A experiência afro-americana numa perspectiva comparativa: a situação atual do
debate sobre a escravidão nas Américas
Gostaria de retomar um tema que tem sido muito negligenciado nas discussões
recentes sobre a diáspora africana nas Américas, que é a comparação das
diferenças e semelhanças entre os regimes escravistas e sua influência na
integração pós-abolição de africanos e afro-americanos. Este é um tema que
remonta aos primeiros estudos modernos sobre africanos nas Américas. De
Fernando Ortiz, em Cuba, a Nina Rodrigues, no Brasil, verificou-se, em geral,
uma percepção entre os estudiosos latino-americanos de que houve diferenças na
forma como os africanos foram integrados nessas diversas sociedades.1
Estudiosos norte-americanos, como Donald Pierson, Frank Tannenbaum, Stanley
Elkins e Carl Degler, tentaram colocar a experiência dos Estados Unidos nesse
quadro comparativo.2 Durante algum tempo, entre as décadas de 1940 e 1970,
verificou-se que a análise comparativa ensejou algumas interessantes questões e
debates sobre instituições, culturas e organizações sociais.3 Mas esse debate
desapareceu com a rejeição dos estudos comparativos na historiografia norte-
americana, por um lado, e, por outro, com a concentração da historiografia
latino-americana em detalhados estudos locais. Ambos os movimentos
negligenciaram o retorno à questão comparativa.
No passado, para os autores latino-americanos, o duro racismo dos Estados
Unidos, no período pós-escravidão, resultara de um regime escravista mais
restritivo do que outros nas Américas. O modelo bir-racial encontrado nos
Estados Unidos, o sistema legal racista extremamente severo do século XIX, a
que Ortiz se referiu como a "lei de ferro da escravidão",4 a duradoura
hostilidade para com os negros libertos e sua marginalização entre as pessoas
livres, no sul do país, na era segregacionista, foram tomados no sentido de que
os Estados Unidos seriam diferentes da maioria das sociedades latino-
americanas. Isso não quer dizer que esses autores não reconhecessem o racismo
inerente a todos os sistemas pós-escravistas nas Américas, mas que consideravam
os Estados Unidos como um caso à parte.
Quase tanta hostilidade quanto a norte-americana em relação ao ex-escravo e sua
condição de livre já pode ser percebida nas leis das colônias e estados do
norte e do sul dos Estados Unidos desde o século XVIII. Nenhum estado do sul, e
apenas alguns do norte, permitia o voto de libertos no século XIX.5 A maioria
dos estados do norte e do sul proibia liberto(a)s de se casarem com branco(a)s
e dissolvia qualquer tipo de organização negra que porventura surgisse.6 Além
disso, todos os estados adotaram a regra de um quarto de sangue se um dos avós
fosse negro ou mulato, a pessoa seria mulata , e todos os mulatos eram tratados
da mesma forma que os negros. Libertos (mulatos ou negros) não podiam atuar
como testemunhas em processos judiciais envolvendo brancos,7 eram severamente
punidos por atacar brancos, e em diversos tipos de crimes eram tratados como
escravos e podiam até ser chicoteados. Finalmente, como os escravos, receberiam
a pena capital pelo estupro de mulher branca.8 Muitos estados exigiam a saída
de escravos recém-libertos dos seus territórios,9 e a maior parte do sul e
alguns estados do norte proibiam sua migração de outros estados.10 Alguns
proibiram, ainda, o retorno de quaisquer libertos neles nascidos se os tivessem
deixado por qualquer motivo.11 Ainda em meados do século XVIII apareceram as
primeiras limitações severas à emancipação (Virgínia proibiu todas as alforrias
particulares entre 1723-1759), e até mesmo a primeira de muitas proibições
temporárias, mas totais, de alforria;12 e todos os estados do sul,
progressivamente, tornaram a concessão da liberdade mais difícil, exigindo
dispendiosos processos nos tribunais, e muitos estados proibiram a qualquer
proprietário conceder alforrias post-mortem.13 Alguns estados, como Geórgia em
1801, Mississipi em 1805, Carolina do Sul em 1820, e Virgínia em diversos
períodos, foram tão longe a ponto de exigir que somente os deputados locais
pudessem aprovar qualquer ato de liberdade, subtraindo este poder totalmente
das mãos dos senhores. Houve estados do sul que proibiram aos libertos até
mesmo o acesso ao ensino público ou a pregar uma religião.14 Ao longo do século
XIX, eles foram cada vez mais limitados na sua mobilidade profissional, com
restrições às atividades econômicas que podiam desenvolver. Em 1860, a Carolina
do Sul chegou a exigir que negros livres usassem distintivos gravados com seus
nomes, ocupação e um número de registro.15 Ao examinar essas leis, que se
tornaram cada vez mais draconianas depois de 1800, um estudioso concluiu que
os brancos tinham empurrado os negros livres para um lugar de
permanente inferioridade jurídica. Como os escravos, os negros livres
ficaram, em geral, sem direitos políticos, foram impossibilitados de
se deslocar livremente, proibidos de depor contra os brancos, e
muitas vezes foram punidos com o chicote.16
A severidade dessas leis foi reconhecida até mesmo por estudiosos norte-
americanos, mas sua relevância para uma análise comparativa foi rejeitada. Os
ataques, após os anos setenta, à escola comparativa vieram de acadêmicos dos
Estados Unidos que, enquanto celebravam o "excepcionalismo" da história do país
em outras áreas, o negaram no caso da escravidão. O trabalho de Eugene Genovese
foi crucial neste contexto. Seu argumento foi de que os duros códigos legais
não expressavam a verdadeira natureza do sistema escravista, que teria sido na
verdade atenuado pelo paternalismo num regime que pouco se diferenciou do de
outras sociedades escravistas nas Américas.17 Outros estudiosos, como C. Van
Woodward, argumentariam que o crescimento demográfico natural da população
escrava nos Estados Unidos, contra um decréscimo nas sociedades escravistas no
resto das Américas, era clara evidência de que o tratamento dado aos escravos
foi melhor nos Estados Unidos e que, portanto, as sociedades latino-americanas
tiveram um sistema escravista mais severo.18
Mas, a existência daquelas leis nos estados do Sul deve ser explicada, e elas
de fato significaram muito sobre a realidade das ideias, crenças e ações. Elas
realmente tiveram um profundo impacto na definição da posição das pessoas
livres negras nas sociedades americanas que emergiram da escravidão. O
argumento demográfico, do melhor tratamento, desaparece quando as variações de
mortalidade e fecundidade são examinadas. Ambos, brancos e negros, no resto das
Américas, tiveram padrões de mortalidade e fertilidade diferentes dos norte-
americanos. Ademais, a intensidade do tráfico atlântico de escravos e seu
impacto sobre a idade e o sexo de africanos desembarcados, juntamente com as
diferentes condições de saúde e variadas práticas de aleitamento, influenciaram
a mais baixa fertilidade e a maior mortalidade dos escravos fora dos Estados
Unidos, o que teve pouco a ver com o "melhor" ou "pior" tratamento da população
escrava.19 A escravidão foi torpe e brutal em todas as sociedades, e o trabalho
arrancado de todos os escravos em toda parte foi duro e muito mais exigente do
que se exigiu de trabalhadores assalariados livres. Foi também em geral
arrancado, indiscriminadamente, pelo uso de castigos corporais.
Esta falsa concentração no suposto "melhor" ou "pior" tratamento aos escravos
tirou o foco das instituições e as práticas sociais e econômicas e levou a uma
rejeição total da escola comparativa como um modelo viável de debate
historiográfico, pelo menos na historiografia norte-americana. Exceto pelas
tentativas de lidar com "comunidade escrava" numa perspectiva comparativa,20 há
poucas novas discussões sobre este tema, com a assunção pela maioria dos
estudiosos na América do Norte de que todos os sistemas escravistas foram
iguais e que, de algum modo, os latino-americanos foram "piores".21
Eu argumentaria que, de fato, existiram importantes diferenças entre os regimes
escravistas nas Américas, e essas diferenças tiveram importantes consequências
sociais, econômicas e políticas para as populações afro-americanas. Vamos
iniciar esta análise comparativa examinando o que é semelhante em todos eles.
Para começar, quase todos os principais sistemas escravistas criados nas
Américas tiveram a mesma finalidade econômica. Num mundo onde a terra era
barata e o trabalho era caro, e para onde o trabalhador europeu não se sentiu
atraído pela realidade salarial americana, os africanos foram utilizados como a
alternativa mais barata de força de trabalho. Mas, devido ao seu ainda elevado
custo, os africanos eram geralmente associados, na maioria dos casos, aos
setores mais avançados de exportação, produzindo, nas sociedades em pauta, para
um mercado mundial. A única variação importante nesse modelo foi a escravidão
mais doméstica e urbana praticada pelos espanhóis nas regiões fortemente
ameríndias, onde os africanos ficaram concentrados no serviço doméstico, e a
produção artesanal de bens para consumo e a exportação era feita pelos
indígenas. Escravos africanos foram usados em algumas atividades mineradoras,
na maioria ouro e cobre, mas em geral as minas de prata foram tocadas,
exclusivamente, com o trabalho indígena.
Com exceção do Caribe inglês e das Antilhas francesas, quase todas as
principais sociedades escravistas pareciam iguais, com cerca de um terço de sua
população constituída por escravos e outro terço por pessoas livres que
possuíam escravos. Embora a maioria dos senhores tivesse apenas um escravo, a
norma da propriedade escravista era da ordem de cinco a dez escravos por
proprietário, e seu tamanho médio no setor agrícola-exportador era de
aproximadamente 50 a100 escravos. Foram as ilhas açucareiras não-hispânicas que
se destacaram como diferentes, com uma maioria da sua população escravizada em
propriedades agrícolas com várias centenas de escravos.22
Mas houve pouca diferença na organização do trabalho escravo nas lavouras de
exportação. Todas elas, independentemente do seu produto ou tamanho,
organizaram o trabalho de forma semelhante. Os trabalhadores eram agrupados com
base na idade e capacidade física, independentemente do sexo. Esses grupos de
trabalho rural eram supervisionados por feitores que administravam as tarefas
rotineiras com o uso de chicotes, criando as chamadas "fábricas no campo", um
tipo próprio de organização do trabalho. Nesses grupos, mulheres e homens,
igualmente, executavam as tarefas básicas do plantio, manutenção e colheita das
culturas. Além do campo, todos tinham algum trabalho a fazer alhures, não
importando a idade ou o sexo. Esses sistemas de trabalho escravo foram
incomuns, com uma população economicamente ativa maior do que todas as
populações trabalhadoras da época, na ordem de 80% de todos os escravos
ocupados todo o tempo em alguma função econômica, em comparação com os cerca de
50-60% entre a maioria dos camponeses das sociedades de então.23
Havia, é claro, diferenças nos regimes agrícolas baseadas na tecnologia de
produção. O açúcar teve um regime de trabalho mais duro para os escravos do que
o café, as lavouras que tinham três safras anuais exigiam mais trabalho do que
aquelas que tinham duas ou menos, e assim por diante. Algumas culturas, como o
açúcar, necessitavam de uma grande quantidade de trabalho técnico e outras,
como o tabaco e o café, demandavam poucas tarefas especializadas para chegar ao
produto final, e isso influenciaria os níveis relativos de qualificação na
população escrava. Todos os regimes tenderam a reservar o trabalho qualificado
nas plantações para os escravos do sexo masculino, embora no trabalho fora das
plantações as mulheres escravas realizassem uma grande variedade de atividades
qualificadas, sendo especialmente importantes no setor têxtil e no comércio.
Esses regimes de trabalho servil rural, portanto, compartilham características
comuns em todas as sociedades, e um viajante do século XIX teria notado pouca
diferença, exceto nas rotinas de execução das tarefas, nas plantações de
qualquer lugar nas Américas.
Embora o trabalho em grupo e a disciplina dos escravos fossem semelhantes em
toda parte, há ainda algumas importantes diferenças econômicas entre esses
regimes escravistas. O nível de habilidade e a disponibilidade de tais
ocupações qualificadas para os escravos muitas vezes dependia da relativa
escassez ou da oferta da mão de obra branca ou indígena. Se os negros e os
mulatos, livres e cativos, fossem maioria entre trabalhadores em uma dada
sociedade, eram frequentemente melhor treinados para as tarefas que exigiam
habilidades, do que nas sociedades onde havia a concorrência de artesãos
brancos. Nessas sociedades, que não tinham a concorrência de grandes grupos de
trabalhadores brancos, índios ou mestiços livres, e que podiam importar um
grande número de africanos, era mais comum encontrar escravos em muito mais
ocupações do que naquelas em que havia mais competição de trabalho não-negro. O
Brasil, é claro, destaca-se como um ótimo exemplo onde os cativos podiam ser
encontrados em praticamente todas as ocupações e em todos os níveis de
habilidade. Havia até escravos marinheiros afro-brasileiros e africanos nas
tripulações de navios indo para a África para adquirir escravos.24 Mas em todos
os centros urbanos da América Latina, desde o século XVI até o início do XIX,
afro-latino-americanos encontravam-se bem representados na maioria dos
principais ofícios e, embora provavelmente estivessem mais propensos a serem
aprendizes e diaristas do que os trabalhadores brancos, eles foram também
considerados mestres em muitos ofícios.25
Tão importante quanto o capital humano envolvido nesses ofícios, era a
necessidade dos donos de escravos de oferecer recompensas para obter um bom
serviço. Como vários estudos da escravidão moderna e clássica têm mostrado, o
trabalho não qualificado era rotineiro e controlado pela força, de modo a
produzir ganhos com relativa eficiência. Mas o trabalho especializado não pode
ser rotinizado e nem o trabalhador chicoteado para ser obediente.26 Assim, em
Minas Gerais, escravos mineiros itinerantes, que trabalhavam sozinhos à procura
de aluviões de ouro, foram pagos nesse metal e autorizados a comprar sua
liberdade, enquanto os escravos utilizados nas conhecidas jazidas operadas por
sistemas hidráulicos trabalhavam em grupos e não recebiam qualquer tipo de
incentivos.
Esta abertura do mercado de trabalho para escravos e pessoas livres de cor faz
uma diferença crucial no funcionamento de regimes escravistas, uma vez que em
um país como o Brasil, por exemplo, apenas cerca de um terço dos escravos
estavam nas fazendas e engenhos, de acordo com o primeiro censo nacional de
1872, enquanto a maioria se encontrava em atividades variadas, de trabalho
urbano não qualificado à produção agrícola rural, do transporte de mulas à
pesca de baleia.27 Muitos trabalhavam em unidades familiares, com as famílias
dos próprios senhores, ou ao lado de lavradores livres. Esse mesmo modelo
também podia ser encontrado em Cuba e Porto Rico.28 Tudo isso contribuiu para
um mercado de trabalho mais complexo do que na América do Norte. Embora os
escravos rurais permanecessem relativamente isolados, em qualquer outro setor
trabalhadores escravizados podiam ser encontrados misturando-se com
trabalhadores livres negros, branco, índios e mestiços. Assim, a importância
relativa do trabalho escravo rural e urbano é tão relevante na determinação do
uso ocupacional destinado aos escravos quanto o é o trabalho, agrícola ou não,
na determinação dos tipos de ocupação na zona rural. Em termos de emprego do
trabalho escravo e de concentração na grande lavoura, os Estados Unidos eram
mais parecidos com o Caribe não-hispânico do que com os outros regimes
escravistas do continente americano e das ilhas hispânicas.29
Os escravos eram utilizados em todas as tarefas imagináveis e necessárias para
o funcionamento dessas sociedades. Eles eram, em grande número, alugados,
empregados como aprendizes, e tinham até mesmo permissão para viver por conta
própria. Embora o aluguel de escravos e a escravidão urbana existissem nos
Estados Unidos, ocorreram em menor escala do que na maioria dos países latino-
americanos, e tornaram-se progressivamente mais reduzidos ao longo do tempo.
Além disso, enquanto nos Estados Unidos o controle do governo e dos senhores
sobre os escravos urbanos tornou-se cada vez mais rigoroso no século XIX,
parecia ficar cada vez mais frouxo na América Latina como o passar do tempo. Os
governos municipais na América Latina estavam sempre reclamando da negligência
dos senhores urbanos em disciplinar, abrigar e alimentar seus escravos, mas
pouco foi feito para controlá-los.30 Em contraste, na América do Norte
oitocentista houve um controle eficaz e crescente do Estado sobre a vida dos
escravos urbanos, que ficaram restritos a morar nas casas de seus senhores.31
Essas mudanças não estiveram relacionadas com eficiência econômica. De fato,
economicamente, era mais eficaz permitir ao trabalho escravo na cidade a maior
mobilidade possível para que fosse rentável. Permitir aos escravos fazer
contratos, organizar as próprias moradias, o vestuário e os alimentos, reduzia
os custos de manutenção para os proprietários. Reduzir o espaço de manobra dos
proprietários, aumentar as suas despesas de manutenção, tudo em nome da
segurança, foi de fato uma má política econômica. Invertendo o modelo de
Elkins, que fala da "dinâmica do capitalismo sem oposição" nos Estados Unidos,
poderíamos dizer que Brasil e Cuba foram as verdadeiras sociedades
capitalistas, e que os Estados Unidos estavam dispostos a sacrificar a
racionalidade econômica a outros fins preferenciais, neste caso, controle
social.
Como o Estado e suas leis responderam a essas emergentes e diferentes
realidades americanas? Todos os sistemas legais escravistas têm muito em comum.
Como Orlando Patterson demonstrou, todos eles têm que legalmente destruir os
direitos dos escravos para que estes sejam economicamente "móveis": em toda
parte, os senhores puderam disciplinar seus escravos, usá-los em qualquer
ocupação que quisessem, e vendê-los a alguém. Em todos os casos, os seus
direitos como senhores eram apoiados pelo Estado.32 No entanto, quando chegou o
século XIX, algumas diferenças emergiram nos regimes escravistas americanos. A
maioria dessas diferenças desenvolveu-se a partir de práticas consuetudinárias
que alteraram os direitos dos proprietários de escravos. Se os escravos
vivessem por conta própria e provessem seus senhores com uma renda, tinham que
fazer contratos e cuidar de suas próprias finanças. Embora como escravos não
pudessem, legalmente, ter propriedade ou fazer contratos, os escravos urbanos
e, mesmo em menor número, também do campo , de fato, tenderam a ter
propriedades e a fazer contratos independentemente de seus senhores. Em todas
as propriedades rurais, escravos produziam muito dos seus próprios alimentos e,
com frequência, vendiam para ambulantes que circulavam em torno das fazendas e
engenhos uma questão bastante comentada acerca de Cuba. Assim, escravos vendiam
alimentos e outros bens que produziam nos seus próprios lotes, embora não
tivessem direitos legais para fazê-lo. Na verdade, se não de direito, estas
hortas eram muitas vezes consideradas propriedade dos escravos que as
cultivavam. Escravos que possuíam propriedades ou poupança logo seriam
autorizados pelo Estado a comprar a liberdade, um sistema que evoluiu do
direito consuetudinário para logo se tornar plenamente elaborado nos códigos
escravistas locais. No Brasil e em Cuba, a compra da própria alforria era um
ato comum que, com o tempo, ganhou suporte legal. A partir de 1871, com a
chamada Lei do Ventre Livre, o escravo no Brasil podia comprar sua alforria,
mesmo contra a vontade do senhor, e foi autorizado a acumular dinheiro para
tal. Este foi o caminho principal para a liberdade de escravos africanos e
crioulos, e a compra da própria alforria representou cerca de um terço de todas
as alforrias.33 A alforria também foi facilitada por vários meios legais, desde
testamentos e legados, reconhecimento de paternidade na pia batismal, a cartas
formais de liberdade, e foi considerada uma parte normal do sistema escravista
nessas sociedades.34
Parece que, no século XVIII, todos os sistemas escravistas nas Américas
produziram aproximadamente a mesma proporção de escravos alforriados. Em todas
as sociedades, pais libertaram filhos e parceiros afetivos escravizados, e
senhores, por razões religiosas ou morais, libertaram escravos, pois a
lealdade, muitas vezes, era recompensada com a alforria. A compra da própria
alforria se verificou em todos os regimes escravistas. Tudo isso começou num
ritmo lento e produziu uma modestamente crescente classe de pessoas de cor
livres. Mas, no século XIX, algumas sociedades escravistas começaram a fechar
esses caminhos para a alforria, enquanto outras progressivamente ampliaram o
direito de compra e incentivaram outros processos de alforria. As leis e os
tribunais aceitaram todos esses procedimentos de alforria e os protegeram. Por
sua vez, em alguns lugares, esses incentivos legais para a alforria levaram a
uma expansão cada vez mais rápida da população de cor livre, que logo excedeu a
de escravos no século XIX. Até o primeiro censo nacional do Brasil, em 1872,
dezesseis anos antes da Abolição, por exemplo, havia 4,2 milhões negros e
mestiços livres e apenas 1,5 milhões de escravos. Para os Estados Unidos em
1860, os valores foram invertidos com quase quatro milhões de escravos e menos
de meio milhão dos livres de cor. Em nenhuma outra importante sociedade
escravista foram eles tão numerosos e tão importantes quanto no Brasil. Mas, em
todo o mundo ibero-americano, na primeira parte do século XIX, eles ou se
igualaram em número aos escravos ou rapidamente ultrapassaram-nos em
importância. Nada disso aconteceu nas nações e colônias francesas ou
inglesas.35
Na América do Norte, a legislação do século XIX progressivamente restringiu
esse processo de alforria e tentou isolar, e até mesmo expulsar, os negros e
mulatos livres e libertos de seus territórios. Senhores foram progressivamente
restringidos no seu direito de alforriar escravos dentro das fronteiras
americanas, nenhuma sustentação legal foi dada aos acordos de compra de
alforria, e para os afro-americanos livres havia cada vez mais restrições, e
até a mobilidade física foi cerceada.36 Essa legislação foi bem-sucedida, e
essa população foi mantida numa proporção baixa em relação ao que era antes de
1860. Além disso, mais da metade dessas pessoas viviam fora dos estados
escravistas do sul. Estima-se que em 1860, apenas 3% da população livre nos
estados do sul eram negros e mulatos libertos ou livres.37 Esse medo crescente
de alforria, que foi dominante nos Estados Unidos, no século XIX, tem, até
agora, recebido pouca atenção e vale a pena ser estudado. Já se sugeriu que
essa hostilidade em relação aos libertos era vista como um reforço à
legitimidade do sistema escravista pelos agricultores norte-americanos, que
foram aos poucos elaborando a defesa da escravidão como única condição adequada
para afro-americanos. Por que outras sociedades escravistas não perceberam isso
da mesma maneira? Por que uma grande e emergente classe de cor livre na América
Latina não ameaçou as tradicionais relações senhor - escravo?
Uma grande parte dessa diferença de atitudes para com os libertos pode ser
vista também nos diferentes papeis político, econômico e social das pessoas de
cor livres em cada uma das sociedades escravistas. Uma vez livres, os afro-
americanos desempenharam papeis muito mais importantes em suas respectivas
sociedades latino-americanas do que nas nações e colônias inglesas. Tanto na
América espanhola quanto na portuguesa (e depois no Brasil independente)
organizaram a população negra e mestiça em unidades militares coloniais e
usaram-na para lutar em guerras internacionais e rebeliões internas. Na América
espanhola, os índios foram proibidos de servir na milícia, mas unidades de
mulatos e negros foram organizadas e desempenharam papel respeitável. Em muitos
casos, essas tropas foram usadas, mesmo fora de seus territórios de origem,
pelos governos imperiais. No caso do Brasil, as unidades de pardos e pretos
eram a norma até 1830, e, mesmo após a criação de uma Guarda Nacional unificada
sob o Império, os negros foram vitais dentro da instituição militar, a exemplo
dos Voluntários da Pátria (também conhecidos como Zuavos Negros) na Guerra do
Paraguai, em meados da década de 1860. Assim, em toda a parte, aos homens de
cor livre foi concedido o direito de portar armas, e eles usaram-no para
ampliar seus próprios direitos particulares. Em todos os países os milicianos
tinham acesso privilegiado a tribunais militares, e no México eles conseguiram
escapar de impostos cobrados especificamente aos afro-mexicanos livres, assim
como aos índios. Ao mesmo tempo, uma elite de homens dessa classe adquiriu
poder como oficiais nessas unidades. Isso não quer dizer que esses militares
não tivessem sido discriminados em termos de postos no exército ou na execução
das piores tarefas. Mas, é claro que eles representavam uma parte importante do
aparelho de Estado desde o início da escravidão.38 Na verdade, muitos dos
líderes revolucionários dos movimentos de independência, no início e fim do
século XIX, em países como México e Cuba vieram dessa classe.
A população afro livre na América Latina teve poucos obstáculos à sua
mobilidade geográfica, os mesmos que todas as pessoas livres dentro de suas
sociedades. No Brasil, deslocaram-se livremente entre áreas urbanas e rurais, e
de província para província, como evidenciado pelos registros judiciais da
época. As restrições draconianas à mobilidade geográfica desenvolvidas na
América do Norte no século XIX não ocorreram na América Latina. Aqui as pessoas
livres, independentemente da cor, podiam morar em qualquer lugar em que
pudessem se dar ao luxo de viver. Estudos sobre padrões residenciais, em
cidades como México e San Juan de Porto Rico, também têm demonstrado que negros
livres moravam ao lado e, muitas vezes, misturados com famílias de brancos e
mestiços, e era tão comum para eles alugar cômodos em suas casas para brancos,
como era, muitas vezes, para os brancos alugar quartos para eles.39 Embora os
guetos urbanos dos Estados Unidos sejam usualmente tidos como originários da
era pós-abolição, é, no entanto, revelador que nenhuma mistura sistemática de
raças em moradias individuais tivesse sido apontada nos Estados Unidos.40
Todas as ocupações estavam abertas à população de cor livre, à exceção daquelas
tipicamente da elite, e mesmo as restrições a estas diminuíram ao longo do
período colonial e foram totalmente eliminadas no século XIX nas repúblicas
latino-americanas. De Lima à Cidade do México, há inúmeros exemplos de pessoas
dessas camadas que obtiveram autorização régia para se estabelecer em ocupações
de elite que lhes eram oficialmente negadas. Isso incluía desde posições no
governo e na Igreja, até ofícios mecânicos a elas vetados por lei.
Uma minoria das pessoas negras e mestiças livres até possuía escravos, um
fenômeno que ocorreu em todas as sociedades escravistas, incluindo os Estados
Unidos.41 No caso do Brasil, onde esses senhores pardos e negros têm sido bem
estudados, eles representavam uma significativa minoria entre os proprietários
de escravos, na maior parte das regiões, e eram em sua maioria artesãos
trabalhando em pequenas oficinas. Neste contexto, as mulheres eram um
protagonista muito significativo entre esses proprietários de escravos. Nos
Estados Unidos eles representavam uma proporção muito menor dos proprietários
de escravos do que no Brasil.42
Os escravos e as pessoas de cor livres e libertas, nas áreas rurais e urbanas
da América Latina, se misturavam mais ou menos livremente com os brancos.
Embora a maioria das manifestações religiosas africanas, como o candomblé e a
santeria, fossem semiclandestinas no período escravista e muitas vezes
violentamente reprimidas, havia inúmeras festividades e outras manifestações
públicas onde negros e brancos se misturavam, e encontramos até escravos
aparecendo nesses locais. Os registros judiciais da América Latina estão cheios
de escravos que conviviam com os brancos e pessoas de cor livre nas numerosas
tabernas, que eram importantes locais de sociabilidade. Há também numerosos
casos de escravos fugindo para as cidades para viver como livre, embora também
acontecesse que gente negra livre ou liberta fosse frequentemente tomada por
escravo e como tal perseguida e presa.
Embora tenha sido sugerido que as rebeliões de escravos foram mais numerosas e
mais violentas na América Latina do que na América do Norte, estes eventos
foram poucos e distantes uns dos outros na maioria das sociedades escravistas.
Além disso, escravos fugitivos eram comuns em todos os regimes escravistas.
Mas, no que as sociedades da América Latina, e até mesmo do Caribe, diferem da
América do Norte é no tamanho e extraordinário número de quilombos, nas
primeiras, e sua escassez nesta última. O mapa do Brasil está repleto de
dezenas de locais chamados quilombo, e as comunidades de cimarones, por toda a
América espanhola e ilhas do Caribe, foram muito importantes e numerosas. As
causas para a importância relativa dessas comunidades fora da América do Norte
foram principalmente as condições ecológicas, tais como terrenos montanhosos
com vegetação tropical e semitropical, onde comunidades isoladas podiam se
manter com sucesso. Também o constante desaparecimento de escravos no seio da
população negra livre era muito mais comum na América Latina do que na América
do Norte, devido à existência, naquela, de grandes afro-comunidades livres, e
de mais centros urbanos, que deram cobertura significativa aos escravos
fugidos. Além disso, uma vez estabelecidas ao longo de várias gerações, a
maioria dos quilombos, de fato, converteram-se em comunidades agrícolas
autônomas e se tornaram parte da paisagem do mundo rural livre.
Possivelmente devido à sua importância econômica, ou a sua incapacidade de
influenciar seriamente a política das elites, aos negros e mestiços livres
fosse oferecida uma ampla gama de direitos que lhes foram negados na América do
Norte. Eles podiam votar mas no Brasil somente se nascidos ali, e não na África
se tivessem renda ou propriedade que os qualificasse para tal, portar armas,
viver onde pudessem encontrar trabalho e moradia e, por volta do século XIX,
tiveram poucas restrições em suas profissões ou oportunidades educacionais.
Embora o Estado tivesse às vezes tratado mais duramente os negros e pardos
livres do que seus pares mestiços e brancos, eles, no entanto, foram tratados
de forma bastante diferente de seus irmãos escravos.43 Eles podiam comparecer
diante de um tribunal, como testemunhas e como querelantes, e fazer contratos
legais. Como Tannenbaum costumava dizer, eles foram "cidadãos" em todos os
países, formados ao longo do Oitocentos, em que viveram.44
Isso não quer dizer que negros e mestiços fossem iguais aos brancos, ou que não
existisse qualquer tipo de discriminação dos que nasceram livres em relação
àqueles que foram libertados ao longo de suas vidas e seus descendentes. A
imensa maioria dos negros libertos saiu da escravidão sem uma poupança, e levou
consigo somente o capital humano em termos de conhecimento, idiomas e
habilidades para o trabalho. Assim, formaram a base da camada de pobres em
todas as sociedades latino-americanas, posição que compartilharam com uma
minoria de brancos empobrecidos e mestiços. Tem sido sugerido, em estudos sobre
a Cidade do México, por exemplo, que a discriminação entre os pobres era
bastante limitada e a cor uma marca muito fluida que podia mudar no decorrer de
uma vida. Para aqueles que subiam na escala econômica e social, a discriminação
claramente se acentuava tanto quanto mais alto subissem.45 Os casos de filhos
processando pais pelo direito de casar, no final do século XVIII, na América
espanhola, mostram que os brancos que ocupavam uma posição intermediária na
sociedade foram altamente discriminadores em relação aos negros e mulatos.46 No
seio da própria elite, se um negro ou mestiço chegasse tão longe e bem poucos
fora das Antilhas francesas chegaram a essas posições elevadas a discriminação
era provavelmente menos pronunciada, uma vez que a classe formava uma barreira
muito mais rígida do que a raça. Mas mesmo esse status não garantia igualdade,
e os lavradores de cor livres de Saint Domingue (futuro Haiti) enfrentaram uma
amarga hostilidade da elite rural branca, o que foi um dos principais fatores
que preparam o caminho para a rebelião de escravos de 1791.47 Não se tratava de
uma elite branca amedrontada a atacar gratuitamente os de cor como um elemento
perigoso a suas sociedades, como ocorreu no caso da suposta conspiração de La
Escalera, em Cuba, no início da década de 1840.48 A cor era claramente um
indicador de status na sociedade latino-americana, mas a definição de classe,
status e de identidade envolvia mais indicadores do que apenas a cor da pele.
Isso constituiu um nítido contraste com os Estados Unidos e as colônias
inglesas, onde a cor da pele era a única marca usada para discriminar as
pessoas, tornando assim mais fácil o funcionamento do preconceito.
E quanto à vida religiosa e social dos escravos e das pessoas livres de cor?
Embora os países católicos batizassem os escravos africanos, desde os primeiros
dias de sua chegada nas Américas, a Igreja teve um impacto apenas moderado
sobre seus cotidianos. Descanso nos feriados religiosos e domingos eram
geralmente obrigatórios, e a muitos escravos eram ensinados os princípios
básicos do cristianismo. Não houve nenhuma hesitação da Igreja romana na
incorporação dos africanos como seus membros, em contraste com as igrejas
protestantes que retardaram a aceitação destes por um longo tempo. Todos os
escravos recebiam os sacramentos e participavam dos rituais da Igreja, desde
que um sacerdote estivesse acessível a eles. Mas havia relativamente poucos
padres e em geral a vida do escravo cruzou apenas moderadamente com a
eclesiástica, especialmente nas áreas rurais. Mas a Igreja obrigava os feriados
e muitos católicos respeitavam esses dias sem trabalho. A Igreja foi também um
local de alforrias (na pia batismal) e há muitas evidências do seu apoio aos
escravos que eram casados. Todos os escravos tomavam parte nos sacramentos e
quase todos usavam os rituais de compadrio para reforçar laços sociais, tanto
na comunidade escrava quanto na dos livres e libertos. Finalmente, no Brasil,
há provas abundantes, na região Sudeste, de casamentos legais de escravos,
juntamente com os esforços sistemáticos da Igreja para garantir que os casais
permanecessem juntos, mesmo que filhos adolescentes não fossem sempre
protegidos da separação familiar por venda, doação, partilha ou outros métodos.
Embora casamentos de escravos pudessem acontecer no México e em outras
sociedades latino-americanas, eles foram relativamente mais importantes no
Brasil.49
Onde a Igreja teve um impacto maior foi entre as pessoas de cor livres e
libertas. Foram estas que organizaram as famosas irmandades religiosas e até
conseguiram construir suas próprias igrejas, como pode ser visto em muitas
cidades brasileiras. Toda cidade tinha uma irmandade do Rosário em algumas
cidades grandes, como Salvador, cada freguesia tinha uma e muitas eram
inicialmente referenciadas na origem africana específica de seus membros.
Estudos recentes têm sugerido que uma minoria significativa dos escravos e
negros livres eram membros dessas irmandades. Elas claramente serviram também
como eficazes sociedades funerárias, que se encarregavam dos enterros de seus
membros. Isso não quer dizer que a atividade religiosa não fosse importante nas
sociedades protestantes, mas a autonomia das irmandades foi formalmente
reconhecida pelo clero e elas eram uma parte fundamental da sociedade tanto dos
brancos quanto dos negros e mestiços livres. Como as milícias, as irmandades
religiosas também representaram importantes vias de ascensão e reconhecimento
sociais para estes setores livres e libertos, e mesmo escravos.50
É evidente que a mais longa história do tráfico da maior região escravista foi
um fator fundamental na transmissão e na sobrevivência das ideias religiosas e
dos cultos africanos na América Latina, comparada com as rotas de tráfico menos
intensas para a América do Norte.51 Mas a sobrevivência das práticas religiosas
africanas, tão importantes para as comunidades afro-americanas na América
Latina, foi também, em parte, devida à sua capacidade de "sincretizar" com as
práticas populares católicas, algo menos viável dentro da religiosidade
protestante.52
Então, o que podemos dizer, comparativamente, sobre as semelhanças e diferenças
entre todas essas sociedades? Parece-me que a maioria das grandes sociedades
escravistas continentais, até 1800, movia-se mais ou menos na mesma direção em
termos de organização do trabalho, preços de alforria, importância relativa de
escravos e senhores e dimensão das escravarias. Cuba e Porto Rico
compartilharam a maioria das características desses regimes continentais, e o
Caribe inglês e as Antilhas francesas, devido a uma invulgar estrutura
demográfica, representaram modelos bastante alternativos. Porém, depois de
1800, os Estados Unidos começaram a se mover em uma direção diferente e,
essencialmente, começaram a se opor a tendências correntes de abertura do
sistema através do aumento no número de alforrias concedidas e a incorporação
dos libertos como membros da sociedade livre.
Como isso aconteceu é fácil de ver, mas responder ao "porquê" é muito mais
complicado. Em vez de permitir a evolução econômica e social do regime
escravista, como estava ocorrendo em todos os países latino-americanos no
século XIX, a elite escravista dos Estados Unidos decidiu que o sistema tinha
que ser completamente fechado, negando aos escravos o acesso a alfabetização e
liberdade, em uma escala crescente de rigidez. Não é por acaso que os Estados
Unidos foram a única sociedade a apresentar uma defesa categórica da
escravidão.53 Pode ser que nas sociedades democráticas, elites brancas e
trabalhadores livres brancos se sentissem mais assustados com a potencial
mobilidade social e econômica das pessoas de cor livres. Esse medo do escravo
emancipado provavelmente existiu também na América Latina, mas nunca foi forte
o suficiente para criar barreiras rígidas contra o funcionamento econômico
normal das economias de mercado. O que é mais estranho nisso é que os norte-
americanos estavam lidando com uma população de ascendência africana muito
menor, e que de fato teve menos africanos do que era o padrão em outras partes
em meados do século XIX. Também não era uma população escrava ameaçada de
extinção. Os escravos norte-americanos estavam se reproduzindo em mais de 2% ao
ano uma taxa, a propósito, igual ao crescimento de negros e mestiços livres no
Brasil no século XIX de modo que nos Estados Unidos a mão de obra escrava
poderia ter perdido 1% desse crescimento com alforrias, e a escravidão e a
população escrava ainda poderiam ter sobrevivido.
Também é claro que, quando finalmente emancipado, o negro norte-americano
desempenhou um papel muito menos decisivo no mercado do que suas contrapartes
na América Latina.54 Pequenos agricultores e artesãos brancos bloquearam a
integração dos negros de várias maneiras no sul dos Estados Unidos. Mesmo após
a Guerra Civil, tem sido sugerido que o mercado de terras no sul do país
permaneceu fechado para a maioria deles.55 Se na América Latina um sistema de
auxílio mútuo mais estável garantiu a efetiva educação e a capacitação
ocupacional aos escravos, há pouca dúvida sobre a capacidade que tiveram ex-
escravos de transferir com sucesso suas habilidades profissionais para o
mercado de trabalho livre, algo que era muito mais difícil de conseguir nos
Estados Unidos, onde uma classe artesã branca se sentia ameaçada pela
competição negra. Com a restrição à sua mobilidade física, bem como uma ativa
concorrência dos brancos, e provavelmente com treinamento mais rudimentar nas
suas tarefas agrícolas, era extremamente difícil para os ex-escravos levar suas
habilidades profissionais para além da barreira da liberdade na América do
Norte.
Este fechamento de oportunidades para os ex-escravos foi ainda mais evidente
quando a emancipação final ocorreu nos Estados Unidos, em 1865. Até 1900, na
verdade, bem mais de 90% dos afro-americanos ainda residiam no sul do país e a
discriminação contra eles era onipresente.56 Em contraste, no Brasil, por
exemplo, poucos ex-escravos podiam ser encontrados no centro das áreas de café
e de engenho de açúcar nas planícies do Oeste Paulista após a emancipação,
enquanto muitos partiram em busca de terra nas regiões de fronteira ou outras
regiões agrícolas decadentes, ou migraram para as cidades em busca de emprego.
O trabalho escravo após 1888 foi completamente substituído pelo trabalho do
imigrante europeu em todas as regiões cafeeiras. Embora, obviamente, algumas
famílias de escravos tivessem permanecido nas áreas de origem, e houvesse
distritos no Brasil com índices elevados de moradores negros e pardos, os ex-
escravos podiam ser encontrados em todo lugar após a Abolição. De fato, a
mobilidade geográfica era a norma em todas as sociedades latino-americanas,
tanto antes como após a Abolição. Em contraste, a imobilidade geográfica dos
ex-escravos no sul dos EUA durou até o início do século XX.
Embora reconhecendo que os libertos, em todos os lugares, eram os mais pobres
em todas as sociedades escravistas e ex-escravistas, é, no entanto, evidente
que as leis e atitudes que promoveram ou rejeitaram a alforria, e aceitaram ou
se opuseram à mobilidade econômica e geográfica dos libertos antes da
emancipação foram cruciais em demarcar a condição dessas populações afro-
americanas muito depois do fim da escravidão. Se faz sentido este argumento
sobre as diferenças fundamentais em relação a variáveis chaves, então é
evidente que só podemos explicar as diferenças e seus fatores causais através
de trabalho comparativo mais detalhado sobre as atitudes da elite escravista
branca em cada sociedade e a natureza dos mercados de trabalho locais. O porquê
de uma classe escravista temer a mudança da condição do escravo e outro grupo
aceitar a mudança sem medo de perda de controle pode dever-se a uma série de
diferentes fatores políticos e demográficos. Regimes democráticos são mais
racistas do que os não-democráticos? As sociedades com menos imigração europeia
são mais dispostas a confiar no trabalho qualificado e não qualificado dos
afro-americanos do que aquelas que experimentaram a constante imigração de
trabalhadores livres brancos? Valores culturais católicos fazem senhores de
escravos aceitarem mais a alforria do que a cultura protestante? Como as
Antilhas francesas se encaixam nesse esquema?
Claramente, acredito que para responder a essas questões sobre diferenças
comparativas entre regimes escravistas há várias áreas que vale a pena
investigar em detalhe. Para começar, há o papel econômico dos escravos, o
capital humano que eles acumularam sob a escravidão e a disponibilidade de
papeis alternativos dentro da escravidão que pudessem permitir o acesso às
habilidades, o distanciamento do controle diário do senhor e outras formas de
autonomia social e econômica, fossem elas individuais ou coletivas, religiosas
ou civis. Ainda a ser considerada é a taxa de crescimento e a importância da
alforria e o apoio legal e eficaz que lhe foi dada pela classe senhorial.
Finalmente, precisamos considerar o papel das pessoas de cor livre bem antes da
emancipação final dos escravos. Como elas surgiram, qual a sua proporção em
relação aos brancos e escravos, onde viviam, quais e como eram as suas
instituições e comunidades, e quanto de suas habilidades aprendidas sob a
escravidão estava disponível para elas como libertas. Qual era a natureza do
racismo e como funcionou por classe e cor? Tudo isso requer um estudo da
natureza da concorrência entre brancos e negros no mercado de trabalho livre, e
da atitude da classe trabalhadora branca em relação a seus pares afro-
americanos. Também nos obriga a estudar a elite e sua atitude frente à
escravidão, os escravos e os negros livres e libertos no seu meio. Como já
defendi durante muitos anos, precisamos examinar as pessoas de cor livres no
tempo da escravidão para entender completamente os regimes escravistas. Estas
são apenas algumas das áreas a explorar, se quisermos explicar as diferenças
óbvias que existiram entre as sociedades escravistas nas Américas. Além disso,
explicar tanto as características comuns quanto as diferenças nas sociedades
escravistas americanas, e a posição dos negros e mestiços livres nestas, já
será percorrer um longo caminho para fazer entender os diferentes padrões de
integração de todos os afro-americanos no período pós-escravista.