Dinâmica imobiliária e regulação ambiental: uma discussão a partir do eixo-sul
da Região Metropolitana de Belo Horizonte
Produção do espaço urbano e regulação ambiental
Neste trabalho buscou-se contribuir para a compreensão das relações
contemporâneas entre a atividade imobiliária e o Estado, tendo em vista, por um
lado, o contexto atual da expansão urbana/metropolitana na sua versão de
produção do espaço formal, que tem como público-alvo as camadas de alta e média
renda da população e, por outro, as tendências atuais de regulação dos
processos de expansão urbana/metropolitana, num momento de fragmentação da
gestão urbana em diferentes contextos políticos locais (municipais) e crescente
utilização de procedimentos usuais da política ambiental ' como o licenciamento
' para o controle do parcelamento do solo. Este debate assume contornos
particulares no caso em análise ' a expansão metropolitana ocorrida no chamado
eixo-sul de Belo Horizonte ', por incorporar também outro elemento: a regulação
da urbanização no interior de unidades de conservação de uso sustentável, como
é o caso da APA Sul ' Área de Proteção Ambiental ao Sul da Região Metropolitana
de Belo Horizonte.
A expansão de Belo Horizonte apresenta algumas características da urbanização
recente, materializada em termos espaciais em processos de fragmentação e
dispersão do tecido urbano, associados a mecanismos de crescente segregação
socioespacial.
A atividade imobiliária é considerada, tradicionalmente, um setor (uma fração)
do capital de baixa tecnologia, pouco expressivo em termos de participação da
vanguarda do processo de acumulação, porém de grande relevância para a
canalização de poupanças e investimentos privados dispersos. Apesar de trazer
ao debate relações sociais arcaicas associadas ao rentismo e à propriedade
fundiária, ambos compreendidos, no quadro conceitual da economia política, como
um entrave à fluidez da acumulação capitalista, o capital imobiliário vem há
décadas operando em condições vantajosas diante de outros setores da economia,
à medida que consegue influir em (e antecipar) ganhos decorrentes dos
mecanismos formadores da renda da terra, particularmente a renda diferencial
(LIPIETZ, 1974; TOPALOV, 1974; BALL, 1977).
Desde os anos 70 e durante as duas décadas que se seguiram, os estudos sobre
dinâmica imobiliária e fundiária urbana produziram uma reflexão bastante
consistente sobre a lógica de atuação dos agentes sociais na produção do espaço
urbano, a partir da qual se buscava explicar a consolidação de um padrão de
urbanização marcado pela desigualdade extrema, que se manifesta nas já bem
conhecidas múltiplas formas de segregação socioespacial e informalidade/
ilegalidade urbana. Mais recentemente, como parte da conhecida estratégia de
produção de "novas mercadorias", fundamental para a sobrevivência do processo
de acumulação e em consonância com os também bastante discutidos movimentos de
enclausuramento e auto-segregação (CALDEIRA, 1997), os loteamentos fechados vêm
se espalhando rapidamente pelo espaço urbano brasileiro, forjando novos
conceitos de moradia, justificados pelo discurso da segurança e da qualidade
ambiental (COSTA, 2003).
Não é novidade a utilização da natureza, assim como do corpo das mulheres
(SHIVA, 2001), para a venda dos mais diversos produtos. O que se busca
argumentar como pressuposto deste trabalho é que, no momento atual, não só a
natureza, mas também os atributos e a qualidade ambiental do espaço vêm
passando a fazer parte do produto imobiliário, agregando-lhe valor na forma de
renda diferencial e, às vezes, de renda de monopólio.
Os estudos realizados sobre a expansão metropolitana de Belo Horizonte em sua
porção sul apontaram alguns destes processos associados à modernização
ecológica (HARVEY, 1996), ainda que tardia, do capital imobiliário na expansão
urbana. São alguns exemplos: a crescente complexidade dos empreendimentos,
congregando outros usos além do residencial, em especial aqueles associados a
centros culturais e turismo de natureza; a criação de unidades de conservação
de uso exclusivo, como as RPPN ' Reservas Particulares de Patrimônio Natural; o
parcelamento no interior de unidades de conservação de uso sustentável; a
concepção (simplista, diríamos) dos empreendimentos com unidades autônomas,
desvinculadas dos centros urbanos; o controle seletivo de densidades a partir
de tipologias construtivas; e o uso do processo de licenciamento ambiental como
uma espécie de "selo verde" legitimador do empreendimento.
Assim como o capital, o Estado também incorporou princípios da modernização
ecológica, como a tendência crescente de utilização de procedimentos e
instrumentos da legislação ambiental nos processos de regulação das atividades
urbanas (COSTA, 2006). O licenciamento ambiental de loteamentos é o mecanismo
discutido neste trabalho, tendo como estudo de caso o processo de licenciamento
da segunda fase de expansão do empreendimento Alphaville Lagoa dos Ingleses, no
município de Nova Lima, ao sul de Belo Horizonte.
O referencial teórico mais amplo parte da noção de produção social do espaço e
do urbano (LEFEBVRE, 1991; 1999), contemplando, entre outros, os seguintes
aspectos:
- produção material do espaço, do ambiente construído, envolvendo sua
base econômica, a infra-estrutura, as edificações, as materialidades,
inclusive os espaços não construídos e de preservação;
- produção social da natureza, como ambiente transformado, muitas
vezes materializada como paisagem na expansão urbana;
- produção e reprodução de valores, modos de vida, desejos e padrões
de consumo;
- produção e reprodução de relações sociais, de mercado e de poder,
muitas vezes "naturalizadas" e reproduzidas como privilégios,
manifestações assimétricas materializadas espacialmente em várias
formas de segregação e exclusão;
- reprodução de um aparato de regulação que estabelece regras e
critérios para atuação dos agentes, construindo acordos de
convivência, bem como instâncias de explicitação e negociação dos
conflitos.
O eixo-sul de expansão metropolitana de Belo Horizonte
O padrão de expansão urbana que se desenvolveu no eixo-sul da Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), ultrapassando a barreira natural da
Serra do Curral, apresenta características especiais se comparado com outros
eixos de expansão metropolitana, destacando-se a estrutura fundiária altamente
concentrada de propriedade de grandes empresas mineradoras, particularmente no
município de Nova Lima, onde se encontram importantes áreas de proteção
ambiental.
Enquanto o entorno imediato de Belo Horizonte e de suas áreas conurbadas, em
especial Betim e Contagem, a oeste e na região norte, vivenciou uma
significativa oferta de lotes para o mercado de baixa renda nas décadas de 70 e
80, o eixo sul metropolitano foi palco da oferta de lotes para a população de
média e alta renda, atraída pelos seus atributos ambientais, a princípio como
segunda moradia para lazer de final de semana e, aos poucos, particularmente a
partir dos anos 90, como local de moradia principal. Contribuiu para isso a
intervenção do Estado na definição de investimentos em infra-estrutura, bem
como políticas metropolitanas de uso, ocupação e parcelamento do solo dos anos
70.
O município de Nova Lima apresenta uma situação especial no contexto da RMBH,
possuindo rico patrimônio natural, onde se destacam remanescentes de Mata
Atlântica, rede hidrográfica densa com importantes mananciais destinados ao
abastecimento da população metropolitana, reservas importantes de minério de
ferro, beleza cênica e uma rica biodiversidade. Por outro lado, está localizado
no entorno do Parque Estadual da Serra do Rola Moça e 93,11% do seu território
está inserido no interior da APA Sul,1 área de proteção ambiental criada para a
preservação de mananciais de importância estratégica para o abastecimento de
água da RMBH, de sua biodiversidade e do seu patrimônio cultural relacionado ao
ciclo do ouro e à mineração. Além disso, no momento o eixo-sul encontra-se sob
forte pressão da implantação de projetos urbanísticos destinados a
empreendimentos imobiliários de grande porte. A Tabela_1 evidencia a
participação do município de Nova Lima na APA Sul.
Mapa_1
De acordo com a legislação ambiental vigente, além do porte, pelo fato desses
empreendimentos se localizarem no interior de unidade de conservação estadual e
na região metropolitana, o licenciamento ambiental é obrigatório e é realizado
na esfera do Copam.
Localizam-se no município as seguintes unidades de conservação que são áreas de
proteção de mananciais: Estação Ecológica de Fechos, Reserva da Mutuca, Mata
Capitão do Mato e Mata do Tumbá. Existem ainda duas Reservas Particulares de
Patrimônio Natural (RPPN), ambas em áreas das empresas mineradoras: a Mata do
Jambreiro, de propriedade da Minerações Brasileiras Reunidas (MBR, hoje CVRD);
e outra RPPN, criada recentemente no loteamento Vale dos Cristais, pertencente
à Anglo Gold,2 durante o processo de licenciamento ambiental no Copam, como
medida compensatória para concessão da Licença Prévia.
Tais áreas, localizadas no entorno do Parque Estadual da Serra do Rola Moça, de
acordo com a legislação correlata,3 exigem dos empreendimentos que pretendem se
instalar na denominada zona de amortecimento4 de área natural protegida a
manifestação prévia favorável do órgão gestor da unidade de conservação, no
caso o Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG). O cumprimento
dessa exigência pode acarretar modificações na legislação urbanística
municipal, tendo em vista que alguns usos e modelos de ocupação do solo podem
ser considerados inadequados aos objetivos de preservação do parque e, até
mesmo, justificar o indeferimento da licença ambiental ou impedir a
manifestação prévia favorável do órgão gestor do parque quanto à sua
localização.
Por outro lado, a localização no interior da APA Sul impõe, ainda, restrições
quanto aos usos e ocupação do solo, pois, embora a APA seja uma unidade de
conservação de uso sustentável que admite determinados usos em seu interior,5
existe um rigor maior na análise dos estudos de impacto ambiental e das
respectivas medidas mitigadoras durante o processo de licenciamento ambiental.
Acrescentam-se a essas restrições os conflitos entre o poder público estadual,
o mercado e a comunidade, em decorrência de interesses divergentes em torno do
processo de ocupação do solo no território municipal, dividido entre mineração,
residência, comércio e serviços de médio e grande portes e a proteção
ambiental.
Licenciamento ambiental e expansão urbana
Instituído em Minas Gerais em 1980, pela Lei Estadual n. 7.772/1980, o
licenciamento ambiental voltou-se inicialmente para as atividades produtivas
dos setores primário (mineração) e secundário (indústrias de transformação),
motivado pela crescente mobilização da sociedade em torno das ameaças à
qualidade de vida ocasionadas pela poluição atmosférica e hídrica.
Desde a década de 70, a associação entre poluição e qualidade do ambiente
urbano já apontava a necessidade de regulação ambiental da urbanização em
moldes semelhantes ao das atividades produtivas, cujo controle, em princípio,
levaria a uma melhoria geral das condições de vida da população. Entretanto,
nesse período inicial de percepção das questões ambientais, predominou a visão
segundo a qual qualquer transformação no ambiente natural constituía uma fonte
de deterioração ambiental.
Nesta perspectiva, a ocupação urbana, cuja produção engloba em grande medida
processos artificiais, seria, por definição, causadora da degradação
ambiental.6 Foi só a partir de meados da década de 80 que esta visão começou a
se transformar7 e ganhou corpo a hipótese de a gestão urbana se consolidar como
uma ação de proteção ambiental. No nível da regulação, as questões relacionadas
à urbanização passam a ser consideradas na prática da gestão ambiental, com a
publicação da Resolução Conama n. 01/86, que listou como atividades sujeitas ao
estudo prévio de impacto ambiental os projetos urbanísticos, entre os quais o
parcelamento do solo urbano destinado ao uso residencial.
Entretanto, a possibilidade de utilização dos instrumentos de gestão ambiental
para impedir a realização de empreendimentos imobiliários de grande porte tem
sido bastante remota, a exemplo do que tradicionalmente acontece com o
licenciamento de atividades produtivas (industriais, minerárias, etc.) ou de
grandes projetos de infra-estrutura, como as barragens.
A própria noção de licenciamento remete ao estabelecimento das condições nas
quais se dará o empreendimento a ser licenciado, e não à decisão acerca do
empreendimento acontecer ou não ' a famosa opção zero ' ou a estudos prévios de
planejamento das atividades. Está implícita a noção de que há sempre uma
solução técnica adequada, uma certa fé na tecnologia (GIDDENS, 1991).
Igualmente presente está a lógica de mercado, que constitui a racionalidade
implícita no estabelecimento de grande parte das medidas compensatórias.8
No caso da expansão urbana via parcelamento do solo, as restrições de natureza
técnica, relacionadas à ocupação de áreas frágeis e/ou de importância para o
equilíbrio dos ecossistemas, usualmente reduzem-se à busca de uma alternativa
tecnológica adequada à redução do impacto negativo e, em caso de destruição de
patrimônio irrecuperável, como passíveis de negociação de medidas
compensatórias para situações de exceção. Raramente são discutidas alternativas
para o empreendimento e, dependendo dos potenciais impactos ambientais
negativos da atividade, a adoção de medidas compensatórias é um paliativo. As
medidas adotadas, propostas pelo empreendedor, nem sempre privilegiam as áreas
próximas ao empreendimento diretamente afetadas, buscando, de forma clara, não
prejudicarem os investimentos.
Os procedimentos para o licenciamento ambiental são definidos em leis e
deliberações, com certa flexibilidade de negociação para os conflitos
explicitados, considerando-se que o fórum de decisão é um conselho ' o Conselho
Estadual de Política Ambiental (Copam) ou os Conselhos Municipais de Meio
Ambiente, nos casos de competência decisória no âmbito municipal.9
A regulação do parcelamento do solo
O Estado assumiu, num primeiro momento, uma estratégia de gestão baseada na
produção de leis e normas, sintetizadas a seguir, que constituem a
fundamentação jurídica para atuação do Estado no âmbito urbanístico e
ambiental.
Embora a legislação florestal, a de recursos hídricos e a urbanística, vigentes
no Brasil a partir de meados da década de 30, reunissem condições para regular
a ocupação adequada do solo urbano, normas específicas para o controle da
poluição e da degradação ambiental somente se concretizaram no início da dos
anos 80, influenciadas pelos resultados da Primeira Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972) e pela proposta do II Plano
Nacional de Desenvolvimento (II PND) em 1974.
Logo após a publicação da lei federal sobre o parcelamento do solo urbano ' Lei
n. 6.766/79 ' em 1979, foram elaboradas e aprovadas, na década de 80, as
legislações federal e estadual do meio ambiente, com o objetivo de definir as
diretrizes da política ambiental brasileira. Além da publicação de normas e
padrões de qualidade ambiental, foram definidos como instrumentos de gestão: a
avaliação de impacto ambiental; o zoneamento ambiental; o licenciamento
ambiental; a criação de unidades de conservação; e os conselhos de meio
ambiente, instâncias deliberativas que objetivavam garantir a participação
social no processo decisório. O Estado de Minas Gerais, um dos pioneiros na
gestão ambiental, publicou em 1980 a Lei Estadual n. 7.772, que definiu as
diretrizes para sua atuação na área ambiental e contribuiu para elaboração da
legislação federal, publicada em 1981: a Lei n. 6.938.
O controle da expansão urbana/metropolitana é feito com a participação formal
do Estado, de acordo com as normas vigentes.10 Diretrizes de planejamento
metropolitano, baseadas em parâmetros de análise definidos ainda nas décadas de
70 e 80, vigoram até os dias atuais e não foram atualizadas, desconsiderando o
estágio atual do processo de metropolização de Belo Horizonte e as alterações
introduzidas na legislação urbanística e ambiental.
Agrava essa situação a inexistência de um fórum de debate sobre a região
metropolitana, capaz de subsidiar o planejamento e a gestão municipal, a
elaboração e implementação de planos diretores, ou ainda auxiliar na análise de
processos de licenciamento de atividades urbanas, entre as quais o parcelamento
do solo. O resultado é um processo de expansão urbana fragmentado e
desarticulado, comandado prioritariamente pelos interesses do capital
imobiliário/fundiário, que tem agravado a vulnerabilidade física, ambiental e
urbana da região. Em conseqüência, alguns problemas são desencadeados, podendo-
se citar, entre outros, ocorrência de assentamentos humanos em áreas
ambientalmente frágeis, desatenção à capacidade de suporte do sítio natural e
das estruturas instaladas, intensa especulação imobiliária e ilegalidade da
ocupação de áreas periféricas, insuficiência de serviços públicos,
desarticulação institucional, escassez de recursos humanos e financeiros e
desinformação e omissão da decisão política, resultando na ineficiência do
setor público no controle do processo de expansão urbana e ausência de
mecanismos efetivos de participação social na administração e construção da
metrópole.
O controle das fontes poluidoras11 é realizado mediante o Licenciamento
Ambiental, que avalia a viabilidade ambiental de um empreendimento nas etapas
de planejamento, instalação, funcionamento e ampliação, para a concessão das
respectivas Autorização de Funcionamento e Licenças Prévia ' LP,12 de
Instalação ' LI e de Operação ' LO,13 após apreciação do Conselho Estadual de
Política Ambiental (Copam), fundamentada nos respectivos pareceres técnico e
jurídico.
Para cumprir suas funções, o Copam conta com o suporte técnico dos demais
órgãos que integram o sistema de gestão ambiental em Minas Gerais: a Fundação
Estadual do Meio Ambiente (Feam) e o Instituto Estadual de Florestas (IEF-MG),
que possuem atribuições específicas definidas em lei.14 Embora fossem parceiros
no sistema desde 1998, a atuação desses órgãos vinha sendo feita de forma
desarticulada e às vezes controversa. Esse fato tem gerado críticas da
sociedade civil com relação aos procedimentos e resultados alcançados no
cumprimento de suas funções. De fato, análises mais recentes têm apontado para
mudanças de postura do Copam, inicialmente palco de explicitação de conflitos,
na direção de posturas mais conciliatórias e orientadas para a formação de
consensos (CARNEIRO, 2005).
Em que pesem as críticas aos procedimentos adotados e à morosidade e rigor nas
análises dos processos, na visão dos empreendedores15 o licenciamento ambiental
permite
[...] planejar e implantar de forma sistemática e efetiva as medidas
e sistemas de controle ambiental, propiciando qualidade aos
assentamentos humanos. É a oportunidade do empreendedor avaliar os
riscos e oportunidades do seu empreendimento.
Por outro lado,
[...] obriga que os empreendedores melhorem a qualidade de seus
projetos. [...] Com o nível de exigência alto, somente aqueles que
trabalham corretamente podem permanecer no mercado. E,
conseqüentemente, existe uma elevação na qualidade dos assentamentos
humanos.
Há uma clara ambigüidade entre o discurso dos empreendedores, ao reconhecerem a
importância do licenciamento ambiental, e a prática marcada pela tendência à
implantação dos empreendimentos à margem da legislação vigente, optando pela
ilegalidade como forma de diminuir seus custos e, segundo eles mesmos, reduzir
dessa forma o custo final do seu produto. As características do mercado
fundiário/imobiliário para o qual o produto é direcionado constituem um
elemento importante na composição do preço final e, portanto, na viabilidade
econômica de adoção, por parte do empreendedor, dos parâmetros exigidos pelo
licenciamento ambiental. Dito em outros termos, a realização de empreendimentos
imobiliários com observância dos critérios exigidos garante um determinado
padrão de qualidade ao produto, mas eleva o investimento realizado, encarecendo
o produto final. No limite, chega-se ao paradoxo segundo o qual a observância
da regulação urbanística e ambiental, no caso da atividade imobiliária, agrega
valor ao produto, encarecendo-o e, conseqüentemente, elitizando-o e tornando-
o inacessível para os segmentos mais pobres da população.
A regulação que em princípio deveria garantir padrões mínimos de urbanização
para todos, num contexto de exclusão socioeconômica e de falta de alternativas
habitacionais de massa, ao desencadear o gatilho do preço da terra, acaba por
tornar o acesso à mesma (e à cidade) uma meta ainda mais distante para muitos.
No caso de empreendimentos em áreas de proteção ambiental, em que os atributos
ambientais do meio natural contribuem para o aumento das restrições e cuidados
na realização do parcelamento, acrescenta-se ao processo a renda diferencial
gerada pelo monopólio do usufruto da natureza, materializada como paisagem, o
que contribui para uma espiral ascendente de valorização.
Assim, diferentemente de uma mercadoria produzida em série por uma indústria, o
produto final deste processo de licenciamento de parcelamento do solo é o lote
e, em última análise, o espaço urbano, que se diferencia especialmente pelos
atributos de localização aos quais se atribui uma valoração segundo sua posição
na divisão social e econômica do espaço (LIPIETZ, 1974). A discussão sobre o
licenciamento ambiental de atividades imobiliárias necessita ser articulada com
a compreensão das formas e processos de produção social do espaço, bem como
pela explicitação dos papéis desempenhados e interesses associados a cada um
dos agentes sociais que participam de tal processo (SINGER, 1973; LOJKINE,
1981). Da mesma forma, os procedimentos e metodologias utilizados no
licenciamento necessitam incorporar esta dimensão, sob o risco de se
transformarem em procedimentos inócuos ou em arenas nas quais os debates
explicitados não traduzem os reais conflitos existentes entre os atores. O caso
do licenciamento ambiental do empreendimento Alphaville Lagoa dos Ingleses,
localizado no município de Nova Lima, no eixo-sul de expansão metropolitana de
Belo Horizonte, fornecerá um interessante exemplo destes dilemas.
Licenciamento ambiental no eixo-sul de expansão metropolitana: o caso do
Alphaville 2 em Nova Lima
Antecedentes
Como na maioria dos municípios brasileiros, a aprovação de loteamentos no
município de Nova Lima adotou como referência o Decreto-lei n. 58/37, cujas
exigências limitavam-se à definição dos limites do loteamento, do traçado das
ruas e de um parecer sanitário e militar, se fosse o caso. Na aprovação dos
loteamentos
[...] não se especificavam exigências sanitárias a serem observadas
[...] Os espaços públicos, na prática [...] eram somente as ruas.
Deixavam de exigir equipamentos urbanos e comunitários, tais como
faixas non aedificandi e locais destinados ao lazer, à saúde, à
cultura. Os loteamentos só interessavam ao direito civil. [O que
significava] [...] ressalvar o comprador em seus direitos imediatos
quanto à propriedade imobiliária [...] (MACHADO, 1998, p.117).
Considerações como declividades, tipo de solo, vegetação, nascentes e cursos
d'água não eram analisadas no processo de aprovação. Essa situação produziu, no
território de Nova Lima, ocupação do solo em áreas de risco potencial, sujeitas
a escorregamento de encostas e ocorrência de enchentes nas regiões onde foram
realizadas obras de regularização e canalização de rios, ocupando as várzeas
dos cursos d'água. O descumprimento dos dispositivos do Código Florestal
contribuiu para a ocupação de áreas inadequadas em termos da segurança da
população e evidenciou a ausência de integração entre os órgãos responsáveis
pela aplicação da legislação.
Com a criação da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em 1973, e de seu
órgão de suporte técnico, o Plambel, houve uma tentativa de tratamento conjunto
com os municípios, das questões urbanas e ambientais, particularmente no que se
refere ao controle da expansão urbana, ao transporte público, à habitação e ao
saneamento. No entanto, na década de 80, o sistema de planejamento
metropolitano mostrou sua fragilidade, e essas questões foram tratadas de forma
isolada, embora os potenciais impactos negativos afetassem a região em sua
totalidade. Segundo Mares Guia (2000, p.412),
[...] a crise financeira e o início do processo de redemocratização
vêm expor as brechas político-institucionais do sistema [...] A
carência de recursos públicos tem como conseqüência imediata o
estancamento dos investimentos federais nas regiões metropolitanas
[...] o processo de redemocratização propicia o estabelecimento de
novas relações de poder, fortalecendo novos atores sociais, em
especial as prefeituras e os movimentos sociais.
Somente durante o processo de criação da APA Sul, no período de 1992 a 1994,
evidenciou-se algum fortalecimento dos movimentos sociais na região,
especialmente os ambientalistas, articulados em torno da proteção ambiental e
da formalização da unidade de conservação. Desde os anos 70, em Belo Horizonte,
o movimento ambientalista desempenhou papel ativo na institucionalização da
preservação ambiental, a exemplo do tombamento da Serra do Curral e,
posteriormente, da criação da APA Sul.16 Os insuperáveis conflitos de interesse
envolvendo proprietários fundiários, o setor minerário, os interesses coletivos
e difusos de preservação dos aqüíferos de abastecimento metropolitano e do rico
patrimônio ambiental de forma mais ampla são alguns dos elementos que vêm
retardando o estabelecimento de um Zoneamento Ecológico-Econômico para a APA
(CAMARGOS, 2004; FREITAS, 2004).
A partir de 1994, os primeiros loteamentos foram encaminhados ao licenciamento
ambiental, especialmente aqueles que pretendiam se instalar no município de
Nova Lima, onde ocorreu a maior pressão para ocupação. A participação da Sedru/
MG, que sucedeu a Seplan, nesse sentido foi decisiva, pois vinculou a liberação
da anuência prévia para os loteamentos aí localizados à obtenção da Licença de
Instalação do Copam, segunda etapa do processo de licenciamento ambiental, após
o fornecimento das diretrizes metropolitanas.
O licenciamento de loteamentos em Nova Lima, entretanto, é ainda pouco
representativo no total de licenciamentos do conjunto das atividades
econômicas. Dos 100 empreendimentos localizados no município, licenciados ou em
processo de licenciamento no Copam a partir de 1977,17 foram registradas apenas
dez solicitações de licenciamento ambiental de loteamentos urbanos. Em consulta
ao setor de documentação do Copam, verificou-se que esses empreendimentos
somente foram encaminhados ao licenciamento ambiental a partir de 1995,
portanto após a criação da APA Sul.
Entre os dez loteamentos objeto de solicitação de licenciamento ambiental no
município de Nova Lima, toma-se como referência o empreendimento imobiliário
Alphaville 2, uma expansão do Alphaville Lagoa dos Ingleses (agora denominado
1), loteamento fechado situado às margens da Lagoa dos Ingleses, no interior da
APA Sul. A referência para a análise são os estudos elaborados para o
licenciamento ambiental do empreendimento, exigidos na legislação para
avaliação da viabilidade ambiental de sua implantação.
Alphaville 2: palco de conflitos
O Alphaville Lagoa dos Ingleses, etapa 2, localiza-se na porção sul do
município de Nova Lima, a cerca de 25 km de Belo Horizonte-MG, às margens da
Lagoa dos Ingleses, na proximidade do trevo rodoviário para Ouro Preto, na BR-
040 ' BH/Rio, tendo como acesso principal a rodovia BR-356, sentido Ouro Preto.
A primeira etapa do Alphaville foi aprovada em 1999, compreendendo uma área de
430 hectares, dividida em 1.642 lotes, 1.545 dos quais, com tamanhos variando
entre 700 e 1.500 m², destinados a residências unifamiliares e distribuídos em
unidades muradas independentes, denominadas residenciais. Os demais lotes,
lindeiros ao sistema viário principal, são destinados a atividades terciárias,
com possibilidade de verticalização. Há ainda um conjunto padronizado de 51
casas geminadas, denominadas town houses, além de um centro comercial composto
por 228 lojas e salas. O empreendimento pertence à Alphaville Urbanismo S.A,
empresa que já realizou 31 projetos urbanísticos semelhantes no Brasil. A terra
originalmente pertencia à MBR ' Minerações Brasileiras Reunidas ', detentora de
parcela significativa de terras em Nova Lima, inclusive do entorno do
empreendimento. Segundo os empreendedores, o projeto é "economicamente viável,
ecologicamente correto e urbanisticamente perfeito" (ALPHAVILLE, 2004 apud
LASCHEFSKI, 2006).
O empreendimento foi lançado em março de 1998 e entregue em 2000 com infra-
estrutura completa: ruas asfaltadas e arborizadas, praça com tratamento
paisagístico, áreas verdes preservadas, guaritas de segurança, iluminação
pública, rede de água, estação de tratamento de esgoto e ciclovias. Antes mesmo
do lançamento oficial, 90% dos 1.545 lotes haviam sido vendidos em apenas 90
dias, embora o processo de ocupação, atualmente em torno de 20%, venha se dando
de forma muito mais lenta do que previsto inicialmente. Cerca de metade dos
lotes foi comprada apenas como investimento, o que vem repercutindo na
dificuldade de viabilização econômica das atividades de comércio e serviços lá
instaladas, originalmente atraídas pela previsão de um mercado consumidor muito
mais amplo do que o que existe efetivamente (LASCHEFSKI, 2006; REZENDE, 2004;
VILLASCHI, 2003).
O Alphaville, desde sua primeira etapa, é um empreendimento emblemático para o
licenciamento ambiental de loteamentos, dada a complexidade de sua proposta e
por ser o primeiro empreendimento desse porte a se instalar no interior de uma
unidade de conservação de uso sustentável em Minas Gerais, a APA Sul. Além de
passar por todas as etapas do licenciamento ambiental, pela primeira vez, foram
explicitados os conflitos e os questionamentos sobre a adequação dos estudos
ambientais à realidade urbana.
O EIA/Rima elaborado pela empresa explicita objetivos sobre a busca de
autonomia e o atendimento às diretrizes de desenvolvimento municipal naquele
momento, voltadas para atrair população de alta renda e comércio e serviços
sofisticados.
O porte do empreendimento ' a segunda etapa representa uma área de expansão de
340ha e o projeto completo, quando implantado, corresponderá a uma cidade de
cerca de 27 mil habitantes18 ' e sua pretendida autonomia, definida pela
possibilidade de instalação de atividades de comércio e serviços, colocaram os
órgãos responsáveis pelo licenciamento ambiental diante de uma nova realidade:
o licenciamento de um empreendimento com um número elevado de habitantes,
concentração de serviços sofisticados, áreas homogêneas, que pretendem "[...]
dispensar a cidade" (CALDEIRA, 1997). Embora seja divulgada a imagem de uma
"ilha" de paz, tranqüilidade e segurança, a dependência de mão-de-obra e de
outros centros de comércio e serviços, algumas vezes dos serviços
disponibilizados pela administração municipal, colocam em cheque essa dita
autonomia. Essas questões deram origem a divergências e conflitos entre os
empreendedores, a equipe técnica responsável pelo licenciamento e organizações
da sociedade civil.
Os responsáveis pelo empreendimento advogavam (convenientemente) o tratamento
do projeto urbanístico como uma unidade isolada, conforme idealizado e
divulgado no material promocional do projeto, dispensando, portanto, a análise
prospectiva das relações com os demais núcleos urbanos e a sede municipal. Ou
seja, ao tratar um projeto urbanístico que se instala numa determinada região
como uma unidade autônoma, os empreendedores buscavam diferenciá-lo e, assim,
evitar a adoção dos procedimentos do licenciamento ambiental convencional, como
o de uma atividade industrial, com limites e responsabilidades bem definidas
com relação ao atendimento às exigências, como, por exemplo, aquelas
relacionadas ao destino de efluentes e resíduos.
A aprovação da primeira etapa do empreendimento pelo Copam se fez após uma
série de negociações, mediante uma listagem extensa de condicionantes, e contou
com a participação decisiva de representantes de entidades ambientalistas.
Críticas foram feitas à decisão de aprovar o empreendimento, pois o número de
condicionantes da etapa de concessão de licença prévia significava que não
tinham sido apresentados dados suficientes para a conclusão das análises, ou
que o empreendimento não teria tido sua viabilidade ambiental comprovada.
Durante a primeira etapa de implantação do Alphaville, os empreendedores foram
autuados várias vezes por descumprimento de condicionantes do Copam e por terem
sido iniciadas a comercialização dos lotes e a ocupação do empreendimento sem a
obtenção da licença respectiva. Segundo documentos integrantes do processo
administrativo, até março de 2003, os condicionantes ainda não haviam sido
cumpridos, principalmente aqueles que dependiam da parceria com a Prefeitura
Municipal de Nova Lima, como a instalação de aterro sanitário no município que
receberia os resíduos sólidos gerados no empreendimento. Esses aspectos, entre
outros, foram levantados na audiência pública realizada por solicitação da
Associação Mineira de Defesa do Ambiente ' Amda, durante a análise do EIA-Rima
para a segunda etapa.
No que se refere à etapa 1, o que não podemos deixar de abordar, já
que a licença ambiental, na verdade, é uma concessão da sociedade ao
empreendedor para utilizar recursos naturais que são de todos, é
lembrar que existem condicionantes ainda não cumpridas, citando entre
elas por exemplo, a implantação de reserva florestal e [...] a
destinação final de resíduos sólidos [...] (Relatório da Audiência
Pública do Alphaville 2, realizada em Nova Lima, em 06/05/2004).
Esses antecedentes evidenciam as dificuldades enfrentadas pelo órgão
responsável pela análise ambiental ' Feam ', quando foi protocolada a
solicitação de licença prévia para a etapa 2 do loteamento, objeto desse
estudo.
O foco das discussões é o possível impacto negativo de um parcelamento desse
porte ' uma cidade ' no seu entorno. Como precisar a área indiretamente afetada
após a consolidação do empreendimento e fazer prognósticos quanto ao seu
futuro? Essa discussão foi encaminhada pela Associação Mineira de Defesa do
Ambiente ' Amda, em várias oportunidades, quando cobrou que o Copam deveria
exigir do empreendedor a elaboração de planos diretores para os municípios de
Brumadinho (incluindo-se seu distrito Piedade do Paraopeba) e Itabirito,
considerados os mais afetados pelo empreendimento. Outras entidades
ambientalistas e moradores das redondezas temem a ocorrência de uma
"urbanização descontrolada nos arredores do condomínio", sendo que "um
agravante nesse contexto é o centro comercial projetado para atender, além dos
moradores, também as cidades vizinhas que se situam no entorno de
aproximadamente 15 km.
Em decorrência de todos esses fatores, durante a Audiência Pública, foi
solicitada a elaboração de um Plano Diretor para a região" (LASCHEFSKI, 2006).
Tal temor é bastante presente no caso dos municípios de Brumadinho e Itabirito,
mas é pouco apontado por Nova Lima, por dois motivos: a sede urbana situa-se a
uma distância considerável do empreendimento; e a intensa concentração
fundiária por parte das empresas mineradoras no município, inclusive no entorno
imediato do Alphaville, impede a ocupação por urbanização espontânea. Esta já
começa a ocorrer nos distritos e povoados de Brumadinho (MENDONÇA; PERPÉTUO;
VARGAS, 2004), com tendência a se intensificar principalmente após a
implantação da segunda fase do empreendimento.19 Tais questões de caráter
metropolitano e regional escapam totalmente às exigências do licenciamento
ambiental, fortemente voltado para o interior do empreendimento e, no máximo,
seu entorno imediato.
É bem verdade que não existiam as orientações de um plano diretor de Nova Lima
na ocasião do processo de licenciamento e havia interesse da administração
municipal daquele momento em sua aprovação, pois em várias oportunidades os
representantes do município compareceram às reuniões do Copam para se
manifestarem favoravelmente pela sua aprovação. Curioso ressaltar que, durante
a audiência pública, havia uma faixa de apoio ao empreendimento, assinada pela
então Prefeitura Municipal de Nova Lima, entre as inúmeras outras estendidas
pelas paredes do auditório.
A ausência de diretrizes metropolitanas foi citada em todas as oportunidades,
pois, sem essa referência, os impactos ambientais negativos sobre as estruturas
urbanas ou rurais dos municípios vizinhos são o resultado de especulações sobre
o futuro que os municípios não parecem dispostos a enfrentar.
Uma das questões que dificultam a análise ambiental de loteamentos fechados
refere-se à inexistência de parâmetros urbanísticos tradicionalmente adotados
para sua aprovação, como, por exemplo, livre circulação da população,
existência de áreas públicas e independência vinculada a uma autogestão que na
prática não existe. Quem fará a coleta e o destino final do lixo urbano? De
quem é a responsabilidade pelo atendimento à demanda por transporte público,
ensino fundamental, postos de saúde?
O Estado, como agente regulador, tem contribuído para a manutenção dessas
pseudo "ilhas urbanas", homogêneas e desarticuladas. A atuação do capital
imobiliário na região tem disseminado "uma cultura da moradia essencialmente
antiurbana, alimentada simultaneamente pelo sonho do retorno à natureza e pela
ilusão da segurança nos condomínios fechados" (COSTA, 2003, p.159).
A chamada auto-segregação da população de alta renda é uma tendência observada
no processo de ocupação do espaço no eixo sul da RMBH.20 Entretanto, isso não
significa que os condomínios sejam excluídos dos mecanismos de regulação do
Estado, mesmo que este assuma, com freqüência, o papel de coadjuvante no
processo.
O lançamento do Alphaville 2 surge quando algumas das condicionantes do
licenciamento ambiental da etapa 1 não haviam sido cumpridas, embora já tivesse
iniciado o processo de ocupação da área. Voltam à tona as mesmas preocupações
que já haviam estado no centro do debate sobre a viabilidade ambiental do
Alphaville 1: qual o impacto regional de um empreendimento desse tipo, em que
pese sua lenta ocupação, particularmente nos povoados tradicionais existentes
no entorno e no acréscimo de tráfego na rodovia, sua principal via de acesso?
Não seria esse um impacto ambiental negativo de magnitude tal que
inviabilizasse sua implantação? No caso de Nova Lima, essa colocação é
particularmente pertinente. Considerando a realidade de seu meio físico e a
decisão de tornar a região uma unidade de conservação de uso sustentável, como
superar os conflitos?
A história do Alphaville 2 tem início no processo conflituoso que marcou a
primeira etapa. De acordo com Acselrad (2004, p.26), esse conflito, como tantos
outros, tem a ver com o rompimento do "acordo simbiótico" entre as diferentes
práticas sociais dispostas no espaço, "em função da denúncia de efeitos
indesejáveis da atividade de um dos agentes sobre as condições materiais dos
exercícios das práticas de outros agentes". Entretanto, para alguns autores,
essa certeza sobre os efeitos indesejáveis de uma atividade sobre o ambiente
está quase sempre repleta de valores morais ou de disposições legais, mais do
que de certezas técnicas, pois, segundo Ewald (1992), as generalizações na área
ambiental têm a ver com um debate sobre valores e não sobre respostas
definitivas.
A oportunidade que a audiência pública convocada pela Amda deu a todos ' setor
público, comunidade ou o próprio mercado ' foi a de ver explicitados, naquela
oportunidade, o jogo de forças e as relações de poder que surgem no
licenciamento ambiental de um parcelamento do solo urbano. A população
diretamente afetada pelo empreendimento tem seu fórum especial de participação
na audiência pública, podendo influenciar na concessão da licença ambiental
prévia dos empreendimentos, embora em muitos casos seja uma mera formalidade.
No caso do Alphaville 2, a audiência pública, realizada depois de cerca de dois
anos em que o processo estava em análise, ocorreu quando uma série de decisões
e negociações já estava em curso, tendo em vista uma falha do empreendedor na
formalização do processo, possibilitando então a solicitação, por parte da
Amda, de realização da audiência, o que foi acatado pelo Copam.
Do ponto de vista dos empreendedores, o licenciamento ambiental é um processo
muito lento que torna inviáveis empreendimentos dessa natureza, tendo em vista
o montante de recursos investidos. Ou seja, segundo os empreendedores, a
aprovação e implantação da etapa I já evidenciavam a viabilidade ambiental da
etapa II. Essa associação levanta a discussão sobre o efeito cumulativo do
empreendimento para o ambiente diretamente afetado e seu entorno, tendo em
vista que não há referência de sua capacidade de suporte.
A imprensa publicou várias notícias sobre a audiência pública, pois ficou
demonstrado na comunidade que as opiniões eram divergentes quanto aos
benefícios para a região.
Expansão da Alphaville II é polêmica
A Lagoa dos Ingleses Empreendimentos Imobiliários realiza hoje, às
14h30, audiência pública no auditório do Sebrae, em Nova Lima, Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), para elucidar o projeto de
expansão Alphaville II, vinculado ao empreendimento Alphaville Lagoa
dos Ingleses. A sessão foi requerida pela Associação Mineira de
Defesa do Meio Ambiente (Amda), alegando estarem incompletos e
desatualizados os estudos de impacto ambiental feitos pela
empreendedora. De acordo com a superintendente executiva da entidade,
Maria Dalce Ricas, a intenção da Amda é entregar um documento ao
Conselho de Política Ambiental (Copam), relativo à primeira etapa do
Alphaville Lagoa dos Ingleses ' localizado no entroncamento da BR-356
com BR-040 ', retificando e fornecendo mais informações sobre "a
fragilidade" dos estudos ambientais que o empreendedor forneceu à
época (1997) (Diário do Comércio, 06/05/2004).
Várias questões foram levantadas naquela oportunidade, tais como porte do
empreendimento, extensão do impacto regional, capacidade de suporte da lagoa
para um novo uso de recreação e lazer às suas margens, tratamento dos esgotos,
coleta e destino final dos resíduos, efeito, sobre a vazão da lagoa, da
impermeabilização prevista no sistema viário e na ocupação dos terrenos,
impacto, sobre a fauna local, da interferência nos seu habitat, impactos da
geração e atração de tráfego sobre a rodovia BR-040, quando da plena ocupação
do empreendimento, e, finalmente, discussão sobre os muros que confirmam o seu
isolamento do entorno.
É possível o licenciamento ambiental discutir a viabilidade ambiental de
empreendimentos sem a definição prévia do município de seu zoneamento de uso e
ocupação do solo? A conclusão de avaliação de impacto ambiental fica
prejudicada em termos socioeconômicos quando não se sabe qual projeto o
município tem para a ocupação de seu território?
Os empreendedores e os analistas ambientais responsáveis pelos estudos técnicos
referentes ao licenciamento ambiental entrevistados (PEIXOTO, 2005) concordam
sobre a importância das definições referentes ao uso e à ocupação do solo pelos
governos locais no processo, como se registra a seguir:
Um município que tenha planejamento facilita o processo de análise da
viabilidade ambiental dos loteamentos. O Plano Diretor da cidade e
sua legislação complementar deveriam nortear o Plano de Negócio do
empreendimento e principalmente o uso do solo urbano (entrevista com
empreendedor, 2004).
O planejamento municipal forneceria aos analistas vários dos
parâmetros mencionados, notadamente o zoneamento municipal, que
indicaria áreas passíveis de ocupação, onde as perdas inevitáveis de
recursos naturais sejam suportáveis para o município (entrevista com
analista ambiental, 2004).
Em 20 de maio de 2004, o parecer técnico decorrente da análise do EIA/Rima
sobre o licenciamento ambiental da etapa 2 do Alphaville foi encaminhado ao
Conselho Consultivo da APA Sul, reunido em caráter extraordinário, tendo em
vista que a manifestação do Conselho é condição para o encaminhamento do
processo à Câmara de Atividades de Infra-estrutura ' CIF/Copam, uma das sete
câmaras especializadas que integram a estrutura do Copam.21
Ao mesmo tempo, as organizações não-governamentais envolvidas na discussão,22
representadas pela Amda, deram continuidade à mobilização em torno do
licenciamento ambiental do Alphaville 2, divulgando na imprensa e em seu portal
na Internet informações sobre o andamento do processo e sobre os possíveis
impactos do empreendimento em sua área de influência.
No portal da Amda,23 foi veiculada a notícia: "Prefeitura de Nova Lima
pressiona Conselho da APA Sul", deixando claro que "o único interesse da
Prefeitura no licenciamento da etapa II do Alphaville é econômico,
especialmente em decorrência da grande parcela de IPTU que o município passará
a arrecadar." O portal registra que o empreendimento será implantado numa
região que já sofre impacto de outros projetos imobiliários e do turismo
predatório, que "não podem ser quantificados, são irreversíveis e em sua maior
parte não são mitigáveis e infinitamente maiores que a atividade mineradora"
(AMDA/ASSESSORIA DE IMPRENSA, 21/05/2004).
As questões levantadas pela Amda são pertinentes. Na ausência do suporte do
planejamento local e regional, as decisões do licenciamento ficam restritas ao
controle da degradação ambiental com a implantação e ocupação dos loteamentos,
particularmente no que diz respeito ao saneamento básico, à geração de
resíduos, drenagem pluvial e ao cumprimento das normas ambientais e
urbanísticas porventura existentes. Por trás da gestão ambiental e da aplicação
de seus instrumentos está, como afirma Jacobi (2002, p. 384), "a forma como as
pessoas percebem ou não a existência de agravos ambientais, as interrelações
que os moradores estabelecem com esses agravos e as soluções propostas para a
resolução de problemas".
O desdobramento desta posição, noticiado pela imprensa, foi o recurso
administrativo impetrado pela Amda junto ao plenário do Conselho de Política
Ambiental ' Copam contra decisão da Câmara de Infra-Estrutura ' CIF, que
concedeu Licença de Instalação à expansão do Alphaville, no dia 08/07/2005. No
recurso apresentado, a entidade solicita ampliação dos estudos ambientais, de
forma a contemplar os "impactos radiais" do empreendimento, além de questionar
a ausência de parecer técnico do IEF quanto aos impactos ambientais sobre a
flora e a fauna e alertar sobre o descumprimento de condicionantes da primeira
etapa. Um item interessante que traz novamente à tona a discussão sobre a
gestão refere-se à responsabilidade quanto à implantação de aterro sanitário,
originalmente do empreendedor, mas posteriormente repassado por convênio à
Prefeitura de Nova Lima. Tal convênio, entretanto, não fornece à prefeitura
condições de realizar a obra. O Estado, através da CIF do Copam, não entra na
questão por entender que se tratar de um problema entre prefeitura e
empreendedor, o que é contestado pela Amda.
Enquanto se discutia no Copam o licenciamento ambiental do Alphaville 2, outros
empreendimentos imobiliários localizados no município de Nova Lima eram
analisados, sem a mesma polêmica gerada pelo Alphaville. Mesmo município,
mesmas restrições ambientais, maiores ou menores restrições com relação ao
relevo a às condições de solo e prevendo escalas diferenciadas de efeitos
ambientais negativos em sua área de influência. Diferentes abordagens, embora
se tratasse de realidades ambientais semelhantes. O que mudou? Buscar essa
resposta pode conduzir à identificação das fragilidades do licenciamento
ambiental e indicar formas para usar todo o seu potencial na prática da gestão
territorial.
Considerações finais
Embora as legislações ambiental e urbana tenham evoluído no sentido de maior
articulação entre elas, observa-se que há um longo caminho a ser percorrido,
apesar dos evidentes ganhos. Os mecanismos de regulação ambiental, pensados
para atividades produtivas convencionais, são ainda frágeis para lidar com a
produção do espaço urbano, em especial nas periferias urbanas (pobres ou
ricas), em contextos de ausência de instrumentos de planejamento supralocal ou
metropolitano. Os procedimentos usuais da legislação ambiental, como o
licenciamento, mostram-se pouco adequados para o trato da complexidade da
expansão urbana. Por outro lado, a existência de audiências públicas, ainda que
de forma limitada, vem possibilitando a explicitação de conflitos e o
aparecimento de possibilidades de alianças.
A inserção das questões urbanas na regulação ambiental está ainda em fase
inicial, pois com freqüência a cidade é tratada como um dos principais agentes
de degradação ambiental e, por isso, os conflitos decorrentes da oposição da
cidade ao ambiente no processo de licenciamento resultam da concepção que ainda
prevalece de existência de uma natureza natural, objeto central de preservação.
Como afirma um analista ambiental: "uma das dificuldades de aprovar um projeto
urbanístico no Copam decorre do fato de que a maioria dos técnicos que
trabalham no licenciamento ambiental não gosta da cidade".24
O não gostar da cidade evidencia as dificuldades observadas na prática da
gestão ambiental, quanto o objeto de licenciamento é a expansão urbana.
Contudo, essa não é uma opinião geral, embora predomine, nessa prática e na
legislação que lhe dá suporte, a defesa de uma natureza "natural", que
dificilmente existe. Associar os problemas ambientais à produção do espaço
urbano indica, por outro lado, a necessidade de refletir sobre as origens dessa
relação, que reproduz as rupturas entre o homem e a natureza, evidenciada pelo
fato de a natureza estar progressivamente perdendo seu valor de uso para ser
tratada como mercadoria e elemento que agrega valor ao espaço produzido. A
atuação do Estado tem se voltado para a ampliação de sua função normativa e de
controle, estabelecendo novos procedimentos, revendo e atualizando sua
legislação. Mas essa atuação se realiza sem que se interfira nas questões de
fundo associadas às condições de reprodução social em termos amplos. Sempre
vale recordar que em uma sociedade de classes o "Estado age [...] de acordo com
as relações de força entre as classes e grupos sociais, geralmente em favor da
fração hegemônica das classes dominantes" (CASTELLS, 1978, p. 3).
Finalmente, ainda no que se refere aos conflitos socioambientais envolvendo a
atividade imobiliária, muitas vezes nem sequer caracterizados como tal, a
participação dos grupos sociais é bastante diversificada e cheia de
ambigüidades. Não há uma definição clara da figura do atingido, do grupo social
que perde com o empreendimento, como na implantação de barragens ou em outros
conflitos derivados de injustiças ambientais. Existe, muitas vezes, a
identificação dos grupos sociais consumidores dos produtos ' as moradias, os
lotes, o loteamento fechado "seguro" e exclusivo ' com as posições dos
empreendedores. Tais grupos, usualmente, ao se verem como investidores, apóiam
ações que podem apontar para ganhos patrimoniais, mas, dependendo das
circunstâncias, podem ver na regulação urbanística/ambiental, ou seja, no
Estado, uma garantia de qualidade do investimento imobiliário realizado. Neste
sentido, o licenciamento pode transformar-se numa "certificação ambiental".
Os grupos sociais indiretamente atingidos pelas transformações sociais e
espaciais decorrentes do empreendimento podem representar interesses difusos,
cujas possibilidades de alianças com outros grupos dependerão de cada contexto
específico. A naturalização das relações de propriedade faz a desigualdade no
acesso à terra e à habitação parecer apenas uma questão fruto das disparidades
sociais, o que é parcialmente verdadeiro. A noção de que a reprodução dos
espaços cada vez mais elitizados e segregados contribui para a elevação dos
patamares de valorização fundiária e, conseqüentemente, para alimentar a
exclusão não é clara para a maioria da população. Aliás, corresponde a um nível
de abstração tão grande quanto a noção de função social de propriedade presente
na Constituição de 1988 e, em grande parte, da política territorial urbana
desde então.