Ser migrante: implicações territoriais e existenciais da migração
Introdução
Que é ser migrante? Esta pergunta expressa a preocupação em pensar o fenômeno
migração na forma como este é vivido. Em termos fenomenológicos, a atenção
recai sobre a forma como o fenômeno aparece na experiência. Essa pergunta
expressa também uma preocupação ontológica original: o migrante é um ser
deslocado, movido de seu lugar primevo. E é neste deslocamento que procuramos o
significado do que é esta condição.
A tradição dos estudos migratórios consolidou uma série de questões
fundamentais que giraram em torno das leis da migração (RAVEINSTEIN, 1980) e
dos motivos e forças sociais que atraem ou expulsam as populações, enquanto
reflexos da própria estruturação produtiva do capital e de suas necessidades.
Neste sentido, os movimentos se davam por classes, não por indivíduos que
decidiam isoladamente migrar (SINGER, 1973). Versões clássicas, estruturalistas
ou pós-estruturalistas elaboraram estas e outras perspectivas para explicar a
lógica dos processos de redistribuição espacial da população e suas diferentes
consequências.
No entanto, apesar destas bases comuns, enquanto fenômeno complexo e
multifacetado, a migração é estudada no contexto dos estudos populacionais,
recebendo a confluência de abordagens e disciplinas que, cada qual com suas
preocupações e objetos, compõem um grande quadro sobre o migrante, seus
movimentos, os processos materiais, as consequências e implicações em
diferentes escalas, os simbolismos e as transformações culturais. Conforme
mostram Brettell e Hollifield (2008), cada disciplina possui sua questão de
pesquisa, os níveis ou unidades de análise, teorias dominantes e hipóteses
orientadoras das investigações.
A intensificação dos fluxos migratórios no período pós-1990, com a crescente
mobilidade planetária e novos desenvolvimentos na área de transportes e
comunicação, no entanto, tem produzido reflexos diretos nos estudos e teorias
migratórias (FAVELL, 2008). A velocidade, intensidade e diversidade
contemporâneas dificultam muito a apreensão dos fluxos e das dinâmicas que têm
ritmos espaço-temporais muito variados, além de uma diversidade nunca vista.
Diferente da modernidade sólida, para usar uma expressão de Bauman (2001), na
modernidade líquida a fluidez é a tônica das instituições, relações sociais,
mercado e até da esfera cotidiana. Isso deixa os cientistas sempre num terreno
pantanoso no que se refere à apreensão da realidade e seu estudo.
Esse cenário produziu pelo menos dois rebatimentos em termos das tendências dos
grandes paradigmas científicos: a ênfase nos processos identitários, da esfera
do cotidiano e dos microprocessos; e a atenção à dimensão espacial dos
fenômenos (SANTOS, 2000; MASSEY, 2008). Nos estudos migratórios, observam-se
alterações nas tradicionais abordagens explicativas das migrações
(estruturalistas), com fortalecimento da atenção na identidade e nos elementos
simbólicos do processo (AHMED, 1999; PADILLA, 2009). Por outro lado, a dimensão
territorial das migrações tem ganhado importância, tanto em termos dos
territórios migrantes quanto dos estudos de lugares e espaços específicos
diante do fenômeno migratório (RAFFESTIN, 2003; SAQUET, 2007).
No entanto, a maior parte desta bibliografia enfoca o tema pelo viés
sociocultural, dos grupos e de suas práticas, não estando direcionada para as
questões propriamente existenciais destas transformações. Por outro lado, a
dimensão espacial, via território, continua sendo entendida, sobretudo, como
metáfora, ou por um viés materialista, que limita o território às relações de
poder estabelecidas por forças econômicas ou políticas.
A Geografia é a disciplina em que estas abordagens estão potencialmente
conciliadas. Ela é mais do que o estudo de padrões espaciais da migração,
envolvendo uma gama de processos e fenômenos constituintes dos lugares, das
redes e dos fluxos (HARDWICK, 2008). Favell (2008) chama atenção para o
potencial da análise contemporânea da Geografia, que considera o lugar enquanto
dotado de significado e dinâmica cultural, permitindo um olhar para as
dinâmicas próprias do e no espaço, ontologicamente integrante da população que
ali vive. Para avançar nesse sentido, é necessário trilhar esta reflexão
ontológica de fundo, superando a dissociação moderna espaço-sociedade, em busca
de uma abordagem eminentemente existencial-fenomenológica.
No contexto dos estudos migratórios, a dimensão existencial está parcialmente
contemplada pelos trabalhos historiográficos, que tomam a migração enquanto
narrativa e memória (DINER, 2008). Com seus estudos clássicos sobre a condição
do estrangeiro e sua adaptação, Georg Simmel (1983; 1994) foi pioneiro em
trazer a dimensão individual para uma análise social dos processos ligados à
migração e à própria sociedade. Outras disciplinas que contribuem para este
olhar são a Psicanálise e a Psicologia, que buscam compreender os impactos do
processo migratório para a identidade e a personalidade (VIANA, 1978; DeBIAGGI;
PAIVA, 2004; OLIVEIRA, 2005; FUKS, 2005).
Como uma mobilidade em si, a migração é um fenômeno que envolve tanto a
materialidade quanto a produção social e a corporeidade, necessitando destes
três polos para ser compreendido (CRESSWELL, 2006; KELLERMAN, 2006). Estas
dimensões têm sido exploradas de maneiras diferentes, mas nunca enfrentadas de
forma direta pelos estudos migratórios ao mesmo tempo. A dimensão territorial
tem sido vista como organização espacial ou como a dimensão legal das migrações
internacionais (sempre com um viés materialista do território), enquanto a
dimensão existencial tem aparecido em estudos antropológicos, históricos,
psicossociais ou psicanalíticos. Mas a dimensão propriamente geográfica dos
processos de territorialização e desterritorialização só tem sido abordada
muito recentemente, e não necessariamente numa perspectiva existencial.
O contexto em que tais estudos têm florescido é o das discussões contemporâneas
sobre a modernidade líquida, os novos nomadismos e as redefinições das
identidades territoriais. Cresceu nos últimos dez anos a fileira dos geógrafos
dedicados a tirar a dimensão territorial de simples metáfora para chão ou solo,
perspectiva que proliferava em toda a bibliografia sobre hibridismos,
transculturalismo, mudanças culturais e globalização (BADIE, 1996; HALL, 2003;
2009). Alguns autores, como Mesquita (1995), Haesbaert (2004; 2008), Saquet
(2007; 2009) e Raffestin (2003, 2009), têm se dedicado de forma mais
sistemática a esta discussão, com suas respectivas abordagens e preocupações de
fundo. Destaque especial merece Jöel Bonnemaison (BONNEMAISON; CAMBRÉZY, 1996;
BONNEMAISON, 2002[1981]; 2005), que, em seus estudos tropicalistas, foi um dos
primeiros a pensar o território em sua dimensão cultural, chegando a considerar
o território, junto com o lugar, como um paradigma para a nova geografia
cultural em desenvolvimento nos anos 1990.
Nosso ponto de partida, no entanto, é diferente do deles, embora corra em
paralelo. Se os autores se concentram em compreender as implicações para os
grupos, nosso enfoque se direciona para existência e, a partir dela, podemos
pensar os grupos. É na experiência da migração que buscamos compreender que é
ser migrante. Assim, migrar é sair do seu lugar, envolvendo processos de
redefinições das territorialidades, que não são necessariamente sucessivos nem
ordenados. Que significa, para a constituição da identidade e do eu, o
rompimento da ligação original ser-lugar natal? Em termos ontológicos, há um
abalo na segurança existencial e na identidade territorial que precisa ser
compreendido como elemento central do processo migratório.
Este texto é uma aproximação ao tema, um convite à sua discussão e suas
implicações para pensar as migrações e os migrantes na contemporaneidade na
área dos estudos populacionais. Exploraremos alguns elementos que ligam ser-
lugar enquanto relação fenomenológica originária, buscando, a partir desta
perspectiva, compreender as implicações territoriais e existenciais da
migração, pesando o papel dos grupos e coletividades, mas focando as
repercussões tais como são experiencialmente vividas.
Migrar: desestabilização ser-lugar
Se a pergunta que guia o texto é "que é ser migrante?" e a busca por sua
resposta está na territorialidade e na existência, dois termos são centrais
para esta construção: lugar e ser. Mais importante ainda, a essência fenomênica
ser-lugar é central para se pensar em termos ontológicos a questão em tela.
Casey (2001) afirma que não há lugar sem homem, nem homem sem lugar. Esta
afirmação revela a compreensão ontológica da espacialidade a partir da qual
existe a indissociabilidade ser-lugar, homem-espaço. Somos nossos lugares,
assim como eles nos são. Não estamos no espaço: somos sendo espacialmente
(HEIDEGGER, 2001a).
A filosofia fenomenológica vem contribuindo de forma notável nos últimos anos
para esta compreensão cada vez mais precisa e ao mesmo tempo ampla da
espacialidade do ser. Uma longa tradição de pensamento sustenta esta
perspectiva, desde os gregos, embora as bases mais sólidas tenham se
consolidado a partir da fenomenologia do século XX, principalmente com
Heidegger e Bachelard (BOLLNOW, 2008). O primeiro deles é especialmente
importante neste sentido, já que, perseguindo a questão ontológica fundamental,
erigiu um conjunto de reflexões que colocam o lugar e o espaço como centrais
para pensar a existência (MALPAS, 2008; SARAMAGO, 2008).
Nessa perspectiva, a dimensão territorial refere-se à própria constituição do
ser, enquanto área de controle (mesmo que simbólico) que permite a continuação
da existência, fornecendo a chamada segurança ontológica (GIDDENS, 2002). É
esta segurança que permite ao ser continuar sendo, ou seja, manter-se vigente,
existindo no mundo (HEIDEGGER, 2001b).
Sack (1997) aborda a dimensão existencial da relação com o lugar a partir do
self (eu), entendendo a relação self-lugar como uma teia indissociável de mútua
constituição. Para ele, ambos estão no centro de constituição da pessoa e do
espaço, sendo o ponto no qual os fenômenos e dinâmicas de outras esferas se
embatem na realidade geográfica. Segundo o autor, o self é composto pela
natureza, pelos significados e pelas relações sociais, tanto quanto o lugar, e
é por isso que ambos apresentam personalidades específicas em cada tempo.
O processo de desenraizamento original iniciado pelo movimento migratório se
dá, em termos existenciais, pela alteração da territorialidade consolidada, a
modificação desta relação originária self-lugar, saindo do lugar-natal, o que
implica deixar os lugares de infância, juventude ou idade adulta, responsáveis
pela nossa formação enquanto pessoa e sobre os quais está edificada nossa
identidade. Implica, portanto, sair dos territórios da segurança e lançar-se no
mundo, em lugares de pouca ou nenhuma familiaridade, onde há pouco ou nenhum
controle, uma das raízes da insegurança (MARANDOLA Jr., 2008a).
A bibliografia clínica e antropológica elenca um razoável número de estresses e
lutos causados pela experiência migratória, relacionados às várias perdas,
desorientações e incertezas consequentes da mudança. O local de destino
representa uma nova realidade para o migrante em termos tanto culturais quanto
espaciais. A bibliografia clássica indica alguns dos processos que ocorrem
neste devir, tais como a integração, a assimilação, a separação ou a
marginalização (BERRY; POORTINGA, 2002), constituindo o processo mais geral de
adaptação do migrante, que envolve não apenas questões comportamentais e
culturais (HOGAN, 1974), mas também adaptações do seu próprio modo de ser. Como
a adaptação nem sempre é possível (nem sempre a pessoa tem condições mentais de
realizá-la), o desgaste emocional pode se avolumar a ponto de gerar a chamada
Síndrome do Migrante, ou Síndrome de Ulisses (PASQUA; MOLIN, 2009).
A expressão antropológica deste processo é o embate entre migrantes e
estabelecidos, problemática clássica de todos os estudos sobre alteridade,
adaptação cultural e migração (insiders e outsiders) (ELIAS, 1994). O outro é o
desconhecido, que ameaça o eu e sua pureza, provocando o medo e a repulsa e,
não raro, reações hostis que podem gerar estigmatização (GOFFMAN, 1982; BAUMAN,
1998). Esta oposição revela não apenas a diferença de pertença e identidade
entre grupos, mas também uma diferenciação de apropriação dos saberes do lugar
e de sua inserção territorial (MARANDOLA Jr., 2008b).
Elsa Lechner aborda a questão pelo ângulo da psiquiatria, identificando no
processo migratório elementos potenciais que atingem a saúde mental. Segundo a
autora, a experiência migratória é a da descontinuidade e ruptura, alterando a
trajetória pessoal e rompendo laços. "Laços esses que também são inscritos no
corpo, cinestésicos e vivenciados. Esta experiência provoca um deslocamento do
sentimento de si que pode concorrer para o mal-estar existencial ou mesmo para
a doença." Ela corrobora a importância da dimensão territorial do processo,
afirmando que na migração "as identidades são inter-territoriais e o sentimento
de pertença quase extra-territorial, desafiando formas convencionais de
representação das identidades" (LECHNER, 2007, p. 81). Migrar é ser obrigado a
desenvolver outros tipos de territorialidade, dando um salto em direção ao
desconhecido.
É por isso que a desestabilização da ligação essencial ser-lugar causa um abalo
na segurança existencial e identidade territorial do migrante, que tem de
enfrentar um desencaixe espacial. Isso o torna suscetível à angústia e
ansiedade, impondo a necessidade de enraizar-se no lugar de destino, ou de
manter os vínculos com o lugar natal, apesar de ter migrado. A segurança
existencial e a identidade dependem de a pessoa estabelecer e cultivar laços
com o lugar, envolvendo-se com ele (MARANDOLA Jr., 2008c).
Lussi e Marinuci (2007) e Lussi (2009) procuram sistematizar os elementos e
situações que tornam a condição migrante vulnerável, entre os quais se destacam
as questões legal, religiosa, familiar, econômica e simbólica. Todos os
aspectos arrolados pelos autores estão associados ao envolvimento com o lugar,
à identidade e ao processo de territorialização incipiente no lugar de destino.
Nesse sentido, o migrante sente a necessidade de fixar-se para poder alcançar
uma sensação de bem-estar, aliviando o incômodo sentimento de incerteza e
instabilidade que perdura e se reforça com a ausência do lugar. No entanto, a
fixação do migrante no local de destino tem algumas restrições ou condições em
termos de identificação sociocultural e espacial. O envolvimento de um
indivíduo com o lugar é um processo complexo que não ocorre aleatoriamente.
Alguns fatores encorajam/incentivam esse envolvimento, enquanto outros repelem
qualquer tentativa ou interesse em fazê-lo.
Entre os fatores de encorajamento, a identificação com o lugar é crucial. O
estabelecimento de laços e a sensação de pertencimento ocorrem em um lugar
cujas características sociais, culturais e a organização espacial não sejam de
todo desconhecidas. É o chamado place attachment (envolvimento com o lugar),
que é um dos aspectos dos efeitos de lugar, ou senso de lugar (LOW; ALTMAN,
1992). Para a psicologia ambiental, o processo de envolvimento com o lugar
implica pelo menos mais dois aspectos: a dependência do lugar (place
dependece), que se refere às vantagens comparativas do lugar (o que tem ali que
não tem em outros lugares); e a identidade com o lugar (place identity), que
expressa as características do lugar com as quais a pessoa se identifica,
vendo-se nele (HERNÁNDEZ et al., 2007; LEWICKA, 2008). Estes fatores operam
como fundamentos da identidade territorial, ajudando a promover a fixação,
sendo para isso o aspecto mais importante o envolvimento.
Kyle et al. (2004) afirmam que o attachment é baseado nos laços emocionais, na
afetividade e na afetação que o lugar provoca na pessoa, sendo a base de todo o
senso de lugar. Este laço de envolvimento foi chamado por Tuan (1980) de
topofilia, referindo-se aos laços que ligam a pessoa a dada porção do espaço.
Esta "filia" pode ou não ser buscada, assim como pode ou não ocorrer sem uma
intencionalidade. Dessa forma, ela existe em relação tanto aos lugares do local
de origem quanto aos do local de destino, estando no centro dos elementos que,
do ponto de vista da experiência, irão influenciar na forma como os migrantes
vão ou não se envolver com o novo lugar.
A relação ser-lugar pressupõe uma construção mútua e simultânea de ambos: o
sujeito constrói o lugar e ao mesmo tempo é construído por esse (CASEY, 2001).
Os lugares em que o indivíduo viveu ou vive são responsáveis pela constituição
de sua maneira de ser, assim como garantem a continuidade desse ser, baseada na
experiência. Por meio da percepção, sensação, cognição, representação e
imaginação, o lugar-ser se constitui. A experiência tem como meio o corpo,
grande mediador dessa relação (MERLEAU-PONTY, 1971). Segundo Casey (2001), o
que o corpo experiencia tem efeito direto sobre ele mesmo. Digerida, a
experiência passa a fazer parte integrante do corpo. Internalizada, ela é
responsável, por meio do processo de somatização, pela forma de ser do sujeito.
Com a internalização, o corpo incorpora o lugar que permanece na memória "in a
virtual state" (CASEY, 2001, p.688) e se expressa na forma de ser do sujeito.
Nessas condições, a relação de somatização ser-lugar se estabelece quando há
uma identificação entre eles. O indivíduo não pode ou não é capaz de ignorar
toda sua história e formação, sendo indiferente às características de sua nova
realidade para estabelecer prontamente relações com o local de destino. Não
encontrando tal identificação de forma clara, o migrante tende a recriar seus
lugares na expectativa de preservar sua forma de ser, bem como para reafirmar
sua identidade territorial. São as relações e laços promotores do envolvimento
com os lugares que dão as fundações e sustento para o ser (CASEY, 1993).
A necessidade por parte do migrante de preservar sua personalidade, sua
identidade e voltar a ter a sensação do pertencimento leva a um gradual e
contínuo processo de edificação de "lugares próprios", os quais permitem ao
migrante enraizar-se. Estes lugares e suas articulações são, na verdade, o
território dos migrantes. Esses lugares se configuram como base e fundamento
das redes sociais estabelecidas por eles.
Entre os lugares dos quais o migrante tem que abrir mão na mudança,
possivelmente sua maior perda é a casa. Lugar por excelência, onde estão
fundadas as memórias e, em último grau, a própria identidade (BACHELARD, 1993),
a casa é onde as sensações de pertencimento, conforto e segurança são máximas.
A ligação entre o self e a casa é essencial na composição do mundo vivido e da
própria inserção na sociedade (TUAN, 1982). A casa pode ser entendida como o
lugar mais personificado do indivíduo, no qual cada detalhe é um reflexo das
suas vontades e interesses. O inverso também é verdadeiro, a casa como
"fundamento espacial do ser-no-mundo" (MARANDOLA Jr., 2008b, p. 170) será o
lugar mais absorvido e internalizado, sendo base constituinte da identidade e
da forma de ser do indivíduo. A casa é onde a pessoa busca e funda seu lugar no
mundo.
Tendo se afastado de sua referência identitária essencial, a casa, que pode
envolver toda a terra natal e seu imaginário (BACHELARD, 1993; TUAN, 1980), o
migrante precisa reconstruir sua casa ao mesmo tempo em que reconstitui a si
mesmo. No ato/processo de personalizar a sua casa é que o migrante recoloca as
bases espaciais de sua existência. Tornando a casa uma expressão de si mesmo, a
pessoa traz à tona/convoca o ser. Personalizar a casa é apropriar-se, fixar-se,
enraizar-se, sendo, portanto, fundamental para o migrante alcançar
tranquilidade e estabilidade ontológica no lugar de destino.
A casa é o marco zero de todo o relacionamento espacial e social, servindo como
ponto de apoio para que o migrante possa construir e interligar seus lugares.
Nesse movimento de expansão, o migrante corrobora para o adensamento da rede
social ao mesmo tempo em que tem a possibilidade de participar dela.
Redes sociais: territórios e lugares migrantes
Nesse processo de construção de seus lugares, o migrante vai compondo uma nova
rede de relacionamentos baseada em lugares específicos, aumentando aos poucos
sua sensação de segurança e promovendo seu enraizamento. Isso ocorre tanto com
migrantes temporários (estudantes, trabalhadores que vão para outros países e
deixam suas famílias no país de origem, etc.) quanto com famílias que migram
para recomeçar a vida, embora com especificidades oriundas da própria
característica do movimento e da sua situação.
A matriz desta nova rede, não raro, é a própria rede migratória que o levou até
o local de destino. As chamadas redes sociais são fundamentais para compreender
o processo migratório, tanto nos motivos e fluxos quanto para a discussão sobre
a inserção do migrante no local de destino. Elas se configuram como uma das
mais importantes estruturas para compreensão da organização social da migração
(MASSEY et al., 1987). A análise estrutural das redes sociais da migração
possibilita uma perspectiva complexa e instigante da organização social e
cultural dos fluxos migratórios, integrando relações de parentesco, vizinhança
e amizade (FAZITO, 2002).
Soares (2004) indica a proximidade da rede social com a rede pessoal e a
própria rede migratória. Em todos os casos, pensar o papel das redes no
fenômeno migratório permite entender a dimensão estrutural das escolhas e
motivos da migração. Por outro lado, a partir das redes sociais, é possível
compreender também o capital simbólico e material a que o migrante tem acesso
no local de destino. É neste sentido que pensamos o papel da rede social e suas
relações com a territorialidade e os lugares migrantes: em que medida elas
conseguem diminuir o impacto da ruptura com o lugar de origem, em termos
familiares, culturais e existenciais?
A inserção nas redes sociais possibilita a identificação e o pertencimento,
podendo gerar alívio/amortecimento ao impacto das mudanças espaciais vividas
pelos migrantes, por forneceram um espaço de segurança onde o seu modo de ser é
reconhecido, ligando-o ao lugar-natal. Em vista disso, são importantes para
amenizar os estresses causados pela migração (PASQUA; MOLIN, 2009).
A base da rede social é a cooperação entre seus integrantes, sendo que a
identificação é o que fornece a liga e estabelece a confiança. Essas redes se
fundamentam nas relações de amizade, vizinhança, parentesco, trabalho e origem
comum (SOARES, 2002) entre os migrantes. A reciprocidade garante que a rede
social funcione da maneira mais igualitária/democrática possível para seus
membros, pois permite a troca do capital social entre os membros de forma
geral. Fusco (2002) afirma ser a reciprocidade uma norma de comportamento no
interior das redes sociais que funciona como um dos mecanismos da circulação do
capital social.
Essas redes têm papel central no território dos migrantes. Nelas há o encontro
das cosmovisões do migrante com o imaginário local, o que produz a recriação de
símbolos que fazem parte da sua identidade, num verdadeiro encontro de culturas
(SCALERA, 2009). As redes sociais representam, então, um suporte importante,
uma vez que garantem o acomodamento/inserção do migrante, sendo constituídas
tanto pelas pessoas e as relações que desenvolvem entre si como pelas
organizações e instituições sociais (SOARES, 2002; 2004).
As redes sociais surgem no sentido de recuperar o bem-estar e o sentimento de
pertencimento do migrante, constituindo uma resposta às dificuldades de
inserção/adaptação encontradas no local de destino. A cooperação para enfrentar
os desafios impostos pela nova realidade vivida pelo migrante certamente traz
mais benefícios do que ações individuais. As redes sociais funcionam para os
migrantes como uma estratégia para sua sobrevivência e sustentabilidade
(FAZITO, 2002).
Para o migrante, essas redes representam um referencial identitário e um meio
fundamental para orientar seu envolvimento no local de destino. Em vez de
partir de relações puras (GIDDENS, 2002), sem referenciais prévios, os
migrantes possuem uma rede de lugares e relacionamentos baseados na confiança
alicerçada na origem comum, sendo o fato de serem conterrâneos a base dos laços
de confiança e do novo processo de territorialização. Seus lugares são
construídos pelos e para os migrantes a partir de seus aspectos socioculturais.
Os migrantes passam a adquirir domínio/controle espacial do local de destino,
gerando territorialidades ao recriar seu território identitário.
As redes sociais são, portanto, também redes territoriais, pois são alicerçadas
em lugares específicos onde o grupo se encontra, conserva práticas comuns
associadas ao lugar natal e propaga, a partir dele, sua territorialidade. Em
geral, as redes sociais mantêm pouca relação com o sistema do lugar (GODOI,
1998), constituindo-se em lugares marginalizados ou pouco frequentados pelos
estabelecidos, o que contribui para a separação entre estes e os migrantes. Não
é muito diferente dos enclaves étnicos, em que códigos de conduta dos migrantes
e estabelecidos constrangem o uso e a frequência de lugares na cidade,
configurando territorialidades distintas entre os grupos (VARADY, 2005). Essa
separação, no entanto, não é monolítica; há os lugares marcados pela
permeabilidade entre os territórios e grupos, possibilitando o encontro e o
compartilhamento do espaço.
Esta concentração nos territórios e lugares migrantes dificulta o
estabelecimento de relações/interação com a cidade e seus habitantes, tornando
difícil o desenvolvimento de laços afetivos com o local de destino, já que esse
não é vivenciado livremente. A provável falta de familiaridade com as
estruturas, dinâmica e cotidiano da cidade e também a prevalência da
impessoalidade dificultam a constituição de lugares, pois seus dois "suportes"
essenciais ficam ausentes: não há identificação com a cidade e/ou convívio com
seus habitantes.
Esse é um fenômeno comum entre migrantes de baixa qualificação que migram
clandestinamente para países centrais, como o caso de brasileiros nos Estados
Unidos ou na Europa (SALES, 1999; ALMEIDA, 2009a; 2009b). Pela condição ilegal
e dificuldades com a língua, os migrantes não se arriscam muito em viagens ou
em transitar pelas cidades e raramente despendem seus dias ou horas de folga em
atividades de lazer e convívio social, concentrando-se no trabalho (em geral
com longas jornadas) e nas remessas para suas famílias. Essa é outra forma de
territorialidade e de envolvimento com o lugar de destino que tem sido
analisada de diferentes maneiras, que tendem a ressaltar o impacto das novas
possibilidades de mobilidade e de identidade na construção de
territorialidades. Três abordagens ou entendimentos são mais presentes na
leitura da migração e suas territorialidades contemporâneas: o
transnacionalismo; a multiterritorialidade; e o entreterritórios.
O transnacionalismo, por exemplo, considera o movimento migratório para além de
sua dinâmica polarizada e unidirecional, pois os fluxos não se limitam mais à
saída do local de origem e ao assentamento (pensado como definitivo e
determinante) no local de destino (MASSEY, 1993). A rigidez da permanência é
posta em cheque pela intensa transitoriedade dos migrantes em função da
interconectividade e expansividade de seus territórios e simultaneidade de
práticas territoriais, culturais, econômicas e multinacionais (LINDÓN, 2007). O
migrante mantém ativa e viva suas relações com lugares que estão
geograficamente distantes, rompendo com a noção de obrigatoriedade da
assimilação e aculturamento (vistos como processos indissociáveis da migração)
(DUNN, 2008). Reconhecem-se a relevância e a potencialidade das práticas
individuais e sociais do migrante que permitem a ele se adaptar sem
transformações identitárias radicais. Isso abre a possibilidade da existência
de identidades duais ou múltiplas (identificação não apenas com o lugar de
origem, mas também com os lugares de destino) e de identidades unas (o
indivíduo se identifica prioritariamente com seu lugar de origem).
Já a multiterritorialidade busca rever a forma como o processo de
territorialização se apresenta na contemporaneidade (HAESBAERT, 2004; 2007).
Num cenário mundial em que predominam a fluidez, o móvel e o globalizado, há o
afrouxamento das fronteiras estatais e territoriais (que se tornam
gradativamente mais permeáveis, embora mais conflituosas também) e os fluxos
ocorrem de maneira mais aleatória, dispersa e descontinua, aumentando a tensão
entre mobilidade e imobildiade. O migrante constrói múltiplas
territorialidades, mas não apenas ele: todos vivemos vários territórios ao
mesmo tempo. O território é produzido na articulação dos processos de
desterritorialização e reterritorialização, que dão origem aos territórios-
rede. Estes proporcionam a experiência, identificação e apropriação de diversos
territórios e o trânsito em diversas territorialidades.
Por fim, a interterritorialidade propõe uma reflexão sobre a produção dos
territórios pelos migrantes e suas implicações, num cenário de forte fluidez
espaço-temporal, no qual se constroem territórios em movimento e sob múltiplas
influências culturais (VANIER, 2008). Diante da intensificação da mobilidade em
detrimento da estabilidade, há de se considerar que os processos de construção/
estruturação territorial e formação da identidade do indivíduo migrante têm se
tornado complexos. Os migrantes vivem entre territórios e entre culturas;
desenvolvem uma identidade fragmentada em função de sua situação de ocupante da
fronteira entre ser e não ser cidadão e de dividir-se entre estratégias de vida
que atendam às exigências do local de origem e do local de destino (ALMEIDA,
2009c). Os migrantes ativam diversos territórios e todos eles contribuem para
formação de sua identidade social e cultural; o cruzamento dessas pluralidades
constitui a interterritorialidade.
As três perspectivas, aqui resumidas, possuem pontos em comum (especialmente
seu ponto de partida: a fluidez contemporânea), mas dão soluções analíticas bem
diferentes à situação das territorialidades no novo cenário das migrações deste
século. Como abordagens e conceitos amplos, se prestam tanto às análises mais
estruturais quanto às de trajetórias pessoais, o que nos permite uma ampla
discussão sobre suas consequências.
Todas foram pensadas em termos da migração internacional, em que o controle
legal do Estado-Nação exerce uma mediação essencial para todas estas teorias,
pois não se pode esquecer que os vínculos com o país dependem também de ações e
políticas específicas dos países de origem em amparar e promover a integração
de seus cidadãos, que estão no exterior, à política e à vida cultural do país
de origem (MENA, 2009). Além disso, situações de ilegalidade não permitem a
comunicação ou a visita frequente entre parentes imigrados. Por outro lado, os
países que têm grandes contingentes de cidadãos fora de suas fronteiras
desenvolvem mecanismos de mantê-los ligados ao Estado-Nação. Até países como o
Brasil, tradicionalmente receptor de migrantes, têm alterado sua postura em
relação ao crescente número de emigrantes em diáspora, promovendo políticas
transnacionais que visam manter estes brasileiros integrados. Redes de
televisão internacionais têm tido um papel importante nesse sentido, assim como
sistemas civis de registro e votação no exterior, facilitando a manutenção do
vínculo com o país de origem e influenciando a formação das novas
territorialidades no país de destino.
Do ponto de vista existencial, os migrantes constroem territorialidades
próprias que são verdadeiros microcosmos ou pequenos mundos nos quais
compartilham lugares, paisagens, signos e símbolos. Nos microcosmos tem-se uma
existência espacial coletiva: o grupo pensa, organiza e vive seu território de
maneira semelhante por partilhar uma mesma cultura e um determinado estilo/modo
de vida.
As redes sociais como uma rede de lugares-chave (lugares dos migrantes) podem
ser entendidas como microcosmos ou microterritórios, resultantes de uma
singularização, através de uma territorialização micro, na qual um grupo
relacional exerce suas práticas sociais e afirma seus aspectos e atributos
identitários, atendendo suas necessidades relacionais e preservando sua
identidade (COSTA, 2005). Esta prática acaba sendo uma saída eficiente para a
situação destes grupos migrantes.
O território ganha, assim, um desenho reticular, fundamentando e sustentando as
redes sociais a partir de lugares hierarquizados conectados por uma rede de
itinerários (BONNEMAISON, 2002). Esta forma de enraizamento coloca o lugar e o
território como o principal ponto de suporte da identidade, estendendo a
relação ser-lugar ao grupo-lugar.
A estruturação das redes sociais, portanto, é fundamental para a identidade
territorial dos migrantes. Identificar-se com um território implica tornar-se
parte de determinados círculos sociais e redes de lugares e itinerários e
partilhar um sentimento coletivo em relação a signos, códigos e práticas
culturais. No caso das migrações internacionais, associações de emigrantes
formam e articulam muitas destas redes, funcionando como matricial da própria
rede social (MELNIK et al., 2009; PADILLA, 2009). Na construção de suas redes,
os migrantes exercem papel central como parte integrante e atuante na criação
das geoestruturas, além de serem responsáveis por traçar na paisagem uma
complexa semiografia capaz de exprimir e representar sua concepção de mundo.
Por sua fisionomia, dinâmica e ambiência, o lugar representa um ponto de
familiaridade e receptividade para o migrante, onde se encarna sua cultura e se
apresentam seus símbolos, signos e códigos. O lugar é por si só um referencial
identitário, sendo a manifestação espacial dos laços de afetividade que ligam o
grupo a seu território e fundam a identidade cultural (BONNEMAISON, 2002) e
territorial.
Os migrantes tentam recriar, de certa forma, seu território perdido no novo
lugar. Para fazê-lo, eles reproduzem os geossímbolos e a organização
socioespacial de seu antigo território, além de garantirem lugares onde suas
práticas possam ser realizadas. Ao restabelecer os elos espaciais e
identitários, o grupo migrante é capaz de se enraizar e dar fundamento à sua
identidade que, evidentemente, não será a mesma, pois agora são migrantes num
outro lugar e não estão isentos das influências locais, incorporando-as mesmo
que parcialmente. Recriar seu território é uma forma de dar suporte e
manutenção à identidade e à sua forma de existir/ser pela presença de
referenciais identitários. Nesse sentido, territorializar-se serve como um
mecanismo protetor da segurança existencial (MARANDOLA Jr., 2008c).
Fundamentadas na família e nos laços elementares de parentesco, vizinhança e
amizade, as redes sociais têm a capacidade de oferecer segurança existencial,
atuando como casulo protetor (GIDDENS, 2002), o qual, constituído e construído
pelos migrantes, filtra as eventuais ameaças que esses possam sofrer (MARANDOLA
Jr., 2008b). A confluência de "lugares próprios" proporcionada pelas redes
instiga as famílias, os amigos e conhecidos a se encontrarem e cultivarem seus
laços, assim como estabelecerem novos outros.
O mesmo não pode ser dito com relação ao sistema do lugar, pois a falta de
envolvimento entre os migrantes e a população local priva o casulo protetor de
uma fonte importante de confiança e segurança, obrigando-o a estratégias de
segurança desencaixadas, que estão diretamente vinculadas à existência de uma
rede impessoal de instituições, organizações e empresas, cujo forte é a
padronização e dispersão espacial. Paralela às redes sociais, uma nova rede
organiza estes migrantes do tempo da globalização: a rede de lugares globais,
chamada por Bauman (2001) de lugares neutros.
Segundo o autor, estes lugares envolvem certa homogeneização e padronização do
comportamento social, não exigindo envolvimento ou socialização para serem
frequentados; pelo contrário, isso é quase desnecessário. São os shoppings, as
grandes redes de supermercados, lojas multinacionais e outros serviços
similares que estão organizados segundo os mesmos códigos globais associados à
vida metropolitana.
Esses lugares, ao contrário do sistema do lugar ou das redes sociais dos
migrantes, são regidos por uma lógica desencaixada, que não exige conhecimento
da cultura local para entender sua dinâmica. O migrante pode ir aos mesmos
lugares padronizados que frequentava em sua terra natal e usufruir de uma
impessoalidade que lhe dá segurança. O migrante os frequenta sem inibição, pois
não há o compromisso de se envolver com ele.
Essas características dos lugares neutros advêm, em grande medida, de sua
relação com os sistemas abstratos, entre os quais estão os chamados sistemas
peritos (GIDDENS, 1991).
Esses sistemas tendem a apresentar certa uniformidade em termos de
funcionamento, independentemente de sua localidade. Seu funcionamento baseia-se
em alguns procedimentos padrão que, ao serem cumpridos, permitem sua
utilização. Os sistemas peritos são os principais responsáveis pelas
transformações ocorridas nas relações pessoais, sendo grandes promotores da
impessoalidade.
A possibilidade de trafegar entre diferentes lugares, independentemente de seus
atributos socioespaciais e socioculturais, tem permitido o deslocamento dos
indivíduos de forma muito mais fluida, fora das suas territorialidades. Um
processo cada vez mais frequente que tem marcado nossas metrópoles corresponde
às migrações espontâneas, marcadas por decisões individuais (MARANDOLA Jr.,
2008b,c). Em vez de grupos sociais migrantes, ligados a um lugar específico que
operava como lugar de expulsão, hoje temos migrantes de grupos difusos
espacialmente, que, no espaço impessoal da metrópole, não têm se orientado
unicamente pela existência de redes sociais previamente estabelecidas.
Torna-se possível viver uma vida inteira numa cidade ou região sem integrar-se
às dinâmicas do sistema do lugar. Mesmo após vários anos, a pessoa ainda pode
se considerar "de fora", pois os laços de envolvimento com o lugar não
ultrapassam aqueles ligados à sobrevivência e às práticas cotidianas
funcionais. Este tipo de experiência é possível tanto pelos lugares neutros
quanto pela possibilidade de manter os laços essenciais com o lugar de origem,
o que tem acontecido tanto internamente quanto internacionalmente (BAUMAN,
2007). Os lugares neutros facilitam a adaptação na medida em que não exigem
familiaridade e envolvimento com o lugar (MARANDOLA Jr., 2008b).
Por outro lado, se antes mudar-se significava distanciamento absoluto, hoje
migrantes regionais ou até internacionais conseguem manter vívidos os laços com
a terra natal, ficando, em muitos casos, integrado existencialmente a ele e
apenas funcionalmente ligados ao lugar de moradia atual. As melhorias tanto nos
sistemas de transporte (malhas aérea e rodoviária) quanto de comunicação
(telefonia e Internet) possibilitam esta vivência deslocada do lugar: à
distância.
O reflexo disso, no entanto, é que as regiões metropolitanas estão cheias de
migrantes temporários: pessoas que vivem a semana no trabalho e acorrem à casa-
natal no final de semana, feriados e férias. Pessoas que, ao se aposentarem,
voltarão para seus lugares e territórios que foram mantidos durante anos. São
temporários por não considerarem este o seu lugar; entendem-se fora do lugar
(MARTINS, 1986).
Estes migrantes aproveitam a possibilidade do deslocamento e da proximidade
para manter seus laços fundamentais, seu casulo protetor (GIDDENS, 2002)
fundado em sua casa e terra natal. Assim, tendem a ter relações mais funcionais
com a cidade e a região, morando nela durante a semana, mas, em função de seus
retornos periódicos, mantêm seus laços mais fundamentais e duradouros com sua
cidade natal. Atividades corriqueiras, que exigem confiança e conhecimento
locais, como comprar bens duráveis (um carro, por exemplo), tratamentos de
saúde mais delicados, planejamento de viagens, etc., não são realizadas na
metrópole, mas sim na terra natal, onde as redes e a memória dão segurança,
além de ser uma estratégia de manter o vínculo (MARANDOLA Jr., 2008b, c).
As metrópoles, em especial em áreas muito densas e com alta fluidez, abrigam
cada vez mais pessoas que não procuram e até evitam o envolvimento com ela: não
querem pertencer, seu lugar é outro. Quais são as consequências?
Para a cidade, diminuem a participação e o envolvimento com seus próprios
problemas. Reduzir a cidade à sua dimensão funcional potencializa que ela seja
guiada pelo consumo e pelos sistemas produtivos. Isso retroalimenta a
disposição das pessoas de não fazerem da metrópole seu lugar. Para as pessoas,
seu não envolvimento as mantém fora de redes de proteção locais, estando
completamente dependentes das redes privadas de proteção, produzindo uma
separação clara entre migrantes com e sem condições de pagar por estes
mecanismos.
A indiferença torna-se uma forma de relação com o lugar, estando associada
diretamente ao não envolvimento que, para Tuan (1998), é uma forma de escapismo
que pode afetar de forma ambivalente a vulnerabilidade individual do escapista:
expondo-o a certos riscos, protegendo-o de outros. A coletividade, no entanto,
será atingida de forma mais direta, afetando diretamente a vulnerabilidade do
lugar e a efetividade das redes sociais de prover proteção.
Migração em tempos líquidos
É fundamental pensar os movimentos migratórios para além das condições ou
motivações econômicas. Enquanto deslocamento de pessoas, a intencionalidade e a
volição têm papel central em vários momentos do processo. Não que hoje não
vejamos grupos sociais em migração. Os fluxos continuam sendo parte fundamental
da problemática. No entanto, a importância de questões existenciais aumenta nos
atuais tempos líquidos da modernidade líquida, tempo de flexibilização de todos
os campos da vida social, inclusive das relações amorosas, da vida comunitária,
das instituições e das normatizações (Bauman, 2001; 2007). Nessa fluidez
contemporânea, o peso das decisões tem sido jogado para o indivíduo, mesmo que
não haja parâmetros socialmente definidos que o oriente em sua decisão (BECK,
1999). A dimensão geográfica do processo, ligada à constituição das identidades
territoriais, do lugar e das redes sociais é fundamental para compreender este
ser migrante e os riscos e incertezas aos quais fica exposto.
Mobilidade é parte integrante de nosso tempo. A sociedade se volta para os
móveis, criticando os imóveis. Essa constante mobilidade gera incertezas,
tornando as balizas existenciais fluídas e frouxas (BAUMAN, 2007; GIDDENS,
2002). Se vivemos realmente num momento em que a mobilidade tornou-se um
paradigma para as ciências sociais, ou seja, um fundamento da própria
reprodução social, como o quer Urry (2007), a reflexão sobre a migração tem que
avançar na mesma medida, incorporando as mais diferentes dimensões e
consequências relacionadas ao fenômeno. Hoje, a migração possui muito mais
facetas do que as condicionantes externas ou estruturais. Em vista disso, é
essencial questionar quais são as consequências espaciais e existenciais do ato
de migrar. Ao mesmo tempo, as tradicionais variáveis demográficas (ciclo vital,
gênero e origem) são reveladoras das implicações para os lugares de origem e
destino, abrindo uma caixa-preta que precisa ser desvelada.
As fronteiras são construídas por corporeidades, enquanto os valores mantêm uma
tendência mundializada de difusão. Comunidades são instituídas e vividas
corporeamente, sendo a base do engajamento e do próprio sentido de identidade
(AHMED, 1999). As trajetórias ganham peso num contexto em que a estrutura do
sistema criou possibilidades de escolha (via mercado) de estilos de vida,
direções, destinos, motivações (VELDE; NAERSSEN, 2007; ASCHER, 1995). Os fluxos
clássicos continuam a existir, mas há muitos outros que são orientados por
lógicas distintas, produzindo consequências específicas tanto para os locais de
destino quanto para os de origem.
Em vista disso, é importante pensar tanto os móveis quanto os imóveis
(BILSBORROW, et al., 1984; HAESBAERT, 2008). Por que foi e por que ficou?
Estamos em uma transição de valores entre a virtude de ser imóvel (fixado,
apegado às raízes, tradicional) e ser móvel (desembaraçado, progressista,
moderno) (CRESSWELL, 2006). Mas o que não se fala são dos riscos desta
mobilidade e do potencial desagregador para a personalidade e a autoidentidade
(SENNET, 2005).
Há cada vez mais migrantes sem redes que estão jogados no espaço metropolitano-
globalizado, territorializando-se nos lugares neutros, os quais garantem melhor
adaptação a cada mudança. As redes sociais começam a se estabelecer a partir de
relações puras (GIDDENS, 2002), diminuindo ou até perdendo sua efetiva força
territorializadora. No entanto, quais são as consequências de longo prazo deste
tipo de identidade territorial? Seria esta substituta daquela ligada à casa-
natal e ao casulo protetor? Quem está mais exposto a riscos: o migrante
metropolitano, que em todo lugar está em sua rede de lugares, ou aquele menos
móvel, que se fixa fortemente em seu sistema do lugar?
Esta fluidez tem sido tratada de diferentes maneiras: multiterritorialidade,
interterritorialidade, transnacionalismo. O que estas abordagens têm em comum é
a constatação de que há necessidade de compreendermos as formas de identidade e
territorialização na sociedade contemporânea, que estão em mutação e não são
tão claras quanto no estágio anterior da modernidade.
Nossos territórios hoje são construídos de muitas maneiras: na fixidez, no
movimento, na continuidade, na descontinuidade e em arranjos com escalas
espaço-temporais muito variadas. Identidade, alteridade, temporalidade são
temas inerentes à questão do território e das territorialidades atualmente,
sendo fundamentais para todo processo migratório contemporâneo (CLAVAL, 1999).
Além disso, estamos constantemente envolvidos em várias territorialidades
diferentes, difusas e mutantes. A questão que nos interessa, pensando nas
implicações existenciais e territoriais da migração, é: quais são as
consequências desta forma de ser-no-mundo para a constituição do ser-lugar?
Para caminhar em direção à compreensão do que é ser migrante, é fundamental
entender estes novos processos de territorialização e de construção de
significados. Se os referenciais identitários se dispersam no espaço, as
possibilidades podem ser muito maiores de identificação, culminando numa
territorialidade ampla e dispersa. Mas a distância não é exercida sem cobrar
seu preço. Os riscos dessas novas formas de constituição das identidades
atingem diretamente o ser, produzindo consequências existenciais significativas
(MARANDOLA Jr., 2008a). Bauman (2007) fala de tremores existenciais que atingem
os mecanismos de autoidentidade e que fluidificam as certezas. A incerteza, uma
marca de qualquer vida migrante, é a marca de nossa época, e por isso ser
migrante é a experiência de nosso tempo.
É necessário, igualmente, refletir sobre a multiplicidade de modalidades e
processos migratórios. Uma constelação de motivos, densidades, direções,
temporalidades e espacialidades configura as migrações e as mobilidades
contemporâneas, tornando necessário um esforço interdisciplinar para acompanhar
estas mutações. Por outro lado, as diferentes situações espaciais também
precisam ser consideradas. Migrantes em espaços urbanos metropolitanos ou em
pequenas cidades e áreas rurais enfrentarão condições e desafios diferenciados,
relacionados com a inserção destes lugares nas redes, bem como com a própria
especificidade das dinâmicas sociais locais.
Os processos associados a territorialização, desterritorialização e
reterritorialização têm sido apontados como essenciais para compreender estas
dinâmicas atualmente. No entanto, é necessário prestar atenção à tendência de
positivar estes movimentos como sequenciais ou ordenados, ou mesmo à ainda
prevalência na leitura puramente materialista do território e da
territorialidade (SAHR; SAHR, 2009). A fluidez está nos movimentos, nos
sentidos e na própria constituição territorial e do ser, e por isso o pensar
estes fenômenos deve ser no mesmo sentido. A dimensão ontológica da migração
precisa ser investigada em suas implicações territoriais, contribuindo assim
para uma perspectiva abrangente e compreensiva da migração e da mobilidade.
Para isso, se mostra necessário avançar nas metodologias qualitativas, como as
biografias e a análise das especificidades e da diversidade (LECHNER, 2007).
Com a fluidez contemporânea, métodos que dão relevo às trajetórias particulares
permitem apreender novos elementos que são relevantes no processo, ampliando
assim o universo de questões e fatores relevantes no fenômeno da migração.
O desafio que se apresenta aos estudos migratórios é avançar teoricamente em
suas abordagens, buscando uma compreensão abrangente e multifacetada do
fenômeno. As dimensões territorial e existencial da migração fazem parte
constituinte do fenômeno, e por isso sua reflexão e o avanço na sua
problematização contribuirão para enfrentar as questões que a sociedade tem
colocado sobre a mobilidade no mundo contemporâneo.