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BrBRHUAp0080-21072014000200016

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National varietyBr
Year2014
SourceScielo

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Do "beija e deixa" ao "membro virtual": os vários usos do sagrado na Feira do Jubileu de Congonhas

1. INTRODUÇÃO Neste estudo, o objetivo é compreender o papel do sagrado no dia a dia de uma organização, destacando como ele pode ser (re)modelado em função dos objetivos de quem tem poder de decisão. Para tanto, assume-se o conceito metafísico do sagrado proposto por Eliade (1970), segundo o qual sua irrupção na vida comum ocasiona sua legitimação social sem, no entanto, extrair-lhe o caráter abstrato e simbólico. A normatização e a categorização ritualística do sagrado propiciam um terreno objetivo e factível que permite ao sujeito significar o universo objetivo, desde que ele assuma sua condição de incompleto ou desvinculado, o que o identifica com os demais sujeitos em uma coletividade de seres incompletos. Então, o sagrado é investido numa instituição que o gere em benefício de todos (Bastide, 1975). Nesse sentido, institucionalizar o sagrado compreende o estabelecimento de dogmas, práticas e regras comuns que permitam a repetição e a manutenção de um processo que confere segurança e estabilidade ao ente coletivo composto por sujeitos institucionais incompletos (1).

Acredita-se que o sagrado se refira a conceitos abstratos e a práticas cotidianas (Certeau, 1994) e ofereça, assim, parâmetros para que a sociedade possa produzir-se e reproduzir, sendo, pois, compreendida e reconhecida (principalmente por si mesma). Nesse sentido, este trabalho insere-se no âmbito dos estudos organizacionais que tratam do simbolismo, fugindo, assim, da tradição positivista para intentar ilustrar o comportamento dos membros de uma organização em função da operação simbólica do sagrado. E onde o sagrado poderia ser mais bem compreendido do que em seu papel na institucionalização de uma vida religiosa organizada? Tomam-se, então, emprestados de Antropologia, Sociologia, Ciências Sociais, dentre outros campos, estudos tradicionais relacionados à investigação da Igreja Católica. Observa-se que a organização das pessoas que constituem a Igreja baliza-se principalmente na institucionalização do simbólico. O foco, neste artigo, não é discutir o simbolismo na Igreja Católica, mas fazer uma aproximação com o tema do sagrado, investigando as inter-relações entre as práticas religiosas, econômicas e políticas cunhadas pela Igreja Católica, especificamente por ocasião da Festa e da Feira do Jubileu do Bom Jesus, na cidade mineira de Congonhas, Minas Gerais.

A Festa do Jubileu surgiu como construção emergente da necessidade de os romeiros abastecerem-se, quando vinham anualmente às comemorações religiosas do Bom Jesus (que acontecem desde 1779), em busca de graças para enfermidades e/ou pagando promessas das graças alcançadas. Ao chegarem a Congonhas, além de visitarem a basílica do Bom Jesus de Matosinhos, os romeiros procuravam produtos que pudessem levar na viagem de volta para casa. A partir dessa tradição histórica, surge a feira, espaço que até hoje se caracteriza pela conjugação de elementos religiosos e econômicos. Durante sua ocorrência, de aproximadamente 15 dias, as ruas de Congonhas são subdivididas em recortes de espaço, em frente às casas, nas proximidades da basílica e nos espaços da rua, sob tutela dos moradores, da Igreja e da prefeitura, respectivamente. Além do aluguel dos espaços para feirantes, a Igreja empreende outras práticas, tais como a formação de fila para beijar uma imagem e, em seguida, deixar ofertas em dinheiro; a venda de membros de cera para pagamento de promessas; e, mais recentemente, a instituição da venda de membros virtuais, pelos quais o fiel somente paga o valor monetário do membro para quitar sua promessa.

Neste artigo, são analisadas tanto as práticas institucionais quanto as não institucionais que surgem em meio à necessidade de adaptação em face das oscilações do ambiente. Destaca-se o "fazer estratégia" como mecanismo de compreensão do plano objetivo (Certeau, 1994). A hierofania bíblica é acompanhada, por um lado, por um corpo burocrático litúrgico construído e, por outro lado, por um contingente de crentes que a legitima. A instituição Igreja é, pois, a resultante da mediação entre o universo simbólico do sagrado e o universo objetivo do sujeito comum. Esses dois universos edificam dualidades (sagrado/profano, detentor/depositário), as quais delimitam os sujeitos entre portadores de um capital religioso (Bourdieu, 2002) e depositários desse capital, dependentes do processo de mediação. O capital religioso é percebido não como o conjunto de serviços religiosos, como também o próprio patrimônio material da instituição, além do aparato simbólico pertencente ao universo do sagrado. No caso em questão, destacam-se especificamente práticas do corpo litúrgico da basílica do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo, que buscam, sistemática ou assistematicamente, a perpetuação do capital religioso e a sobrevivência da organização da paróquia por meio da manipulação simbólica do sagrado durante o Jubileu do Bom Jesus.

Autores como Burity (2001) e Chauí (2004) têm apontado para o retorno do teológico ao domínio público, destacando a capacidade de esse processo construir identidades coletivas religiosas que resultam na ação política(2) organizada. É interessante destacar que o elemento inédito da volta da religião não se refere exatamente ao aumento de fiéis e à exposição midiática do sagrado, mas sim à reformulação dos limites entre religião e política, entre o privado e o público. Nesse sentido, no presente trabalho, busca-se contribuir para a compreensão da dinâmica simbólica no interior da Igreja Católica, entendida como organização gestora da Feira do Jubileu de Congonhas. Estudos organizacionais brasileiros que lidam com a questão religiosa ainda são escassos, contudo as relações entre capitalismo e religião têm sido estudadas desde Max Weber e constituem um campo de pesquisa profícuo nos dias atuais (Pereira & Carrieri, 2005; Serafim, Martes & Rodriguez, 2012).

2. O SAGRADO NA TRADIÇÃO CRISTÃ O termo sagrado tem herança etimológica do latim sacrare, cuja acepção tange ao recebimento de sagração: tornou-se sacro ou santo o que pressupõe a dedicação ao serviço de Deus, uma inteligência superior. Nas atribuições atuais do sagrado para a investidura em dignidades religiosas, a exemplo dos bispos e presbíteros, aponta-se para a apropriação do lexema pela Igreja Católica moderna. O sagrado, por ela institucionalizado, instituído de uma qualidade sacra (o serviço de Deus), condiciona a existência de um Deus e de um aparato simbólico de mediação para o contato com Ele. Aparato que permite a construção e a manutenção do sagrado como prerrogativa para a existência de uma genealogia da institucionalização de um sistema prescrito para justificativa, organização e manutenção do sagrado até a fundação do mito.

Essa relação entre subjetividade simbólica e objetividade material foi sistematizada por Mendonça (2003; 2004), que recorreu aos estudos de Friedrich Heiler (1862-1967). Direcionada por estudos fenomenológicos, a teoria sobre setorização dos sagrados foi disposta em círculos concêntricos de maneira a sugerir a inter-relação entre cada um deles, conforme pode ser observado na na Figura_1.

Segundo Mendonça (2003; 2004), o sagrado subdivide-se em três círculos que, de fora para dentro, representam níveis do sagrado correspondentes a seus níveis de objetivação e subjetivação. Na circunferência mais externa, o sacro é apresentado em sua perspectiva mais objetiva, é sua experimentação no mundo empírico, sua materialização e percepção cognoscível por meio de templos, ritos, cultos e objetos sagrados. É o sagrado instituído. A segunda circunferência corresponde ao nível intermediário das concepções religiosas, em que toda manifestação objetiva potencial pode ser filtrada. É o espaço dos pensadores do sagrado e dos representantes do processo instituído. A terceira e última circunferência concentra o sagrado essencial e parcialmente revelado de Durkheim. É o cerne do processo institucionalizador sem, entretanto, significar uma instituição, logo, representa o próprio fenômeno do caráter mítico do sagrado.

O místico, aquele que está no círculo central, não tem religião, ele contempla o sagrado sem intermediações. Quando sai, ou seja, pratica o movimento centrífugo, origem a uma religião como vida organizada instituída. Do contrário, o movimento centrípeto indica o afastamento da religião, mas a aproximação ao sagrado sem intermediações. Isso porque no círculo externo o sujeito está envolvido com os templos, os ritos, os cultos e os objetos, portanto não com o sagrado em si, puro. Por conseguinte, ao adentrar os círculos interiores, ele aproxima-se da experiência de vivenciar o sagrado absoluto, de fugir das regras impostas pela religião, de aproximar-se de uma vida mais espiritual e menos material.

3. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SAGRADO O processo de institucionalização é objeto de estudos de diversas áreas do conhecimento, como a Política, a Economia e a Sociologia. De acordo com Nogueira (2000), o ambiente institucional é detentor de regras, crenças, valores e outros elementos simbólicos responsáveis por referenciar e orientar as práticas comuns. Justifica-se, então, a adoção do processo institucional, considerando-se que, diferentemente do processo de administração racional, voltado para o alcance de objetivos comuns pretendidos, a institucionalização comporta uma variante de significações que atrela os sujeitos a uma rede de interdependência socialmente construída.

Conceitos de institucionalização mais compatíveis com o processo de subjetivação e objetivação descrito anteriormente seguem os predicativos de Fonseca (2003, p. 58), segundo o qual a institucionalização é "o processo de transformar crenças e ações em regras de conduta social". Gusmão (2002) enfatiza que instituições são modelos destinados a satisfazer necessidades essenciais do homem, perpetuados e tornados hábito pela lei, pelo costume e pela educação. Ao longo da história, tais modelos orientam as ações sociais básicas. A apreensão do universo do sagrado e sua objetivação no mundo cognoscível são normatizadas por uma série de ritos e práticas anteriormente condicionados ao universo simbólico.

O lexema religião pressupõe a preexistência de um vínculo com o sagrado situado no universo subjetivo do simbólico. Ao que tudo indica, parece que, em algum momento espaçotemporal não identificado, o universo objetivo desvinculou-se do sagrado, encontrando no religare uma oportunidade legítima de retorno ao sacro.

O terreno objetivo para a retomada com o sagrado é constituído pela normatização e pela categorização ritualística mítica, em que o indivíduo assume a condição de incompleto ou desvinculado, que o identifica com os demais sujeitos em uma coletividade de seres incompletos. Então, o sagrado seria um investimento, em uma instituição, que visaria ao benefício de todos (Bastide, 1975), dirimindo, nesse sentido, a necessidade vital do homem pela completude ao mesmo passo em que desempenha funções sociais de vínculos, estabelecidos pela obediência aos costumes sagrados, institucionalizados.

Quando considerados os sujeitos organizados como aqueles que participam de maneira efetiva dentro de uma instituição como que a constituindo, a experiência coletiva é tratada como vida organizada, a fim de reduzir a abstração inerente aos conceitos de organização ou instituição (Paço-Cunha, 2006). Institucionalizar o sagrado, isto é, organizar a vida coletiva, compreende o estabelecimento de dogmas, práticas e regras comuns que permitam a repetição e a manutenção de um processo que confere segurança e estabilidade aos sujeitos institucionais e sua própria perpetuação. O discurso ortodoxo, constantemente consolidado por rituais, totens, signos e artefatos simbólicos, sustenta a estabilidade pressuposta pela institucionalização do sagrado e também permite a homogeneidade do controle. Logo, o processo institucionalizador é também restritivo e coercitivo na medida em que limita outras aparições do sacro que não correspondam exatamente ao institucional. de esperar-se, portanto, que, no indivíduo, aquele lugar de construção e maturação de concepções religiosas (círculo intermediário) seja um mecanismo direcionador (mas principalmente de controle) do sujeito; lugar que não permite que a efervescência das reflexões o conduzam à não-religião, ou ao círculo interno. Nesse sentido, Bastide (1975) afirma que o sagrado selvagem é justamente a resultante do processo dialético, segundo o qual o sagrado institucional se origina da rigidez do processo institucionalizador. Uma nova irrupção do sacro, que remete a práticas geralmente não reconhecidas pela instituição, manifesta a apropriação social de práticas institucionalizadas que não são necessariamente absorvidas, mas apropriadas, (re)significadas e popularmente legitimadas (Certeau, 1994).

De acordo com Durkheim (1994), a religião é uma forma de gestão da experiência do sagrado de valor positivo, uma vez que permite a continuidade dessa experiência, mas, simultaneamente, significa sua retenção, pois não permite outro discurso que não seja o ortodoxo. Ao mesmo tempo, organiza a vida comum ao transformar o espontâneo em algo institucional (Bastide, 1975). O sagrado selvagem, aquilo que foge ao institucional, pode ser lido como interpretação social que pode tanto romper com o institucionalizado quanto corroborá-lo.

Para compreender a fundação mítica dos aparatos institucionalizados, levando em conta que o mito é uma apropriação coletiva, as hierofanias (Eliade, 1970) como materializações do sagrado, isto é, momento no qual o sagrado se manifesta em caráter fenomênico e ocasiona a experiência fundadora. Dessa maneira, para o cristianismo católico, alguns eventos (Jubileu do Bom Jesus de Matosinhos, Folia de Reis, etc.), ou seja, as epifanias, mormente relacionados com a interação entre entidades divinas e humanas, configuram-se como justificativa mítica. A significação do sagrado inculcada nos ritos, organizados apesar de não instituídos, adquire representações - ainda que, para o sagrado constituir- se como tal, sua manifestação seja sempre parcial. O caráter informe, incomensurável e simbólico do que é sacro (Durkheim, 1994) permanece na esfera do imaginário, enquanto os signos do sagrado, que se apresentam como expressão material desse universo simbólico, configuram o orbe de objetivação do que é sacro, e atuam como elementos de mediação entre a subjetividade do sagrado, como a experiência fundadora, e a objetividade do aparato material que representa esse sagrado.

Ruiz (2004) afirma que o imaginário preenche o sem-fundo humano, seu inescrutável, e possibilita a dúbia tensão permanente entre imaginação e racionalidade. Nesse direcionamento, o imaginário é responsável pela mediação entre a racionalidade e o sagrado, fazendo-os coexistirem necessariamente na dimensão simbólica. Castoriadis (1982) afirma que o simbólico é, então, transportado para o racional-real, ou melhor, para uma representação do real, ou o que é (in)dispensável para pensar ou agir. Essa perspectiva leva Ruiz (2004) à afirmativa de que não se descobriu uma mera explicação racional do mundo, senão um modo criativo de sentidos que se para as coisas que nos insere no mundo (e em nosso próprio mundo).

Segundo Ruiz (2004), o imaginário (tele)transporta o sujeito para um mundo de rede de significados culturais, no qual ele compreende elementos insignificantes por meio de objetos dotados de significado. Esse deslocamento carece de elementos mediadores, ou seja, elementos e artefatos simbólicos, donde o imaginário não é separável ou isolável. Para Castoriadis (1982), a síntese de elementos mediadores forma "totalidades parciais", das quais são construídas a vida e a estrutura da sociedade, isto é, a figura em que a sociedade se deixa ver como própria - pode-se, aqui, estabelecer a arriscada inferência de que essa síntese, na visão de Bourdieu (2002), seria a construção da di-visão do mundo. Castoriadis (1982) argumenta que, em torno do emaranhado de significados e para a criação de racionais-reais, no caso do sagrado acontece uma sedimentação incontável de regras, de atos, de ritos, de símbolos - de elementos mágicos. Em outras palavras, de imaginários, "cuja justificação relativamente ao núcleo funcional é cada vez mais imediata, e finalmente nula" (Castoriadis, 1982, p.157) - é por isso que se pode vislumbrar um quadro de diferentes religiões dogmáticas, circunscritas por crenças e devoção. As significações imaginárias não denotam nada e conotam mais ou menos tudo; e o imaginário, portanto, passa a ser entendido como sendo uma força criadora, que busca preencher o sem-fundo humano, ou seja, o abismo sem fim dos desejos. Em função dos desejos, Ruiz (2004) acredita que a psique humana projete de modo criativo o mundo querido, por meio da instituição imaginária do mundo em que está inserida.

4. A IGREJA INSTITUCIONALIZADA E A GESTÃO DO CAPITAL RELIGIOSO A ordem social (imaginária) instituída em volta da Igreja pressupõe uma série de construções sociais que, por sua vez, são expressas por meio de práticas empregadas pelos sujeitos envolvidos no processo, sejam eles do corpo burocrático litúrgico, sejam do contingente de fiéis. Por ser a Igreja uma instituição milenar, a realidade empírica, historicamente situada e datada (Bourdieu, 1997), faz emergir uma estrutura estruturante, sistema simbólico que é objetivado pelo fazer estratégia, por meio do qual é possível compreender no plano objetivo quais práticas o corpo litúrgico da Igreja institucionalizada tem exercido de maneira sistemática ou assistemática para garantir a perpetuação de seu capital religioso e a sobrevivência da instituição.

No entanto, aqui o entendimento de estratégia extrapola o viés clássico dos estudos organizacionais, como o proposto por Chandler (1962, p. 13), para quem "estratégia é a determinação de objetivos básicos de longo prazo de uma empresa e a adoção de ações adequadas e afetação de recursos para atingir esses objetivos". Nesta leitura, procura-se situar a organização/instituição em um meio que a contém e age, modificando-a e sendo modificado por ela. Para isso, autores como Pettigrew (1977) e Quinn (1998) apontam para a continuidade do processo de fluidez de eventos, valores e ações, que possibilitam a dinâmica das trocas entre organização e ambiente.

O conceito de estratégia adquire maior mobilidade dentro das diversas áreas do conhecimento científico e, por isso mesmo, demanda uma flexibilização mais expressiva de sua significação. À procura de uma possibilidade alternativa à linha neoclássica da economia, Whipp (2004) sugere que a falta de suporte teórico dos campos sociológico, legal e econômico fragiliza a utilização do conceito. Uma resposta possível à rigidez do conceito de estratégia seria o entendimento do processo de construção da estratégia como prática socialmente construída, o fazer estratégia (Leite-da-Silva, 2007). Para o autor, "a análise das representações sociais referentes a determinados sujeitos e objetos permite evidenciar o 'fazer estratégia' por meio de estratégias e táticas cotidianas na medida em que expõe construções sociais em torno das quais se estabelece uma ordem social" (Leite-da-Silva, 2007, p. 19).

Na hierofania bíblica, a instituição do apóstolo Pedro (fundador de uma Igreja institucionalizada) segue toda a criação de um corpo burocrático litúrgico por um lado, e um contingente de crentes por outro, que garante a legitimação da instituição. Esse corpo burocrático é muitas vezes apreendido como parte mediadora entre o universo simbólico do sagrado e o universo objetivo do sujeito comum, estabelecendo dessa maneira certa dualidade sagrado/profano, detentor/depositário, que delimita os sujeitos entre portadores de um capital religioso (Bourdieu, 1997) e depositários desse capital dependentes do processo de mediação.

O capital religioso é percebido não como o conjunto de serviços religiosos, mas também do próprio patrimônio material da instituição, além do aparato simbólico pertencente ao universo do sagrado. O corpo burocrático da instituição é compreendido como elemento de mediação entre o subjetivo simbólico e o objetivo da vida que pode ser apreendida pelos sentidos. Sobre essa mediação, Bourdieu (1997, p. 39), argumenta: Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos socialmente reconhecidos como os detentores exclusivos da competência específica necessária à produção ou à reprodução de um corpus deliberadamente organizado de conhecimentos secretos e, portanto, raros, a constituição de um campo religioso acompanha a desapropriação objetiva daqueles que são dele excluídos e que se transformam por essa razão em leigos (ou profanos no duplo sentido do termo), destituídos de capital religioso (enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação simplesmente pelo simples fato de que a desconhecem enquanto tal.

Bourdieu (1997) afirma, ainda, que o aparelho burocrático é responsável pela perpetuação do capital religioso, na medida em que a gestão do depósito desse capital é necessária para assegurar a própria reprodução, ao reproduzir os produtores e receptores de bens de salvação e de serviços religiosos. O corpo de sacerdotes seria o grupo responsável pela produção desses bens e serviços, enquanto o mercado que os consome seria composto pelos leigos (em oposição ao infiéis e aos heréticos) como consumidores dotados de um mínimo de competência religiosa (habitus religioso) para sentir a necessidade específica dos produtos e serviços oferecidos pela burocracia religiosa (Bourdieu, 1997).

Nesse esteio, a vida religiosa tem, por sua vez, expandido sua atuação sobre esferas políticas a partir da flexibilização do arcabouço simbólico que ancora o sagrado. Paralelamente a tal processo de flexibilização simbólica proveniente da Igreja, Motta (2001) observa que as organizações econômicas têm se tornado uma espécie de religião laica, atualizando elementos da esfera do sagrado, tais como valorização do esforço e do sacrifício, da perseverança e da integridade, para mascarar relações de trabalho que objetivam maximizar o capital econômico das organizações. Nesse sentido, no presente trabalho, parte-se do estudo das práticas da Igreja Católica que operam no limiar simbólico entre sagrado e profano, visando trazer insights para o campo dos estudos organizacionais como um todo e entendendo que as organizações são espaços em que a manipulação simbólica ocorre de forma cada vez mais intensiva, direcionando as práticas cotidianas dos indivíduos nelas inseridos (Wood Jr., 2000).

5. CAMINHO DA PESQUISA Este é um estudo de caso qualitativo, de cunho exploratório-descritivo. A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas, consideradas por Thiollent (1987) uma estratégia eficaz para introduzir o pesquisador no universo cultural (e discursivo) do sujeito de pesquisa, enquanto a observação atua como metodologia de inserção no ambiente pesquisado. Foram realizadas 14 entrevistas com moradores da cidade de Congonhas, com o pároco responsável pela igreja estudada e com comerciantes da Feira. As entrevistas aconteceram na própria cidade, ao longo de sete dias de estada dos pesquisadores, sendo algumas realizadas ao longo do evento.

Além de realizar as entrevistas, os pesquisadores participaram do evento. O convívio com os sujeitos atuantes das pesquisas contribuiu para a aceitação dos pesquisadores por eles, melhorando a fluidez do processo de pesquisa, principalmente no tocante ao fornecimento de informações (Malinowski, 1986).

Além disso, pôde-se observar o evento, o que contribuiu para a coleta de informações. As observações, registradas em diário de campo, foram igualmente importantes, não apenas no sentido de aproximar os pesquisadores dos sujeitos de pesquisa sem a intermediação do gravador, mas também por tratar-se de um trabalho em que as ações e as reações desses sujeitos têm relevância para a análise pretendida. Sobre o tema abordado, fala-se pouco, o que exige observar posições discursivas e práticas subjetivas. Os ritos e as expressões corporais, por exemplo, permitem apreender o que seria o beijar e o deixar que compõem o título do presente artigo.

Para interpretar os dados recorreu-se à análise do discurso (Fiorin, 2003). O discurso é a manifestação objetiva de um arcabouço histórico e ideológico, por intermédio do qual a subjetividade inerente à ideologia pode ser apreendida quando observados certos padrões que se repetem no discurso.

De acordo com Faria e Linhares (1993), estratégias discursivas presentes nas narrativas podem evidenciar estratégias de persuasão que são reproduzidas no discurso como expressão histórico-ideológica socialmente construída. Os atores estariam, então, falando de certo lugar, socialmente permitido, o que aponta, por si , para uma visão de mundo. Esses autores indicam a existência de quatro principais estratégias de persuasão: construção de personagens no discurso e como elas se relacionam com as personagens reais; seleção lexical, que é a escolha do léxico utilizado no discurso; relações entre conteúdos explícitos e implícitos, o que ocasiona a criação de efeito ideológico de sentido no discurso; silenciamento, ou o que não é mencionado.

A criação de personagens no discurso, segundo defendem Faria e Linhares (1993), não acontece impunemente, elas existem em função de uma força ideológica espaçotemporalmente situada. Bakhtin (1999/1929) versa sobre o discurso como representação de uma ideologia que, como toda ideologia, inculcada de símbolos, reflete e refrata significados. A análise do discurso, doravante tratada como AD, possibilita a apreensão e, consequentemente, a distinção entre personagens criadas e personagens reais. A estratégia de seleção lexical diz respeito ao uso recorrente de vocábulos e termos pouco comuns que acabam por situar o enunciador em um plano diferente daquele do interlocutor, diferenciando-os. A seleção lexical pode confundir e até mesmo aparvalhar o interlocutor, que acaba por persuadir-se. Quanto à relação entre conteúdos implícitos e explícitos, Faria e Linhares (1993) observam que o implícito pressuposto é uma brecha deixada pelo discurso do enunciador, enquanto o implícito subentendido prevê a interação entre enunciador e interlocutor e no qual o entendimento é uma resultante consensualmente construída. A última estratégia de persuasão, o silenciamento, corresponde à omissão de temáticas indesejadas pelo enunciador e demonstra o exercício da exclusão por parte de quem detém o poder da palavra.

A construção das estratégias é delineada pelas táticas, ou práticas sociais, desenvolvidas em certo contexto histórico e sociocultural. Os resultados dessas táticas e práticas sintetizam as ações nos contextos social, organizacional, grupal e individual das práticas sociais desses atores (Certeau, 1994).

6. ANÁLISE DOS DADOS: A IGREJA POLIFACES Nos nove excertos apresentados neste artigo, a Igreja foi referenciada, no imaginário dos sujeitos de pesquisa, com maior ou menor grau de identificação em relação a ela e a suas práticas. Os trechos apontam para a representação da Igreja como motivação principal para a continuidade do fluxo social em volta dela, apesar de um dos entrevistados afirmar que as pessoas têm se afastado dela.

[1] Olha, cada ano que passa, o pessoal se afastano mais, principalmente da Igreja Católica, vino bem menos pessoa, ? Até alguns anos atrás vinha muita gente, muita, agora vino bem menos.

Às vezes o objetivo de vim pra Igreja, ?, o santo, ? esqueci até o nome do santo daqui, mas vem mais por causa da religião, ? tem muita gente católica ainda. [E01] O emprego do advérbio de tempo ainda explicita certa surpresa do entrevistado, como se o fluxo de fiéis existisse apesar de uma aparente situação de decadência experimentada pela Igreja, que, no entanto, não perdeu seu status quo matriarcal. Como instituição, ela ainda é concentradora da , das esperanças e da devoção popular, embora também seja alvo de reclamações, devido a suas práticas durante o Jubileu do Bom Jesus. Como exemplo das práticas rechaçadas, aparece a cobrança dos altos aluguéis, calculados por metro quadrado; cobrança que induz fiéis, principalmente moradores de Congonhas e comerciantes que alugam esses espaços, a questionarem a legitimidade e sacralidade da referida instituição e de seu poder sobre os fiéis.

A Igreja, quando age como instituição, muitas vezes exerce práticas e estratégias para preservar sua sobrevivência material, que colocam o sagrado e o mundano em esferas intercedentes, reproduzidas nas decisões cotidianas dos fiéis e intercessoras de um possível conflito, como o proposto no trecho [2]: [2] Eu faço as festas da igreja católica porque eu gosto de romaria, gosto de estar junto com os meus irmãos, batendo papo, trocando ideia com eles. A gente vem nessas igrejas aqui, nas festas, mas não vem através de pensar em margem de lucro. Nós trabalhamos para sobreviver, entendeste? A gente sempre quer o melhor para os filhos da gente, a gente quer ganhar o ganha-pão de cada dia. A gente vem...

nós somos aquelas pessoas da roça, principalmente eu, aqueles matutos da roça. [E02] Aparece aqui o grande percurso semântico da amizade, além do percurso semântico da sobrevivência, respaldado pelo tema do trabalho. O gosto pela romaria, pela festa de igreja em contraposição à luta pelo ganha-pão de cada dia começa a explicitar um conflito entre o sagrado e o mundano, que se revela no trecho [3], do mesmo entrevistado: [3] tem muita gente. Atraiu o ponto, chegou por causa do dinheiro dele, pagou o ponto : "Quanto que é? Eu quero 15 metros.

Quanto que é?" - "É tanto". Paga no dinheiro. começa a corrupção.

Começa por . , o pequenininho vai se perdendo dentro do mar. Ele é um riozinho, vai se perdendo, cai tudo dentro do mar. E aquele grande, o do mar, vai tomando conta de tudo. Entendeu, minha amiga? Quer dizer, eu acho isso. As igrejas católicas, ela tinha que ter um espaço, tamanho do espaço, passou, ser aquele espaço. Para não ter [...]. Por quê? Vai pensar em usura? Eu deixo passar 5 metros, fico com 15, eu vou ocupar atrás do emprego de um outro irmão meu? [E02] Nesse trecho, o implícito pressuposto expresso pelo advérbio de tempo permite a compreensão de que, nesse momento, o Jubileu adquiriu vulto suficiente para gerar corrupção. A Igreja é indicada como possível resposta a esse problema, mas a presença do verbo ter no pretérito imperfeito demonstra que a Igreja não tem esse espaço; logo, onde está sua benemerência? A Igreja, nesse sentido, deixa explícito, pela atitude de seus representantes, que não necessariamente a busca por um compartilhamento do círculo intermediário e, menos ainda, do círculo interno (remetendo-se à teoria dos círculos concêntricos - Figura_1). A Igreja, por meio dessa atitude, deixa transparecer a preocupação em financiar o capital religioso. Assim, nesse sentido, estaria mais preocupada em cobrar os aluguéis, do que cobrar de seus fiéis a postura de reflexão religiosa ou, mesmo, induzir ao atendimento e à preservação dos dogmas. Segundo destaca E02, a instituição Igreja deve agir como tal ante as investiduras do mercado. Em outras palavras, o sagrado contido em seu corpo deve freá-la perante a usura? Eis o conflito estabelecido.

Se aparentemente a Igreja parece ser a depositária da descoberta, pelos sujeitos, do conflito entre sagrado e profano, abundância e voto de pobreza, pode-se dizer também que ela conta com o apoio de sujeitos que a apreendem como instituição pobre por natureza, incapaz de gerar uma ocupação para seu corpo burocrático litúrgico que caiba dentro do conceito de trabalho como atividade passível de valoração (Bourdieu, 2002).

[4] Acho que nem deveria ter as barracas, mas de uma certa forma ajuda a manutenção da igreja... O dinheiro que vem ajuda muito. [E03] [5] Porque aqui nós gasta muito na cidade, lucro para a cidade em geral. Porque nós deixa dinheiro para a Igreja, deixa dinheiro para a prefeitura, deixa dinheiro também para os donos das casas que aluga os terrenos, ainda mais gasta muito aqui nos mercado e tudo, então acaba compensando para eles também a nossa vinda, entendeu? [E04] [6] Beija e deixa (risos). Beijar o Bom Jesus Vai beijando o Bom Jesus e vai deixando dinheiro Beija e deixa (risos). [E05] No trecho [4], nota-se a necessidade que a Igreja tem de receber certa ajuda, enquanto, no quinto e no sexto excertos, os entrevistados empregam a expressão "deixar dinheiro", carregada de significados. O "deixar" pressupõe o não esforço, a dádiva, a instituição frágil que conta com a compreensão ou com a resignação de seus fiéis para sobreviver. o sexto trecho, particularmente, traz implícita a ideia do condicionamento da obtenção de bênçãos sagradas mediante o pagamento à Igreja. O tom sarcástico de E05, denotado pelas risadas durante o processo de enunciação, coloca-o entre aqueles que questionam a legitimidade institucional da Igreja para receber quantias de dinheiro.

Novamente, sinaliza-se a coexistência cotidiana de significados sacros e mundanos, como se houvesse um processo de precificação de um bem oriundo do mundo sagrado. O ápice de tal processo, identificado pelas observações assistemáticas, talvez seja a prática estabelecida de forma estratégica pela Igreja de venda dos membros virtuais. O fiel que desejar pagar uma promessa de cura física, ofertando a parte do corpo curada em cera, deixaria o valor monetário desse membro à igreja, o que o dispensa da necessidade de comprar ou mandar confeccionar a peça em cera. Tal prática desvincula, portanto, os significados simbólicos histórica e religiosamente atribuídos ao membro de cera e os ancora na quantia de dinheiro que lhe é correspondente.

se percorreram aqui algumas representações experimentadas pela Igreja institucionalizada, que permeiam desde o processo de conflito do sujeito que se encontra dividido entre a face matriarcal e a institucional da Igreja, ao sujeito que se posicionou como provedor simbólico da Igreja e o sujeito que admite a prática do deixar dinheiro. O excerto a seguir explicita a negação da religião como instituição: [7] Você como a pessoa é católica, o dinheiro... Deus não o dinheiro. O dinheiro que é arrecadado beneficia as igrejas, não para Deus, ? Poder... na Igreja. Deus não precisa de dinheiro, ? É, Deus não precisa de dinheiro. O beneficiamento é para a Igreja, é para manter a Igreja. Porque de 90 reais passou para 300 reais? Será que como se diz, subiu tanto assim a inflação? É um bolo... é o chamado máfia, ? É a máfia do dinheiro. A gente está vendo agora dinheiro na frente. [E06] O sexto entrevistado apresenta uma estrutura de pensamento segundo a qual Deus (o sagrado absoluto, estaria no círculo interior), a Igreja (a instituição que não sobrevive por si mesma, presente no círculo intermediário) e a "máfia do dinheiro" (razão pela qual o aluguel passa de R$ 90,00 para R$ 300,00). Para esse sujeito, o sagrado, a Igreja e a economia de mercado não podem pertencer ao mesmo universo simbólico da . Mas, ao tomar-se a teoria dos círculos concêntricos, essa inter-relação é coerente com a formação de uma religião, no entanto, valores e dogmas passam a ter influências do profano, das necessidades de mercado, da sobrevivência não dogmática e financeira da instituição. Nesse sentido, a religião aparece muito bem delineada como indutora da vida organizada em torno da devoção, da valorização do sagrado tátil, ou seja, do sagrado palpável (o beijar as fitinhas e deixar algo em troca, o deixar o membro de cera - que posteriormente será capital simbólico de giro, transformado em velas, entre outros). Aqui a Igreja não persegue apenas a própria sobrevivência, ou seja, as reflexões em torno dos dogmas. Pelo contrário, fundamenta-se no lucro. Em Congonhas, a epifania em questão, por ser constituída de inúmeros elementos profanos (comercialização de espaços para exposição de produtos, muitas vezes avessos ao que prega a Igreja), faz com que muitas pessoas passem a de fato questionar o que seria o sagrado venerado no círculo externo, no lugar do comum, da empiria religiosa. Observou-se por meio da pesquisa, todavia, que quem mais questiona essa posição mercantilista são os comerciantes que alugam os espaços. Para eles, o sagrado vai mudando de valor.

para o fiel, movido pela festa, pela e pelo sagrado que lhe é apresentado, parece não haver suspeitas de uma conversão do sagrado em capital.

Em meio à variante de representações que a Igreja termina por assumir, de acordo com as práticas que exerce e com a interpretação que lhes é conferida, a chama viva do sagrado, não do litúrgico, parece manter-se intacta e detentora do poder arrebatador do deslumbramento. Na romaria que leva milhares de fiéis ao templo do Bom Senhor Jesus de Matosinhos, a multidão pagadora de promessas passa aparentemente pouco atenta aos números que a economia religiosa faz girar, como o proposto nos excertos a seguir: [8] Mesma coisa, tudo a mesma coisa. Um traz de um jeito, outro traz de outro... Como esse aqui da minha porta, tem oito anos que ele vem com o mesmo produto. Agora o que é bom, é muita que as pessoas têm, ? Vocês precisam de ver... vocês vão ver as pessoas que vêm com , as filas pra beijá o santo, como é que é... [E07] No trecho 8, por meio do vocábulo agora, o enunciador estabelece uma relação adversativa entre o fato de o Jubileu ainda ser frequentado por fiéis e o fato de que todos os anos os comerciantes voltam com os mesmos produtos para a feira. Ele propõe explicitamente o significado de que ambos os fatos ocorrem paralelamente. Contudo, o que sustenta a conotação positiva da festa é seu lado religioso. É implicitamente pressuposta a distinção entre as pessoas que vão ao Jubileu pela e aquelas que não. Tem-se a procissão como uma das mais claras demonstrações de hierofania, as longas caminhadas que antes eram feitas como sacrifício, hoje são acompanhadas das sagas pela feira: enquanto sobem os fiéis em direção à igreja, para beijar a fita, estão olhando de um lado para outro para as barracas de roupas, CDs, comidas, entre outros produtos.

[9] 247 anos, se por um acaso você tiver oportunidade de vir aqui no Jubileu seria bom mesmo. No sábado e domingo não aconselho não vocês virem não porque é muito cheio, porque não pra você ver quase nada, ?, assim algumas coisinhas não ... Assim eles entrando na igreja, ?, para ver como é que funciona no período do Jubileu, a sala dos milagres... Nesse período do Jubileu vocês vão ver muita peça de cera mesmo. Toda hora tem gente ali colocando uma cera e pagando uma promessa, tem isso. [E07] O trecho [9], por sua vez, é ilustrativo de algumas práticas religiosas comuns durante o período de festa. O enunciador narra tais práticas na terceira pessoa, demonstrando distanciamento em relação a elas. Infere-se que ele não compartilha delas, apesar de valorizar explicitamente sua importância histórica.

O paralelismo entre o sagrado e o mundano, além de verificar-se simbolicamente na figura e nas práticas da Igreja, também se encontra, portanto, entre as pessoas que circulam em Congonhas durante a festa do Jubileu. Alguns vão à cidade pela busca espiritual, outros pela busca das trocas econômicas intensas do período e outros, ainda, parecem ser atraídos pelos dois motivos. A possibilidade de convivência pacífica entre interesses e pessoas diferentes durante o período fornece as pistas para compreender como a atuação institucional da Igreja é aceita pelo povo em geral. Ao longo dos anos, erigiu- se uma teia complexa de significados que puderam suportar a coexistência do sagrado e do profano em um mesmo espaço simbólico, sem que isso se tornasse inviável.

Os valores, da Tabela_1, são resultado do levantamento de dados em campo e representam a arrecadação total da Igreja durante um período aproximado de 15 dias. As ruas são subdivididas em recortes de espaço, em frente às casas, nas proximidades da igreja do Bom Jesus de Matosinhos e nos espaços da rua, sob tutela dos moradores, da Igreja e da Prefeitura, respectivamente. Apesar de os três agentes serem de natureza totalmente distinta - privada, religiosa e pública -, a prática estratégica dos aluguéis se tornou institucionalizada entre os participantes da feira. Embora se tenham registrado algumas manifestações sobre o abuso dos preços, o pagamento dos aluguéis é amplamente aceito e reproduzido ano a ano. Observa-se que a divisão entre os três agentes do espaço dos aluguéis é aproximadamente equilibrada. Contudo, o valor médio cobrado é bastante destoante, principalmente em relação aos moradores. A Igreja, por sua vez, ainda pratica preços bem mais elevados do que a Prefeitura. Nesse sentido, observou-se uma lógica da comercialização do espaço.

Quanto mais próximo do sagrado, ou seja, quanto mais próximo da Igreja, mais caros tendem a ser os aluguéis, considerando-se o espaço da Igreja e as frentes das casas de moradores.

No presente trabalho de pesquisa demonstraram-se, portanto, as práticas da Igreja Católica para inserção no plano econômico, passando necessariamente pelo plano político. A questão da ressignificação de tais práticas pelos indivíduos, aqui estudada, foi considerada crucial, pois revela as várias representações da Igreja, principalmente no que tange às práticas que vão além do plano religioso. Dessa forma, observam-se as diferentes reações ao processo de flexibilização dos limites entre religião, economia e política.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A ideia da religião seria reinstituir o mundo no sacro, sob a prática de impregnar sentido simbólico - leia-se caráter mítico sagrado - a cada elemento do mundo real. Essa posição da Igreja nas manifestações religiosas por ocasião do Jubileu de Congonhas são, portanto, práticas de uma religião que se mostra indutora de criação dos novos sacros. Tais sacros envolvem um custo, mas que seria mínimo diante das bênçãos para quem recebe. Contudo, é importante ressaltar que seriam abençoados somente os indivíduos dotados de competência religiosa e que se identificam com a coletividade de seres incompletos ou desvinculados do sagrado.

Esse discurso religioso visa preencher o sem-fundo humano com completude e vínculo com uma inteligência superior, que supra as necessidades como ser, que talvez nem lhes sejam acessíveis nas instâncias terrenas. Ao mesmo tempo, o processo de completude e vínculo de um ser financia as atividades do ente sagrado concomitantemente ao processo de solidificação da institucionalização do imaginário mítico desse ente. Em outras palavras, a possibilidade de financiamento das práticas da Igreja é proveniente dos sentidos intrínsecos ao movimento centrífugo em relação aos círculos concêntricos (Figura_1) baseados na teoria de Mendonça (2003; 2004).

Ainda que a cobrança dos aluguéis ou os custos envolvidos nas oferendas dos fiéis sejam consideráveis, os crentes em geral não os questionam, pois se trataria de uma prática institucionalizada e aceita pelo grupo. Nesse sentido, a religião claramente aparece como uma instância de demonstrações empíricas de , de reificação do sagrado, corroborando aqui o círculo externo de Mendonça (2003; 2004). A festa, no entanto, legitima não somente as práticas religiosas, mas a epifania em si, investida de seus aspectos também mundanos. A partir do momento em que a própria Igreja aluga seu espaço (e o espaço público também) para comerciantes que trabalham com os mais variados produtos, que não têm ligação alguma com o lado religioso, ela reconhece a força que a parte profana da festa tem. Sendo assim, ela transgride os limites de sua atuação religiosa e dogmática, aproximando-se da esfera pública e, dessa maneira, persuadindo para a sequência da institucionalização da epifania como evento social com sentido em si mesmo. Tal expansão de atuação da Igreja representa um dos pontos de intercessão dessa instituição com o plano econômico e com o político.

De certa maneira, como foi possível observar a partir das falas dos comerciantes que criticam o aumento dos aluguéis, eles reconhecem nessa prática uma contradição, justamente por não compartilharem dos sentidos simbólicos inerentes ao catolicismo, ou seja, não seriam dotados de competência religiosa suficiente para desvendar os mecanismos simbólicos da atuação institucionalizada da Igreja. Esses comerciantes interpretam as práticas da Igreja a partir dos sentidos simbólicos que construíram na vivência do comércio informal e, por isso, não enxergam tipo algum de vinculação ao sentido religioso nas práticas empreendidas por essa instituição. Dessa forma, os comerciantes incrédulos não veem justificativa para a atuação da Igreja como instituição cobradora de aluguéis no contexto da Feira. Para esse grupo, esse tipo de atuação não simbolizaria um caminho para o sagrado místico.

O sagrado tátil, os elementos do mundo empírico, são, portanto, fortes influenciadores e direcionadores da instituição da religião, são eles os que mantêm o laço entre o sujeito e a religião. Ao estudar a vida organizada na religião, é, por conseguinte, imprescindível conhecer o que seria considerado sagrado para cada grupo social coexistente na Feira do Jubileu. Conforme se demonstra, a competência religiosa varia entre os diferentes grupos, assim como o sentido de participação na Feira. Apesar das polêmicas levantadas, foi possível notar que a Igreja tem logrado dar continuidade a suas práticas institucionais no contexto da Feira, como ente de atuação legítima no plano religioso e também no plano político. Observa-se que a instituição Igreja é bem-sucedida em manter o controle no direcionamento das principais atividades da Feira, tanto em relação aos fiéis (por meio do poder religioso) quanto em relação aos incrédulos (por meio do poder político). Dessa forma, ela configura-se como um dos agentes detentores do poder estratégico sobre o território da cidade de Congonhas, ao menos durante o período do Jubileu.

Espera-se ter contribuído com este trabalho para o entendimento de como se configura a atuação religiosa institucionalizada, a partir das articulações teóricas expostas e também a partir dos caminhos metodológicos percorridos. O arcabouço teórico foi verificado empiricamente por meio do desvendamento de sentidos implícitos nos discursos dos sujeitos pesquisados, assim como no discurso não verbal captado por meio de observações.

O objetivo, neste artigo, foi ilustrar, por meio de uma prática talvez não inédita na Igreja Católica, como questões simbólicas são utilizadas no sentido de obter determinados comportamentos coletivos. Caso se volte ao eixo das conceituações sobre o que vem a ser a administração, das mais clássicas, passando pelas ortodoxas e também pelas sofisticadas, obter-se-á um comportamento desejado das pessoas que compõem a organização. A manipulação do sagrado, portanto, segundo o exemplo estudado, permite a obtenção dos desejos daqueles considerados dominantes, ou detentores do poder. Se, no caso de uma instituição religiosa, que teoricamente não teria fins lucrativos, ela atendeu perfeitamente bem ao objetivo capitalista de maximização de lucros, imagine-se o que não poderia acontecer em organizações com fins lucrativos. Estabeleceu-se o eixo de estudo sobre a Igreja Católica, porque essa seria uma ilustração possivelmente mais clara das potencialidades da manipulação do sagrado. Devido à maior diversidade de elementos simbólicos em organizações com fins lucrativos, seria mais complexo compreender a manipulação do sagrado nesses contextos. Sugere-se, portanto, o estudo do sagrado em organizações com fins lucrativos, por meio da apreensão das práticas cotidianas e das estratégias e táticas de manipulação simbólica.

NOTAS (1) Neste texto, o verbo institucionalizar não faz menção a correntes de estudos institucionalistas.

(2) No sentido do termo aristotélico política, derivado de polis (cidade), isto é, ordenação de uma comunidade à base de uma constituição.


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