Sobre regimes demográficos restritos: comportamento reprodutivo e cultura
familiar entre os ucranianos no meio rural paranaense (1895-1980)
Introdução1
Em termos demográficos, todas as mudanças ocorridas na distribuição
espacial da população através do tempo podem ser atribuídas a
combinações variáveis de crescimento vegetativo e migrações. [...]
Para nossos efeitos, o importante é que a redução generalizada no
ritmo de crescimento populacional observada na década de 80 reflete a
forte queda da fecundidade. Esta foi iniciada no final da década de
60, generalizada para todas as regiões e classes sociais na de 70, e
acentuada no seu ritmo durante a década de 80. (Martine, 1994, p. 8)
Com essas palavras, George Martine resume o processo de transformação
demográfica da sociedade brasileira nas últimas décadas do século XX, cuja
dinâmica foi, em grande parte, tributária à redução da fecundidade. Para o
autor, já em meados da década de 90, persistia "não somente a manutenção da
queda [da fecundidade], mas também o fato dela ter se processado a um dos
ritmos mais acelerados já vistos entre países de dimensões continentais"
(MARTINE, 1994, p. 5).
O declínio da fecundidade no Brasil pode ser acompanhado em estudo de Oliveira,
Albuquerque e Lins (2004), que avaliaram e corrigiram parâmetros de projeção
demográfica realizada pelo IBGE, valendo-se dos resultados do Censo Demográfico
de 2000, das Estatísticas de Registros Vitais para 1999, 2000 e 2001 e da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2001. Os resultados destacam a
vertiginosa queda do número médio de filhos por mulher, no Brasil, na segunda
metade do século XX, o que se concretiza na crescente diminuição da taxa de
fecundidade total.
Para visualizar tais transformações, no presente trabalho foram considerados
esses indicadores e isolados aqueles relativos ao período 1950 a 2000. Desse
recorte, em agrupamentos qüinqüenais, resultou a Tabela_1.
Na Tabela_1 observa-se que, até meados da década de 60, a TFT manteve-se
ligeiramente superior a seis filhos por mulher. Entretanto, os resultados do
Censo Demográfico de 1970 mostraram redução neste indicador (5,76 filhos por
mulher), como reflexo da acentuada diminuição da fecundidade no Sudeste. Por se
tratar da parte mais urbanizada do país, as mulheres do Sudeste tiveram acesso
precoce aos meios anticoncepcionais existentes para evitar uma gravidez não
desejada. Além disso, o parque industrial e a rede de comércio e serviços
absorveram um número crescente de mão-de-obra feminina, o que favoreceu a essa
região ter sido a primeira a experimentar uma redução significativa no nível da
fecundidade: quase 2 filhos de 1960 para 1970. Nas demais, o início da
transição da fecundidade de altos para baixos níveis começou nos anos 70 e foi
constante nas décadas seguintes, muito em função das transformações na
sociedade brasileira, de modo geral, e na própria família, de maneira mais
particular. Com isso, a fecundidade, em 1991, já se posicionava em 2,89 filhos
por mulher e, em 2000, em 2,39. Finalmente, as Estatísticas Vitais do IBGE para
2004 mostram que, nesse ano, o Sul e o Centro-Oeste passaram a ombrear com o
Sudeste, à medida que as três regiões apresentaram as menores taxas de
fecundidade e, assim, as maiores reduções nos totais dos nascimentos estimados
(OLIVEIRA; ALBUQUERQUE; LINS, 2004, p. 58).
As explicações para essas transformações, em particular a precocidade da região
Sudeste em controlar fortemente a fecundidade, estão pautadas em sua maior
exposição aos efeitos da modernização geral da sociedade. É sabido que a
redução nos níveis de fecundidade não apenas no Brasil, mas em todos os países
que apresentaram tal decréscimo, ocorreu a partir da disseminação de "um mínimo
de desenvolvimento e de modernização". Se aceita essa premissa, deve-se
concordar que, "para alcançar uma redução significativa e acelerada do
crescimento populacional, é preciso haver desenvolvimento", pois "o essencial
nessa equação são as perspectivas do desenvolvimento e não o controle
populacional" (MARTINE,1993, p. 13).
A relação entre progresso e padrão reprodutivo assume relevo quando se comparam
diversas regiões do mundo. Os dados fornecidos pela Organização das Nações
Unidades permitem avaliar tal relação, pois agrupam perfis populacionais sob
diversos critérios. A Tabela_2 apresenta as taxas de fecundidade para o mundo,
no período 1950-2000, segundo a localização geográfica da população e
indicadores socioeconômicos, pelos quais a Divisão de População da ONU define
as regiões mais ou menos desenvolvidas no planeta.
Se comparadas as taxas apresentadas nas Tabelas_1 e 2, verifica-se que o
gradativo declínio no Brasil seguiu a tendência internacional rumo ao ZGP (zero
population growth), considerado ideal a ser atingido no período 1960-1970
(CARVALHO, 2001, p.7). Focalizando apenas a Tabela_2, o comportamento fecundo
das brasileiras está incluído em duas colunas. Por uma delas, América Latina e
Caribe, pode-se constatar que, até os anos 70, a fecundidade no Brasil seria
das mais altas, pois as taxas brasileiras estão acima da média da região.
Depois dessa década há um descenso acelerado, levando o Brasil a exibir, no
final do período observado, uma taxa de 2,45 filhos por mulher, levemente
abaixo dos 2,75 registrados para América Latina e Caribe. Já no que tange a sua
presença entre os Países com menor desenvolvimento, os indicadores brasileiros
reiteram claramente que a mudança no comportamento reprodutivo se deu nas
décadas de 60 e 70, tornando evidente a mudança estrutural no comportamento
reprodutivo médio do país.
Todos esses elementos evidenciam que a dinâmica populacional é um instigante
campo de observação. E deles derivam o objetivo desse estudo, que é contrapor
os indicadores das macroanálises produzidas pelo IBGE e pela ONU com aqueles
elaborados em perspectiva microanalítica, derivados do acompanhamento do
comportamento demográfico de um grupo de imigrantes instalado no sul do Paraná,
em 1895, na Colônia Antonio Olyntho (ANDREAZZA, 1999). Trata-se de um estudo
histórico, que incluiu entrevistas com moradores da comunidade, realizadas na
década de 90, e coleta de dados dos ciclos vital e matrimonial nas atas
paroquiais, para o período entre 1895 e 1980. Os dados foram processados pelo
Système de Gestion et d'Analyse de Population, softwarepara análise de
população, conforme a metodologia Henry/Fleury. As informações referem-se a
8.867 indivíduos (4.443 homens e 4.424 mulheres), ao longo de 85 anos,
separados em duas coortes: 1895-1949 e 1950-1980. A discrepância cronológica
entre elas deveuse à busca de simetria entre as uniões MF: a coorte 1 possui
281 uniões MF de um total de 1.301 casamentos; e a coorte 2 tem 244 uniões MF
de um total de 733 matrimônios. Vale lembrar que, na metodologia Henry/Fleury,
as uniões MF são aquelas em que se têm as datas do nascimento da mãe, do
casamento e do fim da união, marcado pela morte de um dos cônjuges.
É importante esclarecer que não se pretende contestar os indicadores produzidos
por instituições que detêm alta competência na área demográfica. Sabe-se,
porém, que uma parcela dos estudiosos mantém cautelosa euforia com o declínio
da fecundidade, por entenderem que existem médias que dissimulam contrastes
profundos dispersos pelos variados rincões do Brasil, podendo haver
pronunciadas variações no padrão reprodutivo quando as investigações analisam
segmentos específicos.
Nessa linha, esse estudo serve para destacar uma variação "no comportamento
fecundo brasileiro", ao analisar as especificidade verificadas numa comunidade
imigrante - em um bolsão populacional isolado, como tantos outros dispersos
pelo Brasil. O que se pretende realçar é que as decisões reprodutivas são
suscetíveis a diferentes e variadas coerções que partem da ordem biológica e
alçam a cultural. De fato, na coexistência de uma multiplicidade de atitudes
sociais em face da constituição de prole, estão imbricadas no mínimo escolhas
íntimas das mulheres, estratégias adotadas pelos casais, normas religiosas e
culturais e a eficácia de políticas públicas concernentes à educação e
programas de saúde.
Dado o exposto, manter a discussão que se segue significa assumir que a
fecundidade é precioso indicador para avaliar concepções sociais quanto à
reposição geracional. Mais diretamente, entende-se que o perfil reprodutivo de
um grupo detém ampla imbricação com o sistema familiar praticado que, por sua
vez, tem a ver com o conjunto (variável) de funções desempenhadas pela família
numa determinada região ou grupo social. Nessa linha, o comportamento fecundo
se desenvolve em enquadramentos sociais específicos - no âmbito de certo
sistema familiar - "que detém importância capital para a determinação da
dinâmica demográfica" (ROWLAND, 1997, p. 14). Tendo isso em vista, torna-se
proibitivo supor trajetórias lineares e homogêneas para as transformações
demográficas e impõe-se reconhecer que nas diversas temporalidades históricas,
incluindo-se as atuais, coexistem diversas organizações sociais da reprodução.
Particularmente entre as populações rurais, há um poderoso fator de inércia a
impulsionar a reprodução temporal de um sistema familiar (e nele, é obvio,
inclui-se o padrão reprodutivo).
Os imigrantes e os estímulos para sua vinda ao Brasil
Como já mencionado anteriormente, o grupo focalizado nesse estudo é o dos
ucranianos emigrados em 1895 e instalados na colônia rural de Antonio Olyntho
(PR), que formavam um contingente pequeno, de pouco mais de 2.000 pessoas,
originárias da região da Galícia que hoje corresponde à Ucrânia.
No leste europeu, as relações feudais foram legalmente abolidas apenas na
esteira das revoluções de 1848. Mesmo assim, em função das dificuldades que o
campesinato experimentava desde que foi liberado da condição servil, no final
da década de 1800 a servidão era uma memória poderosa.
De maneira geral, os nobres, proprietários de mais de 40% das terras da região,
continuaram a exigir pagamento em trabalho ou em dinheiro para que os
camponeses utilizassem as terras até então comunitárias. E eles não eram
poucos, pois um censo já em 1902 mostrou que mais da metade das famílias
camponesas da Galícia radicava-se em latifúndios da nobreza (HIMKA,1988, p.
146-147). Todavia, suas respostas às exigências senhoriais foi o uso ilegal das
terras rústicas e dos pastos. Para se avaliarem as dimensões do conflito, entre
1850 e 1900, apelações sobre os direitos "servis" apareceram em 984 aldeias
galicianas: destas, 90% localizavam-se na Galícia Oriental (HIMKA, 1988, p. 46-
49).
De fato, alguns estudos destacam que a forma tradicional das relações de
trabalho na Galícia era marcada pelas opressivas cobranças das obrigações
servis, o que não gerava incentivos ao trabalho: tudo o que podia mover o
camponês para o serviço era a coerção. Porém, sublinha-se que eles opunham
resistência à servidão por diversas formas: enviando para as autoridades do
Império relatos dos abusos cometidos pelos senhores das terras e pelos oficiais
do exército; trabalhando na medida suficiente para escapar do chicote; usando
mais tempo que o necessário para a execução das tarefas; ou ainda escolhendo os
piores animais e ferramentas em dias de corvéia. Além da violência, outro
componente básico que mantinha o sistema servil era a concepção, pelas elites
locais, de que os camponeses eram todos "brutos". Tal representação era
associada a outra: a de um campesinato analfabeto e preso a uma visão de mundo
tradicional.
Todavia, mesmo nessas condições, é inegável que a criação do campesinato livre
fez emergir duas orientações nas relações de trabalho daquela sociedade: uma
herdeira do passado e outra aberta à modernização que vinha do Ocidente. A
partir de 1870, ocorreu o incremento da economia de mercado, implementada,
porém, muito lentamente. Prova disso foi a parca urbanização, dado que, já em
finais da década de 1890, menos de 16% da população morava em cidades.
Nessas condições, nas últimas décadas do século XIX, a Galícia era um mundo em
transição. A gradativa modernização das relações de trabalho, a expansão da
economia capitalista e a ação dos movimentos nacionalistas e populistas que
visavam promover o campesinato não tiveram, até o final da década de 1890,
tempo suficiente para derrubar o peculiar tradicionalismo de seus
comportamentos sociais.
De forma geral, os estudos da organização familiar naquela região apontam que
sua lógica não abrigava a individualização. O campesinato ucraniano preservou,
efetivamente, grande parte de sua cultura, fundada na convivência comunitária e
familiar, até o início do século XX. Os fundamentos dessa cultura garantiam a
reprodução social nos moldes tradicionais e era passada de geração em geração
na forma de provérbios, canções e histórias que reiteravam a legitimidade de se
reproduzirem práticas ancestrais (HIMKA, 1988, p. 196). De fato, os galicianos
viviam segundo formas ancestrais e, por isso mesmo, em meados da década de
1890, quando emigraram para o Brasil, trouxeram uma visão de mundo
essencialmente camponesa e tradicional.
A criação de um grupo culturalmente homogêneo
O assentamento em pequenas propriedades rurais foi o modelo vigente para
estabelecer imigrantes nos Estados do Sul do Brasil. Cada família recebia um
lote de aproximadamente dez alqueires, dispersos pela mata nativa, já que as
terras abertas eram mantidas para os latifundiários pecuaristas. Esses lotes
dispersavam-se em caminhos vicinais, cuja função era favorecer o trânsito
regional e ligar as diversas áreas da colônia à sede, que compreendia um
pequeno povoado concentrando a administração colonial, a igreja, a escola,
algum comércio e, gradativamente, os demais serviços públicos. Juntamente com
os ucranianos, foram encaminhados para Antonio Olyntho imigrantes poloneses e
poucos italianos, além de pessoas que migraram dentro do país. Porém, a adesão
dos ucranianos ao catolicismo uniata os distanciou dos demais grupos que
seguiam o catolicismo romano, o que serviu, desde os primórdios da colônia,
para demarcar severa fronteira etno-cultural. Suas especificidades religiosas e
o fato de Antonio Olyntho ter sido uma colônia rural com relativo isolamento na
sociedade paranaense, no mínimo até 1970, quando começou a interiorização da
rede rodoviária, facilitaram sua concentração espacial, bem como a freqüência a
uma única paróquia: Nossa Senhora da Conceição.
Esses fatores forneceram condições ideais para empreender uma reconstituição
das famílias, neste estudo. Juntamente com entrevistas e documentação variada,
foi possível recompor a lógica do sistema familiar dos imigrantes e de seus
descendentes ao longo de um século. A hipótese foi de que a emigração
favoreceria a reformulação da rede de significados do grupo, impondo
transformações na formação familiar. Com isso, o objetivo fixou-se na tentativa
de captar a medida e o ritmo dessas mudanças. A premissa que sustentou esse
objetivo foi a de que o exercício de um sistema familiar conforma expressão
concreta de uma cultura. Daí, apreender sua morfologia e mapear as
transformações ocorridas durante 100 anos equivale a recompor a transformação
de uma visão de mundo. Se, nos campos da Galícia, eles criaram um sistema
familiar, tornou-se questão investigativa perceber até quando esse sistema
pautado em uma experiência camponesa teve eficácia; quando e se ele encontrou
dificuldades para seu exercício na terra de adoção; e como se apresentava esse
sistema 100 anos após a imigração.
Casar e procriar
Na trajetória de vida das moças e rapazes ucranianos e seus descendentes
estabelecidos na colônia Antonio Olyntho, o casamento era uma das alternativas
mais prováveis. Os filhos dos pioneiros perceberam, inclusive, o valor da
família enquanto unidade para o trabalho, já que viveram com seus pais o
desenraizamento geográfico e as dificuldades para organizar uma nova vida.
Nesse aspecto, o depoimento de um homem com memória dos primeiros tempos
enfatiza que as pessoas "sem família não tinham condições de se instalarem na
colônia". Portanto, a ajuda de um núcleo familiar conformava condição
necessária para vencer as dificuldades iniciais para o estabelecimento dos
imigrantes. De fato, a partir do acompanhamento das trajetórias de vida de
rapazes presentes nas listagens dos emigrantes e com idade para casar,
verificou-se que aqueles radicados na casa de seus pais demoraram de três a
cinco anos para se casarem, enquanto os que se tornaram proprietários de lotes
morando sozinhos casaram-se num prazo menor, ou migraram da colônia.
Esses jovens, quando comparados com o padrão europeu ocidental de casamento,
uniam-se relativamentecedo (HAJNAL,1965). Entre 1895 e 1949, conforme a Tabela
3, as moças casavam-se, em média, aos 21 e os rapazes, aos 25,4 anos. Tal
padrão de idade só modificou-se a partir da terceira geração nascida no Brasil:
elevou-se para 24,2 anos entre as moças e para 27,5 anos entre os rapazes, após
1950 (Tabela_4). O cálculo das idades médias de ambas as tabelas considerou
apenas o casamento entre celibatários. No entanto, quando se incluem também
recasamentos não há uma alteração substantiva nas idades médias dos cônjuges:
21,3 anos para as mulheres e 25,9 anos para os homens, na primeira coorte, e
24,5 e 27,9 anos, respectivamente, na segunda coorte.
Assim, na primeira coorte, as moças casavam-se, preferencialmente, entre 15 e
24 anos (52%); na segunda, essa concentração dilatou-se por mais quatro anos.
De qualquer maneira, as noivas entre 15 e 19 anos, que na primeira coorte
representavam 29,1%, ainda constituíam uma parcela considerável na segunda
(26%), ou seja, a partir de 1950. Como novidades na segunda coorte, têm-se o
maior número de noivas entre 20 e 24 anos e a ocorrência de primeiro casamento
em todas as faixas etárias, inclusive 3% deles envolvendo mulheres acima de 45
anos. Já entre os rapazes da primeira coorte, a concentração dos casamentos
ocorria dos 20 aos 29 anos, passando para a faixa de 20 a 34 anos, na segunda
coorte. Dessa maneira, até 1950, 89,7% dos rapazes já estavam casados ao
completarem 30 anos; na segunda, com a elevação da idade média ao casar, esse
número decresceu para 77,5%. Pode-se observar também que, na primeira coorte,
8% dos rapazes casavam-se entre 30 e 34 anos; na segunda, esse percentual já
era de 13,2%.
Por isso, na primeira coorte, os casais mais freqüentes, em seu primeiro
casamento, eram aqueles formados por uma noiva de 15 a 19 anos e um rapaz entre
20 e 24 anos. Essa freqüência simplesmente reitera a manutenção do hábito da
constituição de casais em idades precoces. A partir de 1950, esse quadro tem
uma pequena modificação com uma maior dispersão à direita, apesar de o casal
mais freqüente ainda ser aquele em que ambos os noivos estavam na faixa de 20-
24 anos.2
Sabendo-se da origem sociocultural dos imigrantes fixados em Antonio Olyntho, a
constatação de idades mais ou menos precoces na primeira coorte indicaria que
eles mantiveram o padrão de nupcialidade camponês oriental, conforme sugerido
por Hajnal tomando como indicadores as idades do casamento e a freqüência do
celibato definitivo (HAJNAL, 1965, p. 101-140). A esse respeito, Bideau (1984,
p. 50-51) indicou:
nenhuma outra população não européia apresenta modelo de casamento
comparável [ao europeu ocidental]. Todavia este modelo não pode ser
generalizado para toda a Europa; de fato, ele só cobre os países da
cristandade latina. A Europa oriental conheceu modelo diferente. Por
exemplo, por volta de 1900, dois terços das mulheres da Europa
Ocidental são ainda solteiras, aos 20-24 anos, enquanto na Europa
Oriental três quartos delas já estão casadas nesta idade. Aos 45-49
anos o celibato definitivo é cinco vezes mais elevado entre as
mulheres européias do Ocidente.
Como se sabe, as populações rurais eram, e muitas delas continuam sendo,
organizadas de maneira a exercer fortes pressões em seus componentes para se
reproduzirem (BOSERUP, 1987). No caso das gerações de imigrantes analisados, os
estudos que focalizam a formação familiar na região de onde emigraram indicam a
prática do "casamento oriental" até o início do século XX. Nessa linha, os que
se fixaram em Antonio Olyntho mantiveram-se, mesmo sob as novas condições no
Brasil, produzindo famílias numerosas, expressas nas altas taxas de fecundidade
"legítima" (e não a geral) do grupo em ambas as coortes.
As Tabelas_5 e 6 destacam que as imigrantes, entre 1895 e 1949, casavam-se em
torno dos 20 anos e, ao longo de seus ciclos familiares, davam à luz de 8 a 9
filhos. Já a partir de 1950, passaram a se casar mais velhas, por volta de 24
anos, e diminuíram para sete o número de sua prole. Esses números atingem
valores maiores quando se observa a taxa de fecundidade por intervalo de idade
ao casar: por exemplo, as moças que se casaram dos 15 aos 19 anos apresentaram
descendência completa de dez filhos em ambas as coortes, quando a taxa bruta
brasileira já havia declinado para 6,8 filhos desde 1950.
Da mesma forma, as moças da faixa 20-24 anos - maior concentração de noivas na
segunda coorte - apresentaram a mesma descendência final das casadas na coorte
anterior, em clara demonstração de que a mudança na idade ao casar não
transformou o comportamento fecundo. Em outras palavras, a diminuição da
descendência final deveu-se à alteração na nupcialidade e não no padrão
reprodutivo. Isso porque, na primeira coorte, 97% das mulheres estavam casadas
antes de completarem 30 anos (88% já estavam casadas até os 24 anos), enquanto
na segunda coorte verifica-se uma dispersão dos casamentos por todas as faixas
de idade, diminuindo para 88% a proporção das uniões com noivas até 30 anos. O
que se tenta destacar aqui é que a modificação da nupcialidade não implicou
transformação substancial nos seus comportamentos fecundos, pois a descendência
final da faixa 15-24 anos permaneceu estável na coorte 2, a da faixa de 25-29
anos cresceu na coorte 2 e, para aquelas que se casaram em faixas mais altas,
verifica-se diminuição do número médio de filhos a partir de 1950. Por outro
lado, ao se comparar a descendência final das mulheres da segunda coorte com as
taxas brutas de fecundidade brasileira, poder-se-ia pressupor certa paridade.
Com efeito, em 1950, quando se inicia a segunda coorte, ela se situava em 6,8
filhos. Porém, em 1980, quando encerra o período de observação demográfica do
presente estudo, a taxa brasileira já era de 3,8 filhos, enquanto a
descendência média das emigrantes, entre 1950 e 1980, foi de 7,1 filhos.3
Aliando as idades ao casar com descendência final, a fecundidade das imigrantes
de Antonio Olyntho pode ser caracterizada como não-controlada. Na tentativa de
entender melhor os processos inerentes a tal perfil reprodutivo, é útil se
valer do esquema desenvolvido por MATRAS (1990, p. 45).
Tendo em vista o esquema de regimes de fecundidade, é possível situar a
fecundidade das emigrantes em duas categorias. Inicialmente, pode-se apontar
que as mulheres da primeira coorte apresentaram comportamentos adequados ao
regime A, mostrando que a imigração não teve força para desestabilizar o modelo
de casamento oriental. Elas mantiveram famílias numerosas e casavam-se
concentradamente entre 15 e 24 anos. A partir de 1950, surgiu uma tendência à
adoção do regime C, com aumento do número de noivas entre 20 e 29 anos e
distribuição de mães nas faixas de idade mais elevadas, o que não ocorreu na
primeira coorte. Porém, as famílias diminuíram sua prole em um e dois filhos
pelo encurtamento do tempo de constituição da família.
Para que cumprissem bem sua função procriadora, as imigrantes otimizaram o
tempo de constituição da família, conjugando uma série de fatores que foram
algumas vezes puramente biológicos e, na maior parte, de caráter cultural.
Deve-se, inicialmente, considerar que o intervalo entre o casamento e a última
concepção era amplo. Além de se casarem em idades relativamente precoces, as
mulheres pariam até os 40,1 anos, na primeira coorte, e até 40,2 anos, na
segunda, independentemente de suas idades ao casar. Assim, o ciclo fecundo, em
ambas as coortes, era integralmente aproveitado.
Esses dados são importantes na investigação do padrão de fecundidade, dada a
relação existente entre o momento em que se encerra o tempo de formação
familiar (nascimento do ultimogênito) e a taxa de fecundidade geral de um
determinado grupo, posto que a idade da mãe na última maternidade sempre é
forte indicador de comportamento reprodutivo. Nessa linha, pode-se afirmar que,
em Antonio Olyntho, a precocidade do casamento, sem dúvida, favoreceu a prole
numerosa, mas a dispersão dos filhos por todo o ciclo fecundo foi fundamental
para que as imigrantes produzissem as descendências indicadas nas Tabelas_5 e
6.
Para complementar a análise do regime de fecundidade, faz-se necessário
verificar a maneira como as famílias dos imigrantes distribuíam seus filhos ao
longo do ciclo familiar, uma vez que já se observou que elas tenderam a
utilizá-lo integralmente. Determinados pesquisadores consideram que, pelo
caráter acentuadamente biológico dos intervalos protogenésicos, sua duração não
seria, necessariamente, indicativo da constituição de prole numerosa, pois a
fertilidade de mulheres jovens é inferior à daquelas acima dos 20 anos,
fenômeno conhecido como esterilidade das adolescentes (PRESSAT, 1967, p. 238-
239).
Uma observação dos intervalos protogenésicos das imigrantes ucranianas, de
fato, mostrou que os intervalos genésicos das mães mais jovens foi sempre
superior aos daquelas que se casaram em faixas etárias mais elevadas.
Todavia, é pertinente observar que, nas populações em que se identificou
fecundidade "natural", o intervalo protogenésico variou entre 13 e 18 meses
(GUILLAUME; POUSSOU, 1970, p. 174). Considerando esse indicador, residiria nos
intervalos protogenésicos outro fator que contribuiu para que a fecundidade das
imigrantes ficasse entre o regime A e C, segundo a tipologia desenvolvida por
Matras: a média protogenésica da primeira coorte foi de 18,4 meses e a da
segunda, 17,1 meses. O reflexo da ausência de controle de filhos é perceptível,
também, no intervalo protogenésico: 39,2% dos casais da primeira coorte já
tinham filho ao completar o primeiro ano de casamento e 69,1%, antes de
completar o segundo ano de casamento. Aqueles da segunda coorte - 1950-1980 -
apresentaram resultados semelhantes: 40,3% dos casais tinham seu primeiro filho
até um ano de casados e 72,4% quando completavam o segundo ano de casamento.
A despeito de os intervalos protogenésicos já indicarem uma fecundidade não
controlada, a descendência final entre 7 e 9 filhos das famílias ucranianas de
Antonio Olyntho é fortemente tributária à distribuição assumida pelos
intervalos intergenésicos. Em ambas as coortes, até 40 anos, em média, as
mulheres tinham filhos em intervalos gerais de 21 a 35 meses.
Alguns estudos, ao explicarem a dimensão dos intervalos intergenésicos de
populações que não praticam controle da natalidade, destacam o papel da
amamentação pela sua prática prolongada. Nesse caso, a infertilidade pós-parto
é explicada, por alguns autores, pelo viés biológico, relacionando aleitamento
materno a um certo prolongamento da amenorréia e/ou a falhas na ovulação e, por
outros, pelo viés cultural, sugerindo que determinadas culturas interditam as
relações sexuais nessa fase.4
Quanto a esse aspecto, as entrevistas com as mulheres da comunidade não
permitiram averiguar a presença do tabu referente ao relacionamento sexual dos
casais ao longo do período de aleitamento. Porém, ao agregar a essa discussão o
comportamento dos ucranianos para com os "jejuns de carne" impostos pela
religião uniata, observou-se que, a despeito de seu "tradicionalismo", eles
foram irreverentes ao preconizado pela Igreja. Diferentemente do que se
verificou em muitas comunidades aldeãs européias, em ambas as coortes de
Antonio Olyntho, as concepções em março, abril e dezembro - período em que
ocorrem as "quaresmas" mais importantes dessa etnia - são semelhantes e algumas
vezes maiores do que aquelas observadas nos demais meses.
Desse indicador aflora um dado importante sobre o sistema familiar desses
imigrantes: a reiteração de formas ancestrais produzidas ao longo do tempo,
quando o tamanho da família era decisivo para prover a defesa de seus membros e
superar as dificuldades vivenciadas na milenar posição de servidão. Se assim
for, justifica-se seu pequeno apego às prescrições religiosas que moldaram os
comportamentos familiares aldeões desde a primeira modernidade. E, nessa mesma
linha, justifica-se o fato de que, mesmo com um movimento mais recente no
sentido da retração do número de filhos, as famílias dos descendentes de
imigrantes ucranianos foram grandes durante todo o período estudado. Isso
significa que mantiveram socialmente válido o tradicional preceito camponês de
que o adequado desempenho do papel de mulher casada implica desenvolver prole
numerosa.
Representações sociais que legitimaram a alta fecundidade
Tendo em vista o que vem sendo exposto, é plausível asseverar que, na
comunidade imigrante de Antonio Olyntho, os filhos sempre foram bem-vindos. Nas
entrevistas com os moradores, foi possível observar tal comportamento, pois
isso permitia a reprodução do sistema familiar nos moldes conhecidos e no qual
a relação de reciprocidade era essencial. A esse respeito, é significativa a
resposta dada por um casal estéril ao ser inquirido a respeito de quem
instituiriam como herdeiro: "Quem cuidar de nós na velhice vai ficar com tudo".
Se a natureza não concedeu a esse casal um herdeiro, coerentemente com sua
visão, esse casal pretendia "adotar" um herdeiro para não interromper o ciclo
das responsabilidades intergeracionais.
Tal crença da necessidade e da inevitabilidade dos filhos evidenciou que as
mulheres da comunidade tornaram-se impermeáveis às referências "modernas" no
que diz respeito às decisões reprodutivas, perpetuando, no Brasil, concepções
positivas que a região de origem desenvolvera em relação à fecundidade elevada,
encontrando expressão até nos objetos lúdicos. As meninas eslavas, ao brincarem
com as matriozkas- bonecas com tamanhos diferentes que se encaixam, fazendo com
que uma se desdobre em várias -, adentravam num universo de procriação.
Diferentemente das bonecas "pedagógicas" da atualidade, que simulam um parto,
as matriozkasinduzem a noção de que a uma mãe cabe ter muitos filhos.
Tudo indica que os casais não planejavam sua descendência e mesmo as que
tiveram poucos filhos não assumiam responsabilidade na dimensão de sua prole.
Nesse caso, Anna, casada em 1948 com 31 anos - na época da entrevista já com 77
anos - sintetizou bem a ausência de controle e de planejamento familiar naquele
grupo, já que ela entendia que não teve mais filhos "decerto porque Deus não
quis".
Entretanto, nos relatos percebeu-se que, entre os casais mais novos,
estabelecia-se o recurso a métodos contraceptivos. Ao ser indagada se não era
possível controlar a quantidade de filhos, Placidina, casada na primeira coorte
- que teve 11 filhos e sua cunhada, 14 - respondeu: "antes ninguém falava
disso. Ninguém sabia tomar remédio como agora. [...]. Mas tinham algumas que
não tinham tantos. A minha irmã teve só seis e minha cunhada só dois." Se esse
depoimento indica o conhecimento tardio da pílula anticoncepcional, outros
evidenciam que tal conhecimento veio do "centro para a periferia". Alega-se que
as mulheres que migraram para Curitiba conheceram antes a possibilidade da
interferência nas concepções. Anastácia, que se casou em 1957 e teve dez
filhos, nascidos entre 1957 e 1973, enfatizou esse aspecto: "antes de casar
ninguém falou que podia ter menos filhos. Depois que eu casei sim porque viram
que eu fui tendo bastante. A minha cunhada dizia para eu tomar comprimido. Ela
trabalhou em Curitiba e aprendeu lá o comprimido."
Essa explicação encontra respaldo na precariedade do atendimento médico
hospitalar local, pois, no período coberto por esse estudo, os hospitais mais
próximos ficavam em cidades vizinhas, como São Mateus do Sul e Lapa, em
distâncias aproximadas de 40 quilômetros. Dados do IBGE, relativos a 2000,
mostram que até essa data o município ainda não contava com nenhum leito
hospitalar, apenas com sete postos de saúde.
De qualquer maneira, a investigação da contracepção esbarra com resistências
pessoais, culturais e religiosas, em que dificilmente se pode penetrar. Alguns
fragmentos nas falas das mulheres permitiram entrever, contudo, que elas
conheciam formas de controle da natalidade, ainda que não praticassem. Uma
entrevistada, que casou em 1957 e teve nove filhos, esclarece: "tinha como
evitar os filhos. tudo vinha da farmácia porque nós não sabíamos fazer nada.
tinha umas lá que faziam xaropadas, chás, mas sei lá se isso dava certo." Com
nove filhos, essa mãe efetivamente pode não ter provado as xaropadas e os
chásabortivos que algumas mulheres possivelmente tomaram.
No entanto, as médias gerais de fecundidade - entre 1895 e 1980 - são reflexo
de uma genérica despreocupação social quanto ao controle dos nascimentos. Como
já foi mencionado, comparando as duas coortes, ao se isolarem os grupos de
mulheres casadas entre 15 e 29 anos, verificase, inclusive, um leve aumento do
número médio de filhos na segunda coorte - entre as mulheres da faixa de 25-29
anos. Disso pode-se depreender que o padrão de fecundidade apresentado pelas
ucranianas tem uma relação bastante estreita com o apego a um sistema familiar
ancestral, cuja permanência foi possibilitada pelas condições em que se
instalaram no Brasil: isolados em área rural e pouco atingidos pelos inúmeros
agentes modernizadores que favoreceram a transformação dos sistemas familiares
brasileiros ao longo do século XX. Nessas condições, os imigrantes e seus
descendentes precisaram efetuar pequenos ajustes nas práticas familiares que
exerciam na Galícia e, assim, desdobraram costumes produzidos em resposta a
necessidades sociais diferenciadas das que a realidade colonial lhes colocava.
O princípio interpretativo de que os sistemas familiares correspondem às opções
coletivas decorrentes de uma determinada experiência temporal adquire maior
relevo quando se compara a dinâmica da fecundidade dessas imigrantes com a das
ucranianas que se dirigiram ao Canadá. A emigração para o Canadá processou-se
paralelamente à do Brasil, sendo que em muitas aldeias os fluxos de emigrantes
repartiram-se entre os dois países. Com isso, pode-se pressupor que tenham
emigrado para destinos diferentes, porém levando as mesmas concepções a
respeito da formação familiar.
Um estudo de Wolowina (1980, p. 161-188), com base em censos decenais, mostra,
efetivamente, que as mulheres ucranianas canadenses tinham uma fecundidade
maior do que as canadenses de qualquer outra origem étnica, nos anos de 1931,
1941 e 1951. A partir de então, houve brusca diminuição nas taxas de
fecundidade das mães ucranianas canadenses, ficando a descendência final por
volta de dois filhos na década de 70.
Os contingentes de ucranianos fixados no Canadá vivenciaram condições
diferenciadas dos que vieram ao Brasil, e em particular dos que se radicaram em
Antonio Olyntho, pois lhes foi possível rápida mobilidade social ascendente
numa sociedade que se modernizava a passos largos e oferecia condições de
escolaridade e variedade de empregos, tanto aos homens quanto às mulheres.
Nesses fatores residiria uma justificativa para tamanha diferença entre as
taxas de fecundidade das mulheres ucranianas canadenses e as obtidas no
presente estudo. Essa comparação serve para dimensionar a interferência do
contexto em que está inserida uma determinada população em suas decisões
reprodutivas, bem como para reafirmar o pequeno valor da dimensão biológica na
procriação - "legítima" ou não -, pois as taxas de fecundidade expressam
consensos coletivos em torno de certos comportamentos muito associados à ordem
cultural. Entre tais consensos, destacam-se as idéias socialmente ativas a
respeito do papel feminino no conjunto das relações sociais, como também as
concepções relativas aos filhos e as relações intergeracionais.
Nessa linha, se voltarmos os olhos para a Ucrânia, matriz cultural das duas
dinâmicas demográficas tão diferenciadas comparadas anteriormente,
encontraremos uma população que, no século XX, apresentou uma trajetória em
descompasso com tendência genérica da alta fecundidade até fins do XIX.
Um estudo de Meslé, Pison e Vallin (2005) indica que, até meados dos anos 20, a
Ucrânia apresentava uma pirâmide populacional com formato triangular, própria
das populações com altas fecundidade e mortalidade. tal formato expressa uma
população jovem e com grande potencial de crescimento. Pressupõe inclusive um
prognóstico de explosão demográfica naquele país se, mantida a alta
fecundidade, agissem os fatores que aumentaram a expectativa de vida no século
XX e diminuísse a constante emigração. Diferente do esperado, o acaso
interferiu com dois acidentes demográficos que desviaram essa provável rota
demográfica: a grande fome de 1933 e a Segunda Guerra Mundial. O efeito desses
"reguladores de população" foi a diminuição da população ucraniana de 42,6 para
32,1 milhões de habitantes entre fins da década de 20 e 1945. Fixando-se apenas
nos dados da fecundidade, os autores mostram que ela manteve constante declínio
mesmo após a Segunda Guerra (de 2,5 filhos, em 1950, estabilizou-se em torno de
2 filhos por mulher, entre as décadas de 60 e 80), chegando aos anos 90 com uma
das mais baixas taxas da Europa (1,1 filho por mulher) e com taxa de
crescimento negativa (-0,14%) (MESLÉ; PISON; VALLIN, 2005, p. 2).
De outro ponto de vista, Goody aponta uma motivação diferente a ser considerada
nessa trajetória da população ucraniana: sua inserção no bloco dos países
socialistas. De forma abreviada, e em muito decorrente das posições de Engels
em relação à incompatibilidade do sistema familiar "burguês" num quadro de
coletivização social, pode-se reter que a política familiar socialista permitia
o aborto e o divórcio e coibiu as coerções religiosas quanto à contracepção.
Além disso, abriram-se muitas oportunidades de emprego às mulheres e anulou-se
o sistema de heranças, afetando radicalmente os sistemas familiares daqueles
países (GOODY, 2001, p. 156).
Em suma, novamente observam-se as contingências temporais agindo e retirando da
população da Ucrânia a possibilidade de manter a constância das taxas de
fecundidade apresentadas até as primeiras décadas do século XX. A precipitação
de uma série de fenômenos exógenos às práticas familiares impeliu os casais e
as mulheres a repensarem os parâmetros que orientavam as decisões reprodutivas,
cujo resultado foi uma radical transformação na dinâmica demográfica daquela
sociedade.
Por que a fecundidade das ucranianas radicadas em Antonio Olyntho se manteve
inalterada?
Para que houvesse a prática do controle da natalidade das mulheres ucranianas
de Antonio Olyntho, seriam necessárias mudanças estruturais nesse grupo social.
A diminuição voluntária da prole não decorre simplesmente da adoção de práticas
anticoncepcionais; implica, sobretudo, romper com um determinado sistema
familiar. Oras, o grupo doméstico mais característico em Antonio Olyntho foi
aquele com domicílios relativamente complexos, delineando com mais freqüência
famílias-tronco ligadas à atividade agrícola, basicamente para o autoconsumo.
Isso é indicativo da manutenção de uma estrutura domiciliar complexa, própria
das regiões rurais tradicionais.
Os recém-casados moravam durante os primeiros tempos na residência dos pais de
um dos noivos; normalmente, na casa dos pais do noivo. Se o casal não era
formado por herdeiros, essa moradia era temporária; caso contrário, definitiva.
O modelo domiciliar baseava-se, mais freqüentemente, na residência patrilocal,
com a mulher assumindo a família do marido como sua. Nas entrevistas, as
mulheres de diferentes gerações sempre indicaram pertencimento ao grupo
domiciliar do marido, de maneira que transcendia à simples adoção patronímica.
É possível pensar que as unidades residenciais com forma de família-tronco
foram decorrência da imigração. Burguière (1986, p. 37-39) apontou a freqüência
de unidades residenciais com estrutura complexa no Leste europeu. Para o autor,
nas regiões em que a relação senhorial assumiu formas extremas, era grande a
porcentagem dessa organização doméstica que teria, inclusive, raízes remotas.
Nessas bases, entre os camponeses russos e poloneses, era comum a coabitação de
dois ou mais casais, por ser particularmente conveniente à economia regional de
grandes domínios onde a relação de trabalho não se baseava em salários.
Ao associarem estrutura domiciliar com racionalidade econômica, os estudos
referem-se, muito comumente, às análises de Chayanov (1966). Com base em
estatísticas agrárias, o autor demonstrou a interdependência entre alterações
na dimensão domiciliar - ocorridas ao longo do ciclo familiar - e a
disponibilidade de oferta de mão-de-obra. Nessa esteira de interpretação, Kula
(1972) colabora demonstrando que, nas propriedades senhoriais da Polônia do
século XVIII, as famílias extensas eram incentivadas tanto pelos nobres -
preocupados com fartura de mão-de-obra - quanto por uma relação de compromisso
moral das comunidades camponesas para com seus membros. O autor detalha, assim,
as inúmeras estratégias que os nobres desenvolveram para manter como seus
servos os filhos casados e as filhas adultas, explorando o mesmo domínio que
seus pais. Indica, ainda, enquanto elemento facilitador de composições
complexas, regulamentações oficiais que favoreciam os domicílios dos camponeses
a tomarem sob sua guarda órfãos e parentes próximos ou distantes (KULA,1972, p.
957-958).
O desenvolvimento de unidades residenciais com estrutura ampliada entre o
campesinato europeu oriental devia-se, sobretudo, ao fato de a propriedade não
ser individualizada. Não era o indivíduo isolado que possuía com exclusividade
os recursos produtivos, mas sim a família. Com base nisso, Macfarlane (1980, p.
33-38) reitera que, nos casos em que a propriedade é do grupo e não do
indivíduo - e onde o trabalho familiar é importante na produção -, com
freqüência as famílias são mais numerosas, uma vez que os filhos, co-
proprietários com os pais, permanecem em casa por mais tempo do que nas
sociedades em que são lançados desde cedo no mercado de trabalho. Segundo o
autor, parece claro que, no século XIX, a unidade residencial da Europa
Oriental era amiúde composta de mais do que a família nuclear. Por isso mesmo,
"a família camponesa tradicional constitui-se em geral em três gerações".
Considerando que os domicílios complexos têm raízes profundas na experiência de
diferentes sociedades agrárias e foram particularmente disseminados entre o
campesinato da Europa Oriental, depreende-se que a formação de grupos
domésticos complexos entre os imigrantes que se dirigiram a Antonio Olyntho
traduz a perpetuação de uma morfologia doméstica na qual já transitavam. No
entanto, deve-se apontar que, se a característica das residências camponesas do
Leste europeu tendia para o tipo extenso, as que se formaram em Antonio
Olyntho, como já dito, eram grupos domésticos semelhantes à família-tronco. A
partir disso, é melhor afirmar que os imigrantes trouxeram uma tradição na
formação de unidades domésticas extensas, mas que a imigração transformou o
princípio que regulava tal complexidade.
Eles foram inseridos numa política de instalação em pequenas propriedades e
sobretudo iniciados na efetiva prática da propriedade privada. Aqui assume real
sentido a frase escrita por um pároco local, indicando que abandonaram a
Galícia para satisfazer "o desejo de serem senhores de si mesmos".
Naturalmente, a posse individualizada definiu alterações na composição
doméstica, sobretudo porque, em Antonio Olyntho, os lotes medindo, geralmente,
dez alqueires eram suficientes apenas para prover o trabalho e sustento a um
grupo doméstico com proporções reduzidas. A manutenção de uma família
patriarcal, in totum, tornou-se inadequada à nova realidade fundiária dos
imigrantes. É lícito pensar que, da necessidade de rearranjo na composição
domiciliar, resultou uma diminuição do número de moradores sob o mesmo teto,
imprimindo traço mais acentuado no perfil de família-tronco. A redução do
número de coabitantes não extinguiu, contudo, como será visto adiante, a
permanência do código de reciprocidade tradicional que detém estreita relação
com a forma pela qual uma sociedade organiza o sistema de transmissão da
herança.
Sabe-se das diferentes tradições camponesas quanto à sucessão, oscilando entre
a indivisibilidade da terra até a paridade de direitos entre os herdeiros
(SHORTER, 1977, p. 35; BERKNER, 1976, p. 71). Em algumas regiões da Áustria,
por exemplo, a terra era prometida a somente um dos filhos, geralmente o mais
velho; em outras, quem herdava era o mais novo, de maneira a permitir que o pai
se mantivesse por mais tempo na direção dos negócios familiares. Nesses casos,
os demais filhos, não herdeiros, recebiam compensação financeira ou o direito
de se manterem morando com a família, sob a condição de não se casarem. A
despeito das variações locais, um aspecto fica muito claro: a prática de
diferentes regras para a sucessão patrimonial esteve sempre relacionada com a
estrutura familiar vigente.
Entre os imigrantes em estudo, a transmissão do patrimônio mais freqüente foi
aquela na qual o filho mais novo articulava sua permanência no grupo domiciliar
paterno à sucessão de domínio da propriedade. Essa estratégia estaria
refletindo uma adaptação dos costumes que os imigrantes trouxeram consigo.
Embora entre os camponeses da Europa Oriental do século XIX e início do XX
houvesse a concepção de a propriedade ser algo pertencente à família no tempo,
isso não significava nem direito comunal e muito menos que um conjunto de
pessoas possuísse frações ideais desse bem.
A prática de os filhos não terem, isoladamente, direito à posse foi
exemplificada por Shanin, quando apresentou as decisões tomadas pelas Cortes de
Apelação da rússia, em final dos anos oitocentos. Por elas, as terras eram
consideradas propriedade não da pessoa legalmente registrada como sua
proprietária, mas sim de todos os membros da família, sendo o seu chefe apenas
o representante da mesma. Com base nesse entendimento social da propriedade,
Macfarlane (1980, p. 34) identifica que entre "as raízes da destruição do
sistema campesino [estaria] a evolução do conceito de que o indivíduo tem
direito à propriedade face a outros indivíduos". Pela inexistência da noção de
herança da forma desenvolvida em sociedades não camponesas, outra
característica peculiar é que o "legado de uma geração a outra não envolvia
necessariamente a morte de um dos pais e era encarada legalmente como a
partilha da propriedade da família entre seus membros".
Alguns estudos sobre imigrantes no Brasil apontam estratégias para manter a
indivisibilidade dos lotes (WOORTMANN, 1995), o que reforça a noção de que,
muitas vezes, códigos culturais específicos encontram maneiras de burlar a lei
da sociedade envolvente. Sabe-se que o Código Civil Brasileiro, em vigor desde
1916, prevê paridade de direitos entre os herdeiros. E, foi justamente nas
formas da Lei que, entre os imigrantes de Antonio Olyntho, buscou-se preservar,
o mais possível, a integridade dos lotes. Lendo a escritura de partilha
amigável do espólio de Leonardo, em 1934, tem-se conhecimento de que ele deixou
para a viúva e seus dois filhos "um lote de terras de dez alqueires adquirido
por compra feita ao governo do Estado, no valor de dois contos de réis". Pelo
Código Civil Brasileiro, caberia à viúva Anastácia a quantia de mil contos de
réis e, aos filhos, em partes iguais, quinhentos contos de réis. No entanto,
como se lê nos apontamentos do cartório distrital de Antonio Olyntho,
em virtude de se achar a viúva meeira de há muito tempo residindo em
companhia de seu filho Estefano, que é quem lhe está sustentando e
cuidando por quasi não poder mais trabalhar, foi então por ela dito,
que renuncia, como de fato renunciado tem, à sua meação, em favor do
dito Estefano, para que este seja adjudicado na sua referida parte,
ficando assim subrogado em todos os direitos que lhe assistem com
relação a esta partilha e seus ônus.
Em outros casos, verifica-se a partilha paritária, sendo que, findo o processo
legal, os herdeiros, principalmente quando já tinham migrado, doavam suas
parcelas de herança aos irmãos que permaneceram na localidade, basicamente
àqueles que cuidavam dos pais. Neste caso estão Felipe e sua esposa Tecla,
Simão e sua esposa Ahafia, residentes em Três Barras, "que cederam e
transferiram aos outorgados aceitantes Pedro e Demétrio, todos os seus direitos
hereditários que lhes cabia no espólio de seus pais e sogros João e Maria".
Com base nesse recurso, ainda na atualidade, é consenso entre as famílias mais
tradicionais que, ao filho mais novo, caibam a manutenção da terra e o dever de
cuidar da velhice dos pais; em outras palavras, o mais novo é responsabilizado
concomitantemente pela perpetuação do patrimônio e pela reprodução da lógica
familiar.
Disso decorre retomar um ponto do que ficou aberto quando se discutiu a
alteração da idade ao casar da segunda coorte, formulando a seguinte indagação:
até que ponto a mudança na nupcialidade, a partir de 1950, não corresponde a um
efeito dos rearranjos que a imigração impôs ao sistema familiar? Se o herdeiro
preferencial passou a ser o ultimogênito, cabia a ele esperar a migração dos
irmãos mais velhos (ou um eventual casamento deles com herdeira local) antes de
contratar seu próprio casamento.
Evidentemente, grande parte dos terrenos originais foi objeto de divisão, e
alguns moradores mais idosos afirmam que, no início da colônia, houve uma forte
inclinação para se fazer partilhas igualitárias. Essa tendência poderia
explicar a quantidade de minifúndios que apareceram em cadastramentos, como o
do Incra, em 1964, e a pauperização atual dos proprietários de microlotes.
Sabe-se que mesmo dez alqueires são parcamente suficientes para a subsistência
de um grupo doméstico de porte mediano; no entanto, os colonos sustentavam uma
prole em média de sete a oito filhos em todo o período observado.
Pode-se pensar, assim, que tal tendência inicial a heranças paritárias tenha
favorecido a instituição do ultimogênito enquanto o herdeiro ideal. Aquelas
famílias que puderam manter o lote inicial indiviso retomaram a coabitação, no
sentido de evitar a pobreza geral que viam entre os domicílios fragmentados e
garantir o exercício da relação de reciprocidade tradicional. Nesses termos,
pode-se colocar a hipótese de que a experiência dos imigrantes como pequenos
proprietários forjou o ultimogênito como sucessor. Lotes pequenos não proviam
as necessidades de uma família extensa, nos moldes patriarcais. Foi imperioso
restringir o grupo de coabitação.
Aos filhos mais velhos restou buscar oportunidades mais freqüentemente fora da
localidade. O Paraná ofereceu, ao longo do século XX, oportunidades em várias
"frentes pioneiras" e não é por acaso que o Norte Novo tenha tantos
contingentes de ucranianos. Abandonando a casa paterna, os "filhos e filhas
excedentes" levavam uma força de trabalho desnecessária em um lote de dez
alqueires, além de garantir a diminuição do consumo doméstico. Assim, no
momento em que a capacidade produtiva dos pais começava a declinar, o
ultimogênito, em condições de pleno trabalho, trazia para o lar uma esposa
trabalhadora.
Entender o conjunto de fatores presentes nesse sistema familiar,
particularmente a estrutura domiciliar e os costumes relativos à sucessão, foi
fundamental para compreender a manutenção de altas taxas de fecundidade na
comunidade. Fatores como idade precoce no casamento, intervalos genésicos
curtos e seqüenciados, ocupação de todo o período fértil da mulher podem compor
altas taxas de fecundidade. Mas, do ponto de vista da história da família,
esses comportamentos traduzem uma determinada prática familiar conformando
índices de um comportamento socialmente aceito e que, por isso mesmo, detém
garantia de permanência.
Assim, pode-se finalizar essa análise apontando que a fecundidade dos
imigrantes manteve-se alta até o final do período estudado justamente porque,
para os descendentes de ucranianos em Antonio Olyntho, a representação de
família que abriga a noção de prole extensa não encontrou o seu limite. Porém,
as condições coloniais exigiram plasticidade na atualização do sistema familiar
ancestral, o que determinou uma opção por excluir os filhos excedentes do
convívio doméstico, já que a alta fecundidade criou sucessivas gerações de
migrantes. Foi o preço pago para que certo número de famílias mantivesse seus
compromissos com a tradição. No interior dessa racionalidade particular,
permaneceram ativos os princípios da autoridade patriarcal, uma rígida
definição dos papéis familiares e a crença de que o correto encadeamento das
coisas implica a responsabilidade das gerações mais novas para com as que as
antecederam. Aos que deixaram Antonio Olyntho, abriram-se oportunidades de
conhecer outros sistemas familiares.
Mesmo que tenha sido observado apenas um segmento das famílias do atual
município de Antonio Olyntho, pode-se cogitar que um possível efeito da atitude
radical dos que aí se mantiveram seja o fato de o município incluir-se entre os
espaços de severa pobreza paranaense. Aí, mais de 40% de domicílios são de
pobres, assim definidos pela renda familiar per capitasituar-se em ½ salário
mínimo (IPARDES, 2003, p. 11). Porém, esse dado enseja outro tipo de discussão.