Meio ambiente e saúde: metodologia para análise espacial da ocorrência de
malária em projetos de assentamento
Introdução
A malária é provavelmente tão antiga quanto a espécie humana, porém sua
etiologia só foi descoberta no final do século XIX. Em 1898, Ronald Ross provou
que o vetor de transmissão era o mosquito. Alguns anos antes, em 1880, Charles-
Louis-Alphonse Laveran foi o primeiro a identificar o parasita da malária no
microscópio (DESOWITZ, 1991). Em 1820, o quinino começou a ser produzido em
larga escala, permanecendo como única droga para tratamento da malária por
cerca de 110 anos (BOYD, 1949; JARCHO; TORTI, 1993). Em 1905, Carlos Chagas
estabeleceu a importância das condições da habitação para a transmissão da
doença, sugerindo o uso de telas e a fumigação das casas pelo vapor de enxofre
(CHAGAS, 1934; SILVEIRA; REZENDE, 2001). Pela primeira vez foi caracterizado o
conceito de malária como doença domiciliar, raramente adquirida no exterior do
domicílio, e foi adotada medida visando a eliminação do mosquito transmissor
(DEANE, 1986). Em 1940 Paul Müller patenteou o DDT ' que permite eliminar
mosquitos presentes no interior de domicílios através da borrifação (DESOWITZ,
1991). Com base nesse conhecimento adquirido desde o final do século XIX,
medidas tradicionais de controle da doença incluem: uso de larvicidas;
borrifação do interior de domicílios; modificação ambiental (drenagem, por
exemplo); uso de telas e mosquiteiros; e uso de repelentes (BRUCE-CHWATT, 1987;
NÁJERA et al., 1992).
Apesar de todo esse conhecimento disponível, a malária atinge aproximadamente
500 milhões de pessoas no mundo, causando mais de um milhão de mortes. Na
Amazônia, mais de 600 mil casos da doença foram registrados em 2005, o que
representa um aumento de 29,4% em relação ao ano anterior (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2006). Embora não resulte em elevado número de mortes, a morbidade é alta,
trazendo sérias conseqüências socioeconômicas. O controle da doença na
Amazônia, entretanto, é um desafio, uma vez que medidas tradicionais de
controle não são eficazes. Isto porque a transmissão ocorre majoritariamente no
peridomicílio, o mosquito pica preferencialmente das 16 às 18 e das 5 às 6
horas, modificações ambientais favorecem a formação de criadouros de mosquito e
o conhecimento e comportamento individuais maximizam a exposição ao risco de
transmissão (SAWYER; SAWYER, 1987). Desta forma, é necessário um detalhado
conhecimento dos fatores que determinam a transmissão da doença, a fim de que
medidas alternativas possam ser planejadas e implementadas. Tal conhecimento
demanda uma análise multidisciplinar, permitindo incorporar questões
biológicas, ecológicas, socioeconômicas e comportamentais e considerando a
existência de possíveis variações temporais e espaciais. Este artigo apresenta
uma abordagem metodológica que possibilita a realização dessa análise
multidisciplinar.
Meio ambiente e malária
Fatores ambientais desempenham um papel importante no risco de transmissão de
malária, podendo ser divididos em dois grupos: meio ambiente natural e meio
ambiente modificado pela ação humana. O impacto de cada um desses grupos varia
por área geográfica e depende do contexto socioeconômico em que são observados.
Considerando o contexto Amazônico, o meio ambiente natural inclui topografia,
hidrografia, tipo de solo e clima. Estudos realizados no final do século XIX e
início do XX já deixavam claro a importância de cada um desses fatores na
transmissão da malária. A floresta Amazônica oferece condições ideais de
temperatura e umidade para o ciclo de vida do mosquito (SAWYER; SAWYER, 1987;
SAWYER, 1992). Além disso, o padrão pluviométrico maximiza o risco de
transmissão no início e final da estação chuvosa, quando os solos estão mais
úmidos e a variação do nível da água nos rios e igarapés propicia a formação de
criadouros de mosquito em suas margens (CRUZ, 1910; PEIXOTO, 1917). De fato,
dados empíricos revelam a alta exposição de populações ribeirinhas à malária
(CRUZ, 1913; WAGLEY, 1964). Além disso, solos argilosos e baixas altitudes
favorecem a transmissão da doença (HIRSCH, 1883).
Se as características descritas anteriormente, por um lado, facilitam a
transmissão de malária, por outro, não são fatores que por si só determinam a
ocorrência da doença. É através da ação do homem, transformando o meio ambiente
natural, que questões sanitárias são observadas com diferentes graus de
gravidade (HIRSCH, 1883; WAGLEY, 1964). O meio ambiente modificado pela ação do
homem inclui a qualidade da habitação e do local onde a moradia é estabelecida
(por exemplo, distância entre a casa e a floresta, igarapés, rios e estrada).
Tendo em vista a dinâmica de projetos de assentamento na Amazônia, em geral a
transformação ambiental é intensa. Inicialmente, são abertas estradas na mata
e, logo após a ocupação do lote, uma pequena área é desmatada pelos
parceleiros, dando lugar à moradia e agricultura. Progressivamente, áreas
adicionais são desmatadas a fim de que a produção agrícola seja estabelecida.
Vários problemas surgem a partir dessa transformação ambiental. Em primeiro
lugar, a qualidade da moradia é pobre, uma vez que os parceleiros não dispõem
de recursos financeiros adequados. Os materiais usados incluem plástico,
papelão, compensados e folhas de palmeira. A casa não oferece proteção contra
mosquitos e torna inviável o uso de borrifação intradomiciliar. Outro problema
é a qualidade do desmatamento e o tempo que a terra desmatada fica exposta. O
número de criadouros de mosquito aumenta significativamente e o contacto entre
o homem e o mosquito torna-se mais intenso. Exemplos de associação entre
malária e meio ambiente na Amazônia incluem áreas de garimpo (SCHMINK, 1985;
COIMBRA JR., 1988; ARON; PATZ, 2001) e projetos de infra-estrutura (FEARNSIDE,
1989; IÑIGUEZ ROJAS; TOLEDO, 1998; FEARNSIDE, 1999; GUIMARÃES et al., 2004),
além de projetos de assentamento (MARQUES, 1987; SINGER; CASTRO, 2001).
Expansão da fronteira Amazônica e incidência de malária
Nos últimos 40 anos, a expansão da fronteira Amazônica assumiu proporções
significativas a partir da implantação de projetos centrados em agricultura,
extração mineral, criação de gado e fixação do homem à região (MORAN, 1985;
SCHMINK; WOOD, 1992; BROWDER; GODFREY, 1997). Baseados em ideais geopolíticos,
esses projetos tinham como objetivo integrar a Amazônia com as demais regiões
do país e garantir a segurança nacional (SILVA, 1967). Na prática, foi
registrado intenso fluxo migratório, principalmente de pessoas de baixo poder
econômico advindas das regiões Sul e Nordeste (MARTINE, 1990). Além disso,
importantes e significativas transformações ecológicas foram observadas
(desmatamento, construção de estradas e hidrelétricas, etc.), contribuindo para
um crítico aumento do número de casos de malária (COIMBRA, 1985; MARQUES,
1987).
A população da Amazônia cresceu de 7,2 milhões em 1970 para 21,1 milhões em
2000. Em 1970 pouco mais de 50 mil casos de malária foram registrados no Brasil
(DEANE, 1988). Em 1982 esse número já era da ordem de 200 mil, atingindo meio
milhão de casos em 1988. O Estado de Rondônia, que concentrou um grande número
de projetos de assentamento, contribuiu com 43% dos casos de malária
registrados no país e 46% daqueles encontrados na Amazônia, em 1986, ficando
conhecido como a "capital da malária" no Brasil. Em 2004, entre os dez
municípios com Índice Parasitário Anual (IPA)1 mais elevado, seis pertenciam ao
Estado de Rondônia. Atualmente, cerca de 99% dos casos de malária registrados
no Brasil concentram-se na Amazônia. Dos poucos casos observados em outras
regiões do país, 64% são importados (55% provêm da Amazônia). Em 2005, mais de
600 mil casos de malária foram registrados na Amazônia, representando um
crescimento de 29,4% em relação ao ano anterior (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006).
Um entendimento detalhado da expansão de malária na Amazônia demanda uma
análise multidisciplinar, combinando aspectos biológicos e ecológicos em
diferentes escalas, com questões socioeconômicas e comportamentais. Nesse
sentido, Castro et al. (2006a) expandiram o conceito de malária de fronteira,
inicialmente proposto por Sawyer (1988; 1992), em três níveis hierárquicos. O
primeiro representa uma escala microindividual e incluindo os seguintes fatores
de risco: alta densidade de Anopheles darlingi, o principal mosquito
transmissor de malária na Amazônia, em conseqüência de mudanças ambientais que
favorecem a proliferação de criadouros (TADEI et al., 1988); intensa exposição
humana, resultado do conhecimento limitado dos modos de transmissão da doença,
do padrão comportamental da atividade de picada do mosquito transmissor, que
pica mais intensamente no peridomicílio entre 18 e 20 horas e das 5 às 6 horas
(LOURENÇO-DE-OLIVEIRA, et al., 1989; KLEIN; LIMA, 1990); a taxa de mortalidade
devido à malária é baixa, mas a taxa de morbidade é elevada, resultando em
significativos impactos sociais e econômicos; os níveis de imunidade adquirida
são baixos entre os parceleiros, uma vez que grande parte veio de regiões onde
a malária não é observada; a moradia é de baixa qualidade, inviabilizando o uso
de borrifação domiciliar; e os serviços locais de saúde são deficientes. O
segundo nível representa a comunidade, sendo que a malária de fronteira é
caracterizada por frágeis instituições privadas e governamentais, ausência de
esforços comunitários organizados, marginalidade política e alta mobilidade
populacional. Tais características tornam difícil a concretização de esforços
locais para promoção de manejo ambiental e redução de transmissão de malária.
Finalmente, o terceiro é o nível estadual e nacional, em que malária de
fronteira é caracterizada por áreas assentadas sem um apropriado planejamento,
muitas vezes resultantes de ocupação ilegal por parceleiros que não tiveram
sucesso em outras áreas.
Além de não ter uma conceituação única, a malária de fronteira também apresenta
evolução temporal específica caracterizada por três fases, conforme sugerido
por Sawyer e Sawyer (1992). A primeira fase, durante os anos iniciais do
projeto de assentamento, é marcada por um rápido aumento da incidência de
malária, em que são observadas as características que definem os dois primeiros
níveis do conceito de malária de fronteira. A segunda fase, que ocorre
aproximadamente três anos após a abertura do assentamento, dura cerca de cinco
anos e é marcada por um declínio progressivo das taxas de malária, acompanhando
uma esperada melhoria das condições ambientais e socioeconômicas. Finalmente, a
terceira etapa é caracterizada por um cenário estável com baixas taxas de
malária, resultado do rápido processo de urbanização, da formação de um senso
comunitário, da melhoria das condições socioeconômicas e de uma redução das
mudanças ambientais observadas nos anos iniciais de ocupação.
A duração de cada fase pode variar, dependendo do processo de consolidação do
projeto de assentamento e das ações de controle de saúde implementadas.
Entretanto, independentemente da transição temporal observada, fica claro que a
escolha e a implementação de medidas mitigadoras devem considerar o estágio em
que se encontra o projeto de assentamento, bem como o fato de que a importância
dos diversos determinantes de transmissão de malária varia em cada uma das três
fases do processo de transição. Portanto, identificar esses determinantes é
crucial para o planejamento de programas de controle.
Caracterização de áreas de risco
Pelo descrito anteriormente, fica claro que a interação homem, meio ambiente e
saúde observada na Amazônia, em especial nos projetos de assentamento, é
complexa. O estudo e a compreensão dos determinantes da incidência de malária
em áreas de fronteira demandam abordagens inovadoras que permitam uma análise
multidisciplinar, devendo considerar, ainda, possíveis efeitos espaciais, assim
como altos níveis de heterogeneidade nos dados. A seguir é apresentada uma
proposta de abordagem metodológica, composta de três etapas distintas, cujo
objetivo é identificar os determinantes da transmissão de malária em projetos
de colonização, caracterizando perfis de risco sob uma perspectiva espacial e
temporal. Cada etapa utiliza uma modelagem distinta, combinando análise
estatística espacial, geoestatística e modelos de classificação nebulosa
(CASTRO, 2002).
A primeira etapa consiste em avaliar se a transmissão de malária apresenta
correlação espacial e se áreas com alta ou baixa concentração de casos podem
ser identificadas. São utilizados indicadores locais de associação espacial
(ANSELIN, 1995), especificamente o teste Gi*(d), recomendado para identificação
de conglomerados significativos de valores altos ou baixos próximos a uma
localidade i, dada uma distância d de i (GETIS; ORD, 1996). No caso de projetos
de assentamento, a localidade i refere-se a um lote e a distância d define a
área de vizinhança de cada lote. É esperado que lotes próximos apresentem taxas
de malária semelhantes (Primeira Lei da Geografia de Tobler, 1979). Valores
padronizados do teste Gi*(d) são comparados com a distribuição estatística
normal, a fim de identificar a presença de conglomerados significativos (GETIS;
ORD, 1992; ORD; GETIS, 1995).
Duas questões devem ser analisadas com relação ao uso do teste Gi*(d):
comparações múltiplas e dependentes; e escolha da distância d. A primeira
decorre do fato de que, para cada localidade i, é aplicado um teste, sendo que
essa multiplicidade pode resultar em erros do tipo I elevados (KURTZ et al.,
1965; TUKEY, 1991). Além disso, diferentes localidades possuem vizinhanças
semelhantes e, portanto, os testes não são independentes (ANSELIN, 1995; GETIS;
ORD, 1996; ROGERSON, 2001). Esse problema é normalmente contornado a partir do
uso da correção de Bonferroni para a multiplicidade (GETIS; ORD, 2000).
Entretanto, uma alternativa mais eficiente e robusta é o uso da taxa de falsas
descobertas, proposta por Benjamini e Hochberg (1995), que controla a taxa
média de erros causados pela falsa rejeição da hipótese nula. A aplicação desse
ajuste é extremamente simples e pode ser implementada em planilhas eletrônicas.
Com base em dados empíricos e simulados, Castro e Singer (2006) mostram o ganho
significativo obtido com o uso da taxa de falsas descobertas em aplicações de
testes locais de associação espacial.
A segunda questão ' escolha da distância d ' é conceitualmente mais complexa.
Não há uma regra preestabelecida para sua escolha, e tampouco procedimentos
estatísticos que ajudem sua definição. Embora diferentes critérios tenham sido
utilizados (por exemplo, GETIS, 1995; PAEZ et al., 2001; BAUMONT et al., 2004),
cada caso deve ser analisado com cautela. Idealmente, a distância deve ser
escolhida com base nas características físicas da área e nas particularidades
do fenômeno em estudo.
Essa primeira etapa da abordagem metodológica pode ser aplicada em tempo real,
facilitando o monitoramento de focos epidêmicos que demandam ação imediata por
parte de serviços locais de saúde. Pode ser utilizada, ainda, em dados
históricos, revelando padrões locais e a forma como estes se modificam ao longo
do tempo. Em ambos os casos, conglomerados significativos são identificados e
localizados espacialmente. A presença de conglomerados sugere a ocorrência de
processos distintos em certas localidades, cuja compreensão permite a adoção de
medidas alternativas de controle da doença. Ou seja, sugere que a área em
estudo poderia ser dividida em subáreas (agrupamentos de lotes) a serem
analisadas em detalhe através de um estudo multivariado.
A segunda etapa da abordagem metodológica facilita a definição das subáreas
anteriormente mencionadas. Nessa etapa, estimativas espaciais das taxas de
malária são calculadas para todos os lotes do assentamento em estudo,
utilizando-se o método geoestatístico de krigagem (ISAAKS; SRIVASTAVA, 1989;
CRESSIE, 1991), que estima o valor de uma variável em localidades não
amostradas com base nas amostras vizinhas. A estrutura espacial dos dados
observados é representada pelo semivariograma e depende apenas da localização
de cada variável e da distância que as separa (CRESSIE, 1991). Através de
funções matemáticas, essa estrutura espacial permite o cálculo de pesos que,
multiplicados pelos valores observados, resultam em estimativas para os pontos
não amostrados. Conforme a Primeira Lei da Geografia (TOBLER, 1979), esses
pesos são maiores para localidades próximas e menores para aquelas distantes.
Cressie (1991) apresenta detalhes do modelo de krigagem e dos procedimentos de
estimação.
Os resultados da primeira etapa (identificação de conglomerados nas taxas de
malária observadas nos lotes amostrados), combinados com os da segunda etapa
(estimativas espaciais dessas taxas para a totalidade dos lotes), possibilitam
a definição de subáreas de risco de malária. É esperado que uma análise
multivariada dessas subáreas revele especificidades do processo de transmissão
da doença, tarefa a ser executada na terceira e última etapa da abordagem
metodológica, em que modelos de Grade of Membership (GoM), baseados em métodos
de classificação nebulosa (SINGER, 1989; MANTON et al., 1994) são aplicados em
cada subárea, revelando os determinantes de altos e baixos riscos de
transmissão. Esses modelos são especialmente úteis na análise de populações
heterogêneas, em que combinações de ocorrências de variáveis não são
registradas com elevada freqüência. A cada indivíduo da população é atribuído
um conjunto de escores g que indicam seu grau de pertinência em partições
difusas ou perfis. Considerando um cenário com dois perfis, alto e baixo risco
de malária, cada indivíduo teria dois escores representando sua similaridade
com cada perfil, sendo que a soma desses escores é igual a unidade. Um escore g
= 1 para o perfil de alto risco indica que o indivíduo possui todas as
características que descrevem esse perfil. Um indivíduo pode, ainda, apresentar
características de ambos os perfis ' por exemplo, se g = ¾ para o perfil de
alto risco, esse indivíduo apresenta um grau de similaridade mais elevado com o
perfil de alto risco, ainda que ¼ de seus atributos caracterize um perfil de
baixo risco (Castro et al., 2006a).
A descrição e a análise desses perfis para cada subárea facilitam o
entendimento do processo de transmissão de malária, a identificação de
especificidades locais e a elaboração de propostas inovadoras para o controle
da doença. Berkman et al. (1989), Manton et al. (1994) e Erosheva (2003)
apresentam detalhes do processo de estimação do modelo de GoM.
A seguir é detalhada uma aplicação da abordagem metodológica aqui descrita.
Como estudo de caso, foi selecionado o projeto de assentamento de Machadinho,
localizado no Estado de Rondônia.
Estudo de caso: Machadinho, Rondônia
O projeto de colonização de Machadinho foi implantado em 1984 como parte do
Polonoroeste ' Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil.
Planejado para ser um modelo de colonização sustentável, Machadinho teve um
traçado inovador, em que lotes foram definidos com base na topografia e
hidrologia locais. Antes da implantação, a área do projeto era mata fechada,
esparsamente ocupada por seringueiros. Acredita-se que esses seringueiros eram
portadores do parasita da malária, porém assintomáticos, e sua presença não foi
formalmente considerada durante a fase de planejamento e distribuição dos
lotes, uma vez que residiam em áreas designadas como reservas florestais.
A ocupação de Machadinho foi feita por migrantes que vieram majoritariamente do
Sul do Brasil, região livre de malária. Esses migrantes não dispunham de
conhecimento adequado sobre os meios de transmissão de malária e sobre formas
de proteção individual, além de não possuírem imunidade adquirida. Parte dos
migrantes se estabeleceu temporariamente em áreas malarígenas em Rondônia,
aguardando o momento de ocupar seus lotes.
A ocupação inicial do lote é marcada por derrubada de parte da mata, a fim de
que o parceleiro possa construir sua casa (em princípio temporária) e iniciar a
produção agrícola. Essa derrubada é, na maioria dos casos, precária e lenta,
favorecendo a proliferação de criadouros de mosquito. A presença de indivíduos
assintomáticos, combinada com a introdução de população não imune e o aumento
do número de mosquitos, resultou na ocorrência de graves surtos de malária,
fato que foi registrado na maioria dos projetos de assentamento implantados na
Amazônia.
Em Machadinho, o IPA alcançou 3.400 slides positivos por 1.000 pessoas em 1985;
65,7% da população teve pelo menos um episódio de malária no mesmo ano e 90,1%
no ano seguinte. Em 1986, 55,9% da população de Machadinho registrou um
episódio da doença em mais de cinco meses ao longo do ano (SAWYER; SAWYER,
1987; SYDENSTRICKER, 1992).
A transmissão de malária em Machadinho reúne todas as condições anteriormente
descritas como malária de fronteira. A busca eficaz de medidas alternativas de
controle da doença reside no entendimento de seus determinantes, sua
diferenciação espacial e sua evolução ao longo do tempo. A abordagem
metodológica apresentada anteriormente possibilita esse entendimento, como é
mostrado a seguir.
Pesquisas de campo foram realizadas nos lotes ocupados das glebas 1 e 2 de
Machadinho em 1985, 1986, 1987 e 1995 (a Figura_1 apresenta a localização
geográfica do projeto). Considerou-se o lote ocupado quando o parceleiro
residia no local e já havia iniciado o desmatamento (SAWYER, 1985). Desta
forma, não foram incluídos na pesquisa lotes onde a derrubada já havia sido
iniciada, mas o parceleiro não havia estabelecido residência. O questionário
utilizado teve caráter abrangente, coletando informações demográficas,
socioeconômicas, ecológicas, de saúde e práticas agrícolas (SAWYER, 1985;
SAWYER; SAWYER, 1987).
Casos de malária foram declarados pelos parceleiros para cada um dos 12 meses
precedentes à pesquisa. As vantagens e limitações do uso dessa informação são
discutidas em detalhe por Castilla e Sawyer (1993), Sawyer e Sawyer (1987) e
Singer e Sawyer (1992). Taxas de exposição à malária foram calculadas
considerando-se os casos declarados mensalmente e a localidade onde a pessoa se
encontrava em cada mês. A taxa varia entre zero e um; o primeiro valor indica
ausência de episódios de malária ao longo do ano, enquanto o segundo mostra que
a pessoa declarou a ocorrência de casos em todos os meses do ano. A
distribuição geográfica da taxa é extremamente diversa, sendo que valores
elevados tendem a ser observados com maior freqüência na gleba 1 de Machadinho.
Variáveis adicionais foram construídas a partir do uso de sistemas de
informação geográfica (SIG) ' por exemplo, distância do lote ao posto de saúde,
lotes localizados a menos de 1 km da reserva florestal, distância do lote
ocupado mais próximo, entre outras (CASTRO, 2002). Além disso, foram utilizadas
informações etnográficas, coletadas de 1985 a 1995 (Castro et al., 2006a).
Finalmente, imagens de satélite (Landsat TM, com resolução de 30 m) capturadas
em 1985, 1986, 1994 e 1995 possibilitaram a identificação de fatores adicionais
de risco, não coletados nas pesquisas de campo (CASTRO et al., 2006a).
As duas primeiras etapas da abordagem metodológica descrita neste artigo
utilizam apenas as taxas de malária. O teste Gi*(d) foi calculado usando-se uma
distância de 3.500m, selecionada com base em três critérios. O primeiro refere-
se às características de distância de vôo do Anopheles darlingi, principal
mosquito transmissor de malária na Amazônia (DEANE, 1947; COVA-GARCIA, 1961;
VAN THIEL, 1962; TADEI et al., 1998). O segundo diz respeito às características
físicas dos lotes em Machadinho (desenho irregular e tamanho médio) e suas
implicações na definição da área de vizinhança no entorno de cada lote (CASTRO
et al., 2006b). Finalmente, o terceiro critério considera a abrangência
geográfica dos setores ' unidade espacial utilizada pelos serviços locais de
saúde (CASTRO et al., 2006b).
Para o cálculo do teste Gi*(d), foi utilizado o software PPA ' Point Pattern
Analysis (ALDSTADT et al., 2007). A Figura_2 mostra os resultados do teste,
revelando a presença de aglomerações significativas de altas e baixas taxas de
malária nas glebas 1 e 2 de Machadinho (a multiplicidade de testes foi
corrigida pela taxa de falsas descobertas). É interessante notar que, apesar da
elevada transmissão de malária observada logo após o processo inicial de
ocupação, aglomerações de baixas taxas de malária foram identificadas ao longo
dos anos. É imperativo analisar detalhadamente esses casos, uma vez que lições
importantes podem ser aprendidas e incorporadas em campanhas de controle. Esses
resultados revelam, ainda, a importância de se incluir um componente espacial
na análise e evidenciam a importância de campanhas de controle direcionadas às
áreas críticas (AKHAVAN et al., 1999; CARTER et al., 2000). Finalmente, é
possível observar que os conglomerados identificados não oferecem informação
suficiente para a partição da área total em subáreas de risco. O ideal é que se
disponha de informações sobre cada lote, de tal forma que essas subáreas possam
ser traçadas. Esse problema é solucionado na segunda etapa da abordagem
metodológica.
Utilizando o método de krigagem foram obtidas estimativas espaciais para as
taxas de malária em todos os 1.472 lotes das glebas 1 e 2 de Machadinho. Com
base nessas estimativas e na localização dos conglomerados, subáreas foram
definidas ' três em 1985 e 1995, quatro em 1986 e cinco em 1987, conforme
mostra a Figura_3. Para cada uma dessas subáreas foi aplicado o método de GoM.
O objetivo desta terceira etapa é identificar combinações de ocorrências de
variáveis que estejam associadas a um perfil de alto ou baixo risco de malária.
Para tanto, as informações disponíveis em cada ano foram divididas em dois
grupos: meio ambiente e comportamento/economia. Três categorias podem ser
identificadas em cada grupo: qualidade habitacional, proximidade de áreas
críticas (mata, riacho, água parada, etc.) e área desmatada, no primeiro grupo;
e nível educacional, história migratória e características econômicas, no
segundo (CASTRO et al., 2006a).
Em cada categoria, a significância da ocorrência das variáveis na determinação
dos perfis é avaliada. A partir daí, a contribuição de cada um dos dois grupos
para a definição dos perfis de alto ou baixo risco de malária é considerada:
alta, caso uma ou mais ocorrências em cada uma das três categorias do grupo
forem significativas; média, se uma ou mais ocorrências em duas das três
categorias do grupo forem significativas; e baixa, caso uma ou mais ocorrências
em uma das três categorias forem significativas.
A análise dos perfis destaca importantes aspectos do processo de transmissão de
malária em projetos de assentamento. Primeiro, os resultados revelam que nos
anos iniciais do projeto de assentamento o alto risco de transmissão da malária
é basicamente determinado por variáveis que caracterizam transformações
ambientais. Em 1995, dez anos após a abertura do projeto, o perfil de alto
risco modificou-se, sendo caracterizado por aspectos econômicos e
comportamentais. Segundo, nos anos iniciais do projeto, o perfil de baixo risco
está condicionado a aspectos econômicos e comportamentais, em especial à posse
de equipamentos (motosserra) e de conhecimento agrícola, o que pode resultar em
rápida derrubada e construção de moradia de boa qualidade, reduzindo a
exposição ao mosquito transmissor. Terceiro, além de os perfis variarem ao
longo do tempo, há também importantes diferenças locais, que não seriam
reveladas se o método de GoM tivesse sido aplicado para a totalidade de
Machadinho, ressaltando a importância da análise espacial.
Deve-se destacar a necessidade de se incorporarem informações etnográficas e de
sensoriamento remoto. Em alguns casos, a descrição de perfis de risco com base
apenas em variáveis coletadas na pesquisa de campo não foi capaz de
caracterizar corretamente o processo de transmissão. Por exemplo, a presença de
lotes onde foi observada significativa transformação ambiental, mas que não
foram incluídos na pesquisa de campo por não se enquadrarem na definição de
"ocupados", representa um risco adicional que pode ser avaliado apenas através
de sensoriamento remoto. A ocorrência de desmatamento ilegal também constitui
situação única, que pode ser monitorada por imagens de satélite. De fato, em
1994, uma área de aproximadamente 33,5km2 foi desmatada a sudeste de
Machadinho, tendo empregado mão-de-obra procedente de áreas malarígenas da
Amazônia (CASTRO et al., 2006a). O aumento da transmissão de malária nas áreas
de Machadinho próximas a essa localidade desmatada não poderia ser explicado
apenas pelos dados coletados na pesquisa de campo.
Com base nesses resultados, algumas medidas mitigadoras assumem importância
relevante em projetos de assentamento, tais como:
* com base em estudos de aptidão agrícola de solos, alocar parceleiros(as)
em áreas que favoreçam a produção de plantações nas quais tenham prévia
experiência;
* garantir que o desmatamento inicial para construção de moradia e início
de práticas agrícolas seja rápido e de boa qualidade e que a moradia
ofereça proteção contra o mosquito;
* assegurar assistência técnica em práticas agrícolas;
* iniciar a distribuição de lotes apenas após a instalação de unidades de
saúde na área do projeto de assentamento;
* minimizar a presença de casos assintomáticos de malária através do teste
laboratorial de novos ocupantes e de grupos populacionais que morem na
localidade, tais como seringueiros (CASTRO, 2002; CASTRO et al., 2006a).
A primeira e a terceira medidas oferecem condições para práticas
agrícolas bem sucedidas, impactando nas condições econômicas do
parceleiro e minimizando a chance de abandono do lote. Ainda que estudos
de reconhecimento do solo e de aptidão agrícola em Machadinho tenham sido
elaborados, tal informação não foi utilizada como critério na
distribuição de lotes (EMBRAPA/SNLCS, 1982; CASTRO, 2002). A segunda tem
caráter preventivo, reduzindo o tempo de exposição do parceleiro à alta
área de risco localizada no limite entre a floresta e a área desmatada,
onde o número de criadores de mosquitos é elevado. Finalmente, as duas
últimas visam especificamente os serviços de saúde e buscam minimizar as
chances de focos epidêmicos da doença. Além disso, postos de saúde
poderiam ser veículos de educação sanitária, provendo informações e
promovendo o uso de medidas preventivas.
Conclusão
O entendimento detalhado do processo de transmissão de malária na Amazônia
demanda uma análise multidisciplinar, além do uso de metodologia que permita
modelar dados heterogêneos. Neste artigo é apresentada uma abordagem
metodológica que se destina a esse fim, bem como um exemplo utilizando-se dados
do projeto de assentamento de Machadinho, em Rondônia. Os resultados revelam
importantes diferenças locais e temporais na caracterização de risco e indicam
medidas mitigadoras a serem consideradas em projetos de assentamento. Ainda que
a implementação de medidas de controle da malária necessite de uma avaliação
das características locais de cada área, os resultados aqui expostos aplicam-se
de uma forma ampla a outros projetos de assentamento na Amazônia.
Dois aspectos merecem uma discussão mais detalhada. Em primeiro lugar, a
abordagem metodológica apresentada não se restringe a estudos de malária. O
mesmo procedimento pode ser aplicado a outras doenças cuja ocorrência seja
determinada por múltiplos fatores, tais como dengue, febre amarela,
esquistossomose, doença de chagas, entre outras. O importante é que se disponha
de dados que permitam avaliar diversas questões potencialmente impactantes no
risco de transmissão da doença.
A disponibilidade de dados é a segunda questão que deve ser analisada. As
informações disponíveis para Machadinho não possuem a cobertura e a dimensão
espacial dos registros oficiais de saúde. Em primeiro lugar, registros oficiais
tendem a ser incompletos e enviesados, uma vez que: é comum a inexistência de
postos de saúde em áreas pobres e de difícil acesso; a existência de postos de
saúde não garante que a população de fato use os serviços, pois a baixa
qualidade do atendimento ou a ausência de equipamento resulta na busca por
curandeiros ou conselhos em farmácias locais; e a procura por serviços de saúde
pode ocorrer apenas quando a doença é de alta gravidade (DE SAVIGNY; BINKA,
2004). Em segundo lugar, registros oficiais podem incluir casos em que o
diagnóstico não é correto (por exemplo, casos de febre podem ser diagnosticados
como malária sem a comprovação por meio de análise do sangue). Terceiro, esses
registros são normalmente indexados pela unidade de atendimento ou município
onde foram observados e não pelo local de residência do paciente. Por último,
registros oficiais não se equivalem a uma pesquisa de campo e, portanto, não
oferecem uma abordagem multidisciplinar com relação aos fatores de risco.
Apesar disso, é importante ressaltar esforços positivos que vêm sendo
implementados no sentido de melhorar a abrangência e a qualidade da informação,
o que eventualmente resultará em melhorias no planejamento das ações de saúde.
Por exemplo, em 2003, o Ministério da Saúde aprimorou os dados contidos no
Sistema de Informações de Malária (Sismal), a partir da criação do Sistema de
Informações de Vigilância Epidemiológica ' Malária (Sivep-Malária) na Amazônia.
O Sivep permite rápida entrada e disponibilidade de dados, o que facilita o
planejamento e a tomada de decisões. Além disso, a resistência às drogas
antimaláricas é monitorada através da Rede Amazônica de Vigilância da
Resistência às Drogas Antimaláricas (RAVREDA). Localidades sentinelas foram
selecionadas em sete Estados da região, onde a eficácia de medicamentos no
tratamento de pacientes é constantemente avaliada (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006).
Essas medidas, ainda que não resolvam problemas de cobertura, contribuem para a
melhoria significativa da qualidade dos dados disponíveis e, portanto, da
tomada de decisão.
A primeira etapa da abordagem metodológica apresentada neste artigo, aplicada
rotineiramente aos registros oficiais de saúde, representa um sistema de
monitoramento espacial da transmissão de malária, apontando a existência de
áreas críticas que demandam controle imediato. O SIGEpi, desenvolvido pela
Organização Panamericana de Saúde (Opas),2 representa um esforço na criação de
sistemas de monitoramento utilizando SIG. Considerando a tendência atual de
desenvolvimento de programas de análise espacial e geovisualização, em que
códigos de programação são disponibilizados a todos os usuários,3 a
implementação de sofisticados sistemas de monitoramento não demanda elevados
investimentos financeiros. O único investimento necessário é capacitação
técnica para implementação e manutenção do sistema (CASTRO et al., 2006b).
Outra proposta de uma rotina de vigilância, baseada em medidas de dispersão e
métodos de suavização, foi feita por Braz et al. (2006). Tal rotina utiliza os
dados oficiais de malária e é de simples implementação. É importante ressaltar,
entretanto, que o objetivo maior, reservado para futuros estudos, é a obtenção
de modelos preditivos de transmissão de malária, incorporando o caráter
multidisciplinar descrito anteriormente e utilizando fontes alternativas de
informação. A abordagem metodológica apresentada neste artigo representa um dos
passos importantes na consecução deste objetivo.