Comunidades ribeirinhas como forma socioespacial de expressão urbana na
Amazônia: uma tipologia para a região do Baixo Tapajós (Pará-Brasil)
Introdução
A Amazônia brasileira detém a maior área de florestas tropicais contínuas e
preservadas do mundo. Desde a década de 1970, no entanto, esta área tem sofrido
significativas mudanças na sua cobertura, bem como indicado taxas de
desmatamento (INPE, 2010). Becker (2005) apontou diversos motivos responsáveis
por estas alterações, tais como: estabelecimento e expansão de infraestrutura;
atividades relacionadas à pecuária e produção de grãos; extração de madeira; e
mineração. Pfaff (1999) ainda incluiu, aos fatores associados ao desmatamento,
a importância das características da cobertura da terra, como a qualidade do
solo e densidade de vegetação, e os custos de transporte para o acesso aos
mercados. As influências dos investimentos em infraestrutura e a pressão dos
mercados para a produção agropecuária também foram considerados condicionantes
para a conversão florestal da região (PFAFF; WALKER, 2010). Tais fatores são
diretamente atribuídos à conectividade e resiliência proporcionadas pela
presença de estradas (KIRBY et al., 2006; PFAFF et al., 2007; WEINHOLD; REIS,
2008; PERZ et al., 2012), ainda que o peso e o papel das estradas no debate
sobre a conversão florestal precisam ser redimensionados (CAMARA et al., 2005).
Trabalhos recentes têm apresentado aspectos diversos para a dinâmica do
desmatamento, como a eficiência de governança efetiva para reverter tendências
de conversão de floresta apesar dos mercados (ASSUNÇÃO et al., 2012; VALERIANO
et al., 2012) e estudos de caso no Pará, indicando que os custos de produção e
rentabilidade da soja são mais favoráveis às práticas conservacionistas, o que
demonstra ser possível expandir a produção e a rentabilidade sem aumentar a
conversão florestal (OLIVEIRA et al., 2013; HOMMA, 2012). O fato é que os
processos envolvidos na conversão florestal são de natureza bem mais complexa
do que as associações estatísticas podem revelar.
Além da conversão florestal, a Região Norte tem apresentado altas taxas de
crescimento populacional: entre 2000 e 2010, a população cresceu 2,09% ao ano,
superior à taxa registrada para o Brasil (1,17%), e com grau de urbanização de
72,6% (IBGE, 2010). Esses dados revelam a força da questão urbana na Amazônia
contemporânea. Apesar destas considerações, a Amazônia é ainda fortemente
percebida como uma região rural.
Os dados populacionais mostram um aspecto que deve ser considerado nos estudos
envolvendo a região amazônica e que vem sendo discutido por alguns autores: o
fenômeno urbano. Para Becker (2005; 2013), as cidades são elementos-chave na
construção de um modelo de desenvolvimento ambientalmente responsável e
socialmente justo para a Amazônia, pois constituem os nós das redes de relações
e são onde a população está concentrada. Entretanto, na Amazônia contemporânea,
a realidade do espaço urbano regional exige pensar para além das definições
estabelecidas nas categorias dicotômicas de cidade/campo ou urbano/rural. Não
são somente as cidades e vilas estruturadas e formais que promovem a
configuração espacial do urbano amazônico. A riqueza e a extensão do fenômeno
urbano amazônico estão também no mosaico de diferentes formas de assentamentos
humanos organizados em núcleos populacionais e suas relações, que englobam
áreas de mineração de grandes projetos, acampamentos de garimpo, projetos de
assentamento e/ou colonização, acampamentos de sem-terra e sem-teto e as
comunidades ribeirinhas, entre outras formas de organização nucleada,
estabelecendo diferentes concentrações de comércio e serviços espalhadas por
todo o espaço regional (CARDOSO; LIMA, 2006; MONTE-MOR, 2006a, 2006b; MONTEIRO;
CARDOSO, 2012). Trintade Jr. et al. (2011, p. 131) enfatizam que "pensar
cidades ribeirinhas na Amazônia pressupõe considerar espaços múltiplos, de
diferentes temporalidades, que coexistem e que se revelam nas microdinâmicas
urbanas". Estas formas socioespaciais de expressão urbana, os núcleos
ribeirinhos organizados nas comunidades do Baixo Tapajós, são o objeto deste
estudo.
Considerando diferentes escalas de interpretação da rede urbana, os estudos de
categorização dos núcleos populacionais combinam diversos tipos de dados e
técnicas de análises. Para a região amazônica, os Censos Demográficos
constituem a principal fonte de informações para estudos regionais e sub-
regionais e, no nível local, são privilegiadas as pesquisas de base comunitária
(GARCIA et al., 2007; GUEDES et al., 2009; SCHOR; COSTA, 2011; PARRY et al.,
2010a). Estes dados são combinados, principalmente, com metodologias de análise
multivariada, como abordado por Garcia et al. (2007) e Guedes et al. (2009).
A partir do diagnóstico inicial das comunidades ribeirinhas do Baixo Tapajós
(AMARAL et al., 2009), observou-se que suas redes de infraestrutura e conexões
regionais são bastante variáveis ao longo do rio, fato observado também por
Parry et al. (2010b) para comunidades ribeirinhas no Estado do Amazonas.
Este trabalho sustenta o argumento de que as comunidades locais formam redes
urbanas incipientes na escala comunitária e procura mostrar como suas
diferentes características definem a importância dessas unidades na
estruturação do território regional. Para tanto, propõe-se a utilização
combinada de técnicas quali-quanti (qualitativas-quantitativas) para definir
uma tipologia para as comunidades ribeirinhas do Baixo Tapajós e seu arranjo de
centralidades em escala local.
A base empírica para este trabalho é um banco de dados contendo o resultado
sistematizado obtido a partir de pesquisa de campo com aplicação de
questionários que capturaram um conjunto de variáveis descritoras para as
situações das comunidades ribeirinhas no Baixo Tapajós. Neste campo, 62
comunidades ribeirinhas do Baixo Tapajós com população variando entre 17
(comunidade Jutuarana) e 3.000 pessoas (comunidade Fordlândia) foram visitadas.
Algumas questões emergiram desta base de dados e dos relatos de campo. As
posições/condições das comunidades nesta microrrede, observadas pela
infraestrutura disponível, pelo acesso a serviços, pela presença de
equipamentos urbanos e pelo uso da terra, seriam similares para todo o Baixo
Tapajós? Haveria uma variável ou composição de variáveis que pudesse ser usada
como indicadora da condição das comunidades? Seria possível identificar grupos
de comunidades com características semelhantes? Comunidades localizadas em
margens distintas do Rio Tapajós, ou em unidades de conservação (UC), formariam
grupos homogêneos ou grupos diferenciados?
Para obter respostas a estas questões essenciais e compreender a estruturação
desta rede incipiente, foram utilizadas técnicas estatísticas multivariadas
para explorar esta base, buscando associações que ajudassem a revelar as
relações entre o espaço regional, no qual as comunidades estão inseridas, e as
condições das comunidades ribeirinhas, delineadas pelas variáveis coletadas.
Com base nesta análise, uma tipologia foi proposta para caracterizar as
comunidades do Baixo Tapajós estudadas. O texto a seguir apresenta inicialmente
uma contextualização do processo de urbanização da Amazônia e a importância do
estudo de comunidades como parte da rede urbanizada. Na sequência, descrevem-se
o procedimento metodológico utilizado e os resultados obtidos para a área de
estudo. Finalmente, a proposta de tipologia para as comunidades é discutida à
luz dos principais conceitos norteadores.
Urbanização e redes urbanizadas na Amazônia
No Brasil a expansão da urbanização é relativamente recente, embora as cidades
já fizessem parte da paisagem social do país desde o período colonial. Naquele
momento, a definição de urbanização era restrita a uma caracterização do fato
urbano, observando apenas o volume e a densidade populacional das cidades. A
partir dos anos 1940-1950, o processo de expansão das cidades articulou-se com
um conjunto de mudanças estruturais na economia e na sociedade brasileira
(SANTOS, 1994). Sobretudo a partir da década de 1960, foi implementado um
conjunto de estratégias explicitamente espaciais, designadas de políticas de
urbanização, e cujo objetivo era "a reprodução ampliada do capital e de
atender aos interesses geopolíticos" (DAVIDOVICH, 1995, p. 81). Nesse
período ocorreu a inversão quanto ao lugar de residência da população
brasileira: a taxa de urbanização passou de 31,2%, em 1940, para 67,6%, em
1980, ou seja, enquanto a população total triplicava, a população urbana
crescia quase oito vezes.
Na Amazônia não foi diferente, a consolidação do fato urbano foi fortalecida
pelas elevadas taxas de urbanização observadas na região desde a década de
1980. O grau de urbanização da Região Norte passou de 42,6%, em 1970, para
51,8%, em 1980, e 57,8%, em 1991. Estes dados somados a outros fatores levaram
Becker (1995, 1998) a cunhar o termo floresta urbanizada1 para reforçar a
necessidade de reflexão sobre os processos de construção do urbano em um
ambiente em transformação, que em 2010 já apresentava 72,6% da população total
residindo em áreas caracterizadas como urbanas (IBGE, 2010). Mesmo contando com
uma importante produção técnica na caracterização dofato urbano (IPEA et al.,
1999; IPEA et al., 2002; IBGE, 2008), a Amazônia brasileira é ainda fortemente
percebida como uma região rural ou como a Amazônia "verde", de
povoamento esparso e acesso remoto. Isto traz como consequência a presença
apenas tangencial, e não central, da temática urbana nas agendas para as
políticas públicas no espaço regional, como alertava Bertha Becker há muitos
anos, questão retomada em seu mais recente trabalho A urbe amazônida (BECKER,
2013).
Os processos que moldaram ofato urbano observado hoje na Amazônia tiveram seu
início na segunda metade do século XIX, com a economia da borracha, que
condicionou a expansão de uma rede de cidades conformando um espaço urbano
regional associado à circulação fluvial: a denominada rede dendrítica, cuja
ocupação distribuía-se ao longo dos principais rios da região (CORRÊA, 1987;
MACHADO, 1999). Entretanto, é a partir dos anos 1960, quando o próprio governo
passou a viabilizar e subsidiar a ocupação de terras à frente da expansão
pioneira (BECKER, 1997), que a região observou um processo intenso de ocupação,
acarretando profundas mudanças nos padrões territoriais de ocupação,
especialmente no que tange aos processos relacionados às cidades e sua
expansão. Corrêa (1987, p. 65) destaca que, a partir de então, a rede de
cidades adquiriu novos significados derivados do fato de ter sido alterada
diretamente pelo "capital industrial, financeiro e pelo Estado capitalista
[...], agentes através dos quais verificou-se e viabilizou-se a introdução de
novas atividades, populações e relações sociais de produção na Amazônia".
Estas intervenções não foram homogêneas no tempo e no espaço, resultando em uma
fronteira que, para Cardoso (2012, p. 5), deve ser entendida como "um
universo heterogêneo, com ilhas de modernidade entremeadas a áreas isoladas,
sujeitas a transformação rápida e intensa por ocasião da implantação de novas
infraestruturas e investimentos associados ao capital globalizado".
Para Becker (1997), a urbanização foi uma estratégia adotada pelo Estado para a
ocupação regional. Esta estratégia, por meio dos projetos de colonização
regional e investimentos em infraestrutura, "sustenta a mobilidade
permitindo atrair migrantes sem lhes dar acesso à propriedade da terra, e
inicia a articulação dos antigos e novos núcleos urbanos entre si e com o mundo
exterior" (BECKER, 1997, p. 52). Em função disso, as cidades amazônicas
foram se estabelecendo com deficiências de infraestrutura e equipamentos
urbanos disponíveis, resultado de um processo histórico em que os projetos para
ocupação da região priorizaram capacitar a produção, sem preocupações quanto a
políticas públicas urbanas que ordenassem a estruturação das cidades (CARDOSO;
LIMA, 2006). Essas características mantêm a identidade das cidades amazônicas e
formam um tecido urbano particular (BECKER, 2005).
Esse tecido urbano e sua articulação com o meio rural ilustram um quadro que
tem sido discutido por diversos autores: a natureza e as características do
urbano e das cidades na Amazônia contemporânea (MONTE-MÓR, 1994; CARDOSO; LIMA,
2006; BARBIERI; MONTE-MÓR, 2008; CARDOSO, 2012). Esses autores deixam claro que
o entendimento da extensão e do significado da urbanização da Amazônia está
além da análise do crescimento e tamanho das cidades, perpassando pela
compreensão da transformação de valores da sociedade amazônica. Para Cardoso
(2012), a dificuldade na definição e delimitação clara deste processo deve-se
às características envolvidas na urbanização dessa região. Até meio século
atrás a região amazônica
era agro-extrativista e atualmente conta com grande incidência de
espaços periurbanos, não explicados completamente nem pela
racionalidade rural nem pela racionalidade urbana, assim como abriga
espaços metropolitanos e cidades médias que tanto funcionam como
locais privilegiados para a difusão de práticas de consumo de forte
interesse do capital, quanto também de acesso a serviços,
equipamentos públicos e direitos diversos (CARDOSO, 2012, p. 4).
Alguns estudos têm discutido a extensão do significado da urbanização na
Amazônia a partir das famílias multissituadas e dos quintais urbanos, a exemplo
de Padoch et al. (2008) e WinklerPrins e Souza (2005). Padoch et al. (2008)
observaram que as redes familiares, relacionadas com a circulação de
mercadorias e o acesso a emprego, educação e serviços de saúde, abrangem áreas
rurais e urbanas, tornando as áreas urbanas uma parte integrante da expansão
das áreas rurais e vice-versa. Esses autores constataram também que as famílias
da floresta urbanizada continuam a se mover para as cidades, transformando as
cidades e florestas do território amazônico e redefinindo o que é ser urbano,
bem como o que significa ser rural. WinklerPrins e Souza (2005), analisando os
quintais urbanos como um caminho na transição da vida rural para a urbana dos
novos imigrantes na cidade de Santarém, demonstraram que o rural e o urbano não
podem ser convenientemente separados, pois são altamente inter-relacionados e
mesmo as pessoas não podem ser facilmente categorizadas como "rurais"
ou "urbanas". Em ambos os estudos, os autores observaram que as
famílias multissituadas participam em redes rural-urbanas e nas decisões de uso
da terra rural.
Desse modo, fica claro que atualmente as áreas urbanas na Amazônia não se
restringem apenas às cidades e vilas, englobando também outras formas
socioespaciais, tais como projetos de assentamentos, comunidades ribeirinhas,
áreas indígenas, unidades de conservação e, até mesmo, sedes de fazendas
(CARDOSO; LIMA, 2006). Inspirado em LeFèbvre (1972), Monte-Mór (1994) denominou
esse processo de urbanização extensiva, que corresponde à extensão, para o
espaço rural, das relações socioespaciais que eram próprias e limitadas às
cidades e aos centros urbanos. Cardoso e Lima (2006) ressaltam que a
expectativa de acesso a serviços e facilidades que até então eram
disponibilizados preferencialmente nas cidades (energia elétrica, água potável,
transporte público, saúde e educação) revela que a influência da cidade
extrapolou sua dimensão física e passou a influenciar os modos de vida do
campo. Com base no referencial da urbanização extensiva, Amaral et al. (2011) e
Dal'Asta et al. (2012) observaram, para a região oeste do Estado do Pará,
uma diversidade de unidades espaciais de ocupação humana que representam
importantes pontos de apoio à população local e englobam desde sedes
municipais, distritos, currutelas2 e comunidades ribeirinhas, até serrarias,
áreas de mineração e seus povoados, sedes de fazenda, frigoríficos e pistas de
pouso. Para os núcleos populacionais, os estudos demonstraram que as
características funcionais e a estrutura espacial são variadas na área
pesquisada, corroborando com o observado por Cardoso e Lima (2006) para as
cidades na região do Baixo Tocantins e na Transamazônica, o que indica a ação
de diferentes atores e processos no território. Além disso, os estudos mostram
que a acessibilidade (fluvial ou rede de estradas) assume papel importante na
evolução e consolidação dessas áreas.
As primeiras discussões, ainda que em caráter teórico e descritivo, sobre a
urbanização amazônica do ponto de vista multiescalar são apresentadas por
Browder e Godfrey (1997), que lançaram as bases para a proposição da teoria da
urbanização desarticulada, a fim de entender o processo de urbanização
contemporâneo na fronteira amazônica. De acordo com os autores, à medida que
zonas seletivas da Amazônia se incorporam nas economias nacional e
internacional, centros urbanos regionais tornam-se diversamente articulados a
diferentes níveis da hierarquia urbana global, sendo que as novas ligações a
centros urbanos distantes desgastam tradicionais ligações regionais. Guedes et
al. (2009), adotando uma abordagem multinível para analisar a hierarquia
urbana, observaram que a teoria da urbanização desarticuladase aplica para o
nível da Amazônia brasileira. Porém, conforme verificaram os autores, essa
teoria mostrou-se insuficiente para explicar a emergência da hierarquia urbana
sub-regional, que cada vez mais define a região em termos de distribuição
populacional e conexões econômicas para os mercados nacional e global.
Para discutir a organização hierárquica das cidades amazônicas, Sathler et al.
(2010) aplicaram o modelo Grade of Membership (GoM) para municípios com mais de
20 mil habitantes e identificaram quatro perfis de hierarquia que sugerem que a
posição de determinado centro na Amazônia é, em grande parte, influenciada por
variáveis relacionadas com as diferenças sociais, pobreza e capacidade dos
municípios de fornecer vários tipos de serviços à população. Ou seja, os
autores observaram que os diversos níveis hierárquicos urbanos apresentam
dinâmicas demográficas, socioeconômicas e espaciais distintas.
Adotando o recorte para o Estado do Amazonas, Moraes e Schor (2011) destacam
que a rede urbana do Estado apresenta certo nível de simplicidade quando a
tipologia urbana é definida pelos dados demográficos e a hierarquia urbana com
bases no deslocamento das pessoas para obtenção de bens e serviços. Entretanto,
a complexidade é revelada ao se considerarem novos temas para a abordagem, tais
como o abastecimento alimentar e a pesca. Além disso, os autores apontam para
um aspecto crucial no entendimento das redes da Amazônia: o tipo de
acessibilidade, que no caso citado está relacionado à circulação fluvial e ao
acesso restrito a rede de estradas, condição similar às comunidades do Baixo
Tapajós, onde a sazonalidade do Rio Solimões influencia na produção, no
escoamento e no preço dos produtos. Schor e Oliveira (2011) e Moraes e Schor
(2011) definiram uma tipologia que evidencia a funcionalidade e abrangência das
sedes municipais da calha do Rio Solimões-Amazonas e analisaram as redes de
mercado de gêneros alimentícios (cesta básica) e de pesca (exportação de
bagres) para a mesma área. Os autores enfatizam que a análise multiescalar é
essencial quando se considera a rede urbana na Amazônia, uma vez que a
estrutura da rede pode assumir diferentes articulações quando as diversas redes
são analisadas separadamente.
Desse modo, tais estudos evidenciam a importância de estabelecer diferentes
escalas para tentar entender como a rede urbana se estrutura em seus vários
níveis hierárquicos, haja vista que muitos processos observados na escala
regional ocorrem em diversos graus e intensidades quando a escala analítica é
local (AMARAL et al., 2009). Nessa perspectiva, os pequenos núcleos
populacionais, no caso as comunidades ribeirinhas, assumem papel fundamental na
estruturação da rede urbana amazônica, ao servirem de apoio imediato à
população local, oferecendo alguns serviços como pequenos comércios, escola,
posto de saúde, entre outros, e por vezes, em conjunto, desempenhando as
funções das cidades.
Apresentando uma análise da hierarquia e de redes urbanas para o nível de
comunidades, destacam-se os trabalhos de Guedes et al. (2009) e, especialmente,
Parry et al. (2010a) e Pinho (2012). Guedes et al. (2009), a partir da
pressuposição de que as comunidades são um dos estágios de evolução para a
formação de cidades, propõem uma hierarquia com cinco níveis a partir de um
conjunto de indicadores que variam desde a presença de funções básicas, como
escola, igrejas e cemitérios, até a existência de lojas especializadas e
fábricas de processamento de alimentos. Os autores ressaltam que a utilização
de uma escala mais fina de análise, compreendendo as comunidades, melhora o
entendimento dos processos urbanos de uma região, como na emergência de cidades
nós no nível sub-regional e de comunidades entre centros urbanos, com uma
posição micro-hierárquica no fornecimento de serviços e atividades sociais no
âmbito local. Por sua vez, os estudos de Parry et al. (2010a) e Pinho (2012)
adotam como objeto de análise as comunidades ribeirinhas. Parry et al. (2010a)
buscam relacionar a prestação de serviços públicos, associados à presença de
infraestrutura, e recursos naturais na determinação de padrões de assentamento
e migração rural-urbana na Amazônia ocidental. Os autores observaram que a rede
de infraestrutura e conexões regionais destas comunidades é bastante variável
ao longo dos rios estudados. Adotando as comunidades ribeirinhas do Tapajós
(oeste paraense), Pinho (2012) analisa as redes de transporte, educação, saúde
e circulação de mercadorias e propõe olhar para as localidades como parte
integrante de uma rede urbana local que pode ser estudada a partir das
diferentes redes. Esses trabalhos corroboram o argumento de que o avanço da
compreensão e representação do urbano na Amazônia "passa necessariamente
pela inclusão da escala local nos estudos de rede urbana" (PINHO, 2012,
p.5).
Assim, apropriando-se do conceito de urbanização extensiva (MONTE-MÓR, 1994),
no presente trabalho as comunidades ribeirinhas são consideradas unidades
espaciais de ocupação humana que, associadas, configuram estrutura, forma e
funções urbanas na escala local, estabelecendo as bases de uma rede urbana
incipiente, a qual convive com as redes consolidadas baseadas nas cidades para
o espaço regional. As relações entre as comunidades configuram redes de
interações que exercem funções urbanas em um nível hierárquico basilar, que
pelo detalhe da escala de análise não são capturadas pelos estudos formais de
regiões de influência das cidades - Regic (IBGE, 2008). Assim como as
características particulares de cada nó em uma rede condicionam a atratividade
que exercem sobre os outros nós, as características das comunidades definem a
importância local destas unidades na formação da rede urbana incipiente e desta
rede na estruturação do território regional.
Assim, este trabalho propõe uma tipologia que possa caracterizar as comunidades
do Baixo Tapajós e o seu arranjo local. Ao melhorar a compreensão de suas
diferenças e similaridades e da sua inserção no espaço regional, este estudo
presta-se como um instrumento auxiliar para melhor informar o desenho de
políticas públicas com foco nas populações locais.
Área de estudo
A área de estudo se insere no Distrito Florestal Sustentável da BR163 (DFS
BR163), o primeiro a ser estabelecido no Brasil, em 2006 (BRASIL, 2006),
localizado no oeste do Estado do Pará (Figura_1). O DFS BR163 abrange uma área
de 190 mil km2, incluindo os municípios de Altamira, Santarém, Placas,
Rurópolis, Belterra, Itaituba, Novo Progresso, Juruti, Óbidos, Prainha, Trairão
e Jacareacanga. Apesar de ter sido criado como uma unidade geopolítica, esse
Distrito compreende um mosaico de regiões com distintas dinâmicas econômicas,
demográficas e de uso da terra (ALVES et al., 2010; ESCADA et al., 2009), o que
requer a realização de estudos específicos para estas diferentes regiões. Neste
contexto, a área de estudo foi restrita às comunidades ribeirinhas situadas
entre Santarém e Itaituba, no trecho conhecido como Baixo Tapajós (Figura_1).
![](/img/revistas/rbepop/v30n2/a03fig01.jpg)
A navegabilidade do Rio Tapajós garante às suas comunidades a mobilidade e o
acesso diferenciado aos serviços urbanos básicos existentes nos centros urbanos
maiores e sedes de municípios. Para estas comunidades ribeirinhas, muitas delas
estabelecidas há mais de 100 anos (AMARAL et al., 2009), o Rio Tapajós foi
decisivo no processo de ocupação como eixo de circulação e conquista do
território. Muitas comunidades descendem de aldeias indígenas do povo
Munduruku, das quais poucas preservam esta identidade, provavelmente devido à
dizimação desse povo após a Cabanagem e à miscigenação durante o ciclo da
borracha (COUDREAU, 1977). Há comunidades que surgiram da catequização dos
jesuítas, das atividades do ciclo da borracha, da exploração madeireira, de
refúgios da Cabanagem e ainda de projetos específicos de desenvolvimento, como
a iniciativa americana na criação de Fordlândia (AMARAL et al., 2009).
A localização geográfica das comunidades implica contextos de espaços
diferenciados, seja pela existência das unidades de conservação (UC) no curso
do Rio Tapajós - a Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, criada
em 1998, com 647.610 ha, na margem esquerda, e a Floresta Nacional (Flona) do
Tapajós, instituída em 1974, com 549.067 ha, na margem direita - seja
pela proximidade a grandes centros urbanos, como Santarém e Itaituba, e
acessibilidade à rede de estradas locais.
Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC)
(BRASIL, 2000), ambas as unidades de conservação da área de estudo pertencem à
mesma categoria de uso sustentável e têm por objetivo compatibilizar a
conservação da natureza com o uso direto de parcela dos seus recursos naturais.
Há diferenças relevantes quanto ao tipo de uso permitido, impactando na
condição de seus habitantes. Uma Flona tem por objetivo o uso múltiplo
sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica em métodos de
exploração sustentável de florestas nativas, sendo que nela "é admitida a
permanência de populações tradicionais que a habitam desde sua criação"
(BRASIL, 2000). A população tradicional pode permanecer na Flona, mas as áreas
particulares devem ser desapropriadas e regularizadas por contrato de concessão
de uso. Para manter a característica de população tradicional, muitas
comunidades deliberam sobre a entrada e permanência de novos moradores. Há
iniciativas de manejo florestal comunitário, como a Cooperativa Mista da Flona
Tapajós, Projeto Ambé, mas as comunidades visitadas, no momento da pesquisa,
estavam excluídas deste programa. Apesar de não estarem inseridas em programas
específicos para a Flona, algumas delas, juntamente com comunidades da Resex,
participam do Projeto "Oficina do Caboclo", desenvolvido em parceira
com o Instituto de Pesquisa Ambiental Amazônica (Ipam) e o Instituto Brasileiro
de Meio Ambiente e de Recursos Renováveis (Ibama), cujo objetivo é estabelecer
oficinas e treinar comunitários para a produção de móveis explorando a madeira
morta existente na floresta.
Por sua vez, em uma Resex a presença de população extrativista é parte de sua
definição: "área natural utilizada por populações extrativistas
tradicionais onde exercem suas atividades baseadas no extrativismo, na
agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte,
assegurando o uso sustentável dos recursos naturais existentes" (BRASIL,
2000). A Resex tem por objetivo proteger os meios da vida e a cultura dessas
populações, bem como assegurar o uso sustentável de seus recursos naturais. As
áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, e a
gestão é feita por conselho deliberativo que deve incluir representantes de
órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações
tradicionais residentes na área. Tanto na Resex como na Flona são permitidas
visitação pública e pesquisa científica.
Em relação aos centros urbanos, na região os principais centros de referência
são Santarém e Itaituba, classificados pelo Regic (IBGE, 2008) como capital
regional nível C e centro sub-regional nível B, respectivamente. Esses núcleos
urbanos têm apresentado intensa dinâmica de expansão nos últimos anos. Segundo
dados do IBGE, em Itaituba, além dos setores industrial, de mineração e
agropecuário, o dinamismo econômico do setor de serviços da cidade de Itaituba,
entre 2000 e 2007, resultou em crescimento de 8,9% do PIB, superior ao aumento
médio nacional para o período (4%). Em Santarém, a taxa de urbanização passou
de 67,9%, em 1991, para 73,7%, em 2010, indicando também uma dinâmica urbana
intensa, ao mesmo tempo que predominam os grandes estabelecimentos
agropecuários com uso intensivo da terra e baixa ocupação humana no município
(D'ANTONA et al., 2011). Assim, estas cidades provêm serviços e recursos
que acabam por diferenciar as condições das comunidades ribeirinhas em função
da distância de suas localizações.
Além da presença das UCs e dos núcleos urbanos, outra característica importante
na diferenciação local é a acessibilidade, especialmente o acesso à rede de
estradas, que está restrito principalmente a comunidades localizadas na porção
meridional da área de estudo e no extremo norte, externas às UCs. Nestas
comunidades, as estradas locais permitem a conexão com outros núcleos urbanos e
com importantes rodovias na região: BR 230 (Rodovia Transamazônica) e BR 163
(Rodovia Cuiabá-Santarém). Ressalta-se também a presença da TransTapajós,
rodovia local ligando as comunidades de Acaratinga, Jaguarari, Pedreira e
Piquiatuba.
Materiais e métodos
Procedimentos metodológicos
A metodologia proposta a seguir foi definida com o objetivo de caracterizar as
comunidades ribeirinhas do Baixo Tapajós e classificá-las de modo a construir
uma tipologia que reflita condições semelhantes e represente a estrutura
hierárquica das comunidades. A metodologia associada à coleta dos dados
utilizados neste trabalho e relativa a alguns aspectos dos métodos empregados
vem sendo desenvolvida e refinada no escopo das atividades de pesquisa do grupo
do Inpe, aqui denominado de Inpe-Estudos Amazônicos, que desde 2005 realiza
trabalhos de campo no Pará, com suporte financeiro dos projetos: Geoma (Rede
Temática em Modelagem Ambiental na Amazônia), Pime (Projeto Integrado MCT-
Embrapa), Cenários (Cenários para a Amazônia: uso da terra, biodiversidade e
clima), LUA-Fapesp (Land Use Change in Amazonia: institutional analysis and
modeling at multiple temporal and spatial scales) e UrbisAmazônia (Projeto
UrbisAmazônia: Qual a Natureza do Urbano na Amazônia Contemporânea?).
Como abordagem metodológica propõe-se o uso de técnicas estatísticas
multivariadas para o reconhecimento de padrões homogêneos dos núcleos
populacionais localizados no Baixo Tapajós. Inicialmente, fez-se o levantamento
em campo de informações sobre infraestrutura, rede de serviços e de uso da
terra para uma amostra dos núcleos populacionais ao longo das margens do Rio
Tapajós entre Santarém e Itaituba. Os dados referentes às comunidades visitadas
foram usados para construir variáveis quantitativas que foram padronizadas e
sistematizadas em uma base de dados. Essas variáveis foram utilizadas na
análise de componentes principais com o objetivo de reduzir a dimensionalidade
dos atributos originais, gerando componentes parcimoniosos capazes de conter a
maior variabilidade presente nas variáveis originais. Em seguida, foi realizado
o procedimento de agrupamento hierárquico, que permitiu finalmente a
identificação de agrupamentos, ou clusters de comunidades com características
semelhantes. Observações de campo foram empregadas para avaliar os resultados.
Estas etapas são detalhadas a seguir.
Coleta de dados
A coleta de dados ocorreu por meio da aplicação de questionários em 62
comunidades ribeirinhas do Baixo Tapajós, no período de 28 de junho a 10 de
julho de 2009, conforme descrito por Amaral et al. (2009). Das comunidades
visitadas, 27 estão localizadas na margem esquerda e 35 na margem direita do
Rio Tapajós. A escolha das comunidades para aplicação do questionário foi
baseada, inicialmente, em levantamentos anteriores, como os dados do Zoneamento
Ecológico-Econômico da Rodovia BR 163 (EMBRAPA, 2007) e os dados preliminares
do Censo Agropecuário 2006, disponíveis na ocasião (IBGE, 2006). Os pontos
previamente selecionados foram reavaliados no campo em função do esforço
amostral possível para uma expedição de dez dias com duas equipes com
deslocamento limitado pelas condições de navegação do Rio Tapajós, propiciando
uma média de amostragem de seis comunidades por dia.
Para cada comunidade, aplicou-se um questionário contendo quatro planilhas
elaboradas de modo a descrever aspectos referentes a:
• organização e histórico das comunidades - origem, histórico,
condição demográfica, renda, abastecimento, organização social;
• equipamentos e infraestrutura - abastecimento de água,
fornecimento de energia elétrica, saneamento, lixo, comunicação
(telefone e correios), transportes e serviços;
• saúde e educação - equipamentos e atendimento;
• uso da terra - dinâmica e sazonalidade dos principais usos,
organização fundiária, extrativismo, atividade madeireira, mineração,
agricultura, pecuária.
Permeando todos os temas, foram identificadas as principais carências das
comunidades e suas relações de dependência com as cidades da região. A
dependência foi identificada quando os membros de uma comunidade necessitavam
se deslocar até outros locais para atividades ligadas a comércio, utilização de
serviços de educação e saúde e comunicação, como telefonia e correios.
As planilhas, compostas por tópicos relevantes de cada tema, permitiram
respostas do tipo aberta, possibilitando extrair o máximo de informações sobre
cada comunidade. Para responder aos questionários foram procurados
preferencialmente os presidentes das comunidades. Na ausência deles,
entrevistaram-se moradores antigos ou com alguma representatividade local, como
agente comunitário de saúde, diretor de escola ou professor, representante do
sindicato de produtores rurais, entre outros (AMARAL et al., 2009). Os aspectos
gerais de caracterização das comunidades, bem como as coordenadas geográficas
obtidas com GPS, também foram registrados.
Análise dos dados
Após a coleta, os dados foram sistematizados de acordo com a temática de cada
planilha, de modo a atribuir valores para cada variável, em que eventualmente
variáveis quali-quantitativas foram classificadas segundo os valores de
atributos. Para análise estatística, foram selecionadas 30 variáveis entre as
informações coletadas em campo que tiveram valores para todas as comunidades e
que caracterizam os núcleos populacionais, compondo um conjunto simplificado de
variáveis. Destas variáveis, sete estão relacionadas com a organização e o
histórico da comunidade, seis com os serviços de saúde e educação, oito com a
infraestrutura e nove com o uso da terra (Quadro_1).
[/img/revistas/rbepop/v30n2/a03qua01.jpg]
Para viabilizar a agregação e comparação entre as variáveis que apresentavam
valores e intervalos não comparáveis entre si, os dados foram normalizados para
uma mesma escala (HOSSEINI; KANEKO, 2011; LYRA et al., 2010). O método
utilizado foi a normalização linear, que consiste em considerar os valores
mínimo e máximo de cada atributo no ajuste da escala, mapeando esse atributo no
intervalo fechado de zero a um (GOLDSCHMIDT; PASSOS, 2005). Para cada variável,
zero representa a pior e um a melhor condição verificada nas comunidades. Para
este escalonamento, os valores foram distribuídos observando o comportamento de
cada variável. O Quadro_1 apresenta o conjunto simplificado de variáveis com
seus respectivos atributos escalonados.
Para o reconhecimento de padrões homogêneos das comunidades ribeirinhas,
realizou-se a análise estatística multivariada de componentes principais (ACP)
e de agrupamento hierárquico sobre o conjunto de variáveis. Essas técnicas
estatísticas são metodologias exploratórias utilizadas para evidenciar
similaridades ou diferenças entre amostras de determinado conjunto de dados
(HUSSON et al., 2010). A escolha da ACP justifica-se por ser uma técnica
exploratória adequada para se obter um resumo empírico do conjunto de dados,
diferentemente de outras técnicas, como a análise fatorial, que têm por
objetivo detectar a estrutura dos dados ou a modelagem causal (FIGUEIREDO
FILHO; SILVA JR., 2010). ACP e agrupamento hierárquico são amplamente aplicados
em estudos que visam a classificação de áreas com base nas características
socioeconômicas e populacionais. Lloyd (2010), por exemplo, empregou a análise
de componentes principais para avaliar características da população na Irlanda
do Norte. Pedroso Júnior et al. (2008) propõem o uso de análises de componentes
principais e de agrupamento para identificar diferentes padrões em comunidades
quilombolas, no Estado de São Paulo. Husson et al. (2010) descrevem a
metodologia combinando análise de componentes principais e análise de
agrupamento.
O software R v2.12.1 (IHAKA; GENTLEMAN, 1996) foi utilizado para realizar a ACP
a partir da matriz de covariância das variáveis e para aplicar a técnica de
agrupamento hierárquico baseada em componentes principais (HCPC), ambas funções
do pacote FactoMineR (LÊ et al., 2008). Conforme recomenda McKenzie (2005), os
histogramas das 30 variáveis padronizadas, como uma aproximação para suas
funções densidade de probabilidade, foram observados, o que permitiu verificar
a inexistência de potenciais problemas de clumping (agregado de grupos) e
truncation (intervalos de valores que não permitem diferenciar grupos), que
podem ser associados às análises exploratórias baseadas em ACP.
A análise de componentes principais combinada à análise de agrupamento
enriquece a análise descritiva. Na primeira o objetivo é reduzir a
dimensionalidade do conjunto de dados originais, sem perder as informações
importantes desse conjunto, enquanto no agrupamento hierárquico busca-se
classificar os indivíduos, gerando agrupamentos (clusters) em diferentes níveis
hierárquicos representados por um dendograma.3 A definição do número de grupos,
bem como a consistência de cada um e das variáveis que os individualizaram, foi
feita empiricamente a partir de testes e da experiência dos autores proveniente
das observações e evidências de campo, aplicando-se o algoritmo de K-médias.
A seguir, são descritos os principais resultados obtidos por meio da análise
estatística multivariada dos dados de campo das 62 comunidades ribeirinhas.
Resultados
Da análise de componentes principais, as 30 variáveis foram reorganizadas em um
novo plano de componente fatorial. O Anexo traz os autovalores e autovetores
obtidos para cada variável e suas respectivas contribuições. A Figura_2 ilustra
a representação das variáveis e dos indivíduos no plano fatorial resultante
para a primeira e segunda componentes. As primeiras duas componentes principais
explicam apenas 26,43% da variância total do conjunto de dados, sendo 14,82% da
primeira e 11,62% da segunda. Destaca-se que as primeiras cinco componentes
principais explicam pouco mais de 50% da variância total do conjunto de dados.
Isso sugere que as variáveis originais são pouco correlacionadas e, por isso,
as primeiras componentes explicam pequena porção da variância dos dados.
[/img/revistas/rbepop/v30n2/a03fig02.jpg]
Analisando a representação das variáveis, observa-se, na Figura_2, que as
variáveis arroz (cultivo de arroz), açaí (coleta de açaí) e Saúde &
Alegria4 (atividade da ONG Saúde & Alegria nas unidades de conservação)
estão inversamente correlacionadas com as variáveis gado (criação de gado) e
instituições (número de instituições governamentais existentes). Possivelmente,
as primeiras variáveis estão mais associadas às áreas de uso restrito, como as
comunidades inseridas nas unidades de conservação onde a criação de gado, por
exemplo, é restrita e por vezes proibida. Quanto à análise dos indivíduos,
poucas comunidades se diferem substancialmente do conjunto, dado que a maioria
apresenta valores semelhantes para as variáveis ao se observarem as duas
primeiras componentes (Figura_2).
Utilizando as informações das cinco primeiras componentes na classificação
hierárquica, foi possível individualizar cinco grupos que apresentaram
homogeneidade quanto às características selecionadas. Para cada grupo, ou
partição, obteve-se a contribuição das componentes e das variáveis mais
importantes. De modo geral, padrões que foram observados em campo emergiram da
análise estatística, validando a metodologia classificatória. Foram necessárias
de 8 a 11 variáveis para particularizar os cinco grupos de comunidades obtidos
(Quadro_2), que também refletem uma hierarquia quanto às condições de
infraestrutura, ao acesso a serviços e equipamentos urbanos e ao uso da terra.
O Quadro_2 apresenta as comunidades pertencentes a cada grupo, bem como as
variáveis que os individualizaram.
[/img/revistas/rbepop/v30n2/a03qua02.jpg]
As variáveis relacionadas à infraestrutura e ao uso da terra foram as
principais responsáveis pela classificação dos grupos. Conforme observado por
Amaral et al. (2009), as relações de dependência entre as comunidades são
estabelecidas principalmente pela oferta de saúde e educação, sendo que o
acesso à educação é fator crucial para o crescimento ou o abandono das
povoações ribeirinhas, o que é corroborado por Parry et al. (2010b). Para
comunidades próximas a Santarém e Belterra na BR 163, Guedes et al. (2009)
constataram que os três principais fatores que influenciam a urbanização, no
nível de comunidade, são o tamanho da população, a qualidade de infraestrutura
e a disponibilidade dos serviços, sendo que os autores estabeleceram o limite
de 900 habitantes para indicar a presença de serviços especializados. Cabe
destacar ainda a importância da variável presença de Bolsa Família, para a
determinação dos grupos, com exceção do grupo 5, em que as comunidades
encontram-se em melhores condições de organização e infraestrutura. Em
contrapartida, a variável relacionada ao tamanho populacional (npes) foi
condicionante apenas para os grupos extremos, ou seja, comunidades com tamanho
populacional intermediário foram categorizadas por outros descritores, como
ocorreu, por exemplo, nos grupos 3 e 4, que englobam comunidades pequenas e
relativamente grandes. A Figura_3 apresenta o particionamento hierárquico do
dendograma baseado na distância euclidiana e a distribuição dos grupos no
território, após a consolidação com o algoritmo k-médias.
[/img/revistas/rbepop/v30n2/a03fig03.jpg]
Os resultados permitiram avaliar a relação entre as variáveis e individualizar
os grupos de comunidades com características homogêneas. Foram definidos cinco
grupos de comunidades com características semelhantes em termos de organização
espacial, estruturação interna e dinâmica de dependência, evidenciando espaços
homogêneos não contíguos no território. A numeração dos grupos reflete a
hierarquia do grau de infraestrutura e serviços nas comunidades. Os nomes-chave
propostos resumem a complexidade funcional do grupo e destinam-se apenas à
comunicação, não podendo, desse modo, ser considerados uma proposta de
classificação. A descrição detalhada de cada grupo é apresentada a seguir.
Grupo 1 - "Dependentes"
Fazem parte deste grupo as comunidades de Pauini, Castanho, Lago do Pireira,
Monte Cristo, São Francisco do Godinho e Jutuarana. São comunidades pouco
organizadas, com infraestrutura limitada e que dependem de núcleos urbanizados
maiores, como as sedes municipais, para o acesso a serviços e equipamentos
urbanos. A dinâmica populacional revela a estagnação destas comunidades, que
nos últimos anos não tiveram acréscimo na população, onde os valores mínimo e
máximo variaram de 17 a 128 habitantes, nas comunidades de Jutuarana e
Castanho, respectivamente.
Em termos de infraestrutura, todas as comunidades possuem energia de gerador e
predominam as piores condições de saneamento básico. Estabelecimentos
comerciais e escolas de ensino infantil estão presentes em apenas duas
comunidades. Igrejas, geralmente católicas, encontram-se em quatro comunidades.
A Figura_4 ilustra o centro das comunidades de Pauini (A), Jutuarana (B) e São
Francisco do Godinho (C), onde existem alguns equipamentos urbanos como escola,
igreja e barracão comunitário que atende a toda a comunidade.
[/img/revistas/rbepop/v30n2/a03fig04.jpg]
Os lotes de terra das famílias variam de 1 a 2 ha, onde a atividade agrícola
mais comum é a pecuária, com produção voltada principalmente para
comercialização em outras comunidades. A produção de grãos, representada pelas
lavouras de arroz, feijão e milho, é pouco expressiva, assim como as atividades
de caça e coleta, destinadas à subsistência. Diferentemente dos grãos, a
produção de farinha ocorre em todas as comunidades e se destina,
principalmente, à comercialização.
Nestas comunidades, poucos ou nenhum dos moradores recebem Bolsa Família,
importante programa governamental que contribui significativamente para a renda
das comunidades ribeirinhas do Tapajós (AMARAL et al., 2009). Guedes et al.
(2009) destacam a importância dos programas governamentais, em instâncias tanto
federal quanto estadual, para a região amazônica. Para a maioria dos
municípios, estes autores observaram que o serviço público representa o setor
de emprego mais significativo, enquanto os programas assistenciais, como o
Bolsa Família, compõem a fonte de renda familiar mais significativa, juntamente
com o benefício da aposentadoria.
Grupo 2 - "Extrativistas"
Este grupo compreende 20 comunidades situadas em unidades de conservação, sendo
15 localizadas na Flona e cinco na Resex. Nestas áreas de conservação, a
questão fundiária apresenta particularidades, haja vista que cada comunidade
tem uma área destinada ao uso, onde o plantio é permitido e deve seguir
critérios acordados na comunidade para a definição do lote de cada morador, com
a aprovação do Ibama (BRASIL, 2007). Cada família da comunidade tem o direito
de utilizar, para a agricultura, 1,25 ha em área de capoeira e 0,5 ha em área
de floresta primária, onde os principais produtos cultivados são arroz, feijão,
milho, mandioca e frutas. A mandioca é utilizada para produção da farinha, cujo
excedente é vendido em Santarém, Itaituba e Aveiro. A pecuária, quando
presente, é destinada ao consumo na própria comunidade, pois cada família pode
ter, no máximo, 15 cabeças de gado (AMARAL et al., 2009), mas em geral possui
menos. A caça, prática comum entre a população, é voltada para a subsistência.
A população varia de 20 a 612 pessoas, nas comunidades de Itapuama e Cametá,
respectivamente, sendo que o programa Bolsa Família está presente em todas as
comunidades e, em algumas, atende à maioria das famílias. Em certas
comunidades, como Pini e Jamaraquá, há oficinas do Projeto Oficina do Caboclo
para produção sustentável de bens de consumo a partir de recursos florestais
(Figura_4D), incentivadas por instituições governamentais e não governamentais.
A venda da produção destas oficinas para as cidades da região e para os
turistas que visitam as comunidades auxilia na composição da renda das
famílias. Embora algumas comunidades apresentem tamanho populacional
considerável e tenham bares e mercearias, o abastecimento de mantimentos é
feito em outras comunidades ou nas sedes de municípios.
Os serviços de saúde são supridos pela ação do barco Abaré (do Projeto Saúde
& Alegria - PSA), que atende às comunidades que estão na Flona e na
Resex, sendo que apenas três comunidades possuem posto de saúde. Em termos de
saneamento, metade das comunidades tem acesso à água de poço artesiano ou
encanada, melhor condição observada nas comunidades do Rio Tapajós. O lixo é
queimado ou enterrado, o que caracteriza uma condição intermediária. As Figuras
4E e 4F ilustram os centros comunitários de Maguari, cuja população é de
aproximadamente 315 pessoas, e Jamaraquá, com 190 habitantes.
Grupo 3 - "Produtores"
Neste grupo estão inseridas 16 comunidades localizadas na porção sul do Rio
Tapajós, no trecho entre Aveiro e Itaituba. Estas comunidades não estão
inseridas em unidades de conservação, não são atendidas pelo Projeto Saúde
& Alegria e possuem entre 98 habitantes, na comunidade de São Tomé, e 870,
na de Santa Cruz.
Nestas comunidades a pecuária, diferentemente do grupo anterior, é bastante
expressiva, com comunidades possuindo até 700 cabeças de gado, cuja criação é
voltada para comercialização, geralmente para outras comunidades. Da mesma
forma, a produção de castanha e a pesca também são expressivas, ocorrendo em
todas as comunidades, não apenas para consumo, mas também para comércio com
outras comunidades.
Por estarem localizadas próximas às comunidades bem estruturadas, como
Fordlândia, Barreiras e Brasília Legal, e cidades, como Aveiro e Itaituba, e
com acesso fácil, a população busca nestes núcleos complementaridade para os
serviços de saúde, educação e comércio. Apenas uma comunidade tem posto de
saúde, sete possuem escola de ensino fundamental segundo ciclo e quatro contam
com Ensino de Jovens e Adultos (EJA).
O Programa Bolsa Família, presente em todas as comunidades, geralmente atende à
maioria da população, e para o lixo predominam as piores condições de descarte:
jogado a céu aberto, queimado ou enterrado. As Figuras 4G e 4H ilustram o
aspecto geral das comunidades de Pedra Branca e Curitimbó, com população de 350
e 315 pessoas, respectivamente. A Figura_4I ilustra o centro comunitário de
Apacê, antiga tribo indígena e com população de aproximadamente 600 pessoas.
Grupo 4 - "Organizados"
Este grupo é composto por 16 comunidades, das quais metade está em unidades de
conservação, com população entre 65 pessoas, em Paraná Pixuna, e 1.000 pessoas,
em Boim. Estas comunidades foram fundadas entre 31 anos atrás, no caso da
Ipiranga II, e 319 anos, no caso de Boim.
Todas as comunidades possuem escola de ensino infantil e apenas três não têm
ensino fundamental de segundo ciclo. A merenda escolar cobre mais da metade do
mês e o programa Bolsa Família está inserido em todas as comunidades, sendo que
em quatro delas abrange o total da população. O EJA encontra-se presente em
quatro comunidades.
O cultivo mais comum é a lavoura de mandioca, sendo que a farinha não é
produzida em apenas uma comunidade. A pesca e a caça são expressivas e em
algumas comunidades destinam-se, além do consumo, para a comercialização. A
pecuária, ausente em apenas duas comunidades, é voltada para a subsistência e o
comércio entre comunidades.
Em nenhuma comunidade o descarte do lixo é feito a céu aberto, predominando a
melhor condição de destino final do lixo: a coleta e/ou o reaproveitamento. A
energia elétrica está ausente em duas comunidades e todas as comunidades têm
algum tipo de associação comunitária. A Figura_4 ilustra alguns aspectos
relativos às comunidades inseridas neste grupo, como a escola de ensino
fundamental de Suruacá (J), a área comunitária de Pinhel (K) e o aspecto de uma
rua, com construções recentes, de Escrivão (L).
Grupo 5 - "Estruturados"
As comunidades com melhor infraestrutura, notadamente Fordlândia, Brasília
Legal, Barreiras e Piquiatuba, compõem este grupo. Por serem mais estruturadas
e organizadas, estas comunidades constituem núcleos de referência para as
demais localidades ribeirinhas. Porém, para serviços mais especializados e no
contexto regional, elas perdem a atratividade para cidades como Itaituba e
Santarém, que são centros regionais. São comunidades antigas, com idades entre
81 e 170 anos, e população entre 300 habitantes, em Piquiatuba, e 3.000, em
Fordlândia.
Em termos de infraestrutura, todas as comunidades possuem a melhor condição de
abastecimento de água, por poço artesiano ou encanamento, posto de saúde e
escolas de ensinos infantil e fundamental até segundo ciclo. Igrejas católicas
e evangélicas estão presentes em todas as comunidades, assim como associações
comunitárias. O EJA está ausente apenas em Piquiatuba. As Figuras_4M, 4N e 4O
representam o aspecto geral das comunidades de Brasília Legal, Barreiras e
Piquiatuba, respectivamente, onde é possível observar uma ocupação mais
consolidada quando comparadas às demais comunidades.
Em termos de uso da terra, a pecuária é bastante expressiva, principalmente em
Fordlândia, Brasília Legal e Barreiras, onde o gado é produzido para corte.
Fordlândia e Barreiras possuem, de acordo com relatório técnico da Agência de
Defesa Agropecuária do Pará (Adepará) de 2008, 12.000 e 14.000 cabeças de gado,
respectivamente. Em Piquiatuba também há gado, cerca de 100 cabeças, porém a
produção é mais voltada para o consumo na própria comunidade. Os plantios mais
comuns são a mandioca e o milho.
Apesar de a classificação hierárquica ter definido grupos de comunidades
similares, é imprescindível a avaliação dos resultados tomando-se as
informações de campo como referência e, eventualmente, realizando alguma
correção. A única alteração necessária neste trabalho referiu-se às comunidades
de Pindobal e Porto Novo, que são áreas de lazer e turismo e, por isso,
apresentaram um número de estabelecimentos compatíveis com os registrados para
o grupo 5. A variável mercado-bar-restaurante foi a que mais contribuiu para
classificar este grupo. Contudo, para manter a coerência na hierarquia das
comunidades, Pindobal e Porto Novo foram incluídas no grupo 4, uma vez que as
variáveis associadas a educação, saúde e uso da terra descrevem uma condição
diferente da observada para o grupo 5.
Discussão
A partir da análise visual do resultado da espacialização das comunidades em
clusters (Figura_3), alguns padrões espaciais podem ser identificados quanto à
distribuição dos grupos no território. O grupo 2 (Extrativistas) concentra-se
na porção setentrional da região, ao longo de ambas as margens do Rio Tapajós e
nas UCs. As restrições de uso da terra impostas pela Flona e Resex, bem como
pelas características dos habitantes, estão diretamente relacionadas com as
variáveis que os definiram como extrativistas, refletindo esta concentração no
território. O grupo 3 (Produtores) encontra-se disperso ao longo da porção
central e meridional da área de estudo, externo às UCs e com algum acesso por
malha viária. O acesso por terra (estradas) e o fato de estas comunidades não
estarem em UC lhes conferem uma dinâmica mais intensa, associada principalmente
à produção agropecuária, com possibilidade de comercialização de gado, e assim
independentes da economia restrita à circulação pelo Rio Tapajós.
Os núcleos do grupo 4 (Organizados) estão dispersos ao longo de toda a região,
porém mais concentrados na porção norte do Tapajós, sob a influência de
Santarém. Alguns, como Boim, Pinhel e Escrivão, encontram-se neste grupo por
terem sido historicamente importantes no desenvolvimento da região, desde o
período da borracha, em que a rede de localidades tinha estrutura dendrítica.
Os grupos extremos 1 (Dependentes) e 5 (Estruturados) não apresentaram padrão
espacial distinto, estando dispersos ao longo da área de estudo. No grupo 1
ressalta-se, ainda, certa dificuldade de acesso observada em campo, captada
indiretamente pelas variáveis consideradas. O grupo 5 engloba núcleos que
exercem função de centro local, sejam Barreiras e Fordlândia, considerados
aglomerados rurais isolados, ou povoados segundo IBGE (2010), seja a comunidade
de Piquiatuba na Flona, equipada inclusive com acesso à Internet livre para
seus moradores.
Observou-se que, apesar de não densamente povoado, o arranjo das comunidades no
Baixo Tapajós mostra a contribuição de núcleos de ocupação na visão expressa
pelo termo floresta urbanizada, ainda que em um nível hierárquico basilar:
foram estimados cerca 19.390 moradores, em 62 comunidades de diferentes
condições quanto à infraestrutura e aos serviços disponíveis.
Do procedimento estatístico e da caracterização hierárquica obtida para as
comunidades, pode-se inferir certa dependência entre algumas delas e a
articulação direta com os principais centros urbanos, especialmente Santarém e,
em menor intensidade, Itaituba. Pela abordagem apresentada e escala de análise,
não temos argumentos suficientes para discutir a desarticulação da urbanização,
como em Guedes et al. (2009). Ao contrário, o papel do acesso, ou seja, além da
ligação fluvial pelo Rio Tapajós, a possibilidade de ligação por estradas
influenciou indiretamente as variáveis utilizadas e condicionou a separação dos
grupos, indicando que, nesta escala, a urbanização segue uma articulação em que
muitos nós inferiores são ligados a poucos nós de níveis hierárquicos
superiores, conforme observado por Pinho (2012) por meio das métricas de coesão
e centralidade utilizadas para avaliar a estrutura das redes de saúde,
educação, transporte e circulação de mercadorias do Tapajós.
A hierarquia obtida, relativizando-se pela simplicidade das variáveis, da
análise e escala de detalhe, dialoga em parte com os resultados de Sathler et
al. (2010) para as cidades amazônicas, ao considerar variáveis associadas às
condições sociais e disponibilidade de serviços fundamentais para caracterizar
a rede urbanizada na "microescala". A caracterização destes nós do
Baixo Tapajós revela a estrutura em detalhe de um tecido urbanoparticular: nós
que dependem diretamente da rede formal de cidades para abastecimento, recursos
e serviços e que se ligam oportunamente aos nós vizinhos para acesso básico à
educação e saúde. Os resultados também evidenciam a simplicidade-complexidade
da tipologia urbana abordada por Schor e Oliveira (2011) e Moraes e Schor
(2011), contudo, para discutir a articulação e dependência com propriedade, é
necessário quantificar fluxos entre as unidades de ocupação, o que não foi
contemplado nesta etapa da pesquisa.
Sendo as comunidades ribeirinhas unidades espaciais de ocupação humana,
extensão das relações socioespaciais pertinentes aos centros urbanos, que
definem a estrutura básica do território, planejar intervenções, ou modalidades
de políticas públicas segmentais, considerando grupos de comunidades de
condições similares, será mais efetivo do que propostas universais para o Baixo
Tapajós, ou baseadas em outra divisão política ou administrativa.
Nesse sentido, proporcionar infraestrutura e serviços para que todas as
comunidades possam ser classificadas no grupo 5 (Estruturados) implicaria o
crescimento populacional das localidades, o que não seria factível
considerando-se a natureza de comunidades tradicionais e extrativistas de
muitas delas. Contudo, algumas intervenções são chave para que as comunidades
se aproximem das características do grupo 4 (Organizados): abastecimento de
água de poços artesianos, que também melhoraria a condição de saúde dos
habitantes; e provisão de energia elétrica, que aumentaria a capacidade
produtiva e as atividades de educação (algumas escolas não têm ensino noturno
de adultos pela falta de energia). Para o grupo 1 (Dependentes), além destas
condições básicas, viabilizar atividades de geração de renda possibilitaria a
manutenção destas populações. Pelo fato de estarem inseridas ou não em unidades
de conservação, respectivamente, as comunidades do grupo 2 (Extrativistas) e do
grupo 3 (Produtores), com o aporte de investimento e ações como as citadas
acima, poderiam a longo prazo ser classificadas no grupo 4 (Organizados). O
maior número de comunidades do grupo 3 (Extrativistas), na margem direita do
Rio Tapajós, no limite da Flona, sugere que medidas mais específicas deveriam
ser planejadas para estas comunidades, uma vez que sofrem mais restrição de uso
dos recursos naturais do que aquelas da Resex.
Para que estas sugestões, genericamente propostas a partir da análise
realizada, sejam efetivas, além da articulação das comunidades, o envolvimento
e a integração entre os arranjos institucionais, incluindo Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, prefeituras municipais
e sociedade civil devem estar em consonância para que haja melhoria das
condições da população, manutenção das comunidades tradicionais e
sustentabilidade dos recursos naturais no Baixo Tapajós.
Considerações finais
Para a região amazônica, assumiu-se que o tecido urbano engloba diferentes
tipologias espaciais de núcleos populacionais e que as comunidades ribeirinhas
fazem parte da rede urbanizada que se pretendeu descrever, constituindo um dos
tipos de nós das relações no nível mais básico e local. Estas comunidades
representam núcleos populacionais tradicionais com forte ligação com a rede de
rios, os quais conferem conectividade e mobilidade para suas populações,
desenvolvendo relações específicas destes locais.
Retomando-se as questões colocadas na introdução, os resultados mostraram que,
apesar de as condições das comunidades quanto a infraestrutura, acesso a
serviços e equipamentos urbanos e uso da terra serem similares no Baixo
Tapajós, estas características não são homogêneas para todas as comunidades. A
utilização de técnicas estatísticas multivariadas para análise dos dados
coletados em campo mostrou-se adequada para a definição de grupos com
características intraurbanas semelhantes. De modo geral, da análise estatística
emergiram padrões que foram observados em campo, validando a metodologia
classificatória. Foram necessárias de 8 a 11 variáveis para particularizar os
cinco grupos de comunidades obtidos, que sugerem uma hierarquia quanto às
condições de infraestrutura, ao acesso a serviços e equipamentos urbanos e ao
uso da terra. Entre as condições extremas de comunidades
"dependentes" e "estruturadas", foram particularizados
outros três grupos intermediários, de difícil percepção empírica no campo. Não
foi possível indicar uma variável única para descriminar os grupos, sendo
necessário um conjunto de variáveis descritoras, particular para cada grupo.
Destaca-se que as comunidades apresentam características muito semelhantes, com
infraestrutura e serviços de saúde e educação bastante limitados, o que as
torna, mesmo quando mais bem organizadas e equipadas, dependentes de núcleos
populacionais maiores. A inclusão de outras variáveis quantitativas,
indisponíveis a partir do levantamento de campo realizado, aumentaria
potencialmente a diferenciação das comunidades e a definição de grupos
distintos. Outras técnicas de agrupamento, como cluster de lógica nebulosa,
poderiam ser exploradas para melhorar a descrição da heterogeneidade entre
comunidades, assim como os modelos de classes latente, o método GoM e
algoritmos fuzzy de médias. Porém, esta abordagem está além da análise
exploratória inicial proposta no escopo deste trabalho.
Observou-se também que as comunidades inseridas em unidades de conservação, em
geral, apresentam situação diferenciada das outras, o que pode ser atribuído à
presença de ONGs e à implementação de políticas públicas específicas nestas
áreas. Não houve distinção das comunidades quanto ao posicionamento nas margens
do Rio Tapajós. Ressalta-se que a participação do Estado por meio, por exemplo,
dos programas de transferência de renda é extremamente importante para toda a
área, haja vista a dificuldade de as comunidades se autossustentarem sem estes
auxílios.
A tipologia apresentada contribui para a caracterização das comunidades
ribeirinhas do Baixo Tapajós, a partir da qual o planejamento e a proposição de
medidas que permitiriam a melhoria das condições destas populações seriam mais
eficientes. Em vez de uma única estratégia de gestão para as comunidades
ribeirinhas, seria possível elencar prioridades para os diferentes grupos,
otimizando a gestão destas áreas. Políticas territoriais horizontalizadas não
dão conta de equacionar os problemas em um território onde as comunidades
possuem organização heterogênea.
A metodologia adotada para definir a tipologia das comunidades ribeirinhas do
Baixo Tapajós pode ser aplicada para outras áreas na Amazônia, com dinâmicas
diferentes e com um conjunto de variáveis semelhantes ou não, mas que
contemplem os mesmos aspectos. Contudo, seria necessário observar os
condicionantes locais e particulares que possibilitem a distinção entre
comunidades.
Por fim, mas não menos importante, o experimento com as comunidades do Baixo
Tapajós mostra como o estudo deste arranjo de comunidades ribeirinhas auxilia a
construir evidências de base empírica para uma perspectiva que exige maior
reflexão criativa e crítica sobre o fenômeno urbanona Amazônia contemporânea.
Os resultados, ainda que restritos, apontam para uma reorganização e
reestruturação das funções que até então eram tidas típicas do campo ou da
cidade. Desse modo, a cidade e o campo, e por sua vez o rural e o urbano,
ganham novos contornos, conduzindo a maiores indefinições e mais desafios para
a definição dos contornos normativos, geográficos e teóricos dessas categorias.