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BrBRHUAp0102-30982014000200011

BrBRHUAp0102-30982014000200011

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN0102-3098
Year2014
Issue0002
Article number00011

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Referenciais teóricos da migração internacional e a questão da mobilidade espacial dos cortadores de cana

Introdução A compreensão sobre as características de um processo de mobilidade espacial vai muito além de sua quantificação, ou, quando esta não é diretamente possível, de sua estimação. Faz-se necessário abordar sua estruturação em termos de causas e motivações, assim como seus desdobramentos. Além disso, é relevante analisar a mobilidade espacial enquanto processo social, cujas dimensões estão expressas nas trajetórias dos indivíduos, que, dessa maneira, permitem detalhar as características e dinâmicas desse deslocamento.

O mercado de trabalho do Complexo Agroindustrial (CAI) canavieiro concentra, desde 2004, a maior parte dos empregados em atividades agrícolas no país (BALSADI, 2010). De acordo com informações da PNAD 2009, cinco culturas agrícolas (cana-de-açúcar, milho, café, horticultura e mandioca) reuniam 1.637.594 empregados naquele ano, considerando o conjunto do país. Destes, a maior participação era daqueles envolvidos na atividade canavieira (33,1%). O complexo caracteriza-se, historicamente, pela demanda por trabalhadores migrantes provenientes de algumas das regiões mais pobres do Brasil (SILVA, 1999; NOVAES; ALVES, 2007; MORAES et al., 2009).

A década de 2000 foi marcada por uma importante expansão das atividades do complexo (SZMRECSÁNYI et al., 2008; BALSADI, 2010). Refletindo este processo, ampliou-se a mobilidade espacial de trabalhadores para as atividades agrícolas do CAI canavieiro, caracterizando uma modalidade específica em termos de temporalidades e espacialidades (origens e destinos).

Considera-se que a compreensão da mobilidade espacial de qualquer grupo social envolve, necessariamente, a elaboração de um campo de questões teórico- conceituais, que sustentem a reflexão sobre as suas diversas dimensões, tanto aquelas referentes aos processos de natureza macro, que induzem grupos sociais ao deslocamento espacial temporário, quanto as que dizem respeito às estratégias dos indivíduos engajados. O caso particular dos migrantes para o trabalho no corte de cana é relevante para a reflexão sobre esse campo por sua importância histórica (SILVA, 1999), por seu crescimento no período recente (SZMRECSÁNYI et al., 2008) e pelas possibilidades de diálogo em função da importante bibliografia sobre a temática. Por isso, busca-se aqui estruturar questões teóricas relevantes para a análise da mobilidade espacial dos canavieiros na atualidade, contribuindo não para a efetivação da mesma,1 mas também para o debate teórico no âmbito dos estudos sobre migração, em especial a respeito de deslocamentos temporários.

Propõe-se, fundamentalmente, que não apenas é possível, como também bastante relevante, utilizar referenciais teóricos originalmente voltados à abordagem das migrações internacionais, para a reflexão a respeito da mobilidade espacial de canavieiros e, logicamente, sobre outros tipos e modalidades. A partir da análise da bibliografia que traz contribuições para o debate teórico sobre processos de migração internacional, constituem-se as questões teóricas aqui registradas. Também são considerados clássicos estudos de natureza teórica sobre a migração interna no Brasil, casos de Durham (1973) e Singer (1987), que, ao tratarem de condições das regiões de origem do êxodo rural e das características dos emigrantes nesse contexto, trazem contribuições para a abordagem de deslocamentos temporários. Além disso, também são incluídas análises sobre a mobilidade espacial de canavieiros.

O artigo está organizado em cinco seções. A primeira trata das limitações dos referenciais mais comumente utilizados para a compreensão da mobilidade espacial temporária, além de destacar a relevância de se considerar a mobilidade espacial de canavieiros a partir de referências sobre os níveis macro e micro e relativas à questão das redes migratórias. As seções seguintes apresentam os conceitos fundamentais dos níveis macro e micro e a questão das redes, contextualizando-os em relação à abordagem da mobilidade espacial de canavieiros. Diversas análises sobre esta modalidade migratória são utilizadas para esta contextualização, ainda que não empreguem diretamente os referenciais teóricos destacados. Antes das considerações finais, são sintetizadas as principais questões que cada um dos referenciais teóricos permite estruturar enquanto embasamento dos estudos de processos distintos de mobilidade espacial.

Antecedentes A mobilidade espacial de cortadores de cana se enquadra na definição de Zelinsky (1971) com relação a movimentos distintos da migração em si, exemplificados pela circularidade: "uma grande variedade de movimentos, em geral de curta duração, repetitivos ou cíclicos em sua natureza, mas sempre tendo em comum a falta de qualquer intenção declarada de uma mudança permanente ou de longa duração no lugar de residência" (ZELINSKY, 1971, p. 226, tradução nossa). A distinção se refere, especialmente, ao caráter temporário de determinadas formas de mobilidade, que, por esse motivo, não podem ser abordadas da mesma maneira que formas mais "permanentes".

Esta definição é relevante no sentido de captar a dimensão essencial dessa mobilidade, porém, a construção teórica desenvolvida pelo autor baseia-se em etapas evolutivas. Para Zelinsky, as formas temporárias de mobilidade espacial seriam formas de transição para movimentos mais duradouros, que envolveriam a mudança definitiva no local de residência, o que não necessariamente se verifica. Outro problema é que o mecanismo que embasaria tal transição da mobilidade baseia-se em estágios de desenvolvimento, os quais carecem de uma explicação mais complexa de possíveis transformações relacionadas a estes estágios.

A crítica às ideias de Zelinsky pode ser verificada em Skeldon (1990), que traz reflexões mais refinadas sobre a transição da mobilidade, especialmente considerando a dinâmica circulatória. Sua contribuição está em destacar distintas formas de mobilidade espacial sem apontar a ocorrência de evoluções entre as formas. Apesar de o autor trazer algumas ideias interessantes, distantes dos estágios de desenvolvimentos progressivos ou evolucionários que caracterizam a abordagem de Zelinsky (1971), é difícil compreender sua proposição como um possível referencial para outras análises, que registra um caráter eminentemente descritivo. O principal problema é a falta de possíveis explicações da dinâmica dos movimentos circulatórios que possam ser úteis para outros estudiosos.

A ausência de um arcabouço conceitual e teórico sobre as características da mobilidade circular pode ser verificada na maior parte da literatura sobre a questão, exemplificada pelos trabalhos de Chapman e Prothero (1985), Mitchell (1985), Mukherji (1985), Roberts (1981) e Palmer (1995). Em geral os autores embasam suas análises em teorias originalmente desenvolvidas para o estudo de outras modalidades ou tipos de migração, tendo como exemplos significativos os trabalhos de Haberfeld et al. (1999) e Spaan (1999).

O processo de mobilidade espacial dos cortadores de cana pode ser interpretado a partir de suas conexões com formas de mobilidade existentes em outros países e abordadas na literatura internacional, mas também se destacam aportes provenientes da literatura brasileira sobre migrações internas. Os trabalhos de Durham (1973) e Singer (1987) constituem as análises essenciais do processo de êxodo rural, dinâmica migratória marcante na realidade brasileira durante a maior parte do século 20.

Os dois trabalhos registram, inclusive, um caráter complementar no sentido da interpretação do êxodo rural. Enquanto Singer (1987) aborda questões de natureza estrutural em termos das causas deste processo migratório, Durham (1973) discute as dimensões de caráter individual, familiar e comunitário, ou seja, as motivações daqueles que se engajam no processo de mobilidade. Embora tragam questões e dimensões bastante relevantes para a análise da mobilidade dos cortadores de cana, ambos concentram seu foco nos movimentos rural-urbano, não permitindo, dessa forma, uma interpretação direta da mobilidade com temporalidades e espacialidades distintas.

A insuficiência dos arcabouços teóricos diretamente relativos à análise da circularidade e o foco de parte das discussões teóricas sobre migrações internas no Brasil na abordagem dos movimentos rural-urbano implicaram a necessidade de constituir um campo específico de questões conceituais e teóricas para a interpretação da mobilidade dos cortadores de cana.

A bibliografia nacional sobre a mobilidade espacial dos cortadores traz elementos bastante interessantes para articulação com teorias sobre a migração, apesar de, na maioria dos casos, não se referir a estas. Constituem exemplos relevantes os trabalhos de Silva (1999), com relação às origens e às redes constituídas em torno dessa mobilidade, de Alves (2007), que destaca características das origens e a demanda por trabalhadores migrantes pelos empresários do CAI canavieiro, além de Novaes (2007), que aponta aspectos relacionados às motivações dos engajados nessa mobilidade.

Existem estudos que utilizam teorias voltadas à análise das migrações, como Menezes e Saturnino (2007) e Moraes et al . (2009). O primeiro é focado nas origens dos processos no sertão paraibano e nas motivações que se processam por meio destas. o segundo analisa o deslocamento de pessoas do município de Pedra Branca (CE) para o corte de cana em Leme (SP), a partir de pressupostos neoclássicos que apontam apenas o nível micro, das decisões individuais. , contudo, a necessidade de ampliar para o caso brasileiro o campo conceitual, a partir das teorias sobre migração, buscando articular dimensões macro e micro e processos nas origens e nas áreas de destino.

No âmbito internacional, entre as reflexões teóricas mais complexas a respeito de dinâmicas da mobilidade espacial, destacam-se aquelas originalmente voltadas à compreensão das migrações internacionais, ressaltadas por Massey et al .

(1993). Nesse sentido, estrutura-se uma adaptação das mesmas, destacando sua relevância para a análise da mobilidade espacial dos canavieiros.

Dimensão fundamental na adaptação proposta é a articulação entre os níveis macro e micro. Os níveis se expressam por meio das causas e das motivações, de acordo com as proposições de Singer (1987). Causas estão relacionadas aos determinantes sociais, econômicos e políticos que estruturam os movimentos.

Motivações relacionam-se às respostas das pessoas aos constrangimentos impostos pela estrutura ou como indivíduos, famílias e comunidade agem no sentido do engajamento em processos de mobilidade espacial (MASSEY et al., 1993).

A articulação dos níveis macro e micro da mobilidade espacial requer a integração de diferentes perspectivas teóricas. Isso deve-se ao que autores como Wood (1982) e Massey et al. (1993) destacam: perspectivas estruturais não permitem uma abordagem aprofundada das dimensões individuais, familiares e comunitárias, além dos desdobramentos das trajetórias; por outro lado, as perspectivas que privilegiam o nível micro são limitadas no sentido da compreensão de causas e determinantes mais amplos da mobilidade. Por último, cabe ressaltar a necessidade de enfatizar a conexão entre os dois níveis mediada pelas redes sociais (MASSEY, 1986; MASSEY e al., 1993; KRISSMAN, 2005).

O estudo da migração baseado na teoria do Sistema-Mundo propicia uma forma mais complexa de reflexão sobre esta mobilidade, principalmente no que tange à origem desta "força de trabalho móvel" em uma perspectiva mais ampla (MASSEY et al., 1993; SPAAN, 1999). As proposições da nova economia das migrações (STARK; BLOOM, 1985; KATZ; STARK, 1986; STARK; TAYLOR, 1989) trazem relevantes possibilidades com relação às opções e propensões a migrar e as perspectivas futuras dos trabalhadores, em termos de seu engajamento em outros ciclos econômicos ou da diminuição de seus deslocamentos espaciais.

Outra contribuição relevante está relacionada às ideias sobre redes migratórias (MASSEY, 1986; MASSEY et al., 1993; KRISSMAN, 2000, 2005). Neste contexto, destaca-se a relação entre aqueles que demandam trabalhadores e os que oferecem trabalho, avaliada a partir da abordagem desenvolvida por Krissman, enquanto crítica à abordagem mais tradicional estabelecida por Douglas Massey em diversos estudos. A relevância das redes no sentido proposto por Krissman para o estudo da mobilidade espacial de cortadores de cana-de-açúcar decorre da necessidade de destacar a demanda por trabalhadores migrantes, apontada no contexto do mercado de trabalho do CAI canavieiro por diversos autores como Silva (1999, 2010) e Alves (2007).

Um exemplo interessante de estudo que busca integrar distintas perspectivas teóricas para a análise da mobilidade populacional é o trabalho de Spaan (1999). Avaliando as diversas formas de mobilidade (sazonal/temporária; inter- regional; internacional) da população da região de Java Ocidental na Indonésia, o autor estruturou sua abordagem teórica com base numa integração entre perspectivas macro e micro: histórico-estrutural; Nova Economia das Migrações; e teoria do capital social, destacando a questão das redes.

No âmbito da pesquisa mais ampla, na qual as presentes considerações teóricas se enquadram, uma premência do nível macro na análise da mobilidade espacial dos canavieiros, porém, não implicando a irrelevância do entendimento de questões em nível micro, o que demanda a integração de perspectivas. Origens, trajetórias e o engajamento nos processos de mobilidade espacial têm muito a ver com características individuais e domiciliares e também com a forma como os macroprocessos as afetam (STARK; BLOOM, 1985; MASSEY et al., 1993). Além disso, o futuro desenvolvimento desse fluxo não pode ser considerado apenas por meio de uma abordagem macro. Estes elementos apontam para a necessidade de incluir os elementos fundamentais da Nova Economia das Migrações e a integração entre origens e destinos, que demonstram a relevância das redes. As contribuições das três perspectivas para a presente análise e as relações com a literatura sobre a mobilidade de cortadores de cana no Brasil constituem o que se apresenta a seguir.

Nível macro A compreensão dos significados da mobilidade espacial de cortadores de cana-de- açúcar que se busca estruturar está baseada em suas articulações com dimensões sociais, econômicas, políticas e geográficas em nível macro e nas relações entre processos que ocorrem em diversas escalas espaciais. Assim, o conjunto de pressupostos que Massey et al. (1993, 1998) apontam a respeito das relações entre a teoria do Sistema-Mundo e migrações corresponde à melhor forma de lidar com tais questões. Apesar da inexistência de uma teoria diretamente voltada à migração constituída a partir da perspectiva do Sistema-Mundo, Massey et al.

(1993), com base em vários estudos anteriores, desenvolveram um quadro conceitual básico que se adapta de maneira relevante ao estudo das diversas formas de mobilidade espacial interna. A ideia fundamental a partir da qual são estruturados os pressupostos é expressa da seguinte maneira: "migração é uma consequência das rupturas e deslocamentos que inevitavelmente ocorrem com o processo de desenvolvimento capitalista" (MASSEY et al., 1993, p. 445, tradução nossa).

O primeiro pressuposto é relacionado às mudanças na estrutura agrária nos lugares de origem que contribuem para a criação de uma força de trabalho móvel (MASSEY et al., 1998), processo que autores como Silva (1999), Alves (2007), Menezes e Saturnino (2007) e Carneiro et al. (2007) apontam como fundamental para a origem da mobilidade espacial de cortadores de cana-de-açúcar. O primeiro trabalho a relaciona ao estabelecimento de reflorestamentos comerciais no norte de Minas Gerais, o segundo à expansão da soja no interior do Nordeste.

O terceiro e o quarto referem-se à concentração das melhores terras nas mãos de poucos proprietários no sertão paraibano e no interior maranhense, respectivamente.

Estas considerações podem ser relacionadas ao conceito desenvolvido por Singer (1987) de mudança enquanto fator fundamental para a criação de uma força de trabalho móvel. A mudança deve-se à penetração de relações capitalistas na agricultura, o que causa um aumento da concentração fundiária, além da introdução de técnicas que reduzem a demanda por trabalhadores.

A articulação com as ideias de Singer (1987) propicia uma vinculação com o segundo pressuposto desenvolvido por Massey et al. (1993, p. 445, tradução nossa): A extração de matérias-primas para a venda em mercados globais requer métodos industrias baseados no trabalho assalariado. A oferta de salários para antigos agricultores de subsistência mina formas tradicionais de organização social e econômica baseadas em normas de reciprocidade e relações com papéis fixos e cria mercados de trabalho incipientes baseados em novas concepções de individualismo, ganho privado e mudança social.

Novamente, a penetração de relações capitalistas altera formas prévias de relações sociais e econômicas, exemplificado não apenas nos trabalhos de Silva (1999) e Alves (2007), mas também por outros artigos disponíveis no mesmo livro que este último, editado por Novaes e Alves (2007).

A terceira ideia fundamental definida por Massey et al. (1993) refere-se diretamente à questão do trabalho, sendo que seus pressupostos podem ser interpretados com relação à migração interna com referências à completa penetração de relações sociais e econômicas capitalistas em todo o território.

A divisão internacional do trabalho é estruturada por meio de hegemonias e hierarquias entre lugares e escalas (MASSEY, 1984; BRANDÃO, 2007), que se espalham ao redor do mundo, estruturando o controle dos territórios mediante relações assimétricas. Dessa maneira, os vínculos entre países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento no caso da migração internacional podem ser estendidos às relações entre regiões mais ricas e mais pobres em um país, e este é o caso do Brasil.

A partir da década de 1930, as regiões com maior grau de penetração capitalista no país estabeleceram uma integração de um mercado nacional com as diferentes regiões tendo papéis específicos em uma divisão nacional do trabalho, sob a dominância de São Paulo (GONÇALVES, 1998; BRANDÃO, 2007). Regiões periféricas foram transformadas pela introdução da agricultura comercial e de relações capitalistas, levando sua população a ser recrutada como mão de obra barata para as regiões mais ricas, que passavam por um processo combinado de industrialização e urbanização. Apesar de bastante simplista, esta é uma possível interpretação da consideração de Massey et al. (1998, p. 446, tradução nossa): "Os mesmos processos econômicos que criam migrantes nas regiões periféricas simultaneamente os atraem para os países desenvolvidos", necessitando apenas da troca da referência a países por regiões "mais desenvolvidas".

O fato de a maioria das atividades econômicas mais capitalizadas do Brasil, incluindo as agrícolas, estar localizada nas regiões mais ricas significado à demanda por mão de obra barata, sendo que a "disponibilidade" desta encontra- se concentrada nas regiões mais pobres, estabelecendo movimentos mais ou menos "permanentes" entre o Nordeste e o Sudeste do país. Em relação ao mercado de trabalho do CAI canavieiro, a demanda por esses trabalhadores está relacionada não apenas aos baixos salários, mas também às más condições de trabalho (SILVA, 1999, 2010; ALVES, 2007; SZMRECSÁNYI et al., 2008), que incluem o pagamento pela quantidade cortada por dia (SILVA, 1999; NOVAES, 2007) e o decorrente grande número de acidentes e mortes neste setor (SILVA, 2007).

Completando estas conexões diretas com a mobilidade espacial de cortadores de cana no Brasil, as elaborações de Massey et al. (1993) a respeito das relações entre migração e trabalho trazem outras questões detalhadas que fazem dos vínculos entre lugares de origem e de destino aspectos relevantes. São quatro tipos de vínculos: materiais; militares; ideológicos; além da importância de Cidades Globais. Apenas as conexões militares não podem ser relacionadas ao processo específico que se analisa, porque seu significado direto diz respeito à migração para os EUA com origens em países ocupados militarmente ou nos quais existem bases militares desse país.

Os vínculos materiais entre regiões distantes "não apenas facilitam os movimentos de bens, produtos, informação e capital, mas também promovem os movimentos de pessoas ao reduzir seu custo (MASSEY et al., 1993, p. 446, tradução nossa). Assim, a integração do território brasileiro sob a hegemonia do Sudeste, especialmente do Estado de São Paulo (GONÇALVES, 1998; BRANDÃO, 2007), torna mais fáceis os deslocamentos ao expandir os fluxos de bens e capitais. A mobilidade populacional relaciona-se a estes fluxos, porém, na direção contrária como Massey et al. (1993) apontam. Tal fato ocorreu largamente na história brasileira depois de 1930, com destaque para os grandes fluxos em direção ao Sudeste, um processo analisado por Durham (1973), Singer (1987) e Cunha e Baeninger (2007).

Os vínculos ideológicos podem ser relacionados ao processo de estruturação de um mercado nacional e de uma divisão espacial do trabalho em nível nacional sob a hegemonia do Sudeste. Autores como Gonçalves (1998) e Faria (1991) trataram da questão e, a partir das suas interpretações, é possível afirmar que a migração oriunda no Nordeste com destino ao Sudeste teve como uma de suas bases os vínculos culturais, reforçados pela comunicação de massas e a propaganda, como Massey et al. (1993) se referem no caso das migrações internacionais.

O último tipo de conexão corresponde à existência e atratividade de Cidades Globais, interpretação baseada especialmente no trabalho de Sassen (1988, 1991). Ainda que Massey et al. (1993) estejam referindo-se à mobilidade direcionada a estas cidades, a mobilidade de cortadores de cana-de-açúcar pode ser relacionada à polarização que uma cidade com extensos vínculos externos, São Paulo, exerce sobre o território e a economia brasileira, interpretação baseada no trabalho de Brandão (2007).

Massey et al. (1993) não incluíram São Paulo como uma das Cidades Globais, porém, outras classificações, como as de Sassen (1998) e GaWC (2008), o fazem, entendendo que, na inserção do Brasil em uma divisão internacional do trabalho, a referida cidade é o mais importante ponto nodal entre o território brasileiro e os mercados globais. Assim, mesmo sendo um movimento predominantemente rural- rural ou entre pequenas cidades, a mobilidade espacial para o corte de cana pode ser abordada por meio das conexões territoriais estruturadas a partir de uma cidade internacional como São Paulo.

Outro importante aspecto da compreensão de São Paulo como uma cidade internacional com fortes vínculos externos é propiciado pelo fato de que o Estado constitui a mais importante área de produção de cana-de-açúcar. Uma das razões para isso é a proximidade em relação ao maior mercado consumidor no Brasil, devido à densa urbanização em torno da Região Metropolitana de São Paulo.

Nível micro As questões de nível macro compõem fundamentalmente o arcabouço conceitual desenvolvido, porém, a mobilidade espacial dos cortadores de cana não pode ser entendida sem uma compreensão de processos e dimensões em nível micro. Duas motivações embasam tal necessidade: aqueles que se engajam nessa mobilidade e os seus domicílios têm algumas especificidades que os diferenciam em relação àqueles que não migram (KATZ; STARK, 1986; MASSEY et al., 1993; VANWEY, 2005); dimensões macro permitem algumas reflexões prospectivas, mas o nível micro compõe melhores indicadores dos possíveis desdobramentos das trajetórias destas pessoas (MASSEY et al., 1993). Assim, é importante apresentar as ideias fundamentais sobre este nível, sendo que a perspectiva da Nova Economia das Migrações provê as mais interessantes.

O pressuposto básico de Moraes et al. (2009) enquanto principal motivação para as pessoas se engajarem nesta mobilidade é questionável por meio das ideias dos autores fundamentais da referida perspectiva (por exemplo, STARK; BLOOM, 1985; KATZ; STARK, 1986). Para estes autores, diferenças em salários e na taxa de desemprego, aspectos determinantes das ideias neoclássicas, não explicam o engajamento em processos de mobilidade, pois é possível que as pessoas migrem mesmo quando o ganho esperado no destino é inferior ao do lugar de origem, motivadas por diversas outras falhas de mercado apontadas por autores vinculados à Nova Economia das Migrações. Outra ideia importante contradiz o pressuposto de que a decisão de migrar é feita por indivíduos isolados, o que foi sintetizado, a partir de outros autores, por Massey et al. (1993, p. 436, tradução nossa): a decisão de migrar não é feita de maneira isolada por atores individuais, mas por unidades maiores de pessoas inter-relacionadas ' tipicamente famílias ou domicílios, mas algumas vezes comunidades, nas quais as pessoas agem coletivamente para maximizar a renda esperada, mas também para minimizar riscos e reduzir restrições associadas com vários tipos de falhas de mercados, distintas daquelas do mercado de trabalho.

As falhas de mercado que podem motivar as pessoas a se engajarem em processos de mobilidade estão relacionadas às más condições ou à ausência de seguros de colheita e de mercados futuros, de capitais e crédito, além de seguros- desemprego e dos benefícios de aposentadoria. Nas regiões mais pobres, o acesso aos referidos mercados e às formas de seguros pode ser problemático, especialmente porque aqueles determinados pelo mercado são dirigidos a cultivos e regiões mais capitalizadas, fato que pode ser relacionado à estagnação rural como uma causa da migração, ideia proposta por Singer (1987).

Outro conceito importante nessa perspectiva é a ideia de privação relativa2 (STARK; TAYLOR, 1989). Embora os autores estejam se referindo diretamente à importância desta ideia para a compreensão da migração internacional, tal proposição pode ser estendida ao tipo específico de mobilidade aqui abordada.

Percepção de uma condição em relação a outras pessoas em termos do acesso a formas de renda e diferentes bens, considerando-se apenas as pessoas de sua própria comunidade ou vilarejo, pode gerar a necessidade de se engajar em um trabalho temporário ou sazonal em outras regiões.

A estratégia para obter mais recursos em outros lugares é o objeto da análise de Katz e Stark (1986, p. 136, tradução nossa): "a unidade de tomada de decisão é geralmente a família, da qual o indivíduo é membro. Migração de um membro familiar é desta maneira garantida quando facilita a redução dos riscos aos quais a família se expõe por meio da diversificação de fontes de renda". Falta de recursos é uma questão tratada mais por famílias do que por indivíduos.

Assim, a estratégia para obter incrementos envolve a escolha de um indivíduo que possa conseguir mais e a criação de condições para reduzir os riscos relacionados a esta mobilidade. No caso dos cortadores de cana-de-açúcar, este apoio pode ser a manutenção de alguns cultivos de subsistência na pequena propriedade familiar e a garantia da sua reprodução.

A mobilidade espacial para o trabalho rural na Índia é abordada por Haberfeld et al. (1999) a partir dos pressupostos da Nova Economia das Migrações.

Demonstrando a relevância do foco nos domicílios como unidade decisória e da mobilidade enquanto estratégia para redução dos riscos envolvidos na pequena produção agrícola, este trabalho constitui relevante exemplo da adaptação de uma perspectiva teórica originalmente voltada ao estudo das migrações internacionais para a análise de processos de mobilidade interna. Novaes (2007) destaca questões semelhantes a respeito das motivações dos trabalhadores migrantes para o corte da cana, caracterizando-as enquanto estratégias para diversificação ou redução de riscos, além das decisões constituídas por grupos mais amplos do que apenas o indivíduo.

A relevância dessa perspectiva micro não está relacionada apenas às motivações e bases para tal mobilidade em si mesma, que as perspectivas futuras desta e especialmente as dos migrantes também são importantes. Uma situação continuada de baixa renda poderia ser enfrentada com o engajamento em outros fluxos ou a partir de uma "fixação" em algum lugar, ou até de um retorno "definitivo" aos lugares de origem, sobrevivendo por meio de atividades básicas de subsistência e/ou suporte de programas governamentais. As possibilidades de uma efetiva melhoria da situação podem requerer a obtenção de níveis educacionais mais significativos, que poderiam embasar a busca por melhores empregos em determinados destinos depois de se decidir pelo estabelecimento "permanente" num determinado lugar.

Os outros dois tipos de desdobramentos nas condições de vida estão mais relacionados às ações governamentais em vários níveis administrativos. O retorno das pessoas às áreas de origem sem o aumento da escolaridade pode ser "apoiado" por programas de transferência de renda ou pelo aumento das possibilidades de atingir mercados consumidores com seus produtos agrícolas, além de acessar mercados de capitais que pudessem embasar suas atividades rurais. A manutenção do movimento de busca de outras ocupações com baixa qualificação na construção civil ou em outras produções agrícolas depende do apoio governamental e do interesse de investidores nestas atividades, o que pode constituir uma demanda renovada por uma mão de obra móvel e barata.

A questão das redes migratórias Os contatos entre os trabalhadores para obtenção de trabalho e no suporte ao deslocamento e à instalação nos lugares de destino, além da demanda por mão de obra, implicam a necessidade de incorporar outro conceito relevante de uma perspectiva diferente dos estudos migratórios: as redes. A primeira questão a respeito das redes migratórias é abordada por Massey (1986), quando o autor trata da organização social da migração de mexicanos para os Estados Unidos a partir das relações estabelecidas nas comunidades de origem.

A questão da demanda por trabalhadores estrutura-se a partir do trabalho de Krissman (2005), no qual são desenvolvidas críticas relevantes à perspectiva das redes migratórias a partir do que o autor classifica como o "modelo de Douglas Massey", apontando a falta de considerações sobre o lado da demanda por trabalhadores nos estudos sobre redes nas migrações de mexicanos para os EUA.

Além do papel dos empregadores norte-americanos, Krissman (2005) enfatiza as redes externas à comunidade migrante baseada nas mesmas origens, o que revela que não apenas os contatos com norte-americanos, mas também a natureza das relações, em muitas situações, não é tão positiva, simétrica ou sem hierarquias como demonstra a maioria dos trabalhos baseados no denominado modelo de Douglas Massey.

O interesse nesta perspectiva baseia-se na abordagem das relações entre trabalhadores de mesma origem no contexto do mercado de trabalho do CAI canavieiro e nas conexões entre migrantes "oferecendo" seu trabalho em troca de baixa remuneração e os empregadores no setor sucroalcooleiro, que buscam uma fonte de trabalho barato. um complexo conjunto de relações entre diversos agentes, compondo a rede dos cortadores de cana e vinculando origens específicas a destinos específicos.

A importância do trabalho de Krissman (2005) está em sua ênfase na necessidade de entendimento da demanda por trabalhadores e das relações assimétricas que se articulam na mobilidade de pessoas para o trabalho no corte da cana-de-açúcar.

Além dos migrantes e empregadores, uma variedade de agentes nesse processo, que incluem contatos na comunidade de origem, empreiteiros, "gatos" ' intermediários ', ONGs que apoiam migrantes (especialmente as pastorais religiosas), inspetores das condições de trabalho, entre outros.

Análise bastante relevante das articulações por meio de relações assimétricas no contexto da mobilidade e do trabalho nas atividades agrícolas do CAI canavieiro é realizada por Silva (1999), que destaca as transformações nos papéis de "gatos", empreiteiros e agenciadores na contratação de trabalhadores na região de Ribeirão Preto. Outros exemplos de trabalhos que destacam a relevância destas relações são os de Alves (2007), que aponta o papel dos empregadores na busca por trabalhadores migrantes do Maranhão, e o de Carneiro et al. (2007), que demonstra o papel dos contatos entre trabalhadores de mesma origem (Timbiras ' MA) no sentido do deslocamento para o trabalho no corte da cana em São Paulo. A ideia de rede expressa neste último permite articulá-lo à questão das redes no sentido proposto por Massey (1986).

Síntese das questões teóricas A articulação dos referenciais teóricos relativos à análise da mobilidade espacial dos canavieiros pode ser sintetizada por meio de questões construídas a partir de cada uma das perspectivas consideradas.

A abordagem das questões estruturais da mobilidade espacial de cortadores de cana a partir da perspectiva do Sistema-Mundo, baseada em Massey et al. (1993), envolve compreender os seguintes aspectos: características das áreas de origem da mobilidade espacial; processos sociais, econômicos e espaciais que determinam a necessidade de engajamento nos deslocamentos para o trabalho no corte da cana; e dimensões políticas e ideológicas relacionadas a estes movimentos.

Em relação à dimensão micro, os pressupostos da Nova Economia das Migrações (STARK; BLOOM, 1985; KATZ; STARK, 1986; STARK; TAYLOR, 1989) embasam questões sobre os arranjos para o engajamento na mobilidade espacial, as estratégias familiares e domiciliares nesse contexto e os desdobramentos das trajetórias dos trabalhadores migrantes.

A partir dos referenciais teóricos sobre as redes migratórias, tanto em sua abordagem original (MASSEY, 1986) quanto em uma abordagem mais crítica (KRISSMAN, 2000, 2005), é relevante observar os agentes envolvidos no estabelecimento e dinâmica dos movimentos, especificamente aqueles relacionados à troca de informações e à busca, "obtenção" e contratação de trabalhadores.

Por último, as questões prospectivas referentes às trajetórias dos trabalhadores também são expressas por meio dos contatos entre os mesmos, que a obtenção de outras ocupações muitas vezes está relacionada ao fato de ter trabalhadores da mesma origem em outros lugares ou também outras atividades.

Entende-se que o conjunto de questões de natureza teórica e conceitual articulado a partir da literatura voltada originalmente à análise da migração internacional subsidia compreensão mais aprofundada das características e padrões recentes da mobilidade espacial dos cortadores de cana.

Considerações finais A estruturação de um conjunto de referências teóricas para a análise da mobilidade espacial dos cortadores de cana é fundamental não apenas para definir as dimensões a serem consideradas, mas também por embasar a compreensão das suas articulações, além de constituir a base para as escolhas metodológicas, apontando os caminhos para o desenvolvimento das propostas.

As questões teóricas levantadas foram estruturadas com o intuito de avaliar uma dinâmica de mobilidade espacial específica, estando expressas em sentidos macro, nas causas, e micro, nas dimensões individuais e comunitárias do engajamento no processo de deslocamento e nas formas para sua efetivação por meio das redes migratórias. Essas questões, estruturadas a partir de três perspectivas teóricas distintas, são fundamentais para a compreensão de qualquer modalidade de mobilidade espacial.

Em nível macro são fundamentais questões relativas aos processos estruturais que ocorrem nas regiões de origem e instauram: a mobilidade espacial temporária como estratégia de determinados grupos sociais; as vinculações de processos regionais à dinâmica da divisão espacial do trabalho em múltiplas escalas espaciais ao longo do tempo; e as dimensões político e ideológicas sustentadoras das relações observadas entre regiões de origem e de destino, além dos processos econômicos, sociais e demográficos que as caracterizam.

O nível micro está expresso em questões referentes às diferenças entre os que se engajam no processo de mobilidade espacial e aqueles que não se mobilizam, aos arranjos familiares relacionados aos deslocamentos, às diferentes motivações e estratégias e às dimensões prospectivas, que no caso dos cortadores de cana , em curto prazo, a perspectiva do fim do corte manual.

A questão das redes também registra dimensões prospectivas, que destaca contatos ou relações que permitem outras ocupações em outros lugares, por exemplo. Sua importância está relacionada ao processo de concretização do deslocamento, por meio da viabilização do trabalho, do transporte, do local de moradia, além de outros suportes.

A análise das questões levantadas a partir da literatura considerada não pode ser efetivada por informações secundárias de fontes convencionais, principalmente por envolver a abordagem de experiências, trajetórias e percepções. O uso de metodologias qualitativas, como entrevistas em profundidade, e a aplicação de surveys são as principais maneiras de se realizar uma análise a partir do campo de questões teóricas aqui registrado.

Considera-se que a relevância desse artigo está, especialmente, na articulação da literatura originalmente voltada para o estudo da migração internacional à abordagem da mobilidade espacial do canavieiros. Ainda que de maneira restrita, contribui-se para o desenvolvimento de outras análises com distintas espacialidades e temporalidades e para o debate teórico sobre dinâmicas de mobilidade espacial, compreendidas como processos sociais complexos e multifacetados.


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