As bibliotecas dos jesuítas: uma visão a partir da obra de Serafim Leite
Introdução
As primeiras bibliotecas do Brasil foram as pertencentes às ordens religiosas
que aqui se instalaram a partir da metade do século XVI, como a Companhia de
Jesus, a Ordem dos Frades Menores - os Franciscanos, a Ordem de São Bento, a
Ordem Carmelita e, posteriormente, a Congregação do Oratório1. Pouco se sabe
ainda hoje sobre essas bibliotecas. Faltam pesquisas2. As bibliotecas
jesuíticas são as de que se tem mais conhecimento, em razão do trabalho
História da Companhia de Jesus no Brasil, de autoria do padre Serafim Leite, S.
J. (1880- 1969)3. Trata-se de uma obra abrangente sobre a atuação da ordem no
país. Consta de 10 volumes publicados no período de 1938 a 1950. Foi reeditada
de forma monumental em 2004, com o patrocínio da Petrobras, edição que foi
utilizada para a elaboração deste artigo4.
O autor baseou seu trabalho em consultas a fontes primárias e secundárias. O
Arquivo Geral da Companhia de Jesus (Archivum Societatis Iesu Romanum), em
Roma, foi a mais importante fonte. As pesquisas ali realizadas constituem o
fundo principal da obra. Foram também consultados arquivos e bibliotecas em
Portugal, Itália, Espanha, França, Bélgica e Holanda. No Brasil, foram
percorridos vários arquivos, quando o autor pôde verificar e lamentar o
descuido e a destruição em relação aos acervos (t. I, p. XXXI). Foi também
utilizada ampla bibliografia de escritores dos séculos XVI, XVII e XVIII e de
autores da historiografia brasileira.
No que se refere aos livros e bibliotecas ' o autor usa o termo livraria, que
era o usual na época ', são encontradas informações ao longo de toda a obra. O
presente artigo tem o objetivo de revisar e reunir essas informações para
oferecer uma visão de conjunto do tema.
A Companhia de Jesus
Em 1539, o espanhol de origem basca Inácio de Loiola (1491-1556) e companheiros
fundaram, na Europa, a Companhia de Jesus, aprovada no ano seguinte pelo papa
Paulo III. A ordem religiosa, cujos membros passaram a ser conhecidos como
jesuítas ou inacinanos, expandiu-se rapidamente no continente, e logo estava
partindo para se instalar nas terras recém-descobertas pelos europeus, como a
Índia, China e Japão e regiões da África e da América portuguesa e espanhola.
A Companhia no Brasil (1549-1759)
Os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549 junto com o segundo governador-geral
Tomé de Souza, 10 anos após a fundação da ordem.Ogrupo, composto de seis
religiosos, era dirigido pelo padre Manoel da Nóbrega (1517-1570). A presença
da ordem no país se estendeu por dois séculos e compreendeu a Província do
Brasil e a Vice-Província do Maranhão e Pará, ambas dependentes da Assistência
de Portugal. Em 1759, os jesuítas foram expulsos do país e de todos os
territórios portugueses por ordem do Marques de Pombal.
Além de se ocupar com a assistência religiosa aos colonos e com a catequese dos
índios, os padres se dedicaram de modo especial à educação e ensino de crianças
e jovens nas chamadas aulas de ler, escrever e contar. Para tanto, construíram
igrejas, colégios, residências e seminários, e instalaram missões. Destacavam-
se os colégios, 19 em meados do século XVIII, que funcionavam como verdadeiros
centros culturais da época, com atividades literárias, musicais e teatrais.
A formação das livrarias
Uma vez iniciada uma obra, os padres começavam a providenciar os meios para o
exercício de suas atividades. Entre eles estavam os livros. Constituíam a base
para a ação dos jesuítas, e a sua falta prejudicava as atividades da ordem na
catequese dos índios, assistência religiosa, ensino e educação dos colonos. E
assim procuravam instalar livrarias em todos os seus estabelecimentos, desde os
mais importantes, situados nas sedes das províncias, até os mais modestos nas
distantes aldeias. Referindo-se às casas no norte do Brasil, Serafim Leite
afirma: "Não havia aldeia, por mais recuada que fosse na profundeza dos sertões
e rios, que a não iluminasse ao menos uma estante de livros" (2004, t. IV, p.
113).
As principais livrarias eram as dos colégios, que tiveram seu apogeu no século
XVII e na primeira metade do XVIII. Essas, por sua vez, abasteciam as
residências que delas dependiam, como aconteceu na Bahia. Para haver maior
controle, foi determinado em 1587 que, quando morresse um padre em alguma
residência, fossem inventariados os livros que estivessem em seu poder. Ficava
ao critério do Provincial decidir se os mesmos deveriam permanecer na
residência ou ser recolhidos para a livraria do colégio (LEITE, 2004, t. II, p.
390).
Nos colégios existiam farmácias, conhecidas como boticas, que atendiam à
população, como na Bahia, Rio de Janeiro, Pará e Maranhão. Algumas chegaram a
ter livrarias próprias com livros relacionados à medicina. A botica do Colégio
do Maranhão possuía "30 tomos de medicina e botica" (LEITE, 2004, t. IV, p.
113). Foram as antecessoras das bibliotecas de saúde.
Quando os padres partiam de alguma capitania para fundar uma missão em outro
local, levavam os livros necessários. Assim aconteceu com a expedição de 1586,
que partiu da Bahia com o propósito de fundar uma missão no Paraguai. Levava
consigo "muitos livros" (LEITE, 2004, t. II, p. 390). Quando os navios chegaram
à entrada do Rio da Prata, foram atacados por corsários ingleses chefiados por
Robert Withrington, que saquearam todos os objetos a bordo, incluindo os livros
(LEITE, 2004, t. II, p. 121).
A inexistência de livros em determinado local era considerada um sinal de
carência de meios para a ação dos jesuítas. Um exemplo disso foi a Confraria
dos Meninos de Jesus, no Espírito Santo, que atendia a meninos mamelucos e
índios, e foi visitada em 1552 por Nóbrega, que assim lamentou: "As condições
deste colégio eram precárias. [...] Toda a biblioteca [...] constava de um
livro, a Vitae Christi"(LEITE, 2004, t. I, p. 79)5.
Em contrapartida, uma boa coleção era sinal de prestígio do colégio que a
possuía e o credenciava para a criação de cursos. Em carta de 21 de março de
1661, na qual solicitava ao superior-geral a instalação de estudos no Maranhão,
o padre Antonio Vieira (1608-1697) argumentava que o colégio possuía uma boa
biblioteca para servir de base ao curso pleiteado com a afirmação: "Livraria
temos muito boa" (LEITE, 2004, t. IV, p. 113).
A criação dos acervos
Livros trazidos pelos padres
Os primeiros livros foram trazidos pelos próprios jesuítas em sua bagagem. O
núcleo do Colégio da Bahia, a mais importante de todas as livrarias e iniciada
em 1549, foram os livros trazidos por Nóbrega (LEITE, 2004, t. V, p. 216). A do
Colégio do Maranhão recebeu, no seu início, livros trazidos de Portugal pelo
padre Vieira (LEITE, 2004, t. IV, p. 113).
Assim, a chegada dos padres era uma oportunidade para a entrada de livros. Um
fato ilustrativo, embora frustrado, foi o ocorrido com o padre Fernão Cardim
(c.1549-1625). Chegou ao Brasil em 1583 e ocupou diversos cargos de direção nos
colégios da Bahia e do Rio de Janeiro6. De retorno de uma viagem a Roma, para
onde foi como Procurador, o navio em que viajava foi capturado, ainda nas
costas portuguesas, por corsários ingleses, comandados por Sir John Gilbert, no
dia 25 de setembro de 1601. Os corsários se apoderaram de todos os objetos dos
viajantes, inclusive os "muitos livros" da bagagem de Cardim. Em
correspondência, o padre lamenta que "seus próprios manuscritos em português e
latim, vidas de Cristo e comentários teológicos" tenham ficado nas mãos do
pirata (LEITE, 2004, t. VII, p. 3). Libertado, Cardim embarcou para o Brasil em
1604. Não se sabe se trouxe consigo novos livros.
As remessas da Europa
Os livros eram também enviados da Europa pelos superiores e até pelo rei de
Portugal, muitas vezes em atendimento a pedidos dos padres. Para os alunos do
Colégio dos Meninos de Jesus, a primeira instituição de ensino dos jesuítas no
Brasil, fundada por Nóbrega em Salvador, D. João III enviava livros e outros
bens (LEITE, 2004, t. I, p. 16). Nos primeiros anos, as solicitações foram
freqüentes. Necessitava-se de livros para auxiliar as tarefas de catequese e de
ensino. São vários os registros desses pedidos.
Logo após sua chegada, o padre Manuel da Nóbrega pediu livros, e assim
argumentava: "Por que nos fazem muita míngua para as dúvidas que cá há, que
todas se perguntam a mim" (LEITE, 2004, t. II, p. 389). Nóbrega certamente
estava se referindo às questões que eram freqüentemente dirigidas não só a ele
como aos demais companheiros, únicas fontes de consulta existentes na época.
Também para os estudos que se seguiram ao Colégio dos Meninos de Jesus foram
solicitados livros, destinados às aulas de latim (LEITE, 2004, t. I, p. 19). Em
carta de 6 de janeiro de 1550, Nóbrega acusa o recebimento de duas caixas de
livros, entre outros objetos (LEITE, 2004, t. II, p. 389). Em 1555, o padre
Luiz da Grã, segundo provincial do Brasil, solicita livros de texto para os
alunos principiantes e adiantados do Colégio da Bahia (LEITE, 2004, t. II, p.
390). O padre João Vicente Yate, que trabalhou na Bahia, Pernambuco e Rio de
Janeiro, pedia, em 1593, obras em inglês, latim e espanhol (LEITE, 2004, t. II,
V, p. 390). O irmão Pero Correia foi um dos primeiros a trabalhar diretamente
com os índios e a aprender a língua nativa. Mandava vir expressamente livros da
Europa para ajudar no seu trabalho de catequese em São Vicente (LEITE, 2004, t.
II, p. 391). Em 1553, o mesmo irmão pedia livros em "linguagem", isto é, livros
em português, já que desconhecia o latim, sugerindo que fossem procurados em
Lisboa ou Sevilha (LEITE, 2004, t. II, p. 390).
A falta de livros nesses primeiros tempos fazia com que os padres
providenciassem textos para as escolas. O padre José de Anchieta, por exemplo,
ao começar as atividades do Colégio de São Paulo de Piratininga, escreveu
apontamentos que foram distribuídos aos alunos (LEITE, 2004, t. II, p. 390).
Posteriormente, foi prática nos colégios a elaboração de cartapácios, espécie
de apontamentos ou apostilas que eram distribuídos gratuitamente aos estudantes
(LEITE, 2004, t. IV, p. 113).
As compras
Outra forma usada para a ampliação dos livros foi a compra, que começou a ser
realizada quando os colégios já estavam estabelecidos e auferiam rendas. Há
registros de aquisições efetuadas pelos próprios padres provinciais. O padre
Marçal Beliarte, provincial de 1587 a 1594, empregou a quantia de 15$000 réis
para a compra de livros, e enviou para a Europa uma partida de âmbar cuja venda
rendeu 40$000 e foi utilizada para a compra de livros (LEITE, 2004, t. II, V,
p. 389)7. Para evitar que o interesse pelos estudos não diminuísse, e para
animar as atividades culturais, o padre Pero Rodrigues, que governou a
província de 1594 a 1603, mandou vir "muitos e muitos livros" para o Colégio da
Bahia (LEITE, 2004, t. II, p. 390).
Compravam-se também livros de pessoas que estavam de volta a Portugal após
terem exercido funções na colônia. Era preferível vendê-los a pagar o frete de
retorno. Em 1720, no Pará, foram adquiridos mais de 100 volumes, por 600$000
réis, do ouvidor-geral, que estava de retorno à Europa (LEITE, 2004, t. IV, p.
113). Também no Pará há registro de envio de dinheiro ao procurador da
Companhia em Lisboa para a compra de livros necessários (LEITE, 2004, t. IV, p.
113).
Os recursos destinados à aquisição de livros eram em parte oriundos dos
rendimentos auferidos pelos colégios. Nos Colégios do Maranhão e Pará, cujas
boticas vendiam medicamentos para a população rica, foi determinado, em 1732,
que a renda obtida fosse empregada em parte na aquisição de livros (LEITE,
2004, t. IV, p. 113). Serafim Leite considera que os livros adquiridos com essa
renda eram destinados não só às próprias boticas, mas também à livraria dos
colégios (LEITE, 2004, t. IV, p. 113). Outra renda empregada para o mesmo fim
foi a proveniente da exploração de gêneros agrícolas, como aconteceu no
Maranhão, com a venda de cacau e cravo (LEITE, 2004, t. IV, p. 113).
Alguns padres recebiam recursos para a compra de livros de seu interesse,
principalmente aqueles que se dedicavam aos estudos. Em 1643, no Colégio do Rio
de Janeiro, há o registro de padres que "por amor a seus estudos privados
tinham cem cruzados de livros" (LEITE, 2004, t. VI, p. 425).
As doações
As livrarias também foram ampliadas com doações de particulares. Vários são os
registros. O Colégio da Bahia recebeu a livraria do bispo D. Pedro Leitão, que
"era mui boa" (LEITE, 2004, t. II, p. 390). O Colégio do Rio de Janeiro
registrou a doação da biblioteca do padre Bartolomeu Simões Pereira, composta
de livros de direito civil e canônico (LEITE, 2004, t. VI, p. 425). O Colégio
do Recife anotou, em 1717, a entrada de vários volumes doados por "um homem
nobre e erudito"(LEITE, 2004, t. V, p. 352).
Ordenação e conservação dos livros
A ordenação de livros, no início, visava a melhor controlar os acervos em
formação. Assim aconteceu no Colégio da Bahia em 1589. Temendo-se a dispersão
por empréstimos ou roubo, foi determinado que todos os livros fossem numerados
em ordem seqüencial e etiquetados na lombada. Assim poderia haver melhor
controle (LEITE, 2004, t. II, p. 390).
Houve também organização por assunto. No Pará, as estantes contavam com um
local apropriado talhado na sua parte superior para a colocação de etiquetas
com a indicação dos conteúdos das mesmas (LEITE, 2004, t. IV, p. 113). A
livraria do Colégio da Bahia chegou a ter um catálogo de matérias e de autores
organizado pelo bibliotecário Antonio da Costa por volta de 1694. O documento
não foi localizado por Leite (LEITE, 2004, t. V, p. 216). Provavelmente é dos
nossos primeiros trabalhos de catalogação e classificação, ainda por conhecer.
A conservação dos acervos também mereceu a atenção dos padres, por meio da
encadernação e combate aos insetos. Quando os jesuítas começaram as suas
instalações, mandavam buscar, na Europa, religiosos que soubessem exercer algum
ofício. Eram necessários para atender às diversas necessidades de manutenção
das casas. Entre eles, existiam os relacionados com a fabricação de artefatos
de sola e couro, como curtição, confecção de calçados e encadernação (LEITE,
2004, t. IV, p. 64). São encontrados diversos colégios que possuíam livros
encadernados e oficinas de encadernação próprias.
O Inventário, de 1760, da Casa dos Exercícios e Religiosa Recreação de Nossa
Senhora Madre de Deus do Maranhão informa que quase todos os 1.000 volumes de
sua livraria estavam encadernados (LEITE, 2004, t. III, p. 602). A livraria do
Colégio Santo Alexandre, em Belém, possuía sua própria oficina de encadernação
(LEITE, 2004, t. III, p. 519). A do Colégio da Bahia dispunha de um "hábil"
encadernador (LEITE, 2004, t. V, p. 216).
O combate a cupins e outros insetos foi também preocupação. Muitas destas
pragas eram desconhecidas dos europeus, que ignoravam a ação que poderiam
exercer sobre o papel. Quando a livraria do Colégio do Rio de janeiro foi
restaurada, no começo do século XVIII, foi posto em prática um programa de
conservação, contra os estragos de cupim e traça (LEITE, 2004, t. VI, p. 425).
As instalações e o mobiliário
Principalmente nos colégios mais importantes, as livrarias estavam em locais
destacados. Algumas possuíam instalações suntuosas, como as do Colégio da
Bahia, únicas que foram conservadas. Trata-se de amplo salão com teto pintado e
uma entrada azulejada com alegorias ao saber, que são considerados um dos belos
exemplos da arte colonial, campo onde os jesuítas deixaram também relevantes
contribuições. As do colégio do Pará e do Rio de Janeiro também deviam ter
instalações importantes, a julgar pelas descrições encontradas. As do primeiro
podem ser localizadas no edifício ainda existente em Belém. As do segundo
desapareceram junto com a demolição do conjunto do colégio quando o Morro do
Castelo foi arrasado em 1921.
No mobiliário, destacavam-se as estanterias. Algumas foram fabricadas com
esmero, utilizando-se madeiras nobres. As atividades de carpintaria eram um dos
ofícios mais importantes dos Colégios. Assim foi no Colégio do Rio de Janeiro.
A livraria, restaurada no início do século XVIII, recebeu estantes novas feitas
de jacarandá e vinhático. Em carta datada de 1721, o reitor Manuel Dias informa
que elas "[não foram] lavradas de qualquer modo, mas com tal primor que no
dizer dos que a viam e admiravam, assim deviam ficar, nuas na arte de entalhe e
polimento, sem mais pintura nem dourados, por belos que fossem" (LEITE, 2004,
t. VI, p. 425). São também referidas as estantes apropriadas dos colégios do
Pará (LEITE, 2004, t. III, p. 519) e Maranhão (LEITE, 2004, t. IV, p. 113).
As tipografias
Serafim Leite informa a existência de atividades tipográficas nos colégios8.
Esta informação decorre da atividade de tipógrafo exercida por dois jesuítas.
No Colégio do Rio de Janeiro, consta um que chegou a produzir "400 livros
destinados ao uso privado da casa e dos padres" (t. VI, p.425). Na Bahia,
consta outro, denominado impressor. Ambos foram também encadernadores e
bibliotecários. O registro destas atividades leva a levantar a possibilidade da
existência, nos colégios citados, de atividade tipográfica, que poderia ter
produzido pequenos impressos (LEITE, 2004, t. V, p. 216). Como também houve
encadernação em alguns colégios, pode-se supor que houve a utilização de tipos,
pelo menos para a confecção dos títulos nas lombadas e capas dos exemplares
encadernados.
Usuários, empréstimos, regulamentos e censura
As livrarias estavam voltadas prioritariamente para atender a padres e alunos
dos colégios.
Entretanto, estavam franqueadas a usuários externos, principalmente
personalidades locais. A do Colégio da Bahia, por exemplo, era freqüentada pelo
escritor português Francisco Manuel de Melo, que a tornou seu "refúgio
intelectual" (LEITE, 2004, t. V, p. 219). Também na Bahia parece ter havido uma
sala de consultas reservada ao público (t. II, p. 390) A livraria chegou a
intitular-se pública. Um livro do seu acervo, localizado na Biblioteca do Porto
em Portugal, contém a seguinte notação na folha de rosto: Liur. Publ. Do Coll.
Da Bahia (LEITE, 2004, t. II, p. 390, n. 19). Também a livraria do Colégio do
Rio estava aberta ao público. Intitulava-se Publica Collegii Bibiotheca (LEITE,
2004, t. VI, p. 425). Serafim Leite a considera a primeira biblioteca pública
do Rio, baseando-se, para tanto, no fato de ter encontrado no Palácio São
Joaquim, pertencente à Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro, livros em cujo
frontispício encontra-se escrito à mão: "Pertence à Livraria Pública do Coll°
do Rio de Janr° " (LEITE, 2004, t. VI, p. 425, n. 50 e 426).
O empréstimo era adotado, embora de forma controlada para evitar a dispersão
das obras. A prática chegou a ser proibida em determinado momento. O visitador
Inácio de Azevedo, que chegou em 1556, recomendou que não fosse realizado
(LEITE, 2004, t. II, p. 390). A orientação foi modificada pelo visitador
seguinte, que sugeriu que não fossem emprestados os títulos únicos e que se
abrisse exceção para as pessoas qualificadas como o prelado ou outras de nível
elevado (t. II, p. 390). Assim, foi permitido o empréstimo "principalmente aos
mais entendidos, [de] grande quantidade de livros" (LEITE, 2004, t. IV, p.
113). No Colégio do Maranhão, não eram emprestados apenas livros de caráter
devocional ou catecismos, mas também outros que tratavam de "coisa do
espírito", como relatou Vieira (LEITE, 2004, t. IV, p. 113). Havia também
empréstimos às pessoas que exerciam profissões de interesse da população. No
Inventário da farmácia do Colégio do Maranhão, há o registro de cinco tomos que
estavam na casa do cirurgião Manuel de Sousa, espécie de empréstimo especial
(LEITE, 2004, t. IV, p. 113).
Os livros religiosos e edificantes, como vidas de santos e de vultos
importantes da Companhia, eram amplamente difundidos. Relata-se o caso de certo
Manoel da Cunha, morador de Porto Seguro, na Bahia. Perseguido pelo demônio,
viu-se livre das tentações após a leitura da vida de Santo Inácio, que teria
sido emprestada pelos padres (LEITE, 2004, t. II, p. 390).
A utilização dos livros estava regulamentada. Um exemplo das normas adotadas
pode ser conhecido no regulamento do Seminário de Belém da Cachoeira, na Bahia.
Trata-se de um documento composto de três partes com 44 parágrafos. A primeira
cuidava dos fins da instituição, gêneros dos estudos, regime econômico e
financeiro, e normas gerais de funcionamento. A segunda dizia respeito às
atribuições dos mestres e superiores; e a terceira estipulava os horários,
estudos, práticas de devoção, recreios e disciplina escolar. Entre as normas
dessa terceira parte, intituladaOrdem que se deve guardar no Seminário de
Belém,estão estipulados os cuidados que os alunos deveriam ter com os livros.
Segundo o parágrafo 5, o aluno "[...] que riscar livro ou parede será
castigado" e recomendava: "Tratem os livros com asseio, como convém a meninos
bem criados" (LEITE, 2004, t. V, p. 247).
O hábito de leitura também foi incentivado. Para tanto, os padres distribuíam
prêmios na forma de livros em datas especiais. Um das festas importantes era a
abertura do ano letivo. Ficaram famosas as ocorridas no Colégio de Pernambuco,
em Olinda, nos anos de 1573 e 1574. Nessas ocasiões, eram realizadas sessões
literárias com declamações e representações teatrais pelos alunos Os mais
distinguidos recebiam prêmios em dinheiro ou livros (LEITE, 2004, t. I, p.
163). É possível que essa prática fosse adotada nos demais colégios.
Antes que fossem dispostos para a consulta, os livros passavam por exame.
Determinava-se que fossem corrigidos aqueles que contivessem conteúdo
"contrário à edificação e bons costumes" (LEITE, 2004, t. II, p. 390). Só
depois eram colocados à disposição dos leitores. Havia restrições quanto aos
livros "poéticos", fazendo-se distinção entre os escritos em latim e os em
"romance", ou seja, em línguas românicas (LEITE, 2004, t. II, p. 390). Com
relação aos últimos, havia maior reserva, pois se considerava que os mesmos
contribuíam para a criação de devaneios nos jovens e eram obstáculo para o
estudo do latim, a língua culta da época. (LEITE, 2004, t. II, p. 390). Chegou
a haver uma proibição, em determinado momento, do procurador-geral de se
declamar sonetos nas festas dos colégios, pois poderia incentivar a leitura de
livros profanos. Mesmo textos de determinados autores latinos sofreram
restrições. Em 1583, a Congregação Provincial da Bahia determinou expurgos em
livros de Plauto, Terêncio, Horácio, Marcial e Ovídio (LEITE, 2004, t. II, p.
390). Tal procedimento seguia a prática usada no Colégio Romano da congregação,
onde livros eram "expurgados e adaptados ao ensino da juventude" (LEITE, 2004,
t. II, p. 390). No Brasil, os padres tinham, desde 1564, licença do cardeal
infante para expurgar textos livros (t. II, p. 390, n.14).
Os bibliotecários
As livrarias estavam sobre a supervisão de um religioso. Havia também sob sua
responsabilidade outros, como os irmãos, que estavam encarregados do
funcionamento diário e da limpeza do recinto.
Em decorrência das suas pesquisas, Serafim Leite publicou o levantamento das
artes e ofícios exercidos pelos jesuítas no Brasil9. Apresenta nomes de nove
religiosos que exerceram atividades nas livrarias. Um no século XVII e os
demais no XVIII. Um número muito pequeno, considerando que as livrarias
existiam em praticamente todas as casas desde o século XVI. Provavelmente
outros nomes podem aparecer em novas pesquisas.
São registradas diversas denominações para os nossos primeiros bibliotecários:
conservador da biblioteca (bibliothecae custos), prefeito da biblioteca
(bibliothecae praefectus, bibliotecário (bibliothecarius), livreiro
(bibliopola; libraruis), encadernador (librorum instaurator; bibliopegus),
tipógrafo (typographus) e impressor (impressor).
As atividades na biblioteca também poderiam ser exercidas com outras paralelas
em um mesmo colégio. Assim foram encontrados religiosos que, além de
bibliotecários, eram enfermeiros, mestres de meninos, administradores da olaria
e ajudantes do procurador. Ao mudar de colégio, o religioso nem sempre se
ocupava da mesma função.
Havia também funcionários externos assalariados para tarefas auxiliares. Assim
foi o caso de certo Lourenço, cafuzo, no Colégio do Pará, que, além de
livreiro, era alfaiate (LEITE, 2004, t. III, p. 520, n. 7). Foi o precursor dos
auxiliares de bibliotecas.
Encontram-se informações sobre dois bibliotecários. O primeiro é o padre
Antonio Vieira. Segundo seu próprio testemunho, sempre fora bibliotecário em
todos os colégios por onde passava. Foi bibliotecário no Colégio da Bahia
(LEITE, 2004, t. V, p. 216), sendo que, antes, esteve no Maranhão e no Pará. Em
Portugal passou por Lisboa, Porto e Coimbra. Para a livraria desta cidade
mandou fazer estantes por sua própria conta (LEITE, 2004, t. V, p. 216). O nome
de Vieira, contudo, não consta como bibliotecário no levantamento dos ofícios
jesuíticos10.
O segundo é o irmão Antonio da Costa, referido em documento de 1694 como
"diligente e hábil" (LEITE, 2004, t. V, p. 216)11. Exerceu as funções de
bibliotecário, encadernador e tipógrafo no Colégio da Bahia. Organizou o
catálogo da biblioteca, como já visto.
As livrarias
A mais importante foi a do Colégio da Bahia. Iniciou-se em 1549, com os livros
trazidos pelo Padre Manuel da Nóbrega (LEITE, 2004, t. V, p. 216). Com a
reconstrução do Colégio e da Igreja, iniciada em 1624 após a invasão holandesa,
passou a ocupar um suntuoso salão, hoje ainda existente, cujo teto pintado é um
dos mais belos exemplos da pintura colonial12. Em 1694, a biblioteca possuía
cerca de 3.000 livros, "de todo o gênero de escritores que se podem desejar e
se renova e guarda por um diligente livreiro", que foi o irmão Antonio da
Costa, visto acima (LEITE, 2004, t. V, p. 216). Estima-se que, no fechamento do
colégio, chegou a ter cerca de 15.000 volumes (LEITE, 2004, t. V, p. 216). A
botica do colégio também possuía livraria própria, espécie de biblioteca
especializada.
Também na Bahia, o Seminário de Belém da Cachoeira, que começou a ser
construído em 1687 no Recôncavo Baiano, possuía livraria. Foi o primeiro
colégio interno do Brasil. Durante seu funcionamento, passaram por ele cerca de
1.500 alunos (LEITE, 2004, t. V, p. 244). A livraria estava em constante
aumento, tendo registrado em 1735 a entrada de 70 volumes (LEITE, 2004, t. IV,
p. 248, n. 9).
No Maranhão, a principal livraria foi a do Colégio de Nossa da Luz. Quando lá
chegou o padre Antonio Vieira, em 1652, que foi o responsável por uma das suas
ampliações, encontrou quatro cubículos, um deles já ocupado pela livraria
(LEITE, 2004, t. III, p. 485). A ela foram acrescidos os livros de sua
propriedade trazidos de Portugal (LEITE, 2004, t. IV, p. 113). Em 1760 o
Colégio já estava consideravelmente ampliado e a livraria continha 5.000
volumes. Estava situada paralela à igreja, hoje a Catedral Metropolitana de São
Luís, com amplas janelas voltadas para o pátio interno (LEITE, 2004, t. IV, p.
113). Ocupava uma sala com uma grande mesa de consulta no centro e as estantes
dispostas ao seu redor LEITE, 2004, (t. IV, p. 113).
Em outras casas dependentes do Colégio do Maranhão existiam livrarias. A Casa
dos Exercícios e Religiosa Recreação de Nossa Senhora Madre de Deus, casa de
campo dos mestres e estudantes do Colégio, possuía livraria "[...] com estantes
a propósito, em que ficaram perto de 1.000 volumes de todas as matérias, quase
todos encadernados de novo em pasta" (LEITE, 2004, t. III, p. 602), conforme
registra O Inventário de 1760.
São mencionadas ainda as livrarias pertencentes ao Seminário, que dispunham de
uma "estante de livros pela maior parte de línguas estranhas" (LEITE, 2004, t.
III, p. 487) e outra de pequeno porte pertencente à Fazenda de Anindiba, atual
município de Paço do Lumiar (LEITE, 2004, t. III, p. 492). Outras, também
pequenas, estavam situadas no Seminário das Aldeias Altas, hoje Caxias, e de
Parnaíba (LEITE, 2004, t. IV, p. 113), e na Casa-Colégio de Tapuitapera, atual
Alcântara (LEITE, 2004, t. III, p. 513).
No Pará, após o estabelecimento, em 1653, dos jesuítas em Belém, foram
iniciadas as obras do Colégio de Santo Alexandre, que passaram por várias
etapas. O Catálogode 1718 já registra a existência da livraria e uma sala de
consulta (LEITE, 2004, t. III, p. 519) com 1.263 volumes. Em 1760, segundo o
Inventário,a livraria possuía 2000 volumes. Ficava situada no corredor do lado
do poente. Dispunha de oficina de encadernação e mobiliário adequado, como já
descrito. Estava ornada com uma escultura de Nossa Senhora com o menino nos
braços, a Sedes Sapientiae, e uma pintura de São Jerônimo, o tradutor da
vulgata (LEITE, 2004, t. III, p. 519).
Outras fundações no Pará também possuíam livros. A Casa-Colégio de Vigia, que
começou entre 1732 e 1735, dispunha de uma livraria com 1.010 volumes (LEITE,
2004, t. III, p. 544). Dela, foi conservado o catálogo que se encontra
publicado na íntegra (LEITE, 2004, t. IV, p. 160-167). A Residência da fazenda
de Ibirajuba, possuía pequena livraria. Entre os livros, havia a Crônica do
Brasil, de Simão de Vasconcelos (LEITE, 2004, t. III, p. 550). O Seminário de
Nossa Senhora das Missões dispunha de "alguns centenares" de livros (LEITE,
2004, t. IV, p. 113).
Em Pernambuco, a livraria do Real Colégio de Olinda, fundado no século XVI e
reedificado após a expulsão dos holandeses, "era excelente e não pequena"
(LEITE, 2004, t. V, p. 336). O Colégio de Jesus do Recife, inaugurado em 1677,
tinha sua livraria instalada em uma sala com oito janelas sobre a sacristia da
igreja (LEITE, 2004, t. V, p. 346). Estava sempre em crescimento, por meio de
compras e doações, como a registrada em 1717 (LEITE, 2004, t. V, p. 352).
A livraria do Colégio do Rio de Janeiro começou a ser organizada já no século
XVI, juntamente com a fundação da casa (LEITE, 2004, t. VI, p. 425). Em 1643, a
biblioteca já estava bem provida de livros que chegavam por compra ou doação.
Foi restaurada no início do século XVIII, juntamente com o Colégio, e passou a
ocupar sala própria com estantes novas, como já descritas. O acervo era
renovado com livros que vinham anualmente de Portugal e de outros países da
Europa (LEITE, 2004, t. VI, p. 425). Em 1734 entraram 92 volumes. Os volumes
encontravam-se enfileirados nas estantes ao lado de alguns impressos na própria
casa em 1724, para uso privado do colégio e dos padres (LEITE, 2004, t. VI, p.
425). Na sua sala ocorreu, em 1641, a aclamação de D. João IV como rei de
Portugal, após a Restauração (LEITE, 2004, t. VI, p. 430). Estava aberta aos
estudantes e ao público, como visto.
O conteúdo das livrarias
Serafim Leite considera que os acervos das bibliotecas jesuíticas eram de boa
qualidade e quantidade, conforme as observações que fez acerca de algumas
delas. A biblioteca do Colégio do Rio reunia "milhares de obras" (LEITE, 2004,
t. VI, p. 425). O Colégio do Recife "era dotado de boa biblioteca" (LEITE,
2004, t. V, p. 352). O do Espírito Santo "possuía uma biblioteca rica e
abundante" (LEITE, 2004, t. VI, p. 464). A da Bahia, a maior de todas, possuía
livros "de todo o gênero de escritores que se podem desejar e se renova e
guarda por um diligente livreiro" (LEITE, 2004, t. V, p. 216). A do colégio de
São Paulo "era rica e abundante" (LEITE, 2004, t. VI, p. 558).
São conhecidos, até o presente, os catálogos de duas livrarias: a do colégio de
Vigia, no Pará, e a do Rio de Janeiro. Ambos foram feitos durante o inventário
dos bens da Companhia após a expulsão da ordem. Leite acredita que todas foram
inventariadas no momento do seqüestro, mas, ou perderam-se todos os
inventários, ou ignora-se ainda o seu paradeiro13.
O catálogo da casa de Vigia registra 1.010 volumes "que se achavam [na casa]
quando o padre Caetano Xavier, então superior, foi preso". (LEITE, 2004, t. IV,
p. 167). Predominam livros de cunho religioso nos campos de teologia, direito,
moral, ascética, escriturística, apologética, liturgia e filosofia. No
sermoniário, registra-se obras da oratória sacra da época. Aparecem obras
poéticas de Homero em grego e em latim, obras de Virgílio, Horácio, Marcial,
Ovídio, Terêncio e Cícero. A história e a geografia estavam representadas com
diversas obras. A engenharia, medicina e matemática se faziam presentes com
alguns títulos. De autores portugueses como Camões e Vieira, encontravam-se as
obras completas. A livraria, "imersa como um foco de luz nas selvas coloniais
do Brasil, possuía um pouco de tudo", conclui Leite (LEITE, 2004, t. IV, p.
167).
A livraria do colégio do Rio de Janeiro foi inventariada 15 anos após a saída
dos jesuítas, quando muitos livros já estavam destruídos e outros nas mãos de
terceiros. Possuía milhares de obras de ciências sacras e profanas. Obras de
Aristóteles, Platão, Plínio e Virgílio e os famosos "Conimbricenses"14. As
ciências físicas e naturais estavam presentes com obras de Isaac Newton e
Boscovich15. De autores portugueses, havia títulos em praticamente todos os
campos. Completavam as obras relacionadas com as matérias ensinadas no Colégio
nas áreas de humanidades, matemática, filosofia, teologia, e uma boa coleção de
história e direito civil (LEITE, 2004, t. VI, p. 425)16.
Pelos exames dos dois catálogos, pode-se inferir o conteúdo das livrarias em
todos os colégios do Brasil. Eram livrarias especializadas. Seus acervos
cobriam em primeiro lugar as disciplinas ministradas nos colégios. Ao lado,
havia também, em todas, boas coleções de cunho religioso que abrangiam teologia
moral, direito canônico e hagiologia. Esses livros eram essenciais para
auxiliar os padres nas atividades religiosas.
Os destinos das livrarias
Com a saída dos jesuítas, todos seus bens imóveis e móveis foram confiscados e
tiveram destinos diversos. No que tange às bibliotecas e seus livros, veio a
ocorrer um completo desmantelamento e desaparecimento dos acervos construídos
ao longo de 200 anos. A história desse período, uma parte da história da
destruição das bibliotecas no mundo, é ainda desconhecida.
Qual foi o destino de tantos livros? Serafim Leite apresenta pistas do que
teria ocorrido. Hasta pública, remessa para Lisboa, doação a autoridades
diocesanas de cada local - e até a particulares, parecem ter sido os destinos
finais dos acervos. Acrescente-se ainda que muitos, abandonados durante largo
período em condições inadequadas, foram parcial ou totalmente destruídos, pela
ação de insetos e fungos, ou objeto de roubo.
As livrarias do Pará totalizavam cerca de 4.000 volumes no momento da saída dos
padres (LEITE, 2004, t. IV, p. 113). Em 1760, foi decidido que as duplicatas
existentes nesse total deveriam ser remetidas para Lisboa para venda (LEITE,
2004, t. IV, p. 113). O restante seria reunido para constituir o fundo da
biblioteca pública da cidade (LEITE, 2004, t. IV, p. 113). Tal não aconteceu e
os livros permaneceram no Colégio (LEITE, 2004, t. IV, p. 113). Posteriormente,
os livros dos Colégios de Santo Alexandre e da Vigia, por Carta Régia de 11 de
junho de 1761, foram doados a um Colégio de Nobres, que nunca chegou a
funcionar (LEITE, 2004, t. IV, p. 113).
Por volta desse mesmo período, parte do acervo foi remetida para Portugal. Dom
João de São José e Queirós, beneditino e quarto bispo do Pará no período de
1760 a 1763, enviou "dez caixões com os ricos livros dos jesuítas aos seus
confrades de Lisboa" (LEITE, 2004, t. IV, p. 113)17. Por fim, a Carta Régia de
11 de junho de 1790 determinou que o Colégio de Santo Alexandre e seus bens
fossem destinados à Mitra (LEITE, 2004, t. III, p. 519) Teriam sido os livros
incluídos?
Os livros do Maranhão foram entregues pela Carta Régia de 11 de junho de 1761
ao bispo diocesano. Entretanto, todas essas obras foram dispersas, conforme
observação de César Marques, autor do Dicionário do Maranhão, citado por Leite
(LEITE, 2004, t. IV, p. 113).
Essa situação pode ser confirmada no relatório intitulado Exames nos arquivos
dos mosteiros e das repartições públicas para a coleção de documentos
históricos relativos ao Maranhão, datado de 1851, de autoria do poeta Antonio
Gonçalves Dias, que oferece informações sobre o estado das bibliotecas do
Maranhão em meados do século passado. Quanto aos livros dos jesuítas, que foram
confiados ao bispo diocesano, o relatório cita e anexa cópia, a informação
prestada ao presidente da província, em 1831, pelo bibliotecário público padre
Antônio Bernardo da Encarnação e Silva, que investigou "o montão de livros
arruinados" que pertenceram aos padres. Tendo em vista o que constatou, o
bibliotecário afirma que não pode "deixar de lastimar que, entre mil volumes,
pouco mais ou menos que [...] existem apesar dos grandes extravios, se não
encontre uma única obra completa, que mereça ser aproveitada, visto o destroço
total, em que se acham, não só ocasionado pelo cupim e traça, como pelo
abandono, em que os mesmos livros sempre se conservaram, resultando de tudo,
que sendo a sobredita livraria em seu princípio de valor inestimável [...] hoje
desgraçadamente apenas pode prestar o que resta para alimento das chamas"18. Ou
seja, os volumes estavam em estado adiantado de deterioração. Vinte anos
depois, quando realizou o seu trabalho, Gonçalves Dias nada mais encontrou e
concluiu que a destruição foi completa (LEITE, 2004, t. IV, p. 113)19.
O relato do bibliotecário público do Maranhão e as observações de Gonçalves
Dias podem retratar o que poderia ter acontecido com os acervos jesuíticos em
outros locais do Brasil.
Quando da saída dos jesuítas, Serafim Leite estima em 15.000 os livros da
livraria do Colégio da Bahia (LEITE, 2004, t. V, p. 216). O que teria
acontecido com as coleções?
No início, algumas ordens religiosas mostraram interesse em adquirir as
melhores obras, o que foi negado pelas autoridades, sendo nomeado um
depositário para o acervo (LEITE, 2004, t. V, p. 216). Chegando o novo
arcebispo, D. Joaquim Borges de Figueiroa solicitou os livros, pois pretendia
reiniciar os estudos interrompidos com a saída dos jesuítas. Esse desejo parece
não ter se realizado, "porque os tempos não iam favoráveis, depois a saída dos
padres [os jesuítas], à cultura das letras", avalia Leite (LEITE, 2004, t. V,
p. 216).
O estado da biblioteca nos tempos que se seguiram pode ser conhecido por meio
do relato de Luiz dos Santos Vilhena nas suas Cartas de Vilhena: abandono,
furtos e pose por particulares. Assim relata:
He penna que a sacristia que foi dos Jesuitas se tenha perdido e vá
cada vez mais se arruinando, por ser huma das magnificas pessas
daquele genero, bem como a caza da Livraria, cujos livros bons e
muitos tem sido furtados e outros vendidos por quem os furtara por
vilissimos preços a Boticarios e Tendeiros para embrulhar adubos e
unguentos, podendo ter-se com modica despesa conservado, ainda que
fora para nelles se consultar muitas couzas, para que aqui não
apparecem livros; outros porem consta terem sahido para armar
estantes de particulares, sem que hoje exista nada delles20.
O que sobrou da livraria veio a constituir o fundo da Biblioteca Pública da
Bahia, aberta em 13 de maio de 1811, que contou ainda com doação de
particulares (LEITE, 2004, t. V, p. 217). Em 1817, somava 7.000 volumes, ou
seja, cerca da metade dos 15.000 exemplares do acervo original avaliado por
Leite. Nessa época, reinstalada no primitivo salão do Colégio, recebeu a visita
do príncipe Maximiliano, que lamentou a dispersão dos livros da antiga
livraria: "Que grande perda resultou de não ter tido bastante cuidado com os
papéis dessa Ordem Religiosa: foram na sua maior parte dispersados" (LEITE,
2004, t. V, p. 217)21.
No Espírito Santo, a "boa livraria" (LEITE, 2004, t. VI, p. 463) com que
contava o colégio teve seus livros dispersados entre várias pessoas. Recolhidos
em 1771, foram remetidos para Lisboa, como registrou Saint-Hilaire no relato da
sua passagem pela província, em 1818, citado por Leite (LEITE, 2004, t. VI, p.
463).
O caso do Colégio do Rio de Janeiro é o mais documentado. Os livros, que
chegavam a milhares em 1760 (LEITE, 2004, t. VI, p. 425), ficaram abandonados
em uma dependência do mesmo colégio durante os 15 anos que se seguiram à saída
dos jesuítas22. Muitos "andavam por fora" (LEITE, 2004, t. VI, p. 426), isto é,
estavam na mão de terceiros. A livraria continuava a servir aos mestres e às
escolas que se instalaram na cidade após a saída dos jesuítas, considerou Leite
(LEITE, 2004, t. VI, p. 426).
Em face do "mau estado de ruína" (LEITE, 2004, t. VI, p. 425) em que se achavam
os livros, o vice-rei marquês do Lavradio (1729-1790) determinou, por meio de
Portaria, que se fizessem três lotes: "os que forem de doutrina e disciplina
eclesiástica" deveriam ser encaminhados ao Prelado do Rio; "os que forem
proibidos" enviados a Lisboa para o Juízo da Inconfidência "e o resto que ficar
distribuído pelas casas de alguns ministros e letrados que se julgar serem
capazes não só de dar conta deles, mas de lhe darem o melhor trato"23.
Em 22 de julho de 1775 foram iniciados o inventário e a avaliação das obras
para o cumprimento das determinações do vice-rei. Reuniram-se para tanto o
desembargador Manuel de Albuquerque e Melo, o escrivão Antonio Machado Freire e
"dous mestres livreiros da melhor nota e ciência" existentes no Rio na época,
Pedro da Silva Tôrres e Manuel Francisco Gomes, que, sob juramento, avaliaram
os títulos inventariados (LEITE, 2004, t. VI, p. 426)24.
O inventário arrolou "quatro mil setecentos e um livros" aproveitáveis que
somaram "a quantia de hum conto, cento e cinqüenta e dois mil, quinhentos e
novena reis salvo erro (1.125$590rs)" (LEITE, 2004, t. VI, p. 426). Um total de
734 "livros de vários autores de várias matérias" foi considerado sem valor,
tendo em vista "que de nada prestam, por destruídos, podres e arruinados"
(LEITE, 2004, t. VI, p. 426). O documento ainda registra outros livros em
adiantado estado de deterioração que não foram avaliados por se acharem "todos
despedaçados e comidos do bicho" (LEITE, 2004, t. VI, p. 426).
Os livros destinados ao Prelado do Rio foram entregues ao Procurador da Mitra,
na qualidade de "depositário legal" no dia 28 de agosto de 1777 (LEITE, 2004,
t. VI, p. 426), dois anos depois da realização do inventário. Alguns deles
foram localizados pelo autor no Palácio de São Joaquim, do arcebispado do Rio
de Janeiro.
Serafim Leite lamenta que "bastaram 15 anos para a ruína da famosa biblioteca
do Colégio [do Rio de Janeiro]. Considera que ela seria hoje uma das maiores
riquezas culturais da América, se não houvesse solução de continuidade" (LEITE,
2004, t. VI, p. 426).
Conclusões
O Brasil contou, durante cerca de duzentos anos, com um considerável acervo de
livros, à disposição de interessados, nas livrarias jesuíticas. As informações
contidas na obra de Serafim Leite, embora dando destaque às mais importantes,
oferecem uma visão de como poderia ter sido o seu funcionamento em todo o país.
A Companhia de Jesus tinha as suas ações orientadas pelo método intitulado
Ratio Studiorium, que determinava procedimentos uniformes em todos os colégios
da ordem, inclusive quanto a livros, bibliotecas e práticas de leitura25.
O desmantelamento dos acervos, ocorrido após a saída dos jesuítas, privou o
país de um importante patrimônio cultural. Torna-se necessário que se conheça
melhor a história desse período e o destino de tantos livros, como subsídio
para a história das idéias e da formação do conhecimento no Brasil.
A criação de livrarias semelhantes também ocorreu em outros países da América
Latina, onde os jesuítas se estabeleceram e de onde também foram expulsos.
Entretanto, a dispersão dos acervos não ocorreu tal como no Brasil. Em alguns
desses países, onde a imprensa já havia sido introduzida e universidades foram
fundadas, existiram instituições que foram capazes de absorver os livros.
Algumas bibliotecas nacionais tiveram como núcleo original os livros dos
jesuítas, como no Peru, Colômbia e Argentina. Neste último país, está em
desenvolvimento um projeto para a reconstituição do fundo bibliográfico da
Companhia de Jesus no país26. O conhecimento desses acervos poderá oferecer uma
idéia das coleções que existiram no Brasil.
O conhecimento sobre a história das bibliotecas brasileiras no período
colonial, principalmente na época dos jesuítas, deve ser ampliado, a partir das
informações de Serafim Leite. Para tanto, será necessário revisitar os
arquivos, hoje seguramente em melhores condições de consulta do que na época do
autor, e ampliar as pesquisas.