Farda & "cor": um estudo racial nas patentes da polícia militar da
Bahia
Proponho neste artigo analisar o ingresso dos oficiais policiais militares
baianos, a mobilidade na hierarquia policial militar e a ocupação de funções de
prestígio e mando na Polícia Militar do Estado da Bahia (PMBA).1 Discuto,
inicialmente, a produção de teóricos das ciências sociais acerca da noção de
raça e racismo e as desigualdades socioculturais, focalizando a ascensão social
e o preconceito como obstáculos à mobilidade social.2 Em seguida, discuto os
elementos-chave para a ascensão nas patentes da PMBA.
No período pós-Abolição, cientistas argumentavam ma visão calcada na
antropometria; as afirmações demonstravam uma inferioridade dos africanos, a
partir dos traços fenotípicos (cor da pele, lábios grossos, textura do cabelo),
e uma capacidade degenerada de reprodução de seus descendentes, que
influenciaria a composição do povo brasileiro.
Também deve ser observado que, nesse período, havia uma preocupação
governamental com a mão de obra de ex-escravos, pois o país ingressava no
processo de industrialização e necessitava, enquanto nação, ser visto como um
"povo civilizado",3 e com padrão de conhecimento e urbanidade segundo o modelo
eurocêntrico.4
Contrapondo as pesquisas das relações étnico-raciais dos cientistas com
formação jurídica e médico sanitarista, outros estudiosos buscaram mostrar a
contribuição dos negros para a formação da sociedade brasileira, e destacavam
ainda a convivência harmoniosa;5 estas diferentes etnias ou raças no Brasil
comporiam, segundo Da Matta, a "fábula das três raças",6 sem que houvesse
conflitos explícitos, diferente do racismo one drop rule norte-americano.7
Bastide e Fernandes,8 além de Van den Berghe,9 procuraram compreender as
restrições da ascensão social dos afro-brasileiros, percebendo que os
estereótipos negativos como os traços fenótipos demarcavam um lugar no mercado
de trabalho. Tais manifestações do racismo brasileiro, segundo os autores,
afetavam um expressivo segmento de pessoas de cor, que estavam inscritas em
ocupações não intelectuais, com baixo acesso à educação, e reproduziam uma sub-
representação no preenchimento de posições na estrutura de classe.
Tais estudos procuravam mostrar que, na sociedade brasileira, as desigualdades
e o preconceito racial se evidenciam como remanescentes de uma ordem racial
pós-escravista. A passagem de uma sociedade de status para uma de contrato, as
desigualdades com base nos atributos da cor da pele ou na origem étnica
perderiam força como argumentaram Florestan Fernandes e Costa Pinto;10 de modo
que essa visão otimista da sublimação do problema racial brasileiro
desconsiderou as dinâmicas raciais no país, ao prever o desaparecimento do
racismo e da intolerância calcada nos atributos físicos.
No final da década de 70, a noção de raça aparece como uma concepção analítica
para explicar a desigualdade entre negros e brancos, no que se refere à renda,
à educação e à ocupação. A raça surge como um atributo socialmente elaborado,
que desqualifica e cria uma desvantagem competitiva para os negros e seus
descendentes.11
Desse modo, a ideologia racial brasileira atuaria de forma refinada ao se
utilizar da cor, dos atributos físicos e somáticos, para classificar
depreciativamente os indivíduos, estabelecendo uma hierarquia social própria da
multirracial sociedade brasileira. Assim, destacaram Skidmore e Guimarães,
vendo que ocorreu uma naturalização da condição subalterna dos negros e de seus
descendentes, pela combinação da cor à raça, ao status e à classe, aportando
valores morais, intelectuais e culturais de maneira depreciativa.12
Nesse sentido, segundo Dávila,13 a ideologia racial brasileira concebida na
eugenia privilegiava do modelo racial do branco europeu, por ver os indivíduos
portadores de qualidades intelectuais, pela "boa aparência" e pela
"competência", pressupostos para inclusão ou exclusão em atividades como o
exercício do magistério.
De modo que, a cor surge para o branco como uma vantagem na ocupação de
melhores posições sociais, já para os negros e seus descendentes, como um
acúmulo de desvantagens de geração a geração. O statusocupacional serve como
indicador da posição do indivíduo no sistema de estratificação social, a partir
da origem social e dos níveis educacionais que o qualificam para o mercado de
trabalho.14
Portanto, nesse contexto da inscrição do negro no mercado de trabalho
brasileiro, em que se percebe, através dos estudos referenciados, que os traços
fenotípicos servem para sua identificação racial e seu statusocupacional que
perguntamos: qual a cor dos oficiais na PMBA? Quem de que "cores" tem mais
acesso aos cargos de destaque na estrutura organizacional, a exemplo do
comandante geral e do chefe da Casa Militar do governador?
A Polícia Militar da Bahia
A Polícia Militar da Bahia foi criada através do Decreto Imperial de 17 de
fevereiro de 1825. Sua estrutura já surge moldada com características militares
de comando e nas operações, e com o objetivo de conter as graves tensões na
Província da Bahia, já que os movimentos de libertos e escravos ameaçavam o
modelo escravocrata.15
Da Colônia à República, a PMBA, em diferentes momentos de sua história, esteve
vinculada ao Exército Brasileiro, seja na perspectiva jurídica ou operacional,
para ser empregada como Força Auxiliar. No período militar, foi submetida à
Doutrina da Segurança Interna e Territorial, sob o controle da IGPM Inspetoria
Geral das Polícias, atuando de forma centralizada e seletiva, como tropa de
repressão ostensiva e velada sob o comando de oficiais do Exército.16
Durante as três últimas décadas, a instituição passou por modificações na sua
estrutura organizacional,17 para se adaptar à realidade da sociedade em
processo de redemocratização, contudo, será possível ver a PMBA como uma
instituição porosa, acessível à presença dos afro-descendentes nas patentes, ou
restringindo a sua acessibilidade e mobilidade? Eis algumas das questões que
norteiam nossa investigação na polícia fardada baiana.
O ingresso
Na década de oitenta, o acesso dos candidatos a oficial da PMBA se realizava
por processo seletivo conduzido internamente pela Polícia Militar, consistindo
de uma prova intelectual, com etapas de um teste psicológico, avaliação social,
teste físico e médico. Somente a partir da metade da década de noventa, o
processo seletivo dos oficiais deixou de ser um procedimento inter corpus, para
ter uma universalidade das oportunidades de acesso, como preceitua a
Constituição Federal, unificando a seleção com o vestibular da Universidade
Estadual da Bahia UNEB.18
Antes da unificação do vestibular, as avaliações da "boa aparência", através da
fotografia ou pessoalmente, além do "pedido",19 definiam o postulante a
carreira de oficial, como destaca um informante:
Mas se escolhia normalmente o pedido, não era qualquer pedido, a
depender também da cara do camarada. Aí ele disse assim: não me peça
por preto. Mas o cara era preto, rapaz. Mas ele tinha que ver a
fotografia antes. Aí tinha um branco, com suplente. (Cap. A.A.S.).
Portanto, segundo o informante, as fotografias dos candidatos, além das
propriedades físico-anatômicas, tinham implicações sociais e simbólicas,20 de
modo que a aparência e a cor do individuo na socieda de brasileira permitem
estabelecer as diferenças de status (posições sociais); incorporam "direitos",
privilégios de tratamento legal, associados a um statusda cor,21 visão esta
referendada por outro informante:
Agora você me chamou a atenção para um fato interessante, inclusive
tem algumas figuras na polícia que ficaram conhecidas pelo poder que
tinham para indicar ou contra-indicar alguém para ingressar na
corporação em todos os níveis, na época que a seleção era feita pela
própria corporação, [...]. Existiam, assim, tradições familiares em
ingressar na corporação, realmente (Cel. PM A.J.F.M.: aspirante em
1975).
As formas de discriminação e o preconceito também se manifestavam durante o
curso de formação dos oficiais, pois o tratamento dispensado aos mais escuros
restringia sua participação no espaço de socialização na instituição. Havia
valorização de uma "cor" em detrimento de outra; os portadores de caracteres
negroides não se coadunavam com a "seleção preferencial",22 como podemos
observar no depoimento abaixo:
Mas é verdade e historicamente se comenta isto, de que os negros e
feios iam para sepultamentos, missa de sétimo dia; os brancos e
louros iam para dançar valsa, os bonitos, bem afeiçoados, dançar
valsa... Era uma prática, era uma prática que não se tornava pública,
não era dita como verdadeira, mas se questionava, acontecia, era
notório. (Cel. PM D.C.M.: aspirante em 1975).
Destaca ainda outro informante quanto ao sistema de desigualdades raciais, que
se encarregava de reproduzir a inferioridade social, a PMBA se apresenta como
uma instituição mais porosa que as Forças Amadas:23
Eu já tive oportunidade de participar do Miss Bahia, do Miss Feira,
na época em que aqueles concursos eram bem concorridos. E eu não me
recordo na época de quem participou comigo, mas eu não vou mentir que
havia um direcionamento para o pessoal de tez mais clara. Havia sim
(Ten Cel. RR. PM C.A.S.M.: aspirante em 1972).
A cor dos oficiais
É fundamental destacar que a classificação da cor dos oficiais da PMBA não foge
à complexidade da classificação racial brasileira. Sua terminologia se reveste
de um continuum, seja no que diz respeito a quem classifica a pessoa, seja nas
"cores" atribuídas às pessoas identificadas nas fichas dos oficiais,24 já que
não ocorre uma autoclassificação na instituição policial militar.
Muito embora as classificações das categoriais raciais brasileiras sejam
controversas desde os Seiscentos e os Setecentos, como destacou Santos em
relação às crianças enjeitadas,25 já naquela época a cor da pele remetia o
indivíduo a um lugar socialmente pré-estabelecido; a pigmentação remetia à
identificação pela "cor" ou pela "raça",26 as quais demarcam os referenciais
espaciais, inclusive da forma de tratamento dispensado.
A cor, portanto, é uma categoria analítica, revestida de discriminação e
desigualdades, em que a "aparência física" é associada a grupos "racializados",
a exemplo das fichas dos policiais militares aqui estudados.
A identificação da "cor" dos oficiais da PMBA foi construída através das atas
de conclusão do curso de formação e das fichas funcionais, catalogadas entre os
anos de 1967 a 2005, contabilizando 1.908 oficiais, que foram formados nesse
período.
É relevante trazer os dados que mostram a classificação da cor dos oficiais,
pois enquanto cadetes, foram submetidos ao processo seletivo interna corpus,
antes da década de setenta. Os dados da tabela_1 mostram uma presença de
cadetes com pigmentações diferenciadas, com certo equilíbrio entre as cores e
os caracteres mais próximos do modelo europeu. Contudo, vemos que os oficiais
de cor mais pigmentada, como os pardos escuros, ainda que estejam presentes,
sua frequência é menor, enquanto os de cor preta estão ausentes. Esses
indicadores permitem presumir que os estereótipos operavam como restrição à
"entrada" de candidatos mais pigmentados, atingindo principalmente aqueles com
caracteres negroides.
![](/img/revistas/afro/n45/a03tab01.jpg)
O resultado dessa amostra de 101 oficiais, no período entre os anos de 1967 a
1969, aponta para uma forte representatividade dos indivíduos de cor
miscigenada, entretanto, percebe-se que os oficiais de caracteres vistos como
próprios do europeu têm maior representatividade individual, como os de cor
branca, com 10%, os de cor parda clara, com 15%, e, na outra ponta da escala
cromática, os de cor parda escura, com 6%, e os pretos não conseguiram acesso
aos quadros da PMBA, nos últimos anos da década de 60.
Temos no centro do continuumdas cores um significativo percentual de oficiais
portadores de caracteres, que demarcam a intermistura racial com alguns
componentes da adscrição suavizados, de modo que os pardos são 28% e os de cor
morena, 11%, totalizando 39% de mestiços, o que aponta o grau de miscigenação
na PMBA, à época.
Assim, muito embora possamos perceber esse grau de miscigenação na corporação
militar estadual baiana naquele período, alguns oficiais apontam uma restrição
de cadetes caracterizados pelos traços do fenótipo do negro, como afirma um
oficial da época:
Na minha turma? O mais escuro? Acho que era eu. Eu e Eraldo. Não sei
se você sabe... Eu acho que na minha turma era assim. Depois, os mais
claros, e tinha os intermediários entre eu e os mais claros, mas nós
não tínhamos, assim, um companheiro mais escuro, assim completamente
negro não... Assim, a composição era essa (Cel. PM J.L.V.M.:
aspirante em 1965).
Se é possível perceber uma presença de cadetes de traços negroides e total
ausência de pretos, podemos especular que o preconceito operava de maneira
sutil e sub-reptícia. De certa forma, havia um padrão estético mesmo com o
registro de oficiais miscigenados, mas com traços mais próximos aos do europeu.
Significa reconhecer que a noção da "beleza" do tipo europeu permeava as
representações na seleção dos candidatos, diversa das características do negro
ou de seus descendentes diretos, como sinaliza um oficial formado à época:
Na minha turma não teve negro não. Nenhum negro. Mulato, mas negro
não tinha. Dizem que a academia dos oficiais, um pouco antes, tinha
essa preocupação. Porque, na época, só tinha oficiais brancos. Na
fundação da academia, a primeira turma, de 1941. A primeira turma foi
em 1941 ou 1943? A primeira turma não tem. A segunda turma tem
Nestor, mais pinçado. Inclusive teve turma que só teve branco. Eles
tinham essa preocupação com a cor. (Cel. PM A.S.P.B.: aspirante em
1961).
Certamente entre os oficiais da Academia da Polícia Militar, formados nos anos
citados, as oportunidades para a inserção de candidatos mais escuros foram
positivas para os indivíduos miscigenados. A ausência de oficiais da cor preta
("pinçado"), segundo o informante acima, e a "preocupação com cor" sinalizam
algum tipo de restrição, porém, já se percebe o acesso de indivíduos
pigmentados ou com certo grau de mestiçagem, que aponta a PMBA como receptiva
com sinais de ser uma "organização tradicionalmente popular".27
A amostra compreendida no período de dez anos (Tabela_2) é composta de 353
oficiais, totalizando dez turmas no curso de formação na Academia da Polícia
Militar. Vemos, na tabela, que os oficiais de cor parda (23,5%) e os pardos
claros (23,2%) tiveram a maior participação na composição racial, seguidos dos
da cor morena (17,6%), dos da cor branca (13,0%), dos pardos escuros (7,6%) e,
por último, dos de cor preta (0,3%).
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Assim, a distribuição das "cores" nas turmas de formação de oficiais ao longo
desse tempo registra uma presença de oficiais miscigenados com os indivíduos
mais pigmentados, no centro do continuumdas diversas categorias de "cores".
Assim, os pardos, os pardos claros e os morenos juntos correspondem a 64,3%; há
uma frequência dessas categoriais de cores em todas as turmas de formação, nos
vários anos da década, mas essa presença se rompe em relação aos pardos
escuros, que, nos anos de 1977 e 1980, não tiveram oficiais nas turmas da cor
preta, que só teve representante no ano de 1973.
Essa composição racial, com uma tendência ascendente de intermistura das cores
dos oficias, mostra uma porosidade crescente na centralidade do continuum, pois
mesmo a cor morena (categoria não oficial do IBGE), que inclui conotações e
variantes de características físicas, podemos especular que a presença dos
oficiais mais pigmentados já se registrava à época:
Não era regra. Não era um padrão. Porque branco seria o Camerino,
eram Jackson, Silva, Evangelista. Ah! tinha Lopes. Lopes também era
negro. Então tinha. Eram mais ou menos uns 12 oficiais. Dos 12, eu
creio que três eram negros (...) (Cel. PM A.J.F.M.: aspirante em
1975).
Reforçando a visão do oficial acima, outro integrante da turma de 1976 que
vivenciou as experiências acadêmicas declara: "Mas nós temos afrodescendente:
Eu, Manuelito, Josafá, Veloso. Veloso não, eu Manuelito, Josafá, mas eram
poucos" (Cel. PM N.R.M.: aspirante em 1976).
Tinha alguns brancos, tínhamos alguns brancos... Mas a turma era
metade. Meio a meio. A intermistura racial se acentua nessa década,
com a significativa presença de indivíduos de caracteres ambíguos, os
pardos e os morenos que formam o continuumracial brasileiro, o qual
acomoda outras categoriais, formando um "guarda-chuva racial.28
Na outra ponta da classificação, os brancos e os pardos claros com suas
características mais próximas do caucasoide formam outro segmento importante no
contexto racial da polícia fardada baiana.
A cor dos oficiais das turmas (1981 a 1991)
A amostra desse período (Tabela_3) compreende um total de 552 oficiais
pesquisados, sendo que de 126 desses não foram localizadas as fichas com suas
características, ou seja, 23% da análise.
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Assim, os dados apontam que 10% são oficiais da cor branca, 18%, pardos claros,
27%, pardos, 14%, morenos, 7%, pardos escuros e 1%, pretos.
No contexto das turmas de formação, verificamos que da cor branca, apenas no
ano de 1984, não foi registrada a presença de nenhum oficial; no oposto, a
parda escura, nos anos de 1982 e 1989, e a preta estiveram representadas nos
anos de 1986 (3%) e 1987 (2%) no âmbito de cada turma.
De modo que a ausência dos indivíduos de cor parda escura em duas turmas não
significa uma rejeição do acesso aos quadros da PMBA, pois, no ano de 1981, os
oficiais pardos escuros representavam 18% na sua turma de formação de oficiais;
em 1984, eram 11%, em 1986, 10%, respectivamente.
Os dados dessa amostra permitem observar que houve um aumento no número de
oficiais na PMBA com caracteres miscigenados, inscrevendo em seus quadros, de
forma tímida, indivíduos mais escuros (os pardos, os escuros e os pretos),
sinalizando certa resistência de seu ingresso, pois, em números absolutos, os
brancos representaram 53 oficiais, os pardos claros, 100, contra 7 pardos
escuros e apenas 1 da cor preta.
Assim, na composição das turmas da década de oitenta, pode-se afirmar que os
oficiais de fenótipos negroides (pretos), ainda que sub-representados na
amostra, chamavam a atenção com sua presença, como destaca um informante sobre
sua turma: "É meio a meio. É meio a meio, mais ou menos. Não, não. Acho que...
Poxa, agora dá pra recordar? Acho que dá: 30% de negão" (Maj. PM J.J.N.,
aspirante em 1981).
Outro informa sobre a composição da cor em outra turma:
Não tinha negros nas duas turmas anteriores. Quando eu ingressei na
academia, no primeiro ano, no segundo e no terceiro, não tinha
negros. Não tinha. [Em relação à sua turma de formação afirma:
] Apenas quatro. Hoje major Alfredo, major Paixão, Nilton Paixão e o
tenente coronel do Bombeiro, André Bonfim. Negros mesmo. Dessa turma
(Maj. PM A.F.R.S., aspirante em 1984).
A cor dos oficiais das turmas (1993 a 2005)
Nesse período (onze anos), essa amostra é constituída de 889 oficiais. Vemos os
de cor branca (2%) e os pardos claros (22%) totalizando 22%, em oposição a
esses, os pardos escuros (10%) e os pretos (0,2%), juntos, constituíam 10,2% do
total analisado. No centro das "cores", os oficiais de cor parda representam
50%, seguidos da cor morena com 2,0%.
Nesse sentido, com o crescimento da população negra, nesse intervalo, e o
acesso ao moderno mercado de trabalho na capital baiana,29 a carreira de
oficial da PMBA não representou um significativo ingresso dos indivíduos mais
miscigenados às patentes de oficial, pois indivíduos de caracteres raciais
herdados do africano são pouco presentes no conjunto das cores, diferente dos
pardos e dos morenos, cuja combinação de caracteres físicos controversos,
juntos foram maioria dos oficiais, isto é, 52% da amostra, como vemos na tabela
4.
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Os dados revelam a consolidação da escolha da carreira policial militar como
alternativa de ascensão social para os indivíduos miscigenados, ainda que se
perceba pouca representação dos com caracteres negroides. A hipótese para essa
forte presença de indivíduos de caracteres fisionômicos controversos na
carreira de oficial da PMBA pode decorrer da atração pela estabilidade
funcional, pelo acesso a plano de saúde (médico e odontológico), pela
aposentadoria, pelo statusde oficial e pelo valor simbólico da patente,30 pois
os brancos e os pardos claros já estavam inscritos no quadro da oficialidade
baiana.
Assim, a diminuição da presença de oficiais de cor branca de 10% (1981-1991)
para 2%, no período de onze anos, chama atenção, pois é possível conjeturar que
os candidatos de "cor" branca não vissem a PMBA como atrativa para mobilidade
social ou o processo de avaliação do vestibular pela UNEB serviu como seleção
positiva para os que estavam mais qualificados intelectualmente.
Essa diminuição da presença de indivíduos com fenótipos europeus em sete
turmas, de forma contínua e alternada, contrasta com a presença dos oficiais
pardos escuros em todo período; as taxas significativas de 18% (1993), 26%
(1996), e, no ano de 2001, com 8%, encerrando o período da amostra com 7%
contra nenhum registro de oficiais de "cor" branca, o que pode sustentar nosso
argumento, que, ao se tornar transparente, o processo seletivo da APM, com os
candidatos de "cor" qualificados, o mérito intelectual permitiu que indivíduos
mais pigmentados se tornassem oficiais da PMBA.
Por certo, com base nesses indicadores, o acesso universalizado do processo
seletivo do vestibular, instituído pela Corporação na segunda metade da década
de noventa, constituiu-se fator positivo para o ingresso dos afro-descendentes,
pois as ingerências de "escolhas" pela aparência ou por indicações já não
tinham força, a partir do referido período, como afirmam nossos informantes:
Eu acho que talvez o divisor de águas esteja aí. Na nossa época,
quando existia o curso preparatório de alunos, você ingressava no
curso preparatório de alunos, ou oriundo do Colégio da Polícia
Militar ou oriundo do mundo civil, ou oriundo da tropa. Tudo através
de seleção interna. Não era um processo seletivo aberto ao público de
um modo geral. E quem fazia as provas era a própria polícia. Na
academia, da mesma forma. Os concursos eram realizados pela polícia
militar. Essa vinculação ao vestibular da UNEB, isso é uma coisa
relativamente recente (Cel. PM A.J.F.M.: aspirante em 1975).
Essa forte presença de oficiais miscigenados na PMBA pode ser atribuída à busca
de um capital cultural,31 que possibilitasse compensar a baixa origem social e
a desvantagem competitiva;32 historicamente identificada como entraves à
mobilidade ascendente, como aponta um informante:
Minha primeira morada mesmo foi em Cosme de Farias. Em Cosme, eu
morava numa casa, numa ladeira, a Ladeira da Fonte de Santo Antônio,
Morava numa casa, que era uma avó. Quatro casas e um sanitário
coletivo. Meu pai era motorista de táxi, à época e minha mãe
costurava roupa, bem como espichava cabelo. E daí nós fomos
crescendo, meu pai arrumou emprego na CHESF de motorista e daí foi
evoluindo... (Maj. PM J.J.N., aspirante em 1981).
Um segundo informante destaca sua origem rural e a forma de subsistência
familiar antes de ingressar na PM baiana:
Minha mãe era doméstica, dona de casa. Meu pai, ele era pequeno
negociante, se ligava mais nessa parte da agricultura e pecuária, mas
tinha também um armazém pequeno lá em São Sebastião (Cel. PM
J.L.V.M.: aspirante em 1965).
Outro informante enfatiza a condição civil da mãe e destaca a educação como uma
via importante para ascensão social:
Eu sou filho de mãe solteira. Eu só vim ter um relacionamento mais
forte, intimo, com meu pai a partir dos 19 anos de idade, depois de
formado. Nunca tive uma aproximação assim maior com ele. Morei até os
14 anos em palafitas, que são casas construídas em cima d'água,
aquela coisa toda. E o meu grande diferencial foi a possibilidade que
eu tive de concluir meus estudos (Maj. PM L.R.O.M., aspirante em
1986).
Já o terceiro, também informante, no posto de coronel destaca a origem social
dos seus pais: "Meu pai era pedreiro e minha mãe bordadeira, e ambos
trabalhavam para a subsistência da família" (Cel. A.A.F.: aspirante em 1971).
A distribuição das cores no poder da PMBA
A PMBA não pode ser vista livre dos efeitos dos preconceitos raciais e do
corporativismo na sociedade. As manifestações do preconceito de marca revelam
critérios subjetivos de quem observa e daquele que é julgado para ter acesso às
posições sociais, como destacou Nogueira,33 principalmente quando as
oportunidades de acesso não são universalizadas pelos interesses individuais ou
corporativos, como destaca um informante:
Eu acho que, naquela época, principalmente, eu via assim, o concurso
como um concurso feito para os filhos de oficiais, principalmente
oficiais coronéis da Polícia Militar, aqueles realmente que queriam
ingressar na Corporação. Mas se discutia assim, nos bastidores, esse
movimento, entendeu? Porque é aquela história, eu não vou ser assim
precipitado em dizer que existia trambique no concurso. Mas é claro
pra você que, às vezes, em concursos feitos por entidades
especializadas em concursos acontecem às fraudes, imagine em
concursos feitos internamente, dentro da Corporação. Prova. Tudo.
Correção de prova. Naquela época, não se existia muita fiscalização.
Quem fiscalizava o próprio concurso era a própria Corporação. Quantos
filhos de oficiais tinham (...). A tendência era ter alguma
influência, o fato de algum camarada ter um filho, o cara era coronel
da Polícia, tinha um filho prestando concurso, pouquíssimas vagas
(...) (Maj. PM A.F.R.S., aspirante em 1984).
Portanto, na dinâmica racial brasileira, alguns indivíduos mais pigmentados com
nuanças negroides, por vezes conseguem transpor as barreiras raciais e a falta
de oportunidades, todavia, a cor da pele e a dimensão cultural, histórica e
social remetem a uma origem racial de maneira depreciativa, ancorada na
aparência dos indivíduos.
Nesse sentido, a aparência e a cor inscrevem o individuo em um status, com a
incorporação de alguns "direitos", na forma de privilégios de tratamentos legal
ou não, porém, sempre associado a um statusda cor,34 entretanto, os efeitos da
adscrição racial restringem a ocupação de posições sociais proeminentes. É o
que dizem dois de nossos informantes:
Rapaz, esse negócio de preconceito racial sempre existiu. E, em nosso
tempo, também não se escapava. Sempre existiu, mas eu nunca liguei,
entendeu? Embora eu seja preto, nunca dei bola... Para mim não
existia isto... (CEL. PM J.S.F.: aspirante em 1948).
Eu tive notícias, eu tive notícias de que muitos companheiros, por
terem a tez negra, eram preteridos na sua ascensão funcional. E tem
um caso até de um excelente capitão, um homem inteligentíssimo, e que
ele limitou-se a chegar ao posto de capitão, e não quis fazer o Curso
de Aperfeiçoamento de Oficiais. De lá ele completou o tempo e foi pra
reserva. Um homem de uma capacidade intelectual muito grande. Hoje é
falecido. (Ten. Cel. PM RR C.A.S.M.: aspirante em 1972).
Superar o preconceito, ainda que dissimulando suas manifestações internamente
para alcançar as patentes, como de coronel, era uma forma de superar a
desvantagem competitiva. Desse modo, dos oficiais formados nas turmas nos anos
de 1970 a 1978, num total de 353, apenas 36 conseguiram chegar à patente de
coronel,35 resultando na composição racial vista na tabela abaixo:
Os dados apontam que a oficialidade superior, no último posto da PMBA, é
composta de indivíduos caracterizados como mestiços, contudo, as
características raciais hereditárias estão mais próximas dos traços
fisionômicos do europeu. Observa-se a presença de 19% da cor morena (07
oficiais), categoria racial com nuanças fluidas, e dos pardos com 39% (14
oficiais), cuja categoria se revela com alto grau de ambiguidade na sua
miscigenação.
Já os oficiais com menor grau de mestiçagem, mais próximos da tez europeia, a
cor branca com 6% (02 oficiais) e a parda clara é representada com 28% (10
oficiais), que juntas são um total de 34%, dados que revelam uma mobilidade
funcional mais receptiva a essas duas categorias raciais. É possível
identificar uma ideologia saturada de preconceito, relacionada a um lugar
racializado, como afirma um coronel pardo escuro:
Uma equipe de São Paulo estava fazendo uma reportagem sobre o
carnaval. E me ligaram. Quem me ligou foi da Bahia que me conhecem e
tal, mas eu não sabia que era uma equipe de São Paulo que faria esta
reportagem comigo. Eu fui para esse local. Lá um cidadão disse que
estava esperando o coronel (...) para fazer uma reportagem a nível
nacional. Eu digo: - Infelizmente o Cel. não vai mais fazer a
reportagem não, porque ele já está aqui. Aí foi desculpa de um lado,
desculpa para outro... Não posso fazer uma leitura se o coronel que
eles estavam querendo era um coronel gordão, ou se era a cor da pele
mesmo (Cel. PM ex-comandante do policiamento da região leste da
Bahia).
É possível, então, apontar, com base nos dados da tabela_5, que existe uma
porosidade na ascensão funcional de mestiços na PMBA, ainda que as diferentes
combinações das características físicas aparentes sejam a cor da pele, enquanto
o principal atributo restritivo. Vemos os pardos escuros presentes com 8% (3
oficiais) e a categoria racial preta sem nenhum representante. Os pardos com
39% (14 oficiais) e os da cor morena com 19% (7 oficiais); cores dotadas de
ambiguidades, que se afastam dos caracteres negroides e trazem significados
sociais, ao sofrerem menor restrição de mobilidade para ascender à patente de
coronel, por conseguirem se desvincular da marca do status racializado.
[/img/revistas/afro/n45/a03tab05.jpg]
A cor dos comandantes da Academia da PMBA
A vida profissional do futuro oficial da PMBA ocorre através do curso de
formação realizado na Academia de Polícia Militar. A sua gênese militar, ainda
que de caráter provisório, surgiu em julho de 1935, em ato interno do
comandante geral, mas, no mesmo ano o Governo do Estado da Bahia, por decreto
nº 9.731, criou o Centro de Instrução Militar CIM.
Juntamente com a formação dos oficiais, o mesmo prédio abrigava a formação e o
aperfeiçoamento dos sargentos, sendo que, em 1940, passou a denominar-se Centro
de Instrução Técnico Profissional CITP; já, em 1948, passa a ser chamado Centro
de Instrução da Polícia Militar CIPM.
Naquele período, passou por algumas mudanças na sua denominação, como no ano de
1953 passou a ser chamada Escola de Formação de Oficial EFO e, por fim, em
1972, através do decreto nº 22.902, foi denominada Academia da Polícia Militar
APM - permanecendo este nome nos dias atuais.36
Desde 1938, com a transformação em Academia, passou-se a exigir o curso
científico completo (atualmente ensino médio) para seu ingresso, porém, o
recrutamento ocorria de maneira endógena. Somente em 1942, permitiu-se o
ingresso de candidatos oriundos da sociedade civil. Posteriormente, em 1963,
foram recrutados alunos egressos do Colégio da Polícia Militar, que obtivessem
avaliações com boas notas nas disciplinas, no teste físico e no psicológico.
Não obstante tais nuanças no seu recrutamento, os candidatos eram diferenciados
na sua formação, que se constituía de dois quadros: o intendente e o
combatente. O primeiro, com abordagem acadêmica na gestão, enquanto o segundo,
além desse aspecto, enfatizava o planejamento e a execução do policiamento
ostensivo.
Com a extinção do quadro de intendente, essa dicotomia passa a permear a visão
de mundo dos alunos ditos armamentistase dos não armamentistas,37 os primeiros
contrários à utilização das artes marciais, defendendo o uso das armas para
resolução das ocorrências, enquanto outro segmento sustentava e era favorável à
reflexão através das disciplinas da administração, do direito e das ciências
sociais.
Tais considerações em relação à formação do futuro oficial vão além das salas
de aula da APM. Ela não é somente a "porta de entrada" do oficialato, mas o
espaço acadêmico de qualificação para aquisição do mérito intelectual, como
requisito para a mobilidade nas patentes. Nesse sentido, todos os oficiais e os
futuros comandantes, além da formação acadêmica, são submetidos aos rituais de
passagem pelo intenso processo de socialização em diferentes momentos da vida
profissional.38
Além da visibilidade interna, a Academia da Polícia Militar recebe alunos e
oficiais de outras instituições policiais militares nos seus diversos cursos de
formação e especialização, projetando a imagem institucional fora do território
estadual; de modo a permitir que seu comandante seja percebido, na dimensão
social e simbólica, como o profissional responsável pela qualidade da
preparação integral dos oficiais baianos.39
Portanto, a ocupação do cargo de comandante da APM se destaca no contexto
interno e externo da PMBA pela sua representatividade institucional e pessoal.
Desse modo, na tabela_6, verificamos que 33% dos comandantes eram da cor
branca; os pardos claros, 14%; os oficiais da cor morena 24%; já os da cor
parda escura representam 10% da amostra de 21, que comandaram a APM.
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Tais indicadores sobre as cores desses oficiais demonstram que, durante trinta
e cinco anos, vemos uma predominância dos indivíduos de caracteres de epiderme
miscigenados (os pardos, os morenos, os pardos escuros), que, juntos,
significam 53% da amostra; os indivíduos de caracteres mais próximos do modelo
europeu, os de cor branca e os pardos claros, somados, representam 47%.
Ainda que se identifique uma predominância dos oficiais miscigenados, percebe-
se, no contexto da instituição, que se apresenta como mestiça, certa tendência
não consolidada por indivíduos de tez mais clara. Uma explicação para esses
percentuais dos oficiais de epiderme clara se refere à representatividade
social e simbólica, pois o cargo confere uma identidade "branqueada",40 ou
seja, uma combinação de raça, classe e gênero, como percebeu D'Ávila na
ocupação do cargo de professores na cidade do Rio de Janeiro.
A cor dos comandantes da PMBA.
Ascender na sociedade brasileira não significa para os indivíduos ocupar cargos
de visibilidade. A discriminação e o preconceito raciais possuem mecanismos
suavizados de manutenção do status, diferenciando não a pertença social, mas a
cor ou a raça, utilizados como certos "direitos", vistos como inerentes a
alguns grupos sociais.
Como o Estado, a PMBA está inserida na estrutura da Secretaria da Segurança
Pública; espraia suas atribuições nas diversas atividades na preservação da
ordem pública e, como gestor maior tem um coronel de carreira que ocupa o cargo
de comandante geral.
Portanto, a visibilidade que tal função atribui ao coronel permite que este se
relacione com diferentes membros da alta administração do Estado, com os
Poderes Judiciário e Legislativo, além de várias autoridades nas esferas
Municipal, Estadual e Federal.
Através dos dados coletados de quatorze oficiais que conseguiram ocupar o cargo
de comandante geral da PMBA, no período de 1970 a 2005, identificamos 29% dos
oficiais de cor branca, a parda clara com 14%. No meio do continuum da escala
cromática, os oficiais de cor parda representam 22%, enquanto os da cor morena
são representados por 14%. Na outra ponta, temos os oficiais de cor parda
escura, representados com 21%, sem que tenha havido registro de oficiais da cor
preta no comando da PMBA, no intervalo de trinta e cinco anos, conforme tabela
abaixo.
Aqui devemos ressaltar que a nomeação dos comandantes da PMBA passa pela
escolha do governador, portanto, a ocupação da função é outorgada por
avaliações subjetivas do nomeante. Nesse sentido, a presença de oficiais de cor
clara, com 29%, e os pardos, com 14%, assegura uma destacada presença, ainda
que "as linhas divisórias entre brancos e pardos são pouco nítidas",41
revelando uma tendência a associar os últimos à cor branca. De sorte que
reconhecemos, através das representações dos governantes, uma segregação da cor
dos mais escuros, mesmo com a presença de oficiais de cor parda escura e morena
ocupando tal função.
A ocupação da função de destaque e status como a de comandante geral da PMBA,
para oficiais mais escuros representa não só a superação do seu nível de
preparo profissional, mas, como aponta Telles,42 que os negros e os pardos
sofrem níveis semelhantes de discriminação racial no mercado de trabalho, nesse
sentido um desses oficiais sinaliza a existência do preconceito racial ao
afirmar:
A discriminação está ai, ela existe. Mas, no meu consciente, ela
existe, vai existir por muito tempo, mas eu vou passar por cima dela
que nem um trator. Aquele que se puser no meu caminho com esse tipo
de ato vai se capar, que eu vou trucidar. É o sistema. Ele esta ai
para isso, o sistema é assim, ele é que nem a seleção natural, se
você é forte, você sobrevive, se você for fraco, você morre... (Maj.
PM L.R.O.M., integrante do Grupamento Aéreo da PMBA).
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Cor dos chefes da Casa Militar do governador da Bahia
A Casa Militar do governador da Bahia é um órgão de assistência, assessoria e
representação, com diversas atribuições na estrutura burocrática do governo, e,
entre outras atividades, deve executar a segurança ostensiva e reservada do
governador, de autoridades em diferentes níveis como a dos dignitários (chefes
de Estado e governos).43
A escolha do titular dessa função também obedece a critérios políticos e à
qualificação profissional, principalmente quanto à confiança que
estrategicamente a função exige. Sua indicação é um ato volitivo do governador
do Estado ou pode ser oriunda da de alguma autoridade que preencha tal perfil.
Na escolha de oficial de "confiança", temos dois de cor parda escura que
aparecem na amostra, entretanto a ocupação da função foi temporária, ou seja,
responderam de forma cumulativa pela titularidade, enquanto o governador da
época escolhia um novo ocupante para o cargo.
A amostra desse cargo compreende 14 oficiais, que estão distribuídos com 29% na
cor branca, 14% de parda clara, o que significa a presença de oficiais
revestidos de caracteres mais próximos do caucasoide; no meio do continuum da
escala cromática, a cor morena tem 14%, e os de cor parda escura, 21%,
entretanto, os oficiais pardos escuros, na realidade, não foram efetivados como
titulares da função; e não se registra nenhum oficial de cor preta nomeado para
chefia da Casa Militar do Governo da Bahia, em três décadas e meia.
Aqui podemos apontar que existe uma tendência negativa para a presença dos
oficiais mais escuros na chefia da Casa Militar. Há um efeito através do
sistema de valores e dos padrões estéticos que demandavam para qualificação da
aparência, que talvez não se coadune com um mestiço de traços negroides, como
aponta um informante:
Esse lá é padrão diferente. Lá é... Isso sempre foi observado, não
sei se pela tradição lá na Casa Militar, mas sempre foi colocado como
um local de representação. Num local de representação, você não tem
negro. Não existe isso, essa cultura de colocar negro. O único
gabinete que você vai encontrar negros é no meu aqui. É cultura
geral... (Cel. PM A.J.R.S.: ex-comandante geral da PMBA).
Considerações finais
A partir dos dados construídos por esse "mapa racial", podemos verificar que a
PMBA pode ser vista como uma instituição composta por uma oficialidade mestiça.
O ingresso de indivíduos de "cor" ou mais pigmentados se inicia nos quadros de
oficiais, a partir do final da década de 60, e distribui-se ao longo dos trinta
e cinco anos, mas não significou uma absorção equilibrada dos indivíduos
oriundos dos segmentos mais populares de origem étnico-racial descendente dos
africanos.
Vimos que o ingresso de candidatos na PMBA ocorria com um processo seletivo de
forma endógena. Com a universalidade do processo seletivo, o vestibular da UNEB
e as práticas discriminatórias da "indicação" ou do "apadrinhamento", mitigadas
por algumas atitudes segregacionistas e preconceituosas como de marca,44
permitiram de forma restritiva o ingresso de indivíduos de fenótipos da cor
parda, escura e preta.
Assim, a noção de "cor" como um atributo do statussocial dos candidatos a
oficial permite associar as posições sociais que demarcavam a origem popular
dos oficiais da PMBA. Os oficiais viam na PMBA uma instituição porosa, que
sinalizava o ingresso e a mobilidade social já que um significativo número de
mestiços conseguiu ascender nas patentes e nos cargos de destaque, como o de
comandante geral.
Essa agência fardada da ordem pública tem como destaque o cargo de comandante
geral, que significa o ápice da carreira do oficialato baiano. Dentre outros
cargos ocupados pelos oficiais, a Casa Militar do governador CMG e o de diretor
e comandante da APM apresentam uma representatividade social e simbólica.
Ainda que o cargo de comandante geral seja o ápice da carreira do oficialato
baiano, não podemos deixar de registrar que as ações repressivas estão
associadas ao seu comandante e não ao governo. As ações repressivas (políticas)
contra os movimentos sociais e pelo restabelecimento pelo Estado Democrático de
Direito sempre foram, de forma ostensiva, das agências fardadas. Na
contemporaneidade, com o agravamento da violência urbana na cidade de Salvador
e das ações criminosas, medidas repressivas de combate ao narcotráfico levaram
a identificar práticas policiais violentas de agressões a cidadãos e com
"vitimizações" de inocentes.
É certo que todas essas ações instrumentais e simbólicas recaem na instituição
que tem como responsável o comandante da PMBA. Diferente do chefe da Casa
Militar, que tem atribuições de visibilidade positiva, pois não lida com a
prevenção e a repressão dos atos criminosos, nem contra os movimentos sociais;
sua ação restringe-se à proteção física do governador e da representatividade
junto às instâncias governamentais em diferentes níveis da burocracia Estatal,
portanto, não pode ser vista como um instrumento objetivado do poder Estatal, o
chefe da Casa Militar atua, diria, nos bastidores do poder.
Assim, diferentes percepções raciais podem ser atribuídas aos ocupantes desses
dois cargos. A composição racial dos oficiais que chegaram à patente de
coronel, nos anos de 1970 a 1978, 8%, foi de pardos escuros, nenhum preto, 6%
brancos e 28% pardos claros. Esses dados demonstram a consequente alocação como
uma manifestação própria do racismo brasileiro: absorver indivíduos de
caracteres mais próximos do "padrão europeu". Os indivíduos miscigenados com
traços mais afastados dos sinais diacríticos dos mais escuros são os mais
absorvidos simbolicamente da ordem racial vigente.
A representatividade e a visão de mundo dos oficiais mestiços e escuros apontam
que existiam algumas manifestações de racismo na PMBA. Foi possível, então,
identificar um resquício de uma seleção preferencial (preconceito) operada em
relação aos candidatos mais pigmentados na década de sessenta; uma escolha
promovida de forma isolada, não institucional, porém, quando o candidato tinha
traços fenótipos mais negros, se avaliava a origem social e de status do
padrinho.
A presença de indivíduos mestiços (pardos, morenos, pardos escuros) ao longo
dos trinta e cinco anos da pesquisa aponta que o ingresso na carreira de
oficial da PMBA é vista, por um considerável segmento da população baiana, como
uma alternativa de mobilidade social.
Essa opção pela Força Militar Estadual é demonstrada por alguns aspectos
atrativos: a estabilidade no emprego, a ascendência funcional, a mudança do
statuse as possibilidades reais de aquisição de outras qualificações externas à
Corporação, como cursos de graduação. Os indivíduos, os futuros oficiais
mestiços, veem na PMBA oportunidades de ascensão social, que não foram
disponibilizadas às suas gerações, como uma forma de escapar das desvantagens
sociais, culturais e simbólicas.
Assim, este estudo permite apontar a PMBA como uma instituição composta de
oficiais mestiços. A restritiva presença do preto e a baixa representatividade
dos pardos escuros repercutem na ocupação dos cargos de destaque na Força
Militar Estadual, o cargo de comandante geral com menor restrição pelas
características da hierarquização social e simbólica, já o cargo de chefe da
Casa Militar do governador da Bahia mantém o tradicional sistema de statuse
raça, como a cor e o "fino trato", como representações do legado da civilização
europeia.
Texto recebido em 10/10/2010 e aprovado em 28/6/2011
1 Este artigo é uma versão de parte de minha dissertação de mestrado "Farda
& cor: mobilidade nas patentes e racismo na Polícia Militar da Bahia"
(Universidade Federal da Bahia, 2008).
2 Utilizo o conceito de cor associado aos traços fenótipos, à tonalidade da
pele, com destaque para os descendentes de africanos, e que remete a um status
inferior que produz preconceitos com suas crenças prévias nas qualidades
morais, físicas e psicológicas; criam uma desvantagem competitiva geracional
para os negros e seus descendentes. Quanto à cor, ver, por exemplo, Antonio
Sergio Guimarães, "'Raça", racismo e grupos de cor no Brasil", Estudos Afro-
Asiáticos, n. 27 (1995), pp. 45-63; sobre mobilidade, ver
Carlos Hasenbalg e Nelson do Vale Silva, Estrutura social, mobilidade e raça,
Rio de Janeiro: IUPERJ/Vértice, 1988.
3 Oliveira Vianna, Evolução do povo brasileiro, Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio / São Paulo: Editora Nacional, 1933; Raimundo Nina
Rodrigues, Os africanos no Brasil,Brasília: Universidade de Brasília, 2004. Destacamos estes autores por entenderem raças como
antropologicamente distintas, hierarquizando-as, e onde aparecem, entre outros
atributos, a descendência e a moral numa perspectiva eugênica.
4 Para uma análise das combinações das teorias de interpretação do darwinismo
social e da perspectiva evolucionista e monogenista no Brasil, ver Lílian
Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil 1870-1930, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
5 Gilberto Freire, Casa grande & senzala, Rio de Janeiro: José Olympio,
2000.
6 Roberto da Matta, Relativizando: uma introdução antropologia social, Rio de
Janeiro: Ed.Rocco, 1987.
7 Donald Pierson, Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial, São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971, pp.198-209.
8 Roger Bastide e Florestan Fernandes, Brancos e negros em São Paulo: ensaio
sociológico sobre aspectos da formação, manifestação atuais e efeitos do
preconceito de cor na sociedade paulistana, São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1956.
9 Pierre L. Van Den Bergh. Race and Racism (A Comparative Perspective), Nova
York: [s.e.], 1967.
10 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, São
Paulo: Ática, 1978. Luiz de A. Costa Pinto, O negro no Rio de
Janeiro: relações de raça numa sociedade em mudança, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
1998.
11 Hasenbalg e Vale Silva, Estrutura social, mobilidade e raça. Esta obra e outras de Hasenbalg permitem verificar que a categoria
raça deixa de ser vista como rígida e imutável, mas fluida e dinâmica, que
opera com mecanismos de inclusão e exclusão contra os não brancos, como
apontaram Jefferson Bacelar em A hierarquia das raças: negros e brancos em
Salvador, Salvador/Rio de Janeiro: Pallas, 2001; e Paula
Cristina da Silva, Negros à luz dos fornos: representações do trabalho e da cor
entre metalúrgicos baianos, São Paulo: Dynamis Editorial / Bahia: Programa A
Cor da Bahia, 1997.
12 Thomas Skidmore, O Brasil visto de fora, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994; Guimarães, "'Raça', racismo e grupos de cor no Brasil", pp.
45-63.
13 Jerry Dávila, Diploma de brancura: política social e racial no Brasil 1917-
1945,São Paulo: UNESP, 2006.
14 Antonio Sergio Guimarães, Classes, raças e democracia, São Paulo: Fundação
de Apoio à Universidade de São Paulo, 2002; Carlos
Hasenbalg,Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2005.
15 Iacy Maia Mata, "Os'treze' de maio: ex-senhores, polícia e libertos na Bahia
no pós- Abolição (1888-1889)" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da
Bahia, 2002).
16 Martha K Huggins, Polícia e política: relações Estados Unidos / América
Latina, São Paulo: Cortez, 1998.
17 Para uma consulta das modificações na estrutura da PMBA e sua legislação
própria, ver Roberto Aranha, Legislação Policial Militar, São Paulo: Garamond,
2003.
18 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, In: James Alberto
Siano (org.), (São Paulo: Rideel, 2000). A competência das
polícias militares está prevista no § 4º, 5º do Art.144 da Constituição
Federal; o ingresso no serviço público está previsto no inciso II do Art. 37,
do mesmo diploma legal.
19 "Pedido" significava uma solicitação pessoal de um padrinho político ou
pessoa ligada aos integrantes da PMBA, que desejavam patrocinar o ingresso de
um parente/pessoa de sua relação por meio das formas relacionais.
20 Olívia Maria Gomes da Cunha, Intenção e gesto pessoa, cor e a produção da
(in) diferença no Rio de Janeiro, 1927 1942, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2002.
21 Estas impressões sociais das imagens nas fotografias mostram a forma sutil e
sub-reptícia da carga dos marcadores raciais, como a cor da pele, a textura do
cabelo, os formatos dos lábios e do nariz, que estruturam a hierarquia racial
brasileira, como destacam: Antonio Sergio Guimarães, Preconceito e
discriminação, São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo/Ed. 34,
2004; Marvin Harris, Padrões raciais nas Américas, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira,1967; Donald Pierson, Brancos
e pretos na Bahia: estudo de contato racial, São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1971.
22 Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro, pp. 87-124.
23 Thales de Azevedo, As elites de cor numa cidade brasileira: um estudo de
ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio, Salvador: EDUFBA/
EGBA, 1996. Segundo o autor, a Polícia Militar era mais
acessível aos indivíduos de cor na constituição da tropa, e a alguns mulatos e
pretos, devido à "promoção primitiva", ou seja, à indicação política, permitia-
se que ascendessem ao oficialato, o que ficou mais difícil quando jovens de cor
branca passaram a ver a carreira de oficial adquirir prestígio.Ver, em
particular, pp.100-102.
24 As fichas do Serviço de Identificação da PMBA trazem caracteres físicos
individuais, como o registro da filiação, naturalidade, estado civil, posto ou
graduação, caracteres de cútis, barba, olhos, tipo de cabelos, bigode, altura e
anomalias, registradas pelo responsável pela identificação. Essa ação pode
recair para um oficial ou praça da Corporação. Utilizamos primeiro as atas de
formatura dos alunos da Academia da Policia Militar para produzir um "mapa
racial" da PMBA.
25 Jocélio Teles dos Santos, "De pardos disfarçados a brancos poucos claros:
classificações raciais no Brasil dos séculos XVIII-XIX", Afro-Ásia, n. 32
(2005), pp.115-37.
26 Ver, por exemplo, Harris, Padrões raciais nas Américas; Pierson, Brancos e
pretos na Bahia, pp.198-209; Edward Telles, Racismo à
brasileira: uma nova perspectiva sociológica, Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2003; Charles Wagley, Race et classe dans lê Brésil rural,
Paris: Unesco, 1952; Guimarães, Preconceito e discriminação,
p. 25.
27 Azevedo, As elites de cor numa cidade brasileira, p. 101.
28 Telles, Racismo à brasileira,pp.104-8. Nessa obra, o autor
discute as contradições, a fluidez das categoriais raciais do Brasil,
construídas pela incerteza da miscigenação, o ideal do branqueamento, que se
apresenta na população, a associação à cor (traços fenótipos), às subcategorias
raciais, além do status do individuo.
29 Bacelar, A hierarquia das raças, pp.188-195.
30 A Carta Patente prevista no Decreto n. 29.036, de 10 de agosto de 1992, é o
documento expedido ao oficial quando promovido ao primeiro posto dos
subalternos (tenente) e ao primeiro posto de superior, o qual reconhece os
direitos, a honra, as regalias e as vantagens da carreira.
31 Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo: Perspectiva,
1974.
32 Carlos S. Hasenbalg, Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.
33 Oracy Nogueira, Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais, São
Paulo: T.A. Queiroz, 1985.
34 Guimarães, Preconceito e discriminação, pp. 23-7.
35 As promoções na PMBA decorrem dos critérios de antiguidade (classificação
por mérito intelectual no curso de formação) e merecimento (desempenho
profissional), após julgamento da comissão de promoção são referendadas pelo
governador do Estado. Para concorrer ao posto de coronel, observa-se apenas o
critério de merecimento.
36 Major Oséas Moreira de Araújo,Notícias sobre a Polícia Militar da Bahia no
século XIX,Salvador: Polícia Militar da Bahia, 1997.
37 Carlos F. Linhares de Albuquerque, "Escola de Bravos: cotidiano e currículo
numa Academia de Polícia Militar" (Dissertação de Mestrado, Universidade
Federal da Bahia, 2000).
38 Celso de Castro,O espírito militar: um antropólogo na caserna, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
39 Bourdieu,O poder simbólico, pp. 7-16.
40 Jerry Dávila,Diploma de brancura: política social e racial no Brasil 1917-
1945, São Paulo: Ed. UNESP, 2006, pp.147-98.
41 Edward Telles, "Identidade racial, contexto urbano e mobilização política".
Afro-Ásia, n. 17 (1996), p.126.
42 Apud Nelson do Valle Silva, "Updating the Cost of Not Being White in
Brazil", in Pierre M. Fontaine (org.) Race, Class and Power in Brazil (Los
Angeles: UCLA Center for Afro-American Studies,1985), pp. 42-55; Peggy Lovell, Income and Racial Inequality in Brazil(Tese de
Doutorado, Universidade da Flórida,1989).
43 Roberto Aranha, Legislação Policial Militar. Ver, em particular, o Decreto
nº 834, de 19/12/1991.
44 Nogueira, Tanto preto quanto branco, pp.79-80.