importante avanço em relação ao conceito anteriormente
predominante, que reduzia a clínica aos aspectos psicopatológicos (Mendes,
2007).
A corrida para fazer cada vez mais com menos leva as pessoas a recortarem o
tempo e a preenchê-lo de forma doente e hiperativa, com o objetivo de suprir o
vácuo causado pela falta de sentidos resultante de estratégias permanentemente
cambiantes. Nesse contexto, "cada uma das etapas parece útil e necessária,
mas o conjunto desemboca em nada" (Gaulejac, 2007, p. 173).
U1I2 - Já parei para fazer relatório do que fiz o dia todo,
para provar que não tive tempo de fazer o primeiro que eu tinha que
ter entregado naquele dia. [...] Era para termos entregue o relatório
anual em março. A minha parte do relatório anual estava toda
adiantada. Aí vai parando. Para na superintendência. Depois, para na
secretaria-geral. Volta pra ela: "Corrige isso". Corrige.
Volta para lá, para ali. A gente chama de cipoal. É aquele que tem na
floresta. [...] Depois que entrou no cipoal, você reza. Vai terminar
o ano e o relatório anual não está pronto.
O fato de essa entrevistada ter que fazer um relatório para explicar por que
não conseguiu realizar outros relatórios mostra o quanto o gerencialismo se
distancia da gestão, convertendo-se em um pesadelo kafkiano, em um labirinto
tanto físico quanto psíquico. Nele, o indivíduo sofre, sabendo que, mesmo com
todo o seu esforço, está condenado a errar. E errará mesmo, pois a organização
parece conduzi-lo sistematicamente a esse desfecho.
A crítica mais comum relativa aos dispositivos gerenciais implantados nas
reestruturações não decorre do entendimento de falta de mérito nas exigências,
mas da visão de que elas são, geralmente, incompatíveis com a realidade das
organizações. É recorrente a afirmação de que, embora se exijam grandes
mudanças, a maioria dos financiadores se recusa a investir em capacitação, de
sorte que as adaptações são feitas, muitas vezes, às custas dos próprios
funcionários, que devem se desdobrar para acomodar, num mesmo espaço/tempo/
salário, as novas atribuições. Tal açodamento incomoda os entrevistados,
gerando frustração.
U4I2 - Hoje, os financiadores não oferecem mais cursos de
capacitação para quem trabalha nesse setor. O que se manda é uma
série de exigências […] Esse processo é muito cruel. Acabamos vendo
nessa situação a falta da reflexão. Vivemos num mundo hoje de
resultado e velocidade que não há mais tempo para fazer a pessoa
entender.
A frase final é significativa por expressar descontentamento com um
comportamento típico da organização gerencialista: o foco nos produtos e não no
processo. A significação está no fato de que o produto não é a pessoa ou seu
conhecimento, nem mesmo a tentativa de aplicação desse conhecimento numa
determinada cadeia de valor. É o tudo ou o nada, o sucesso ou o fracasso. Isso
nos remete a Foucault (2004, p. 230) quando afirma que, no caso de um capital
cujo único retorno é um salário, não há como separá-lo de quem o detém: "A
competência, o poder fazer a coisa, tudo isso não pode ser separado daquele que
é competente". Desta forma, entende-se a "competência do trabalhador
como uma máquina, mas uma máquina que dele não pode se separar". Com isso,
fica claro o porquê de os entrevistados não aceitarem o açodamento e a falta de
espaço para os aspectos qualitativos das relações. Sua atuação como máquina
produtiva traz embutida a política, sendo, portanto, difícil para ele ou ela se
entregar à gestão sem o componente crítico.
A avaliação dos resultados, sem levar em conta os processos, disfunções da
organização e a falta de foco dos superiores, é motivo de frustração, e o
trabalhador se sente injustamente acusado de incompetência:
U1I2 - Eu começo a atualizar a lista, cai outra coisa aqui na
minha mesa: "fulana, você tem que fazer a lista Y até
amanhã". Eu disse: "Mas e a lista X?". "Não. Esse
aqui é mais importante" […] Isso me dá uma sensação de
frustração. Eu termino o dia assim: "Gente, eu não concluí nada.
Comecei quatro coisas e não concluí nada". Depois, dizem que a
gente não faz nada. Você faz tudo que é pedido, mas, no fim das
contas, você não faz...
5.2. Categoria 2: Conflitos de racionalidade e intrapsíquicos
A organização moderna quer ser vista como entidade suprema e agente
privilegiado da história, da qual seria um prazer fazer parte e pela qual seria
um privilégio ser assimilado. O trabalhador deve tê-la no mesmo patamar de uma
religião, assimilar seus caprichos e repetir seus ritos. Deve deificá-la (Pagès
et al., 2008) sem, entretanto, poder dela esperar igual comprometimento. O
discurso organizacional, propalado via processos e produtos de comunicação,
provê os conteúdos simbólicos a serem assimilados ou rejeitados - de
qualquer modo, vividos - pelo sujeito.
Buscaram-se, nas falas dos entrevistados, dois tipos de conflito.
Primeiramente, surgiu a necessidade de mostrar-se a oposição entre as
racionalidades substantiva, baseada em valores, e finalística, sendo que às
duas se associaram, respectivamente, tipos de comprometimento afetivo e
calculativo. Posteriormente, pareceu importante ir além das oposições que
discutem a compatibilidade entre o sujeito e a organização, de modo que se
procuraram também, nas falas dos entrevistados, elementos que pudessem indicar
conflitos intrapsíquicos. Nos dois casos, coube bem uma pergunta, que se deixou
pairando no ar, como um filtro, uma função, durante as conversas: O que está em
jogo nessa relação?
A resposta mais óbvia seria a sobrevivência, da organização de um lado e, de
outro, do trabalhador. A organização espreme o trabalhador com o objetivo de
atender às necessidades de quem a financia e o trabalhador suporta tudo porque
precisa de seu ganha-pão. Dos dois lados, o processo é calculativo. A
organização tem ciência de seus valores - tanto que os expressa em seus
documentos -, mas gerencia com o viés do financiador, de sorte que a
racionalidade prática, que é finalística, prepondera em suas decisões. O
trabalhador também tem seus valores e os expressa ao narrar sua trajetória e os
casos de inconsistência da organização, com os quais discorda abertamente. Mas
a racionalidade substantiva não tem potencial suficiente para superar o da
prática, pois há que se colocar o pão na mesa, de modo que a opção é por
aceitar o jogo. Notem-se as duas falas abaixo, uma de um ex-diretor e outra de
uma funcionária ativa, ambos de organizações cosmopolitas:
U2I2 - Você não pode se omitir de uma área que você considera
que a qualidade das decisões é importante para ser tomada. A grande
transformação que as organizações do terceiro setor tiveram é que, ao
crescer, você muda de ser um executor de projetos para trabalhar na
questão de apoio à tomada de decisões, políticas públicas. [...] O
dilema da reestruturação das organizações do terceiro setor é como se
manter presente na atividade fim mas ao mesmo tempo poder trabalhar
em mais larga escala e trabalhar em situações em que você não vai
controlar o resultado.
U1I2 - Eu tenho uma filha de 20 anos, moramos só nós duas aqui
e precisamos ter uma renda. E tem mais, o salário lá não é o salário.
A gente tem um salário indireto que vale super a pena, que é plano de
saúde, tem assistência dentária, tem o cartão-alimentação, que é uma
grana. Se você somar, dá um salário razoável.
O discurso do diretor é marcado pelo conflito de racionalidades. Tanto que a
frase final sintetiza o tema, expondo como dilema das reestruturações a
oposição entre as expressões "se manter presente na atividade fim" e
"poder trabalhar em mais larga escala e trabalhar em situações em que você
não vai controlar o resultado". A primeira, apesar de conter a palavra
"fim", conota apego à missão, que deriva geralmente dos valores
apregoados pelos que fundam a organização, não pelos que a financiam. Já a
segunda trata de crescimento em escala, ganhos de eficiência e subordinação a
uma estratégia exógena, claros indicadores de uma racionalidade prática e
finalística, orientada a resultados e não a processos. A segunda fala é clara e
vale-se da palavra "precisamos", que estabelece já um elemento não
negociável que, em si, converte-se em justificativa para o amortecimento de
toda a carga negativa do trabalho.
Contudo, pelo que mostram os conteúdos e sentidos apurados nas entrevistas, o
fato de o trabalhador também instrumentalizar a organização passa a ser uma
interpretação possível.
U1I1 - Com relação ao ambiente, muitas pessoas chegam
justamente porque fazem trampolim. Entram para o setor do meio
ambiente, terceiro setor, fazem sua cara e vão para a
responsabilidade social de empresa. Isso acontece demais! Demais!
U1I2 - Mas não é o salário. O que me motiva hoje é que os
cursos que tenho pedido para fazer, eles têm atendido. Acho legal
isso. [...] Tudo que ajuda lá no meu trabalho, porém vou levar isso
para a minha vida toda, então, é um investimento.
5.3. Categoria 3: Mecanismos de defesa e adesão à estratégia gerencialista
"Salvemos o planeta. Mas, antes, salve-se quem puder!" - lema
da rádio-corredor de uma das organizações cosmopolitas. Discutir as estratégias
de defesa contra o gerencialismo ou as formas de adesão a ele não é tarefa
fácil, pois a impressão que se tem é que, salvo no caso da desistência, todas
as ações redundam em fortalecimento da agenda gerencialista. Existe tal
sofisticação nos discursos gerados que passa a ser temerário fazer qualquer
afirmação taxativa sobre o que se apurou. Resta ao pesquisador relatar e
discutir, como possiblidades, aquilo que capta seu próprio aparelho
interpretativo. O principal apoio teórico foi Dejours (2007), que sugere para
as análises foco nas manifestações de normalidade.
Uma primeira estratégia adotada pelos entrevistados parece ser a de não
reconhecer, em seu âmbito consciente, que as reestruturações estão ocorrendo.
U1I3 - A reestruturação de fato, mudar a cadeira, ir para outra
sala, ainda não aconteceu. Eles estão fazendo as reuniões junto com a
consultoria. Eles quem? Os coordenadores, junto com o
superintendente.
Não parece provável que uma pessoa bem formada e sagaz como a entrevistada
fosse incapaz de detectar sinais mais sutis de reviravolta que o mudar de sala.
Faria mais sentido pensar que o problema está sendo manipulado mentalmente como
uma externalidade que não a afeta e pode ser, pelo menos por hora, ignorada.
Não ver as reestruturações como um problema sobre o qual se tem incidência, mas
como algo natural, parece ser a segunda estratégia. E, nessa tarefa, a situação
econômica é quase sempre a melhor aliada. Assim, as crises mundiais, a
concorrência de outras organizações e injunções legais vêm sempre a calhar
quando o sujeito precisa de uma razão para deixar que o discurso organizacional
sobrescreva os seus valores. Tudo teria uma explicação racional, em cadeia de
causas e efeitos, plasmando-se no que Mendes (2007, p. 38) chama de
"discurso teleológico". Como aponta Dejours (2007, p. 91), o
"trabalho sujo torna-se assim um trabalho de arrumação, de faxina, de
enxugamento, de saneamento, de limpeza a vácuo, etc.".
U4I2 - Aqui, na organização D, há o sistema de que a pessoa é
contratada por projeto, então, encerrou o projeto todo mundo é
demitido […] E infelizmente acabou o projeto, acabou o vínculo,
porque é uma opção de gestão daqui. E é correta... Uma coisa que mata
as instituições é a alta taxa de encargos trabalhistas.
Outra estratégia de defesa é a criação de redes de proteção. O trecho seguinte
mostra o sujeito social em ação, o surgimento de um nós e a possibilidade de
colocar-se o comportamento gregário em movimento na organização, em defesa de
comportamentos que certas subculturas organizacionais consideram relevantes:
U1I1 - Aqueles que têm maleabilidade, que têm mais mandinga,
vão tentando levar. Há muitos aqui. Igual a mim há alguns. Acaba que
o gueto... Até mesmo entre essa galera, você cria gueto. [...] O meu
grupo de amigos aqui dentro é de amigos de verdade e eles têm esse
perfil. Acabamos de perder um, na semana passada, porque abriu o
bico: "Tô fora." Entendeu? "Putz! Perdemos. Vamos
fortalecer aqui, galera."
Como se vê no discurso, o grupo também funciona para a organização, pois a rede
de apoio amortece o impacto causado pelos desistentes, diminuindo
potencialmente a dissidência futura. De qualquer forma, existe no coletivo uma
estratégia para enfrentamento das investidas da organização ou dos impactos
dessas ações.
São muito fortes no conjunto das entrevistas os indícios de deificação
organizacional como estratégia de amortecimento dos efeitos da ideologia
gerencialista. O objetivo das falas, que as pessoas parecem dirigir a elas
mesmas, é de convencimento. Elas se apoiam no discurso teleológico, acrescido
do argumento de grandiosidade da organização à qual se subordinam.
U1I1 - É um trabalho digno, muito digno de ser reverenciado […]
Não foi assim, da noite para o dia. Tem que respeitar esse limite e
tenho que me satisfazer em 15 anos de trabalho bem feito. E
satisfazer realmente. Não é satisfazer só da boca para a fora. Tem
que satisfazer com certeza, com convicção. Olha, são 15 anos, 15 anos
de trabalho muito bem feito. E funcionou. Se você tem suas
frustrações, se está com problema, vai para terapia, resolve os seus
problemas primeiro.
A estratégia extrema de defesa pressupõe total incompatibilidade com a noção
organizacional de normalidade. É a desistência. Melchior (2010, p. 160) afirma
que, se a organização encontra obstáculos na manipulação, a seu contento, da
subjetividade, "é porque ela não mais corresponde, nos dias de hoje, ao
sentido dado pelos assalariados a seu trabalho". Sem sentido, como se
discutiu anteriormente, não há como converter sofrimento em prazer e, de tal
forma, torna-se impossível qualquer tipo de contrato psicológico.
Os três desistentes entrevistados têm em comum o fato de terem sido parte de
organizações cosmopolitas, trazendo bagagem intelectual relevante e senso
crítico aguçado. Os fatos deflagradores podem ter sido diferentes, mas a
questão de fundo foi parecida, tendo a ver com a incapacidade da organização de
acomodar a expansão do indivíduo, seja em termos de sua necessidade de obter
novos conhecimentos ou mais espaço político para a socialização de questões por
ele consideradas muito importantes para ficarem "sob o tapete".
U1I4 - Ele (o chefe) me levou para o meio da ponte para dizer
que eu não devia fazer isso, que eu repensasse o meu papel, que a
instituição tem os seus embates, mas que era importante estarmos lá
dentro construindo, refazendo. Pediu que eu repensasse. Falei:
"Vou sair." "Aonde você vai?" "Não sei
aonde vou." "Como você vai sair se você não sabe aonde
vai?" "Não sei aonde vou. Eu sei que vou trabalhar. Morrer
de fome não vou. Mas não tenho condição de permanecer mais."
É importante notar na fala as referências à questão freudiana apontada tanto
por Enriquez (1991), em sua análise psicanalítica do vínculo social, quanto por
Pagès et al. (2008). A ruptura com a organização, ainda que seja decisão
tomada, é tratada como situação de risco relacionada a um desmame, a uma
separação da figura materna que acolhe e nutre. A conversa com o chefe pode ser
interpretada como uma última tentativa de castração, de colocar o trabalhador
em seu lugar, numa posição confortável, porém controlada. Mas a essa altura não
há mais identificação, e o vínculo deixa de ser possível.
5.4. Categoria 4: Subjetividade e identidade pessoal e profissional
Enriquez (2001a) resume em seu ensaio Instituições, poder e
"desconhecimento" o dilema vivido atualmente por aqueles
trabalhadores do terceiro setor ainda motivados por valores e não por uma
racionalidade puramente prática: o poder é entendido nas organizações como
propriedade, e não relação. Fica patente nas entrevistas um entendimento comum
de que a política é um processo que deve ser fomentado do lado de fora da
organização. Do lado de dentro, deve imperar a obediência aos ditames da
estratégia montada pelos três ou quatro hierarquicamente mais bem posicionados.
U1I3 - Lembro-me de um caso que você vê a pessoa brava, mas,
como o mundo é muito pequeno [...] Também é o julgamento de cada um,
porque se a pessoa fala que vai fazer do jeito que está falando,
mesmo tendo discutido, é um direito dele, ele tem as razões. E às
vezes são posicionamentos nem sempre por questões políticas, às vezes
é um posicionamento interno.
Os trabalhadores entrevistados não somente se ressentem de não poder fazer
política como também duvidam das afirmações que colocam as suas organizações
como democráticas e justas. Há um sentimento geral de que o que fazem é seguir
uma força inercial maior do que eles e a própria organização. São mais uma peça
numa máquina global coordenada por "estrangeiros", pelo
"outro". As falas indicam que, conforme suposto na fase de desenho
deste estudo, organizações do terceiro setor estão deixando de ser motores de
formação política e de opinião para se converterem em apêndices para-
governamentais ou de iniciativas ligadas à responsabilidade social empresarial.
Sua identidade histórica, e a daqueles que o constituem, está em cheque.
Os principais elementos constituintes da identidade do trabalhador do terceiro
setor são a preponderância dos valores como força motivadora e a capacidade de
incidência política de sua atuação, seja como pessoa ou parte de um coletivo.
São esses bens que os entrevistados lamentam estar perdendo nos presentes
arranjos organizacionais.
U2I1 - Penso que não podemos exacerbar as desvantagens dessas
reestruturações. Mas agora que já dei muitos elogios para as
reestruturações, deixe-me falar algumas coisas que são negativas
nisso. A primeira delas é justamente essa percepção de que as ONGs
estão abandonando o seu espírito de voluntariado. Quando as pessoas
mais antigas que estão lá por idealismo saem, você tem esse risco de
que aquilo ali seja uma empresa igual às outras.
A confirmação vem na forma do depoimento de uma entrevistada de uma geração
mais nova, bem formada nas ferramentas de gestão, mas que não vê motivo para
que haja diferenças nos modelos de gestão pensados para as três esferas de
agenciamento da sociedade:
U1I3 - Para mim, não interessa se é ONG, empresa privada ou
governo [...] se você me perguntar: "Como você vê, em um
minuto?" Eu ia dizer assim: "Para mim, é igual porque entra
um orçamento, entra um dinheiro [...], você executa, você tem uma
série de coisas para as quais você consegue receber pelo orçamento,
sai um produto e você presta contas." Esse é o processo bem
simplificado. Para mim, a pessoa que está trabalhando numa
organização qualquer tem que respeitar, porque, primeiro, é dinheiro
de alguém.
A afirmação confirma a visão, bastante discutida neste trabalho, da função
econômica das relações como sendo primaz. A satisfação do cliente, o
"alguém" de quem provém o dinheiro, é o único norteador necessário
para a formulação dos modelos de gestão, seja de qual setor for. O processo
pouco importa desde que o produto, que é a satisfação do cliente final, esteja
conforme. Ocorre que a ideologia opera precisamente nos processos, o que sugere
que eles seriam demasiadamente relevantes em um setor eminentemente político
como o privado de interesse público. Não há como o terceiro setor atuar de
forma diferenciada se aceita igualar-se aos outros dois na finalidade.
U4I1 - Somos OSCIP, mas nunca implementamos um termo de
parceria porque nenhum desses governos tem iniciativa para isso. É um
bando de bunda mole. Eu estou torcendo para isso porque assumíamos
logo essa cara de viés de governo. […] O doador tinha comentado há
tempos sobre as diversidades de formas de dinheiro, que era montar
uma atividade empresarial para gerar grana, botar o dinheiro aqui
dentro para poder circular e ter certa autonomia. Fiquei pensando
nisso como uma saída.
O depoimento traz um elemento forte, que é o fato de o entrevistado mostrar-se
irritado com a ambiguidade vivida pela organização. Para ele, melhor seria ser
assimilado pelo governo do que ter de se manter num limbo cuja relação com a
sociedade e o mercado tem contornos difusos. Mas a incerteza e a falta
de regularidade nas relações favorecem o financiador, pois é mais fácil
manipular um grupo de pessoas quando o ambiente não tem contornos definidos,
quando as fronteiras entre o dentro e o fora, o eu e o outro, são difusas.
U3I1 - Com a chegada deste governo, vive-se um segundo momento
no terceiro setor aqui, que é extremamente conflituoso, porque você
se vê governo, quando a proposta que você defende chega ao
governo, você se vê parceiro e sem saber bem como se posicionar
contra, porque você ajudou a construir aquilo [...] Como faço greve
se ajudei a colocá-lo lá?
O elemento mais epidérmico e, portanto, mais visível da identidade corporativa
é o subcomponente visual, capitaneado pelo logotipo. É o logo que se vê o tempo
todo, nos cartazes, nos banners e folders, vídeos e papelaria burocrática. É
essa peça de comunicação que encerra e sintetiza os elementos discursivos que
fascinam e clamam por identificação e comprometimento. Do mesmo modo, quando o
sentimento se inverte, é a ele que se atribui a culpa, dirige-se o ódio.
U1I2 - É horrível porque eu me decepcionei muito com esse
(descreve o logo), porque eu olhava para ele e tinha um orgulho e uma
admiração tão grande pelo trabalho, pela causa [...] Quando chega
essas horas, eu falo: "Puxa vida, mas não é bem isso que a gente
quer, a gente não está lutando para isso". Todo mundo diz que o
(menciona organização congênere) vai lá e mete a cara. Nossa
organização fica em cima do muro. E infelizmente vamos ficando em
cima do muro. É uma situação péssima, eu me sinto super mal.
Essa funcionária é hoje um claro caso de comprometimento calculativo. Ela move-
se conforme a impossibilidade momentânea de traçar um novo caminho para si
própria ou de haver uma transformação que humanize a organização, dando novo
sentido ao seu trabalho. Para quem vive e trabalha, pelo menos
predominantemente, em função de valores, as contradições simbólicas hoje
presentes nas organizações do terceiro setor vão se constituindo em uma
barreira de difícil transposição. O abismo que vai se abrindo entre discurso e
prática, entre o tratamento dado aos de fora e aos de dentro, assusta e
desanima. Assim, os profissionais vão perdendo o sentido de pertinência a uma
classe específica, a um grupo mais bem intencionado que costumava ter respaldo
institucional.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cruzamento do referencial teórico com os resultados das entrevistas
apresentou suficientes evidências de que a ideologia gerencialista está em
franco avanço em algumas das mais importantes organizações ambientalistas do
terceiro setor. Não só se veem os impactos em termos dos danos causados às
pessoas, mas no fato de que os sujeitos, eles próprios, já veiculam com
convicção os discursos do determinismo econômico e do controle gerencial, este
tomado como panaceia a se aplicar nas situações, já crônicas, de mudança. Há,
ainda, uma preocupante aceitação do sofrimento, da psiquiatrização e da
precarização das relações de trabalho.
Viu-se que o objeto principal de racionalização é a sobrevivência. Tanto a
organização quanto o sujeito se valem dessa importante função para calcular e
tomar suas decisões, seja em favor de seus valores ou de fins práticos. Também
se concluiu que o sujeito implicado com ações humanistas no terceiro setor
gosta de se pensar magnânimo e orientado por valores, mas também sabe ser
prático ao usar a organização como trampolim para os seus projetos pessoais e
finalísticos.
Os resultados mostraram que certos sujeitos tentam não enxergar a realidade ou,
quando não conseguem fazê-lo, tratam de racionalizá-la, de modo que seja
suportável. Outros buscam dar sentido ao sofrimento vivido, de forma a
convertê-lo em prazer. Finalmente, notou-se um entendimento comum, mesmo nos
casos daqueles que concordam com a agenda gerencialista, de que o terceiro
setor está perdendo as suas vantagens competitivas, aproximando-se muito da
esfera governamental ou da empresarial em sua forma de agir, de tratar os
colaboradores e de apresentar-se à sociedade.
A produção deste estudo gerou questionamentos acerca da abrangência do estado
da arte sobre os temas tratados, fortemente enviesado pelo foco na área privada
e no setor terciário. A pouca disponibilidade de estudos, sobretudo empíricos,
sobre o gerencialismo, a subjetividade e o comprometimento organizacional no
terceiro setor estabeleceu, ao mesmo tempo, limitações para o sucesso deste
estudo e uma série de pautas para pesquisas futuras, abrangendo aspectos tanto
quantitativos quanto qualitativos do fenômeno em questão. Seria importante, por
exemplo, aprofundar as análises aqui feitas em um estudo de caso longitudinal,
centrado em uma unidade e calcado em observação. Também poderia resultar
interessante uma análise quantitativa que levantasse, em uma amostra mais ampla
ou mesmo censitária, no caso de uma unidade única, dados sobre os níveis de
comprometimento organizacional ante as estratégias de controle amoroso da
organização. Outra agenda de pesquisa possível seria duplicar este estudo,
porém trocando o ponto de vista do trabalhador pelo do financiador, a bem de
entender-se o modelo mental motor das ações e os conflitos dele decorrentes.