Vulnerabilidade do lugar vs. vulnerabilidade sociodemográfica: implicações
metodológicas de uma velha questão
"What makes people vulnerable?" Esta é a pergunta que abre a introdução do
livro Mapping vulnerability: disasters, development & people (HILHORST;
BANKOFF, 2004, p.1), a qual é, sem dúvida, uma das mais importantes questões
contemporâneas: como compreender os mecanismos e processos que produzem riscos
e perigos, tornando as pessoas vulneráveis?
Desde que vulnerabilidade, risco e perigo tornaram-se termos fundamentais para
compreender e discutir as transformações na sociedade contemporânea, tem havido
uma busca tanto por uma melhor compreensão teórica acerca dos processos e
significados que conformam situações de risco, quanto por métodos de medida e
avaliação dos recursos que permitem diminuir ou aumentar a vulnerabilidade de
diferentes grupos. Por outro lado, a importância da espacialidade (localizações
e situações) também tem sido discutida, especialmente nos espaços urbanos e em
questões ambientais, situações em que é mais evidente a dimensão espacial da
existência social. Os lugares, portanto, também podem ser entendidos como
vulneráveis ou expostos a riscos.
No contexto dos estudos de população e ambiente, os dois lados da questão
(espacialidade e produção social) aparecem na seguinte formulação: o foco está
nas pessoas (demografia) ou no espaço (geografia)? Esta dúvida reproduz um
antigo debate da relação homem-meio, que tem seus primeiros registros com
Hipócrates e acompanha toda a filosofia e ciência ocidental (RATZEL, 1990;
HASSINGER, 1958). A Geografia, ciência que tradicionalmente se coloca nessa
interface, tem se esforçado em construir teorias e estratégias conceituais e
empíricas de trabalhar com essas esferas sem dicotomizá-las, embora nem sempre
com sucesso. Com o advento das ciências sociais, no entanto, a esfera humano-
social foi apropriada como sendo de sua alçada, marcando uma ruptura que seria
transgredida em alguns raros momentos, o que propiciou uma leitura mais
conjuntiva da sociedade em seu ambiente.
A velha questão está na natureza dessa relação: população (P) vs. ambiente (A)?
O sentido da flecha de ação é P→A ou A→P? Seriam os lugares que mudam as
pessoas ou as pessoas que mudam os lugares? No contexto dos estudos sobre
vulnerabilidade, essas questões retornam com muita força por conta dos fatores
que interferem na produção dos perigos e na composição da matriz causal da
vulnerabilidade. Encontramos diferentes soluções e aportes teórico-
metodológicos para o estudo de tais fenômenos, que em outros trabalhos (HOGAN;
MARANDOLA Jr., 2005; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2006b) identificamos enquanto
ligados a uma tradição de análise sociológica, que se relaciona aos estudos
sobre a pobreza, e outra linha que é herdeira das primeiras preocupações
modernas com os impactos do ambiente sobre a sociedade, mais geográfica, ligada
aos perigos naturais e que, mais recentemente, se configuraram enquanto questão
ambiental. Embora não haja um corte necessariamente disciplinar nessa leitura,
a influência de uma abordagem que prioriza os fatores ecológicos e espaciais é
mais evidente entre os segundos, enquanto as estruturas sociais são
preponderantes entre os primeiros. O resultado são duas abordagens da
vulnerabilidade que se distanciam ou se tocam em certos pontos, priorizando um
e outro ângulo: vulnerabilidade ambiental ou do lugar e vulnerabilidade social
ou sociodemográfica.
Esse debate é extremamente pertinente para o contexto dos estudos sobre
população e ambiente, na medida em que a questão que o anima é a mesma.
Compreender como se dá, em determinado espaço-tempo, a relação de grupos
demográficos específicos com seu ambiente passa, necessariamente, por uma
concepção da natureza dessa relação, nem sempre explicitada mas efetivamente
construída a partir do instrumental metodológico e conceitual utilizado nas
análises. Nos estudos de população e ambiente, temos notado influências da
economia política, da ecologia humana, da sociologia ambiental e da própria
geografia (MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2007). Essas influências, no entanto, pouco
dialogam e permanecem relativamente paralelas. Entendemos que, do ponto de
vista metodológico, é fundamental que haja maior discussão dessas matrizes para
que se possa avançar em termos de uma construção mais robusta e consistente
desse campo de investigação.
Este artigo é fruto de inquietações que têm permeado nosso trabalho no Núcleo
de Estudos de População,1 especialmente no contexto de um projeto
interdisciplinar,2 na senda de uma interlocução mais estreita entre Geografia e
Demografia, que envolve estas questões em tela, passando pelos estudos sobre
vulnerabilidade, especialmente na perspectiva ambiental e urbana, mas com foco
na reflexão metodológica. Ao se aproximarem duas ciências com diferentes
tradições e formas de ver/ler o mundo, a dificuldade de adequação, em primeiro
lugar, vem da necessidade de afinar o "como ver" e o "como analisar". Tendo o
campo de população e ambiente como a seara comum de investigação, nossos
trabalhos têm procurado uma trilha que permita não apenas compartilhar um
caminho ou uma pesquisa, mas aproveitar o que de melhor um estudo
interdisciplinar pode propiciar: a interpenetração de temas, conceitos e
perspectivas, que devem se coadunar numa abordagem conjuntiva do ponto de vista
metodológico.
Seguimos assim a sugestão de Hauser e Duncan (1959), que indicaram a
importância de compreender a Demografia para além de seu núcleo duro, abrindo-
se para análises qualitativas que se desenvolvem nas suas fronteiras com outras
ciências. Os autores afirmam que nessa área fronteiriça é necessário um diálogo
metodológico em busca de soluções para problemas comuns, ocorrendo a
interpenetração das temáticas e métodos. População e ambiente é uma das
fronteiras de interação entre Geografia e Demografia por excelência, permitindo
o desenvolvimento de uma demografia espacial e ambiental, com enfoque
qualitativo significativo.
Em vista disso, temos trabalhado com uma abordagem qualitativa a partir da
Geografia Humanista e Cultural, de filiação fenomenológica, como arcabouço
teórico-metodológico no estudo da vulnerabilidade (ENTRIKIN, 1980; HOLZER,
1996; BONNEMAISON, 2005), o que coloca a experiência dos fenômenos como foco
principal, encarando a experiência espacial como a principal mediação do
indivíduo com o ambiente (TUAN, 1983). Este é entendido de forma ampla,
incluindo o mundo de significados onde a pessoa está inserida, desde as esferas
mais imediatas (família, grupo, bairro, cidade) até as mais distantes (país,
etnia, mundo). É uma perspectiva que busca interligar as esferas sociais a
partir da experiência, permitindo abordar as questões nem pelo ambiente nem
pela sociedade, mas a partir de sua relação. Esse é um dos grandes desafios
postos aos estudos de população e ambiente (LUTZ; PRSKAWETZ; SANDERSON, 2002),
e esta trilha se apresenta como promissora.
Este artigo é um balanço dos resultados, potencialidades e limitações de nossas
pesquisas por esta abordagem. Colocam-se em discussão algumas premissas e
caminhos que o grupo de pesquisa tem desenvolvido, refletindo sobre seu alcance
e possibilidades em permitir uma análise de mão dupla P←→A, sem prevalência de
um polo sobre o outro. A expectativa é poder contribuir para o debate dessa
velha questão, apresentando possibilidades de interlocução e lacunas que ainda
precisam ser enfrentadas pelos estudiosos de população e ambiente, de maneira
geral, e pelos interessados nos estudos sobre riscos, perigos e
vulnerabilidade, de modo particular.
Lugar e população na análise da vulnerabilidade
A pergunta "vulnerabilidade a que?" é primária nos estudos sobre riscos e
perigos. Nos estudos populacionais, essa pergunta se direciona a grupos
demográficos que estão sujeitos a determinados perigos, ou seja, as "populações
em situação de risco". Estes podem estar relacionados às características da
dinâmica demográfica ou à sua situação socioeconômica, ligadas ao ciclo vital,
à estrutura familiar ou aos aspectos migratórios do grupo. O campo de população
e ambiente acrescentou a dimensão espacial à problemática, considerando a
posição e a situação (relacionais e relativas) componentes dos elementos que
produzem perigos ou que fornecem condições de enfrentá-los. Notam-se, de um
lado, a influência de uma abordagem ecológica, que entende o meio como um
conjunto físico-social que influencia e é influenciado pela população, e, de
outro, a presença de postulados materialistas, que concebe a relação sociedade-
natureza como um devir histórico-social pautado pela produção contraditória e
desigual do espaço e da sociedade.
Na sociologia urbana, os estudos ecológicos datam já de quase um século,
influenciados pelas contribuições seminais da chamada Escola de Chicago (PARK;
BURGESS; McKENZIE, 1925; BURGESS; BOGUE, 1964; SHORT, 1971). Nesses estudos, a
importância da localização e da posição relativa é trazida para o estudo social
na medida em que revelam ou promovem relações e posições ecológicas que tanto
expressam uma organização quanto favorecem uma situação. Posição e situação,
noções caras à geografia tradicional francesa (DOLFUSS, 1973), são entendidas
pelos sociólogos da ecologia humana como componentes do chamado efeito de
vizinhança, que envolve a dimensão propriamente ecológica da estrutura e do
entorno do bairro, bem como de sua posição e relação com a estrutura da cidade.
O efeito de vizinhança está na base da constituição das identidades,
comunidades e na promoção de coesão social e cultural.
Estes estudos, ligados a uma visão organicista da cidade, revelaram a densidade
e a coesão de vários bairros que se constituíam em verdadeiras comunidades
devido a uma identidade étnica, histórica ou migratória. A sociologia urbana
americana deu muita envergadura e atenção a estes estudos e à importância de
tais comunidades na manutenção de valores, no enfrentamento de situações
econômicas e sociais adversas ou mesmo na explicação da pobreza e de outros
fatos sociais (BLOKLAND, 2003). O bairro foi considerado unidade de análise
privilegiada para a compreensão da interação social e até para planejamento e
empoderamento da população (SAMPSON; MORENOFF; GANNON-ROWLEY, 2002; Atkinson,
2006).
Segundo Freiler (2004, p.3), existem três principais razões para a ênfase nos
bairros e sua retomada nos últimos anos: (1) "Concern about growing
neighborhood concentrations of poverty and disadvantage and their effects on
individuals and the broader community"; (2) "Increasing recognition that cities
and urban regions are socially, environmentally, and economically critical to
the well-being of individuals, regions and countries"; e (3) "The 'discovery'
of social capital and its potential as a building block for social cohesion and
to finding local solutions to problems". Embora a teoria dos capitais seja um
dos arcabouços movimentados para o estudo da vulnerabilidade tanto nos estudos
ecológicos/espaciais quanto nos sociais/demográficos (WATTS; BOHLE, 1993; CUNHA
et al., 2006), é interessante notar que, entre os primeiros, ainda há pouca
utilização do enfoque no estudo de comunidades e bairros.
Os efeitos de vizinhança possuem relações para além de aspectos econômicos ou
de mera proximidade, potencializando relações e interações que têm natureza
espacial. As variáveis ecológicas não se limitam a aspectos racionais que podem
ser contabilizados, mas envolvem também simbolismos e identidades construídas
em torno de lugares que, mesmo degradados social ou economicamente, podem
manter sua capacidade aglutinadora e atratora de população (FIREY, 2006).
Alguns dos mais bem-sucedidos processos de recuperação de bairros se deram a
partir de movimentos culturais iniciados pelos próprios moradores, numa
deliberada recondução da orientação e da morfologia de seus bairros (JACOBS,
2000). Associar pobreza e degradação urbanística com vulnerabilidade, portanto,
pode ser uma relação causal simplista, que não se sustenta quando se presta
atenção aos efeitos da vizinhança na capacidade das pessoas de lidarem com os
perigos a que estão expostas.
Em vista disso, estudos que buscam uma abordagem qualitativa em uma escala
menor de análise têm sido reclamados como necessários para melhor compreensão
da vulnerabilidade, tanto para entender a dimensão sociocultural e demográfica
de sua composição, quanto para aprofundar a compreensão da importância do lugar
e das comunidades territorialmente centradas.
Comunidade não é o mesmo que bairro, é evidente. Este termo tem sido usado
desde a sociologia clássica, em geral de forma vaga e imprecisa. Serviu a
diversos fins em diferentes contextos, carregando as noções de desintegração,
integração e coesão, desde o sentido da intimidade, da profundidade emocional,
do envolvimento moral, da coesão social, até, mais recentemente, da
sustentabilidade (BLOKLAND, 2003). Faz-se uma conexão imediata e rasteira entre
comunidade e bairro-vizinhança, embora sua efetivação não seja tranquila nem
simplista. Apesar de vivermos uma época de ênfase no local (BORDIN, 2001), isso
na verdade é um paradoxo que se coloca à medida que a busca pela comunidade é a
própria denúncia de que ela está escassa na experiência contemporânea.
Qual a relação entre bairro, comunidade e vulnerabilidade, principalmente nas
grandes cidades contemporâneas?
Em ambientes intensamente modificados pelo homem, a matriz causal de riscos e
de elementos que podem interferir na vulnerabilidade é consideravelmente maior,
dificultando a apreensão de relações de causalidade entre determinados perigos
e certas características do grupo demográfico. Vivemos um enfraquecimento do
bairro e da vizinhança. O estilo de vida contemporâneo, fluido ou líquido, para
usar a expressão de Bauman (2007) acerca do atual estágio da modernidade, é
pautado na não-permanência, na mudança constante e na alta mobilidade. Essa
tendência diminui a pausa necessária para a experiência e a densificação dos
lugares (TUAN, 1975), alterando a forma como as pessoas se relacionam com o
espaço urbano. A territorialização, necessária para atingir a segurança
existencial, tem que ocorrer tanto em movimento quanto no lugar, transformando
as estratégias de proteção e os riscos assumidos, redesenhando a
vulnerabilidade e os próprios perigos urbanos (MARANDOLA Jr.; 2008a).
Em vista disso, olhar para os perigos e a vulnerabilidade do lugar é uma
estratégia que permite, em microescala, apreender os elementos que interferem
na produção, aceitação e mitigação dos perigos. A dimensão ecológica é re-
significada ao incorporar a dimensão existencial e fenomênica do lugar,
entendendo os grupos demográficos em sua relação de envolvimento e
pertencimento ao seu espaço vivido.
A partir de uma série de trabalhos empíricos desenvolvidos no Projeto
Vulnerabilidade, do Nepo/Unicamp, procuramos discutir as possibilidades dessa
perspectiva teórico-metodológica, que utiliza uma prática qualitativa de campo
e uma orientação geográfica na construção de um diálogo mais estreito entre
Geografia e os estudos populacionais, a partir do campo População e Ambiente.
Vulnerabilidade do lugar enquanto proposta metodológica de pesquisa
A abordagem do lugar, no estudo dos perigos ambientais, possibilita uma análise
integrada dos elementos físicos e sociais, considerando a relação população-
ambiente e não um ou outro polo. Incorporam-se à mesma discussão a mensuração
do risco biofísico (ambiental), a produção social do risco e as capacidades de
resposta, tanto da sociedade (grupos sociais) quanto dos indivíduos (CUTTER,
1996). Parte-se de um contexto social e geográfico onde o perigo ocorreu ou é
potencial. Risco, as ações de mitigação (respostas e ajustamentos) e a
vulnerabilidade do lugar são o resultado da interação particular destes
elementos nos termos daquele espaço-tempo.
O aumento das ações mitigadoras poderá significar a diminuição do risco e,
consequentemente, implicará a redução da vulnerabilidade do lugar. Por outro
lado, o risco poderá aumentar se houver alterações no contexto geográfico ou na
produção social, que poderão incorrer no crescimento da vulnerabilidade
biofísica e social e da vulnerabilidade do lugar. Esse processo poderá ser
iniciado também por meio do aumento do perigo potencial, que tanto pode ser
resultado quanto condicionante da elevação ou diminuição da vulnerabilidade
(MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2005).
A importância desse enfoque reside no fato de permitir um olhar propriamente
geográfico da vulnerabilidade, e não apenas sua "espacialização" (utilizada
como sinônimo de localização). Esta abordagem parte das dinâmicas que
configuram uma dada espacialidade e procura circunscrever sua escala (uma
região, uma cidade, um ecossistema, um bairro), identificando nas interações
sociedade-natureza os riscos e perigos que atingem o lugar. Não se trata de
entender esta espacialidade enquanto substrato físico independente da
sociedade. Antes, a abordagem busca na delimitação escalar-espacial uma unidade
de referência para compreender o contexto da produção social do perigo em
conexão com o contexto geográfico. O resultado desta relação - suas tensões,
aberturas, estruturas de proteção e risco - permite identificar a
vulnerabilidade (MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2006a).
A vulnerabilidade é, portanto, um qualitativo, ou seja, envolve as qualidades
intrínsecas (do lugar, das pessoas, da comunidade, dos grupos demográficos) e
os recursos disponíveis (na forma de ativos) que podem ser acionados nas
situações de necessidade ou emergência. Assim, tanto o contexto social quanto o
geográfico possuem atributos que fornecem elementos para pessoas e lugares
estabelecerem seus sistemas de proteção. A relação entre o coletivo (o que não
está ao alcance direto de intervenção individual, pois é produzido socialmente
e historicamente) e o particular (aquilo que pessoas e lugares podem construir
de forma direta) é uma chave importante para compreender o desenho das
diferentes vulnerabilidades.
Nem o contexto social nem o geográfico são completamente coletivos ou
individuais. Ambos interferem diretamente nas duas escalas, fragilizando ou
protegendo. O primeiro pode ser tanto de longo prazo e de influência nacional,
quanto as características próprias do ciclo vital, classe social, família ou
das escolhas do padrão de mobilidade que uma família faz. Da mesma forma, o
contexto geográfico pode ser tanto o ecossistema, as dinâmicas de formação e
transformação da geomorfologia (topografia) e da hidrologia (drenagem), a
dinâmica climática ou até geológica (terremotos, vulcanismo, etc.), quanto os
atributos particulares do lugar, como o rio que passa por ali, um bosque, um
morro, etc.
Podemos entender a vulnerabilidade como neutra: não é negativa em si mesma, mas
refere-se à interação risco-perigo em um determinado lugar, onde certos grupos
e coletividades serão afetados (MARANDOLA Jr., 2008a). São os recursos e as
estratégias que estes terão para responder ao perigo (próprios ou externos,
coletivos), absorvendo seus impactos e danos, que determinarão como aquele
perigo afetará o espaço.
Quando o perigo supera a habilidade da população ou do lugar em responder ao
evento, pode configurar-se um desastre. A partir deste, a vida normal é
quebrada e há necessidade de recompor as perdas e danos. Essa recomposição
(retornar ao estado de vida normal) dependerá de capacidade acumulada para tal
regeneração, que é chamada de resiliência, um dos conceitos fortes que surgiram
na década de 1990 nos estudos sobre vulnerabilidade.
Outra resposta ao desastre é a adaptação, tanto individual quanto social, já
que em muitos casos há necessidade de adaptar a forma de construção, o padrão
de ocupação do solo, os hábitos em determinadas situações, adoção de protocolos
de emergência, etc. (Janssen; Ostrom, 2006). Ambas visam retomar o dia-a-dia
pré-desastre, reordenando o território e recuperando a chamada vida normal
(WISNER et al., 2004). Contudo, em nossa sociedade contemporânea, a normalidade
parece ser o risco: não há vida sem a ameaça. Em muitos lugares e para muitas
pessoas, conviver com o risco é a vida normal (Figura_1).
Nossa leitura de lugar está atrelada ao entendimento humanista que contribuiu
para o seu redimensionamento na ciência geográfica. Uma leitura de autores como
Edward Relph (1976), Yi-Fu Tuan (1975, 1980 e 1983) e Anne Buttimer (1980) leva
a uma compreensão fenomenológica do lugar enquanto categoria de análise
geográfica. Compondo a partir das diferentes contribuições, teremos uma
definição mais ou menos complexa e abrangente, passando a entender o lugar como
a menor célula espacial, na escala do corpo, que se relaciona com a casa, o
confinamento, a proteção e a identidade.
O lugar é conceituado na dimensão da experiência, perpassando as escalas
individual e coletiva, nas suas diversas esferas, e consubstanciando também as
escalas espaciais de ocorrência dos fenômenos físicos, sociais e identitários.
O lugar é, portanto, centro da afetividade e da razão sensível, constituindo-se
no foco da experiência humana. No entanto, o lugar também possui uma dimensão
coletiva, que diz respeito às relações históricas que a comunidade estabelece e
demarca no espaço. Em vista disso, monumentos, ruas, edifícios, parques, rios,
árvores, florestas, bancos de praça, um mastro ou mesmo uma paisagem podem
constituir lugares relacionados à historicidade, à memória e à identidade de
certo grupo. As experiências históricas são assim compartilhadas tanto pela
religiosidade ou mística do lugar, quanto pelos fatos vinculados ou impressos
naquela paisagem ou ambiente. É o que Jöel Bonnemaison (2002) chamou de
geossímbolos.
Essa cumplicidade entre o eu e o mundo foi expressa por Eric Dardel (1952) pela
sua noção de geograficidade estabelecida seja entre a comunidade e o lugar,
seja entre o indivíduo e o seu meio. Mais tarde, Tuan (1961), claramente
influenciado por Dardel, desenvolveu a noção bachelardiana de topofilia, que
expressa os laços afetivos e de envolvimento do homem com o ambiente,
constituindo-se, a partir deste envolvimento, o lugar.
No entanto, esse entendimento do lugar não o limita a uma dimensão existencial
ou afetiva. A ênfase nessa dimensão torna-se fundamental no contexto científico
de então, em que o positivismo e o cientificismo haviam retirado qualquer
possibilidade de considerar tais fenômenos essencialmente humanos na
investigação científica, em geral, e geográfica, em particular. As demais
dimensões da vida humana também tinham seu lugar, principalmente a partir da
noção de mundo vivido, trazida por Buttimer (1976) da fenomenologia de Husserl:
The place-environment component of the lifeworld may be equal in
value to the social, economic, and psychological dimensions that have
received more academic attention in the last several decades. In
short, one can again say without embarrassment that people are as
much geographical beings as they are social, cultural, or economic.
(SEAMON, 1980, p.194, grifo do autor)
Ênfase maior em outros aspectos da relação do homem com seu ambiente também foi
dada na obra de Relph (1976) e na sua conceituação dos placeless e
placelessness.3 O autor complexifica a discussão sobre o lugar, pensando
medidas diferenciadas de relacionamento com ele (posições em relação ao lugar)
e na sua própria constituição. Para isso, Relph diferencia lugares de
placelessness a partir dos conceitos filosóficos de autenticidade e
inautenticidade.
Para compreender a autenticidade dos lugares, Relph prioriza a produção do
espaço, principalmente por meio da ação do poder público, que cria e produz
lugares. Estes, quando representam uma descontinuidade em relação à
historicidade da comunidade, rompem a relação orgânica de produção da cidade e
de construção de lugares, constituindo-se, segundo o autor, em uma atitude
inautêntica, manifesta pela ruptura e pela não preocupação com o sentido do
lugar. Em situações como essa, com a fraca aderência entre pessoas e lugar, a
vulnerabilidade pode ser potencializada pela sua própria formação material e
simbólica.
Olhando para o lugar, nas suas várias escalas, tem-se uma unidade de análise
que permite abordar os riscos e perigos em sua dimensão fenomênica, ou seja, em
sua unidade essencial. Essa abordagem é importante para aumentar a compreensão
da vulnerabilidade em sua concretização na vida das pessoas. As teorias
sociais, enquanto teorias, servem para estimular nosso pensar sobre a
realidade, mas não podemos abdicar de uma discussão empírica dos riscos e
perigos. O grande desafio é articular escalas de ocorrência e análise dos
fenômenos e suas dimensões.
Lugares e perigos na Região Metropolitana de Campinas
Entendendo os lugares como unidades espaciais densas que são construídas na
intersubjetividade, historicidade e geograficidade, uma região se torna um
conjunto de lugares hierarquizados, de diferentes naturezas, que estabelecem ou
não relações entre si (FRÉMONT, 1980). Desse ponto de vista, quando se tem como
referência uma região metropolitana, que possui aspectos institucionais que a
delimitam, procuramos enfocar sua dimensão experiencial, vivida. Para nós,
independente da discussão que se possa desenvolver em torno do recorte oficial,
é importante compreender as tramas espaciais que constroem aquela região
enquanto um espaço vivido, o que nos permite pensar os lugares dentro desse
contexto. Em vista disso, o primeiro desafio foi compreender a Região
Metropolitana de Campinas (RMC), nosso campo de análise, enquanto uma região
vivida, interligada no âmbito do cotidiano, nos espaços de vida e na lida
diária das pessoas (MARANDOLA Jr., 2005, 2006; MARANDOLA Jr.; DE PAULA; PIRES,
2006).
Essa perspectiva da experiência nos permitiu olhar para a região como um
conjunto orgânico, um espaço heterogêneo de densidades variadas, composto por
caminhos, trajetos, lugares, conexões. Alguns espaços são mais densos e
intensos, outros mais dispersos e rarefeitos. As cidades e seus fragmentos não
pulsam no mesmo ritmo, mas há regiões que estão sintonizadas na mesma
frequência. A dinâmica que anima essas variações está associada a formas
específicas de relação população-ambiente, com níveis diferentes de peso de um
e de outro lado.
O resultado são situações e posições específicas que permitem compreender o
lugar em uma perspectiva contextual. A escolha de alguns lugares para pesquisa
procurava selecionar diferentes situações que trariam questões pertinentes para
a análise do lugar em si (seus atributos e relações) e para a compreensão da
região (aquilo que ele possui de exemplar). Como se trata de uma região com
mais de dois milhões de habitantes, qual recorte delimitaria lugares com maior
aderência a uma identificação individual, sem abstrações? O bairro nos pareceu
uma boa unidade de trabalho, por constituir aquele meio imediato à casa, o
lugar por excelência, não raro tornando-se extensão da própria residência
enquanto foco principal da experiência urbana, o ponto zero de todo o espaço de
vida. Por outro lado, compreender a formação dos bairros e as questões
referentes à sua inserção na cidade e na região congregaria outros aspectos
relacionados à organização espacial da metrópole, suas possibilidades e riscos,
conectando a dimensão mais íntima (casa, vida privada) à social (comunidade,
vizinhança), permitindo-nos ampliar o diálogo com toda a tradição de estudos da
ecologia humana e seus trabalhos sobre bairros e comunidades (Figura_2).
O primeiro local estudado foi a Ponte Preta, bairro consolidado de Campinas, ao
lado da região central, componente dos antigos arrabaldes da cidade (DE PAULA,
2005; MARANDOLA Jr.; DE PAULA; FERNANDEZ, 2007). Esse estudo foi fundamental
para ajudar a delinear muitos dos aspectos que seriam importantes nas pesquisas
seguintes.
Um primeiro aspecto importante foi perceber que, para a discussão qualitativa
da vulnerabilidade e dos riscos, seria necessário um primeiro estágio de
pesquisa em que a aproximação e o envolvimento com o lugar teriam que ser
buscados. Sem uma certa imersão e intimidade com a dinâmica do lugar, seu
"balé" (SEAMON, 1980), não seria possível compreender as tramas espaciais que
envolvem a forma como as pessoas lidam com as situações a que estão expostas.
Esta prática é reconhecida como essencial nos estudos qualitativos, o que nos
permitiu uma base de apoio metodológico de trabalho (ZALUAR, 1986; LAPLATINE,
1988). Mas, para o estudo da vulnerabilidade, uma maior densidade era
necessária.
De fato, pode-se dizer que, para uma abordagem qualitativa do espaço, de
qualquer temática, a etapa de conhecimento e envolvimento é o primeiro e
crucial passo. Nessa fase, delinear-se-á a base sobre a qual o pesquisador irá
construir sua pesquisa. Se essa primeira etapa for queimada, substituindo-se a
construção experiencial em campo por revisão bibliográfica, informações
secundárias ou de terceiros, grande parte do potencial de uma investigação
baseada no vivido será perdida, pois a base continuará sendo aquela mediada,
construída de fora para dentro. O esforço nesse tipo de trabalho é deixar que o
lugar se revele, que a experiência do pesquisador em campo contribua
fundamentalmente para a produção do conhecimento. Esta é a postura
fenomenológica de pesquisa, que busca o conhecimento tal como aparece na
experiência (MERLEAU-PONTY, 1971; HEIDDEGER, 2002).
Pensar o lugar enquanto unidade de estudo da vulnerabilidade, portanto, passa
inicialmente por se perguntar acerca da constituição fenomenológica daquele
lugar, que envolve tanto os atributos físicos quanto a produção social e
simbólica da intersubjetividade.
O trabalho de campo experiencial foi tomado como referência em todas as
pesquisas desenvolvidas. Este se insere na tradição de estudos fenomenológicos
em Geografia e nas ciências sociais, cujo fundamento é a compreensão da
experiência vivida (ROWLES, 1978; BERGER; LUCKMAN, 1979; MANEN, 1990), aliando
uma perspectiva hermenêutica (interpretativa) dos relatos orais (narrativas)
com a descrição fenomenológica da experiência (GEORGE; STRATFORD, 2005). Isso
implica transcender a separação sujeito-objeto, promovendo o entrelaçamento do
ser com o outro (homem, lugar, ambiente). A meta destas pesquisas é a
compreensão do mundo vivido, ou seja, a experiência vivida, que envolve a
volição, a intencionalidade e o conhecimento intuitivo, imediato, oriundo do
encontro do ser cognoscente com o mundo (MERLEAU-PONTY, 1971).
Neste contexto, a descrição é um procedimento que não se refere a uma
enumeração banal. Antes, envolve o cuidado de permitir ao objeto aparecer, ou
seja, ser revelado tal como é vivido (HUSSERL, 1986). A descrição
fenomenológica implica um trabalho de escavação dos sentidos mais originais em
busca de sua essência, mesmo que se mantenha a dúvida sobre o êxito final de
alcançá-los (ALES BELO, 1998).
A pesquisa engloba, portanto, a experiência dos pesquisadores, que estão
comprometidos com o conhecer espacialmente os lugares estudados, implicando um
envolvimento que vai além da verificação ou de meras impressões (MANEN, 1990).
Os significados são compartilhados - a intersubjetividade (SCHUTZ, 1979) -,
estando a pesquisa fenomenológica atenta à forma não só como estes sentidos são
construídos, mas, sobretudo, como eles aparecem em experiências vividas.
Estes pressupostos epistemológicos, convertidos em prática de campo, trazem
implicações latentes, tais como as discutidas por Rowles (1978): envolvimento
com os participantes; investimento de longo tempo; pequeno número de
participantes (pesquisados e pesquisadores); e inferência indutiva. Estas
implicações refletem-se tanto na condução (uma atitude diante da pesquisa e dos
temas em questão) quanto na forma de apresentar os resultados oriundos dela.
Por serem experiências vividas e pela presença significativa da indução, muitas
das questões levantadas não são passíveis de mensuração nem de experimentação.
A pesquisa reverbera os fenômenos estudados tal como aparecem (o sentido da
palavra fenomenologia) na experiência, buscando nas camadas de mediação e de
sentidos, nas quais estamos todos imersos, os sentidos originais e permanentes
que constroem, coletivamente, o significado dos fenômenos (MARANDOLA Jr.,
2005a).
Para adensar alguns aspectos referentes à vulnerabilidade na Ponte Preta,
realizamos pesquisa sobre a Praça das Águas, um dos poucos espaços públicos do
bairro, inaugurado durante a pesquisa. Foi muito importante acompanhar o
processo de abertura de um espaço em meio à densidade construída e de ruas
estreitas do bairro, sua apropriação intensa no início e o subsequente declínio
(MARANDOLA Jr., 2005b).
Hoje, a praça encontra-se muito abandonada e a necessidade de incorporar o
espaço público ao espaço privado das casas e apartamentos foi superada pelo
medo e pela repulsa que a condição deteriorada da praça causou. O que no início
foi um feliz encontro com o espaço tornou-se em pouco tempo um reencontro com o
risco, e as críticas ao projeto e à forma de gestão daquele lugar superaram a
necessidade que o bairro tinha dele. A intervenção de cima-para-baixo,
produzindo um placelessness, mostrou-se, no final, uma pretensão governamental
por não ter incorporado as demandas sociais do lugar.
Nossos estudos subsequentes levaram em conta isso, aprofundando aspectos
distintos da constituição dos lugares e procurando abarcar diferentes bairros
para poder ampliar o escopo das questões. Se a Ponte Preta nos mostrou que os
espaços públicos, como a Praça das Águas, são fundamentais para compreender um
lugar e que um bairro pode conter uma unidade simbólica sob a toponímia, mas
não as mesmas condições de vida (a fragmentação da paisagem produz diferentes
lugares dentro de um bairro), o São Bernardo trouxe um exemplo mais bem acabado
da fragmentação intrabairro. Dividido em dois, internamente, Alto e Baixo São
Bernardo compõem lugares diferentes para os-de-dentro, embora sejam vistos como
um bairro só para os-de-fora. Com territórios vividos de forma distinta, são
paisagens específicas separadas e que não se misturam. E são justamente seus
espaços públicos que expressam a diferença entre as duas vizinhanças: as praças
e ruas do Alto São Bernardo não dão abrigo aos seus moradores, ao contrário do
Baixo São Bernardo, que tem ruas e praças sempre ocupadas pelas pessoas do
lugar. Nesta área, o espaço público é extensão do espaço privado da casa,
incorporado à proteção, enquanto na parte alta o espaço público é o lugar do
risco, separado por grades altas e sistemas de segurança do espaço privado (DE
PAULA; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2007a).
A diferença de uso e característica do espaço público, na verdade, expressa
formas distintas de proteção e interação social, qualidades intrínsecas aos
lugares e paisagens dos dois fragmentos do bairro.
Mas qual a natureza da constituição desses diferentes fragmentos territoriais?
O estudo sobre os DICs (Distritos Industriais de Campinas) nos permitiu avançar
nesse sentido, identificando nos diferentes territórios vividos elementos
comuns que davam ao conjunto dos DICs (na verdade, um conjunto de pequenos
bairros planejados pela Cohab-Campinas e várias invasões) uma unidade enquanto
sentido de vizinhança. A identidade territorial é construída a partir da
memória urbana e da experiência coletiva de um devir histórico e geográfico
comum, que se estabelece no desenvolvimento do bairro e liga a história pessoal
à história urbana.
A mobilidade e a permanência são elementos centrais para compreender esses
processos, já que o bairro foi constituído enquanto periferia no seu sentido
pejorativo, com todas as carências sociais e infraestruturais, mas mesmo assim
foi capaz de reter sua população ao longo do tempo. Esta encara como vitoriosa
sua permanência, pois o lugar foi densificado e significado ao longo do tempo,
recebendo atributos (físicos, sociais e afetivos) que lhe dão condição de
território capaz de fornecer segurança a seus moradores (DE PAULA; MARANDOLA
Jr., 2007; DE PAULA; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2007b).
Discutimos o reverso dessa permanência a partir de pesquisa realizada no
condomínio Residencial Parque dos Sabiás, localizado na cidade de Sumaré
(MARANDOLA Jr., 2008b). Esse condomínio de classe média reúne uma população de
maioria migrante com alta rotatividade. Grande parte mudou-se para a cidade por
motivo de trabalho e tem todo seu espaço de vida organizado a partir das
rodovias que cortam a região. A opção por um condomínio, mesmo que não de alto
padrão, é justificada pela segurança, já que, por não conhecerem a cidade,
acabam não se sentindo seguros em escolher residências nos bairros. O
condomínio não oferece nenhum item de segurança além dos muros e da guarita,
mas esta condição é suficiente para justificar sua escolha.
A partir desse estudo, pudemos perceber melhor que o conhecimento espacial do
lugar é fundamental na constituição da vulnerabilidade, já que os migrantes (os
de fora) não possuem referências espaciais locais para orientar-se, o que torna
todos os lugares potencialmente perigosos, diferente dos estabelecidos, que,
utilizando-se da tradição e da memória, já possuem os lugares seguros
preestabelecidos ou construídos ao longo do tempo, podendo usufruir de uma
condição herdada que lhes oferece estratégias e recursos (sociais, físicos e
existenciais) de alcançar a segurança. Migrantes de estratos médios e
superiores tendem a buscar os lugares de segurança no circuito metropolitano de
lugares globais, mantendo-se não raro à parte do sistema do lugar e dos
moradores mais antigos, o que expõe cada grupo a riscos e perigos diferentes e
resulta, consequentemente, em vulnerabilidades distintas.
Esses estudos foram avanços no sentido de melhor compreender a importância do
lugar na constituição das diferentes vulnerabilidades. Contudo, precisávamos
aprofundar estas questões, o que foi feito tomando-se novas localidades como
foco da vulnerabilidade do lugar.
Escolhemos três lugares na RMC que pudessem trazer diferentes questões
referentes aos riscos e perigos e à própria natureza dos lugares: Jardim
Amanda, em Hortolândia; o bairro Mansões Santo Antonio, em Campinas; e o trecho
da Via Anhanguera entre Campinas e Sumaré. Agora na segunda etapa do estudo,
estes lugares nos ajudaram a dissipar as dúvidas que restavam sobre as
variáveis ecológicas da vulnerabilidade, trazendo novas e importantes
orientações metodológicas. Em primeiro lugar, projetos idênticos foram tomando
rumos próprios, obedecendo às particularidades dos lugares.
O Jardim Amanda é um conhecido bairro que carrega a imagem de periférico no
município de Hortolândia, que, por sua vez, também possui esta imagem no
imaginário da RMC. Ali, à semelhança dos DICs, um bairro com acentuadas
carências sociais passa por um processo de consolidação, ainda não concluído,
que melhora sensivelmente as condições de vida do bairro e torna-o passível de
retenção de população. Com aproximadamente 50.000 habitantes, é um bairro de
proporções de cidade que mantém elevados índices de pendularidade,
principalmente para o centro metropolitano (DE PAULA, 2008; DE PAULA, MARANDOLA
Jr.; HOGAN, 2008). No entanto, pela sua posição (fica descolado do centro de
Hortolândia e às margens da rodovia que liga Campinas à cidade de Monte Mor), é
provável que seus moradores tenham padrões de mobilidade variados em diferentes
direções.
Além da importância da memória e da história migratória no desenho das
vulnerabilidades, o estudo do bairro tem revelado outros aspectos que se
referem à condição duplamente periférica (cidade e bairro) e aos processos
sociais e espaciais do próprio lugar em se transformar e em promover, ao longo
do tempo, segurança, fatores especificamente demográficos que ainda estão sendo
investigados (DE PAULA; MARANDOLA Jr., 2009).
O estudo do bairro Mansões Santo Antônio traz outros elementos que enriquecem
as análises. Local de contaminação do solo por uma indústria de solventes
desativada em meados dos anos 1990, essa bem localizada área de Campinas tem
sofrido nos últimos dez anos um intenso processo de incorporação e especulação
imobiliária. Sua paisagem, de chácaras de lazer ou pequenas moradias, tem se
modificado intensamente, com o surgimento de edifícios residenciais de alto
padrão que marcam o skyline da cidade.
O caso da contaminação veio à tona quando a construção de um edifício foi
realizada sobre o terreno da antiga indústria, acumulando gases na garagem do
prédio. A imprensa acompanhou o processo, gerando muita especulação sobre os
altos investimentos na região. No entanto, a exemplo de outros casos de
contaminação, há um hiato entre a identificação do risco, a percepção da
população e a sua comunicação, as quais obedecem a diferentes lógicas. A
vulnerabilidade do lugar não pode ser apenas a equação das análises de risco,
devendo considerar também a questão do estigma e da própria desvalorização
econômica.
Assim como em Cubatão ou em Adrianópolis, onde as populações negaram a
contaminação entendendo que admiti-la ou dar-lhe ênfase seria uma forma de
denegrir seu próprio lugar (HOGAN, 1993; DI GIULIO, 2006), também no bairro
Mansões Santo Antônio o risco associado à contaminação não é valorizado por
seus moradores, que não consideram o fato um problema ou preferem não dar
destaque a ele (FOGLIARINI, 2008). A vulnerabilidade do lugar, ali, precisa
incorporar o processo de comunicação do risco e a sua construção social em pelo
menos dois contextos: dos moradores antigos do bairro (que ainda estão nas
chácaras) e dos novos moradores que chegaram depois. O envolvimento dos dois
grupos com o lugar é evidentemente outro, e isso interfere não apenas na sua
percepção do risco, mas também na sua vulnerabilidade.
Por fim, o terceiro lugar que estamos investindo nesse momento é o trecho
metropolitano da Rodovia Anhanguera entre Campinas e Sumaré, que constitui a
parte de maior intensidade de conexão e interações espaciais na região, com
conurbação e o convívio de dois trânsitos: o regional e o local-orgânico.
Propomos pensar a Anhanguera como lugar por conta de seu papel simbólico e
estrutural no espaço urbano das duas cidades, especialmente no de Sumaré. A
Anhanguera estrutura o espaço da cidade, sendo mais central para a maior parte
dos seus mais de 230.000 habitantes. Por todo o trajeto entre as duas cidades,
a rodovia corta a área do município, organizando não apenas o trânsito e a
malha viária dos bairros, mas também a vida cotidiana. Ela é o grande eixo que
liga os bairros das áreas do Matão, Maria Antônia, Área Cura, Nova Veneza e
Dallorto, exercendo mais centralidade do que o próprio centro tradicional. Em
virtude da distância, esses bairros possuem uma ligação muito próxima com o
centro de Campinas, que é acessado pela rodovia, o que faz dela o grande eixo
estruturador da região (MARANDOLA Jr., 2008a).
Contudo, ao mesmo tempo em que conecta e permite aglutinar, a rodovia exerce um
papel desagregador e segregador (ROSAS, 2008; ROSAS; HOGAN, 2009). Bairros de
um lado e do outro da Via Anhanguera são lugares distintos, sem conexão. As
várias passarelas ou viadutos não são suficientes para promover a integração
dos fragmentos, o que resulta em diferentes condições de acessibilidade que, em
áreas de urbanização dispersa, podem significar acesso a bens, serviços ou até
ao mercado de trabalho. Em vista dessa fragmentação, a experiência da rodovia é
muito diferencial para aqueles que moram no seu entorno e para aqueles que
apenas passam por ela (ROSAS; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2008). O meio de transporte
utilizado é a diferença central, trazendo distintos perigos dependendo do tipo,
frequência e até horário em que se utiliza a rodovia. Nesse caso, aprofundar as
possibilidades de envolvimento com o lugar-rodovia é fundamental para podermos
compreender as diferentes situações de risco e as estratégias e capacidades de
resposta aos perigos.
Todos esses trabalhos tinham uma liga comum: estavam concentrados na sede e
numa porção da RMC que, por vários motivos e critérios, pode ser encarada como
a mais intensa e de relação mais orgânica - a microrregião noroeste. O estudo
dessa região nos permitiu produzir um amálgama entre os estudos dos lugares,
contextualizando cada um num todo, numa escala mais próxima daquela primeira
perspectiva da experiência da RMC como um todo.
Essa microrregião, centralizada por Americana e composta por Nova Odessa, Santa
Bárbara d'Oeste e Sumaré, apresenta relações orgânicas mais fortes internamente
do que com o centro metropolitano. Os espaços de vida nessas cidades conformam
um mesmo conjunto de trajetos e itinerários, apresentando-se como um todo
urbano único, onde as funções e equipamentos são complementares entre as
cidades. Apesar de ter um centro e de manter as relações com Campinas, como
maior referência, no âmbito da experiência há pouca hierarquia entre elas,
apresentando-se como alternativas igualmente viáveis dependendo da situação
(MARANDOLA Jr., 2008a).
De fato, a potencialidade da mobilidade não é apenas um dos pontos-chave que
conduziram a microrregião à sua atual integração e conurbação, mas é sobretudo
um dos seus pontos ambivalentes de risco-proteção mais significativos. A
mobilidade, ao invés de se constituir enquanto risco (desagregação do lugar,
enfraquecimento dos laços comunitários e de vizinhança, fragilização da casa e
da família), é também estratégia de segurança, à medida que permite aproximar e
mobilizar recursos (sociais, físicos e simbólicos) distantes no espaço. Assim
como o lugar não é mais a única forma de estar seguro, a mobilidade também não
significa mais o risco total (MARANDOLA Jr., 2008a; 2008b).
Pensando a região como espaço vivido e a mobilidade como contraponto ao lugar,
temos assim uma possibilidade de interlocução entre os diferentes lugares
estudados. Os espaços de vida estruturam as interações espaciais e permitem
olhar para a região a partir da experiência, ajudando a conectar experiências
individuais a construções coletivas. Os territórios, construídos entre lugares
(pausas) e trajetos (mobilidades), são fundamentais para compreender a
constituição da segurança-insegurança com bases espaciais, individuais e
coletivas. A casa, nesse contexto, apresenta-se como elemento importante na
medida em que é o ponto zero de onde partem os deslocamentos e o lugar a partir
do qual organizamos todo nosso cotidiano. Por outro lado, a tendência de que
ela se torne o único ponto fixo da metrópole (ASCHER, 1998) aumenta sua
importância na constituição da vulnerabilidade, sendo fundamental olhar para
ela, em todas as suas dimensões, para podermos pensar a vulnerabilidade num
sentido que ultrapasse o estritamente físico ou populacional, permitindo buscar
a relação orgânica entre eles.
Novas questões e uma agenda de pesquisa
Mesmo que esses estudos tenham apontado aspectos importantes para a compreensão
da vulnerabilidade do lugar, notamos dificuldade em operacionalizar, em cada
caso, aspectos mais fortes ou mais evidentes que fossem diretamente ligados à
vulnerabilidade. Isso se mostrou, para nós, como uma indicação de que é
provável que o problema seja a forma como estávamos encarando a
vulnerabilidade. Em primeiro lugar, não se estuda a vulnerabilidade, algo
intangível e conceitual. Ela se revela por meio de outros elementos que, estes
sim, são escrutinados pela pesquisa. Riscos e perigos são o foco, as estruturas
e os qualitativos disponíveis para que o lugar (pessoas, comunidades) possa
movimentar-se quando em risco ou em face do perigo. Assim, a discussão sobre
vulnerabilidade sempre nos conduz a pensar sobre insegurança e sistemas de
proteção, que abrem uma perspectiva fundamental para que possamos identificar
elementos que ajudam a compor a vulnerabilidade.
A ideia de um atlas de lugares pode ajudar a pensar áreas grandes em termos de
sua vulnerabilidade. Se estudos que priorizam a escala grande conseguem abarcar
grandes áreas a partir da simplificação dos fatores envolvidos, estudos em
pequena escala conseguem aprofundar elementos específicos em cada caso,
permitindo, a partir da compreensão do fenômeno, pensá-los enquanto essências,
ou seja, enquanto fatos do mundo. Uma amplitude considerável de lugares com
diferentes características e situações, amarrados por um plano espacial mais
amplo comum (como a região), permite esse tipo de análise, por compartilhar um
mesmo contexto espacial e essencial (circunstancialidade) que lhes dá coesão.
Por outro lado, o lugar pode ser adensado à medida que aumentamos nossa
capacidade analítica em outros campos. Em cada estudo que temos feito, há uma
dimensão demográfica pouco explorada, tais como as composições etárias, a
organização da família e o ciclo vital. Estas variáveis são componentes
essenciais dos lugares e ajudam na sua compreensão ecológica. As comunidades ou
os territórios são fenômenos, o que implica uma perspectiva holística e
integrativa na sua leitura, que focaliza a relação entre os elementos naquele
determinado contexto em sua circunstancialidade. Esta é fundada numa dupla
característica de singular e universal que permite olhar para lugares enquanto
exemplares e ao mesmo tempo únicos, permitindo à pesquisa avançar a partir de
casos específicos. Mas, para isso, é necessário abrir as possibilidades de
incorporação de matrizes causais a perigos específicos. Mas quais riscos
selecionar?
Tomando a postura metodológica aqui desenvolvida, é necessário não delimitar os
perigos a priori. Isso fecharia as possibilidades das inter-relações relevantes
e de identificar os fatores que interferem na constituição da vulnerabilidade.
Talvez essa seja a maior diferença em orientar a pesquisa pela perspectiva da
vulnerabilidade do lugar e não da vulnerabilidade social ou sociodemográfica. O
lugar circunscreve uma situação da relação população-ambiente, permitindo
acompanhar suas interações em dado espaço-tempo social e cultural. A pergunta
"vulnerabilidade a que?" não é feita no início, pois a vulnerabilidade é
entendida como qualitativo, neutra portanto, característica própria dos
fenômenos diante de todas as situações.
Mas para que isso se efetive, é necessária profundidade no estudo dos lugares.
O envolvimento característico de pesquisas qualitativas exige tempo e
constância para que o processo do pesquisador de ultrapassar a linha imaginária
que separa os-de-dentro e os-de-fora possa se efetivar, conseguindo compreender
os lugares pelo olhar do outro, daquele que o experiencia diretamente.
Em termos analíticos, entendemos que alguma forma de organizar os lugares a
partir de tipos ideais seria de valia na tentativa de encontrar traços
essenciais que possam ajudar a compreender os processos de maneira mais ampla.
Nesses primeiros estudos, podemos ensaiar uma aproximação preliminar com uma
tipificação dos lugares estudados, conforme o Quadro_1. Os temas escolhidos
para a tipologia permitem dar ênfase a certos aspectos, tornando visíveis
diferenças ou semelhanças. É evidente que olhar por vários ângulos nos ajudará
a identificar elementos diferentes revelados pelas especificidades dos lugares.
Por outro lado, a identificação daquilo que é mais essencial em cada um é
importante para balizar as classificações, não caindo num montar e desmontar de
um quebra-cabeça sem sentido.
Utilizamos variáveis ecológicas num esforço de identificar aspectos comuns que
permitam a discussão dos lugares a partir de suas semelhanças e diferenças. Em
vista disso, nesse primeiro esboço, há uma prevalência de aspectos que
caracterizam, no sentido da produção e organização do espaço, os lugares. Esses
aspectos (como a situação quanto à incorporação, a posição na cidade e na
região e o próprio uso do solo) expressam a espacialidade, ou seja, os aspectos
materiais da reprodução social, que compõem a matriz causal da vulnerabilidade,
servindo também de contextualização para uma análise dos lugares. Contudo,
orientando-se pela fenomenologia, essa espacialidade é re-significada a partir
da própria experiência, a qual atribui valores e redefine as distâncias e os
ritmos utilizando outras lógicas e racionalidades.
Apesar dessa diferença, a espacialidade é parte integrante dos lugares,
ajudando na composição da trama que os anima. Por outro lado, aspectos
importantes como o tempo de residência nos lugares são fundamentais para
podermos compreender os laços de envolvimento espacial das pessoas. Em vista
disso, definir melhor a condição de migrante do próprio bairro (predominam
migrantes ou não-migrantes?) e das pessoas (quantos anos são necessários para
consolidar relações no lugar?) é necessário para melhor entender as condições e
recursos que as pessoas dispõem para lidar com os perigos.
Outro aspecto a ser considerado refere-se ao fato de que as questões ambientais
propriamente ditas dificilmente aparecem como relevantes sem que haja uma
dedicação específica do pesquisador ou alguma situação muito significativa no
lugar. Isso se deve principalmente à forma como ainda lidamos com o ambiente,
que, apesar dos progressos em termos de tomada de consciência, ainda não faz
parte da principal pauta de preocupações das pessoas.
Isso, de fato, não chega a ser um problema, desde que tomemos o ambiente no seu
sentido mais amplo, envolvendo o ambiente construído tanto quanto aquele da
natureza. As cidades são os ambientes humanos por excelência nesse século. Por
isso, considerar as variáveis ecológicas, numa perspectiva relacional, nos
permitirá discutir as relações referentes a população e ambiente a partir de
questões que sejam pertinentes ao bem-estar e à qualidade de vida das pessoas,
a preocupação que acompanha e motiva tais estudos.
Nossa velha questão, portanto, recebe outra dimensão. Pensar a flecha causal
P→A ou A→P, hoje, envolve pensar a relação sociedade-natureza em seu
significado humano radicalizado. O ambiente vivido, tecnificado e mediado não é
aquele das relações regionais em ecossistemas tradicionais. A realidade
brasileira apresenta desafios mais complexos aos estudos de população, que,
mesmo nas grandes regiões agrárias ou florestais, têm de lidar com a presença
da sociedade urbana. A velha questão, portanto, parece ter sido invertida na
medida em que a influência do ambiente sobre os homens é vista na forma de
males (riscos e perigos). Nos ambientes metropolitanos, foco de nossa
investigação e reflexão, a espacialidade e a abordagem ecológica (trabalhada
nos moldes fenomenológicos) têm apontado caminhos para pensar a relação P-A em
seu duplo movimento, indicando a importância da abordagem do lugar por focar-se
na circunstancialidade das interações P-A em dado contexto espaço-temporal,
geográfico e demográfico.
Mesmo que não tenhamos novas respostas à velha questão, problematizá-la já faz
parte do caminho de redescoberta do sentido do habitar contemporâneo, expressão
maior da relação da população em seu ambiente.