A relação entre renda e composição domiciliar dos idosos no Brasil:
um estudo sobre o impacto do recebimento do Benefício de Prestação Continuada
Introdução
A composição dos domicílios é essencial na determinação do bem-estar das
pessoas. No que diz respeito aos idosos, os arranjos domiciliares podem
influenciar o funcionamento das redes de suporte privado, assim como a dinâmica
das contribuições financeiras dos idosos direcionadas a familiares mais
desprovidos de renda. No atual contexto de envelhecimento populacional,
mudanças nas famílias e políticas públicas de apoio aos idosos, é importante a
compreensão da dinâmica de formação dos arranjos domiciliares dos idosos. Dessa
forma, o artigo busca investigar como o recebimento de uma renda extra, no caso
o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pode ter impactado a composição dos
arranjos desse segmento populacional no Brasil.
Entre os determinantes dos arranjos domiciliares dos idosos, a renda tem papel
de grande destaque (CAMARGOS et al., 2007; SAAD, 2000; GHOSH, 2007; MARTELETO,
2007),1 sendo que duas possibilidades são apontadas na literatura: o
recebimento de uma renda pode, por um lado, estimular os idosos a buscarem
independência, optando por morarem sozinhos (COSTA, 1999; MCGARRY; SCHOENI,
1998; CARVALHO, 2000) e, por outro, principalmente em situações de pobreza,
atrair familiares interessados em compartilhar desses benefícios, aumentando a
probabilidade da coabitação (EDMONDS et al., 2005; SAAD, 2000; CAMARANO, 2003;
CIOFFI, 1998). O propósito deste trabalho é testar qual desses efeitos
predomina quando ocorre um choque exógeno de renda na forma do recebimento,
pelo idoso, de um benefício social antes inexistente.
Os idosos brasileiros ' com 60 anos e mais ', que até 1980 representavam
aproximadamente 6% do total da população, em 2020 responderão por cerca de 13%
e, em 2050, chegarão a 29% da população (IBGE, 2008). Em termos de seguridade
social, os idosos brasileiros vêm conquistando cada vez mais direitos. A
Constituição brasileira de 1988 buscou garantir direitos mínimos a uma
população que envelhece rapidamente e que, em grandes proporções, encontra-se
em situações adversas de pobreza. O acesso dos idosos a benefícios sociais foi
universalizado, seja na forma de benefícios previdenciários, seja na forma de
transferências de renda sem vínculo contributivo. No meio rural, os idosos que
comprovam qualquer tipo de trabalho agrícola de subsistência passaram a ter
acesso ao beneficio de uma aposentadoria no valor de um salário mínimo. Na área
urbana, instituiu-se, a partir de 1996, o Beneficio de Prestação Continuada
(BPC), que é uma transferência não contributiva de renda, no valor de um SM,
destinado a idosos não protegidos pelas aposentadorias e que comprovem possuir
renda familiar per capita (rfpc) inferior a ¼ de SM.
Tendo em vista tais fatores, este trabalho procura investigar especificamente o
impacto do Benefício de Prestação Continuada sobre a composição dos arranjos
domiciliares dos idosos no Brasil. De acordo com oAnuário Estatístico do
Ministério da Previdência Social, desde a implementação do BPC, o número de
benefícios concedidos aumentou de aproximadamente
50.000, em 1996, para quase 1 milhão e meio, em 2006 (BRASIL, 2006), de tal
forma que 10% da população brasileira acima de 60 anos passou a receber este
benefício. A proposta deste trabalho é verificar se o recebimento dessa
transferência de renda, antes inexistente, aumentou a propensão dos idosos a
morarem sozinhos ou se, ao contrário, provocou o aumento da coabitação de
familiares em torno dos beneficiários.
Estudos realizados acerca da relação entre renda e arranjo domiciliar dos
idosos apresentam resultados que merecem atenção. Nos EUA, Costa (1999) mostrou
que a institucionalização do recebimento de pensão (Old Age Assistance), na
década de 1940, foi coincidente com o início da tendência de crescimento na
proporção de mulheres idosas morando sozinhas. Até esse período, a maioria das
idosas vivia com filhos e outros parentes. A partir de 1940, verificou-se uma
expressiva diminuição dessa situação, sendo que, no final da década de 1990,
apenas uma minoria das idosas vivia com filhos e outros parentes. Na mesma
direção, Engelhardt et al. (2005), utilizando mudanças legislativas nos
benefícios previdenciários de seguridade social dos EUA, constataram que
reduções no benefício tiveram impacto significativo, no sentindo de fazer
migrar os idosos que viviam em arranjos domiciliares independentes para
arranjos com mais pessoas.
Por outro lado, Edmonds et al. (2005), ao estudarem como a composição
domiciliar responde à mudança na renda domiciliar na África do Sul, não
encontram evidências de que um crescimento da renda provoca aumento da
propensão de o idoso morar sozinho; ao contrário, o estudo enfatiza o papel do
idoso em dar suporte a suas famílias. Uma explicação plausível para os
resultados obtidos, segundo os autores, é a relação entre pobreza e famílias
estendidas. Na mesma linha, estudo comparativo entre viúvos de diferentes
regiões brasileiras sobre o efeito da renda nos arranjos domiciliares dos
idosos apontou que a alta renda do idoso, no Sudeste, separa os domicílios,
enquanto a pobreza estimula a corresidência, no Nordeste, indicando que a
preferência do idoso pode ser sobrepujada pelas necessidades dos filhos adultos
(SAAD, 2000).
Previamente à investigação do impacto do recebimento do BPC sobre o arranjo
domiciliar dos idosos, no presente artigo analisa-se a evolução dos arranjos
domiciliares deste subgrupo em 1985, 1995 e 2005, segundo quartis de renda,
utilizando dados das PNADs (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Essa
análise revela a importância do recebimento de uma renda no valor de um SM na
configuração do arranjo domiciliar do idoso. Em 2005, 2,5% dos idosos e idosas
com renda inferior a um SM per capita viviam sozinhos, proporção que salta para
27,3% no quartil de rendimento seguinte, em que se encontra o recebimento no
valor de um SM per capita. Apesar de, nesse caso, o recebimento de um SM poder
estar associado à aposentadoria, à aposentaria rural, ao BPC, ou a qualquer
outra renda no valor de um SM, esse resultado fornece suporte para a
investigação do impacto do BPC sobre o arranjo domiciliar do idoso,
principalmente quando se consideram os desafios metodológicos associados às
avaliações de impacto de políticas sociais. Para a investigação do impacto do
BPC sobre o arranjo domiciliar, tirou-se proveito da mudança na legislação
referente ao recebimento do BPC, ocorrida em 2003, que reduziu a idade mínima
de elegibilidade de 67 para 65 anos. Essa alteração pode ser vista como um
choque exógeno de renda aos idosos que passaram a se beneficiar antes do
previsto, podendo ser entendida, assim, como uma descontinuidade do recebimento
do BPC, que fornece um experimento quase-natural para avaliação do impacto que
o artigo se propõe a estudar (MIRANDA, 2008).
Para a verificação empírica das hipóteses, foram utilizados o método
estatístico da diferença em diferença e os dados da PNAD de 2002 e 2004. A
estratégia adotada para identificar o impacto do BPC sobre o arranjo domiciliar
dos idosos é comparar o grupo de idosos que foram afetados pela mudança (não
recebiam beneficio e passaram a ter o direito de recebimento devido à alteração
na legislação) com o grupo não afetado por essa mudança. O resultado obtido com
o exercício proposto sugere que o recebimento do benefício aumentou, entre 2002
e 2004, a probabilidade de o idoso chefe ou cônjuge morar sozinho.
Na seção que se segue, é apresentada a metodologia da análise de impacto do BPC
sobre as variáveis indicadoras de composição domiciliar. Posteriormente,
analisa-se a evolução dos arranjos domiciliares dos idosos no Brasil nas duas
últimas décadas, segundo um recorte de renda. São expostos os resultados do
exercício metodológico do impacto da renda sobre a determinação do arranjo
domiciliar dos idosos e, por fim, apresentam-se as considerações finais do
trabalho.
Fonte de dados e método de análise
Fonte de dados
Neste estudo, foram utilizadas as bases de dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, que fornecem informações acerca dos
arranjos domiciliares e familiares, com uma grande diversidade de variáveis
socioeconômicas, além de dados sobre a renda proveniente do BPC, o que permite
investigar o assunto proposto.
Vale notar que a PNAD de 2004 apresenta um suplemento sobre programas de
transferências de renda e investiga especificamente os beneficiários do
programa BPC. No entanto, Soares et al. (2006), ao compararem as informações da
PNAD sobre recebimento dos programas de transferência de renda com os dados
administrativos do governo federal, verificaram que a cobertura da primeira é
bem inferior aos dados administrativos. Enquanto, em 2004, segundo o Ministério
do Desenvolvimento Social, o registro do BPC destinado ao idoso correspondia a
885.236 benefícios, na PNAD o número (expandido) de beneficiários assim
declarados foi de 324.575, ou seja, 60% inferior aos dados oficiais. Soares et
al. (2006) apresentaram dois motivos para essa diferença: a montagem amostral
da PNAD, que é definida com o Censo Demográfico que abre a década, ou seja, o
peso e a amostra são definidos antes da PNAD ir a campo; e os erros de
declaração por parte da população idosa ou daqueles que respondem o
questionário, ao confundir o BPC com aposentadoria ou pensão. A PNAD de 2002
não apresenta suplemento de transferência de renda.
Tendo a qualidade duvidosa dessa informação contida no suplemento da PNAD de
2004, optou-se por identificar o recebimento do BPC de forma alternativa,
conforme se detalha a seguir.
Método de análise causal do impacto do recebimento do BPC sobre o arranjo
domiciliar
A estratégia metodológica para análise causal do impacto do recebimento do BPC
sobre o arranjo domiciliar aproveitou-se do fato de que, após sua
implementação, o BPC passou por mudança na legislação, que reduziu a idade
mínima para a elegibilidade ' que correspondia a 67 anos desde 1998 ' para 65
anos, a partir de 1º de janeiro de 2004, por determinação do Estatuto do Idoso
da Lei n. 10.741 (BRASIL, 2003).
Usando a estratégia sugerida e utilizada por Carvalho Filho (2000), bem como
por Miranda (2008), empregou-se a mudança da legislação, ocorrida em 2004, como
forma de avaliar o impacto do BPC sobre o arranjo domiciliar dos idosos. O
trabalho de Carvalho (2000) usou a alteração na legislação acerca da idade
limite ao recebimento da aposentadoria rural para avaliar seu impacto sobre os
arranjos domiciliares, enquanto Miranda (2006) valeu-se da mudança na idade
limite para o recebimento do BPC para analisar o efeito de transferências
privadas interdomiciliares.
Nessa estratégia, os idosos de 63-64 anos são tomados como grupo de controle e
aqueles com 65-66 anos como grupo de tratamento. Isto porque, antes de 2004, os
idosos em ambas as faixas etárias não recebiam o BPC, uma vez que a idade
mínima para a elegibilidade era de 67 anos; a partir de 2004, os idosos de 65-
66 anos tornam-se elegíveis para o recebimento do benefício, enquanto o grupo
de 63-64 anos permanece sem esse direito. Diante dessa mudança, comparam-se as
diferenças nas variáveis indicadoras da composição domiciliar (explicitadas
adiante) entre os idosos desses dois grupos de idade, em 2002 e 2004. A
diferença entre essas diferenças dará o impacto da mudança na legislação sobre
os arranjos dos idosos. Considera-se que qualquer diferença existente entre o
grupo de 63-64 anos e o de 65-66 anos, em 2002, pode ser explicada pela idade.
Em 2004, a diferença entre os grupos devido à idade se mantém, mas a ela é
acrescido o impacto do recebimento do BPC. Portanto, da diferença observada
entre esses grupos antes e depois de 2004, obtém-se o efeito do recebimento do
BPC sobre os arranjos domiciliares.2 A Figura_1 ilustra a comparação entre os
grupos controle e de tratamento. Em 2002, comparam-se os idosos de 63-64 anos e
65-66 anos, na situação em que ambos os grupos não tinham direito ao benefício;
já em 2004, a comparação ocorre na situação em que os primeiros não tinham
direito ao benefício, enquanto os últimos passam a tê-lo a partir desse ano.
![](/img/revistas/rbepop/v30s0/a03fig01.jpg)
O método utilizado é o da diferença em diferença (DD), que é bastante empregado
na avaliação de políticas públicas quando se possui informação relativa a antes
e depois do período de implementação de políticas. Considerando um grupo de
controle e outro de tratamento, a ideia do método consiste em verificar a
mudança na variável de interesse entre os dois grupos antes e depois do impacto
da política, sendo que, da diferença dessas diferenças (dupla diferença)
verificada, obtém-se o resultado estimado do impacto do programa sob a variável
de análise, ou, em outras palavras, o efeito médio do tratamento no tratado.
Utilizando A e D para denotar "antes" e "depois" da intervenção, a mudança
média na variável de interesse Y, no grupo de tratamento, é estimada por E (YD
â YA | T = 1) e, no de controle, por E (YD â YA | T = 0). onde:
* Y é a variável resposta;
* T é a variável tratamento ou controle, sendo T = 0 (grupo controle) e T =
1 (grupo tratamento).
O resultado estimado da diferença em diferença (DD) é dado por:
[/img/revistas/rbepop/v30s0/a03tx01.jpg]
As estimativas do efeito médio do tratamento, utilizando o método da diferença
em diferença, podem ser calculadas tanto por meio do uso de médias simples â
como mostrado na equação (1) â quanto via regressão â conforme a equação
(2) que se segue.
à estimado um modelo logito, pois as variáveis respostas são categóricas
dicotômicas:
[/img/revistas/rbepop/v30s0/a03tx02.jpg]
onde:
* Yi: variável resposta (indicadora da composição domiciliar);
* Pi: variável de período (assume valor 0 se o ano corresponder a 2002 e
valor 1 se o ano for 2004);
* Ti: variável de tratamento (assume valor 0 se grupo de controle
corresponder a 63-64 anos e valor 1 se grupo de tratamento corresponder a
65-66 anos);
* Pi*Ti: variável de interação;
* Xi: variáveis de controle.
* εi: termo do erro
O coeficiente da variável de interação (β3) fornece o resultado da análise do
impacto do recebimento do BPC sobre as variáveis respostas analisadas â
indicadoras de composição domiciliar. O resultado da magnitude do coeficiente
da interação é apresentado em termos da razão das razões de chance (odd odds
ratio), uma vez que se trata de dupla diferença.
[/img/revistas/rbepop/v30s0/a03img01.jpg]
A interpretação dessa razão das razões de chance corresponde ao diferencial
líquido, ou seja, líquido do efeito de período e das diferenças estruturais
entre os grupos.
Em termos da razão das razões de chance, os coeficientes encontrados devem ser
interpretados como a chance de os indivíduos do grupo de controle terem uma
probabilidade de experimentar o evento medido pela variável resposta maior ou
menor do que os indivíduos do grupo de tratamento.
Deve-se deixar claro que o resultado do termo da interação corresponde à
diferença entre os grupos analisados (63-64 anos e 65-66 anos) entre os
períodos considerados (2002 e 2004), ou seja, capta-se o adicional da diferença
entre os grupos (63-64 anos e 65-66 anos) ao longo dos anos (2002 e 2004). Em
outras palavras, busca-se o resultado líquido do impacto ao eliminar as
diferenças existentes entre os grupos e ao longo do período.
As variáveis respostas indicadoras da composição domiciliar selecionadas foram:
* idosos(as) chefes que moram com familiares (sejam eles cônjuges, filhos
ou outros parentes de qualquer idade). Essa variável corresponde ao
oposto de morar sozinho e assume valor 0 se o idoso mora sozinho; e 1 se
o idoso mora com familiares;
* idosos(as) morando na presença de filhos menores de 21 anos em domicílios
cujo chefe ou cônjuge são idosos ' a variável assume valor 0 se não há
filhos; e 1 se há filhos no domicílio;
* idosos(as) morando na presença de outros parentes de qualquer idade em
domicílios cujo chefe ou cônjuge são idosos ' a variável assume valor 0
se não há outros parentes no domicílio; e 1 se há algum outro parente no
domicílio;
* tamanho do domicílio menor ou maior que três habitantes em domicílios
cujo chefe ou cônjuge são idosos ' a variável assume valor 0 se o
domicílio tem 1 a 3 habitantes; e 1 se o domicilio tem mais de três
habitantes.
O método da DD ainda permite incluir variáveis de controle na regressão (Xi),
servindo para garantir que a comparação entre os grupos de idosos de 63-64 anos
com os de 6566 anos, por exemplo, se dê entre indivíduos com características
parecidas, tais como escolaridade, sexo, localização do domicílio, etc. As
variáveis de controle utilizadas foram:
* variáveis individuais
- sexo (0 para mulher; 1 para homem);
-raça (0 para raça/cor branca ou amarela; 1 para preta, parda ou
indígena);
-escolaridade (anos de estudos); -condição da união (0 para ausência
de cônjuge no domicílio; 1 para presença de cônjuge no domicílio);
* variáveis de infraestrutura da unidade domiciliar
-paredes (0 se material predominante das paredes externas é de taipa
não revestida, madeira aproveitada, palha ou outro material; 1 se
parede externa é de alvenaria ou madeira aparelhada);
-telhado (0 se material predominante na cobertura ' telhado ' é de
zinco ou madeira aproveitada ou palha; 1 se telhado é telha ou laje
de concreto ou madeira aparelhada);
-banheiro (0 se tem banheiro ou sanitário no domicílio; 1 se não tem
banheiro no domicilio);
-água encanada (0 se não tem água canalizada em pelo menos um cômodo;
1 se tem água canalizada);
-lixo (0 se o lixo domiciliar é jogado em terreno baldio, logradouro,
rio ou mar; 1 se coletado diariamente, indiretamente, queimado ou
enterrado na propriedade);
-iluminação (0 se forma de iluminação do domicilio é óleo, querosene,
gás de botijão ou outra forma; 1 se elétrica ' de rede, gerador ou
solar);
* variáveis de localização do domicílio
-situação censitária (0 se situação censitária do domicílio é rural;
1 se urbano);
-região metropolitana (0 se região não é metropolitana; 1 se região é
metropolitana);
-grande região (0 se domicílio está na Região Norte, Nordeste ou
Centro-Oeste; 1 se domicilio está na Região Sul ou Sudeste).
Ainda é importante destacar que somente os idosos com renda per capita abaixo
de ¼ de SM entraram na análise, uma vez que é este o critério para recebimento
do BPC. Com o recebimento desse benefício, os idosos provavelmente passam a ter
uma renda familiar per capita superior a ¼ de SM, sendo necessário, por esse
motivo, descontar o valor referente a um SM da renda familiar daqueles que se
atribuíram o recebimento do BPC, de forma a possibilitar sua identificação.
Trabalhou-se, portanto, com a renda descontada do recebimento do BPC, ou seja,
a renda líquida do valor do BPC. Vale dizer que o BPC considerado corresponde
ao recebimento de exatamente um SM na variável "outros rendimentos" da PNAD
(SOARES et al., 2006). Além do BPC, nessa variável encontram-se também
declarados os juros de caderneta de poupança e de outras aplicações, dividendos
e/ou outros rendimentos que o indivíduo recebia no mês de referência, assim
como os rendimentos referentes aos programas de transferência de renda. No
entanto, o BPC é uma renda que se destaca pelo valor exato de um SM.
Uma vez identificados os idosos com renda familiar per capita inferior a ¼ de
SM, selecionaram-se aqueles que, de acordo com os critérios de elegibilidade,
não recebem benefício previdenciário (os que declararam não ter recebimento de
aposentadoria e pensão). Os idosos que declararam receber entre 0 e menos de um
SM de aposentadoria ou pensão também foram incluídos no grupo analisado, pois
considerou-se que valores inferiores a um SM de aposentadoria ou pensão não
impediriam que o idoso requeresse o BPC.
Por haver erros de declaração quanto ao recebimento do BPC, uma vez que muitos
idosos erroneamente declaram esse benefício como aposentadoria (SOARES et al.,
2006), optou-se, como sugerido por Miranda (2008), por incluir, no conjunto de
possíveis recebedores do BPC, os idosos que declararam receber o valor exato de
um SM de aposentadoria. Ao tomar essa decisão, o grupo de recebedores do BPC é
inflado com aqueles que recebem aposentadoria, o que poderia alterar a análise.
Para lidar com esse problema, não somente os idosos de 65-66 anos recebedores
de um SM no ano posterior à mudança na legislação foram considerados, mas sim
todos aqueles, nas duas faixas etárias, que recebiam, antes e depois da
mudança, um SM de aposentadoria. Dessa forma, o recebimento de um SM de
aposentadoria exerce influência no arranjo domiciliar desses dois grupos. No
entanto, para os idosos de 65-66 anos depois da mudança, ou seja, aqueles que
de fato recebiam o BPC, o efeito medido corresponde à soma tanto do BPC quanto
da aposentadoria erroneamente declarada, o que leva, quando se comparam os
grupos por meio da diferença em diferença, a captar o efeito exclusivo do
recebimento do BPC.
Para o cálculo da renda familiar per capita de elegibilidade para o BPC, foram
contabilizados os rendimentos do idoso, do seu cônjuge e dos filhos menores de
21 anos, sendo todos residentes no domicílio. A renda individual engloba todos
os rendimentos previdenciários, os de trabalho, as transferências
governamentais e interdomiciliares do indivíduo.
Uma vez bem definidos os grupos de controle e tratamento, parte-se para a
análise da composição domiciliar desses indivíduos. Entre os idosos, as
posições no domicílio consideradas para análise foram as de chefe, cônjuge,
filho ou outro parente. Destas, excluíram-se a posição de filho no domicílio,
em função dos poucos casos verificados, e a de outro parente, pois, apesar de o
número de casos ser expressivo, esbarra-se na dificuldade em identificar a
exata relação de parentesco entre eles e os outros membros familiares (visto
que poderiam ser pais, sogro, tio, irmão, etc.). Assim, a análise econométrica
concentra-se apenas em verificar o impacto do recebimento do BPC sobre os
idosos chefes ou cônjuges do domicílio. Trata-se de uma limitação, mas entre as
possibilidades, considerou-se a melhor solução.
A seguir, é apresentada uma análise puramente descritiva dos arranjos
domiciliares dos idosos ao longo dos anos de 1985, 1995 e 2005, de fundamental
importância para a compreensão dos resultados referentes à análise do impacto
do BPC sobre os arranjos domiciliares dos idosos.
Composição dos arranjos domiciliares dos idosos e sua relação com a renda, em
1985, 1995 e 2005
Esta seção traz a relação da composição dos arranjos dos idosos com renda para
1985, 1995 e 2005. Os dados utilizados são da PNAD dos respectivos anos. Foram
selecionados todos os idosos que assumem a posição de chefe, cônjuge ou outro
parente no domicílio, distribuídos por quartil de renda.
A Tabela_1 elucida bastante a questão dos arranjos domiciliares dos idosos e
sua relação com a renda. Chama a atenção o forte aumento na proporção de
domicílios do tipo idoso sozinho (categoria 3) e idosa sozinha (categoria 5),
quando se vai do 1º para o 2º quartil de renda, em qualquer um dos três anos
analisados. Tomando-se 2005 como exemplo, verifica-se que a proporção de idoso
sozinho salta de 1,3% para 9,2%, entre esses dois quartis de renda, variação
que é ainda mais expressiva para o arranjo do tipo idosa sozinha (de 1,1% para
18,1%).
[/img/revistas/rbepop/v30s0/a03tab01.jpg]
Essa enorme variação, do 1º para o 2º quartil, é explicada pelo recebimento de
uma renda equivalente a um SM, pois é exatamente no 2º quartil que se encontra
esse valor, em qualquer um dos anos analisados. Assim, no 2º quartil
concentram-se os domicílio de idosos cuja composição da renda é fortemente
determinada pelo recebimento de um salário mínimo, podendo ser na forma de uma
aposentadoria, pensão, renda mensal vitalícia ou o BPC. Essa renda,
supostamente, deve conferir maior autonomia ao idoso para decidir sobre seu
arranjo domiciliar, ficando evidente a importância da renda no valor de um SM
na determinação do arranjo domiciliar do tipo idoso sozinho (categoria 3),
idosa sozinha (categoria 5 ) e casal morando sozinho (categoria 1).
Outro resultado interessante é que, em todas as categorias nas quais há outro
parente residindo no domicílio (2, 4, 6, 8, 10 e 12), quanto maior é a renda,
menores são as proporções de domicílios nessa situação, sugerindo que
corresidir com outras pessoas pode combater os efeitos da pobreza, sendo que a
presença de outros parentes é um indicador dessa situação.
Apresentada essa seção descritiva, parte-se para a implementação do modelo de
avaliação do impacto do BPC na determinação do arranjo domiciliar,
considerando-se a importância da renda na determinação do arranjo domiciliar
dos idosos. Assim, tanto a possibilidade de o idoso morar sozinho quanto a de
agregação de familiares em torno da nova renda recebida podem ser afetadas pelo
recebimento do BPC, como será visto a seguir.
Resultados do impacto do BPC sobre o arranjo domiciliar dos idosos
Análise descritiva dos beneficiários do BPC vis-à-vis os não beneficiários
A Tabela_2 apresenta resultados da análise descritiva dos grupos controle e de
tratamento das variáveis relacionadas a características individuais e à
localização geográfica dos residentes selecionados para a análise, onde se
verifica que os indivíduos dos grupos controle e de tratamento são bem
parecidos.
[/img/revistas/rbepop/v30s0/a03tab02.jpg]
A Tabela_3 traz os resultados da análise descritiva da composição do arranjo
domiciliar dos beneficiários e não beneficiários do BPC. São utilizados os
termos "efeito idade" para designar a diferença entre os grupos 63-64 anos e
65-66 anos, quando se supõe que a diferença encontrada entre estes dois grupos
deve-se apenas à idade, enquanto o termo "efeito BPC" é empregado para designar
a diferença entre esses mesmos dois grupos ocorrida devido ao choque de renda
desse benefício.
[/img/revistas/rbepop/v30s0/a03tab03.jpg]
A partir dos resultados da Tabela_3, destacam-se dois pontos em especial. Em
primeiro lugar, observa-se que, em 2002, a variação entre os idosos de 63-64
anos e os de 65-66 anos que moram sozinhos (categoria 1) foi de 8%, uma vez que
passou de 13,8% para 14,9%. A suposição feita é de que isso se deve unicamente
ao efeito idade. Uma maior proporção de idosos morando sozinhos na idade de 65-
66 anos do que na de 63-64 anos revela, supostamente, uma maior chance de os
filhos terem saído da casa dos pais e de o cônjuge ter falecido. Já a diferença
entre esses grupos em 2004 foi expressivamente maior (61%), uma vez que passou
de 12,1% para 19,5%, o que leva a se supor que tal resultado deva-se ao efeito
BPC somado ao efeito idade, assumindo-se que não tenha ocorrido, no período,
outros choques de qualquer natureza.
Em segundo lugar, observa-se, na categoria idoso casado com filhos e outros
parentes, uma variação negativa de 8% no que tange ao "efeito idade" entre os
grupos de 63-64 anos e 65-66 anos, em 2002. Esse resultado é coerente com a
hipótese anteriormente referida de que, conforme aumenta a idade dos idosos,
maior é a chance de seus filhos terem saído de casa e de já não haver mais um
cônjuge compartilhando o domicílio. Ao analisar esses idosos em 2004, verifica-
se que a variação encontrada aumenta para 15%, o que corrobora o resultado
anterior de que o recebimento do BPC concorre para a redução da proporção de
idosos que vivem em domicílios mais numerosos (nesse caso, com cônjuges, além
de filhos e outros parentes).
Essa análise inicial chama atenção, principalmente, para o possível impacto do
BPC sobre os domicílios de idosos morando sozinhos. Isso é coerente com o
resultado da composição domiciliar por quartil de renda, que evidenciou a
importância de um rendimento no valor de um SM sobre o arranjo domiciliar
independente. O que se supõe é que os idosos recebedores do BPC somam-se
àqueles que, devido ao recebimento de um rendimento mínimo, puderam optar por
um arranjo que prezasse pela privacidade.
Resultado da análise do método diferença em diferença
A análise segue agora mais aprofundada com os testes estatísticos do modelo e
de significância. Será analisado o impacto do BPC sobre as seguintes variáveis
respostas indicadoras de composição domiciliar: idosos(as) chefes morando com
familiares (sejam eles cônjuges, filhos ou outros parentes de qualquer idade);
idosos(as) morando na presença de filhos menores de 21 anos em domicílios cujo
chefe ou cônjuge são idosos; idosos(as) morando na presença de outros parentes
de qualquer idade em domicílios cujo chefe ou cônjuge são idosos; e tamanho do
domicílio menor ou maior que três habitantes em domicílios cujo chefe ou
cônjuge são idosos.
Em primeiro lugar, foi analisado o impacto do BPC sobre a chance de o idoso
morar com familiares (sejam eles cônjuges, filhos ou outros parentes de
qualquer idade). A averiguação do impacto é dada, na Tabela_4, pelo coeficiente
da variável interação (β3), que, conforme discutido anteriormente, representa o
impacto do recebimento do BPC sobre as variáveis respostas analisadas.
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Nos três modelos estimados, observa-se que o coeficiente de interação (que
fornece o resultado do impacto) é estatisticamente significativo (Tabela_4). O
resultado indica que, excluindo-se essas diferenças, o impacto líquido do BPC
sobre a chance de os idosos chefes morarem com familiares (sejam eles cônjuges,
filhos ou outros parentes de qualquer idade) foi negativo e estatisticamente
significativo. Assim, o recebimento do benefício, propiciado pela mudança na
legislação, provocou uma redução na chance de os idosos chefes morarem com
familiares (sejam eles cônjuges, filhos ou outros parentes de qualquer idade).
Ou, em outras palavras, aumentou a chance de os idosos morarem sozinhos.
Além do resultado do impacto do BPC, a análise das variáveis independentes do
modelo permite fazer inferências sobre os arranjos domiciliares. Os modelos
indicam que ser da raça/ cor branca ou amarela, pertencer à área urbana,
residir na Região Sul ou Sudeste e ter boas condições de escoamento do lixo
diminuem a chance de o idoso chefe morar com familiares, enquanto maior
escolaridade aumenta essa chance.
Com relação à presença de filhos maiores de 21 anos no domicílio (dados não
apresentados), os resultados apontam um coeficiente de interação
estatisticamente significativo. O sinal negativo do coeficiente indica que a
chance de os idosos terem filhos no domicílio é menor para o grupo que recebeu
o BPC.
Na investigação do impacto do BPC sobre a presença de outros parentes
corresidindo com os idosos (dados não apresentados), o termo de interação
também se mostrou negativo e estatisticamente significativo. Esse resultado
indica que a chance de os idosos terem outros parentes no domicílio diminui se
o individuo é do grupo de tratamento, ou seja, o recebimento da transferência
reduz a chance de os idosos recebedores do BPC terem outros parentes no
domicílio.
Por último, os resultados do coeficiente de interação da regressão da variável
tamanho do domicílio maior que três moradores (dados não apresentados) apontam
um coeficiente não estatisticamente significativo.
Como se pode verificar, os resultados são todos consistentes e indicam que o
recebimento da renda referente ao BPC reduz a chance de o idoso morar com
familiares, ou, em outras palavras, aumenta a chance de o idoso morar sozinho.
Considerações finais
A literatura da demografia da família e dos domicílios está repleta de estudos
empíricos que atestam o crescimento da proporção de idosos vivendo sozinhos ou
apenas com seus cônjuges na Europa e nos Estados Unidos, sendo este também um
fenômeno crescente nos países de desenvolvimento tardio (PALLONI, 2000; GARCIA;
ROJAS, 2001; KLINENBERG, 2012). A questão de como a renda interfere nessa
tendência em situações de elevada pobreza não é muito clara, uma vez que, de um
lado, a autonomia financeira do idoso é condição essencial para viabilizar a
busca de privacidade e, de outro, a maior segurança financeira do idoso pode
ser um atrativo para parentes próximos. No caso específico do Brasil, a
pergunta que se coloca é se as políticas sociais recentes, que tiveram como
efeito a mitigação da pobreza dos idosos, produziram também o reforço da
tendência de os idosos viverem sozinhos.
Nesse sentido, o trabalho investigou as duas perspectivas levantadas na
literatura sobre o tema: o recebimento de uma renda tanto permitiria ao idoso
optar pela privacidade no seu arranjo, como tornaria a corresidência atrativa
para os familiares. Os resultados deste trabalho corroboram aqueles encontrados
por Costa (1999), Mcgarry e Schoeni (1998) e Carvalho (2000), sustentando a
hipótese de um efeito positivo de um choque exógeno de renda sobre a
probabilidade de um idoso viver sozinho.
Já na análise descritiva da composição dos arranjos domiciliares segundo grupos
de renda, fica claro o aumento da prevalência de idosos morando sozinhos entre
aqueles que recebem rendimentos no valor de um salário mínimo.
A análise econométrica de impacto do BPC, utilizando o método estatístico da
"diferença em diferença" e os dados da PNAD de 2002 e 2004, mostrou, também,
que o BPC aumenta a chance de o idoso morar sozinho. Os resultados são bastante
plausíveis, uma vez que os idosos analisados foram aqueles "mais jovens", ou
seja, pessoas cujo estado de saúde, de forma geral, permite a opção pela
privacidade e independência no arranjo domiciliar. Além disso, o BPC é uma
renda não contributiva que funciona como um choque exógeno de renda, destinado
ao idoso que provavelmente se imaginava dependendo financeiramente de algum
parente por toda a sua velhice. Dessa forma, supõe-se que o poder de decisão do
idoso se modifica completamente com o recebimento da renda, viabilizando sua
independência.
De maneira geral, a contribuição desse trabalho é demonstrar que, no contexto
da implementação do BPC no Brasil, o efeito do choque exógeno de renda sobre os
idosos pobres foi o aumento da formação de arranjos unipessoais. O entendimento
desse fenômeno deve auxiliar a compreensão das tendências dos arranjos
domiciliares no futuro e a elaboração e execução de políticas sociais, em que
pesem as particularidades do caso analisado. Uma questão que se coloca é que,
se para os idosos mais jovens o recebimento da renda significa maior chance de
viver só, à medida que a idade avança e a dependência de cuidados torna-se
maior, esse resultado pode ser invertido. De toda forma, se, de fato, uma renda
nos moldes do BPC aumenta a chance de o idoso morar sozinho, é preciso pensar
políticas complementares de assistência e cuidados pessoais aos idosos, uma vez
que eles vão envelhecer e provavelmente acumular incapacidades.
Finalmente, para a melhor compreensão dos resultados encontrados, outros
aspectos relacionados ao idoso devem ser incluídos em estudos futuros. A saúde
do idoso e a sua idade têm grande importância na determinação da composição
domiciliar do idoso. Idosos saudáveis podem exercer suas preferências, enquanto
os debilitados, certamente, necessitarão de cuidados. O mesmo vale para a
idade. Idosos jovens provavelmente apresentarão melhores condições de saúde,
enquanto os mais velhos tendem a acumular mais incapacidades. Outro fator
importante a ser considerado é a questão do gênero. Uma análise diferenciada
para os arranjos domiciliares de homens e mulheres idosos é fundamental, pois
os homens têm menor sobrevida e maior probabilidade de um recasamento do que as
mulheres, no caso de viuvez ou divórcio. Somada a esses fatores, a maior
autonomia financeira recentemente conquistada pela mulher faz com que o
crescimento acentuado dos domicílios unipessoais de idosos que se vê hoje ao
redor do mundo seja um fenômeno fundamentalmente feminino, cujas consequências
ainda devemos conhecer melhor.