Religião e parentesco entre os bakongo de Luanda
Este texto busca sintetizar um dos argumentos da minha tese de doutorado
centrada na recomposição social e étnica do grupo bakongo residente em Luanda.1
Ali procurei discutir as formas específicas pelas quais os bakongo em Luanda
dão conta de se reorganizar enquanto grupo, considerando suas clivagens e
diferenças internas, numa resposta estruturada a processos de transformação.
Defendi que esta rearticulação interna dos bakongo permitiu-lhes reivindicar o
direito ao reconhecimento de um lugar legítimo na sociedade mais ampla de
Luanda e de Angola.
Nesta rearticulação, o campo religioso se apresentou como a instância capaz de
mediar e integrar diferentes esferas (do parentesco, do político e do
identitário), dando sentido tanto às transformações ocorridas como também aos
processos de continuidade, entendendo que estruturas e instituições precisam
ser constantemente recriadas e construídas para que possam fazer e produzir
sentido.
Procuro questionar a ideia de que as igrejas, notadamente as pentecostais,
teriam ocupado o espaço deixado por um parentesco supostamente enfraquecido
pelos processos de modernização (migração, urbanização, economia de mercado
etc.). Meu argumento tem sido o de que as igrejas têm, no espaço urbano e
multiétnico da capital, um lugar concorrente, mas ao mesmo tempo complementar
às organizações baseadas no parentesco. Mais do que disputa ou colaboração, as
organizações religiosas participam, de formas diferentes, da própria
reconfiguração deste parentesco, bem como da rearticulação de narrativas
étnicas e nacionais.
Assim, procuro relativizar certos supostos analíticos quanto às transformações
recentes ocorridas em Angola, particularmente agravadas pela guerra prolongada,
tais como a urbanização acelerada, o espalhamento da lógica capitalista e
ampliação do contraste social, bem como os processos de globalização. Estas
mudanças, em geral, são vistas pelo prisma da "perda" e da "ocidentalização".
No caso angolano, a chamada "ocidentalização" tem sido sinalizada pela perda de
competência no manejo das línguas maternas e pela disseminação do português.
Neste contexto, os processos de afirmação identitária são percebidos pelo viés
da manipulação étnica, esvaziadas de seus "conteúdos" culturais supostamente
"autênticos" que seriam as formas de organização baseadas no parentesco,
línguas maternas, no modo de vida rural etc.
A presença das igrejas pentecostais no campo religioso ' angolano ' e africano
é interpretada como uma radicalização destes processos de mudança cultural,
isso fica claro na "demonização" da religiosidade local e pelo ataque à
eficácia e à legitimidade dos sistemas tradicionais de culto e cura, bem como
pelo distanciamento dos grupos de parentesco, rompendo sua legitimidade em prol
da comunidade de fiéis.
Minha intenção é rever a percepção que alinha urbanização à perda cultural,
chamando atenção para a continuidade dos aspectos considerados "tradicionais",
como as organizações baseadas no parentesco, o uso de línguas maternas em
diversos contextos, especialmente os rituais, e as formas múltiplas de
sociabilidade no espaço urbano como modos de articular transformação e
permanência. Procuro demonstrar esta articulação através da análise do campo
religioso e da multiplicação de igrejas, especialmente com a expansão
pentecostal, e sua imbricação com as organizações de parentesco, no caso dos
bakongo.
Os bakongo, terceiro maior grupo étnico de Angola, localizam-se na parte norte
do território, e estão presentes também na República Democrática do Congo e no
Congo Brazzaville. Nesta região emergiu o antigo Reino do Kongo, formado
provavelmente no século XIV, com o qual os portugueses estabeleceram seus
primeiros contatos na costa ocidental da África Austral, em fins do século XV.
Trato aqui dos bakongo que vivem na capital de Angola, Luanda, estimados meio
milhão de pessoas em uma cidade de quatro milhões de habitantes (2001). Formam
um grupo extremamente variado, com diferenças marcantes de classe social e de
origem regional. A diversidade interna ao grupo é marcada pela experiência de
exílio de parte deste contingente na República Democrática do Congo entre as
décadas de 1950 e 1970. Parte deste grupo retornou a Angola após a
independência, em 1975, instalando-se boa parte em Luanda. É principalmente
entre esses ex-exilados, chamados por vezes de "regressados", que tenho
realizado minhas pesquisas.
A maioria dos ex-exilados bakongo que voltou para Angola nas décadas
posteriores à independência dedicou-se ao comércio varejista, tendo sido
responsável pela organização do mercado paralelo da cidade de Luanda, no
contexto de um regime de cunho socialista. A secular tradição comercial de
alguns setores desse grupo, somada à experiência de comércio desenvolvida no
Congo durante os anos de exílio, concorreu para a montagem e articulação de
redes mercantis de longa distância. As redes de comércio puseram em evidência
as relações dos grupos residentes na capital com seus parentes estabelecidos
nas províncias do norte do país e no outro lado da fronteira. Com a
liberalização econômica, na década de 1990, o mercado paralelo disseminou-se
mais ainda, transformando-se no setor informal da economia. A partir de então,
os regressados ficaram relegados a um papel menos proeminente.
Meu trabalho de campo foi realizado entre 1998 e 2001 em Luanda, mais
especialmente, no bairro do Palanca, na periferia da capital. O bairro, na
época, tinha cerca de setenta mil pessoas e era habitado majoritariamente pelo
contingente bakongo. Levei também em consideração as relações de parentesco e
de afinidade que se estendem por toda a cidade, unindo inclusive setores de
classe, origem e trajetórias diferenciadas.
Política e religião: o cristianismo e os movimentos religiosos na área kongo
Não se pode compreender o fenômeno pentecostal em Angola fora de dois
processos. O primeiro, da disseminação mais ampla do pentecostalismo no mundo
cristão, desde os anos 1980. Na África esta expansão está indissociavelmente
ligada aos movimentos messiânicos emergidos no período colonial, e à criação
das igrejas africanas após as independências.2
O segundo processo remete à própria história angolana. Estamos nos referindo à
antiga presença missionária no Reino do Kongo. A cristianização desta região
foi interpretada de várias formas por diversos autores.3 Vários destes
concordam que sistemas culturais e religiosos se combinam mais do que se
sucedem e só podem ser compreendidos com o olhar voltado para os processos
políticos e a luta por controle de pessoas, símbolos e significados. Na
sociedade kongo, a religião foi desde muito tempo a principal instância de
organização política e social. Isto tem fundamento na estrutura tradicional
kongo onde, tal como em outras sociedades, os chefes exerciam seu poder
político legitimados por um poder sagrado conferido ritualmente. A linguagem do
poder remete, assim, ao sagrado, à capacidade de manipulação, pelos chefes e
sacerdotes, de forças poderosas advindas do outro mundo (ancestrais e outras
divindades).
Os contatos com os portugueses, a partir de fins do século XV, introduziram o
cristianismo, adotado rapidamente pela elite real congolesa. A cristianização
representou, naquele momento, uma estratégia de concentração do poder real para
fins de reorganização política do Reino do Kongo. Esta interpretação é
demonstrada pelo batismo do rei e das famílias mais importantes do reino e não
facultado, de início, à população comum.
A participação do cristianismo, e de seus agentes europeus, no desenvolvimento
político do Reino do Kongo encontrou seu momento crítico no movimento
Antoniano, no início do século XVIII. Tratou-se de um movimento religioso,
chamado também messiânico, que buscava a restauração do Reino do Kongo,
dilacerado pelas guerras civis que se sucederam após a Batalha de Ambuíla
(1665), quando uma nova relação, de vencedor e vencido, se estabeleceu entre o
Reino do Kongo e os portugueses. A reação religiosa procurou assim recuperar o
protagonismo político perdido, retraduzindo o cristianismo nos termos de uma
lógica local, afastando-o do controle dos missionários europeus.4
Desde o final do século XIX, o processo de recristianização da região do Kongo
com a implantação de missões católicas e protestantes, já sob o domínio
colonial, assistiu vários movimentos religiosos, sendo o mais importante deles
o Kimbanguismo, na década de 1920, no Congo Belga.
A articulação entre política e religião foi a chave de leitura de todos os
autores debruçados sobre estes movimentos religiosos ao longo do século XX.5 Os
movimentos chamados messiânicos ou proféticos, numerosos na região kongo,
estavam relacionados à busca popular por autonomia simbólica e política,
costurando concepções locais de poder e sagrado junto à linguagem universalista
do cristianismo e a mobilização coletiva na tentativa de recomposição do
sistema social, drasticamente transformado pela colonização. Não cabe aqui um
aprofundamento da análise destes fenômenos, discutidos por uma vasta
literatura, mas apenas chamar atenção para a continuidade, no campo religioso
africano, dos movimentos religiosos do século XX e a disseminação das igrejas
independentes africanas. Estas igrejas são maioria entre as do espectro
pentecostal em expansão em muitos países da África, inclusive Angola, onde a
proeminência da atividade religiosa entre os bakongo é notável.
O quadro esboçado sugere uma série de questões que encontram pistas na
peculiaridade da região kongo com as vicissitudes da colonização que dividiu
seu território. Podemos encontrar também algumas respostas na sua complexa
história, na qual não apenas a longa presença missionária cristã parece ter
tido um papel determinante, mas também na forma como o cristianismo encontrou
dentro da cosmologia e do sistema religioso kongo espaços de correlação.
Retemos deste breve histórico tanto a importância da instância religiosa na
estruturação do poder tradicional bakongo, como a centralidade da religião
cristã no processo de transformação da sociedade kongo decorrente da sua
relação com o poder e a cultura europeias.
Percebemos no campo religioso angolano, desde a década de 1990, uma
diversificação crescente do espectro de igrejas e confissões. Esta
diversificação é marcada, principalmente, pela disseminação das igrejas
pentecostais e igrejas de cunho profético, chamadas "sincréticas" ou igrejas
independentes africanas, geralmente de matriz cristã. Apesar da proliferação
destas igrejas ser um fenômeno marcante no mundo cristão, no caso angolano esse
fenômeno assume um perfil marcadamente bakongo. Ou seja, os bakongo não são,
entre as lideranças religiosas, os únicos protagonistas, mas são, com certeza,
os mais numerosos e proeminentes. Haveria alguma relação entre este dinamismo
religioso e a recorrente reivindicação política e identitária que, neste grupo,
assume uma linguagem propriamente religiosa?
O contexto da atual, Angola independente, ainda que viva um conturbado processo
de construção nacional, não pode ser de forma ligeira equiparada ao período
colonial ou da desestruturação do Reino do Kongo, momentos históricos de
emergência de movimentos messiânicos contestatórios. Embora não se coloque mais
a ruptura com a dominação colonial, permanece a busca de um espaço político que
implique num reconhecimento da especificidade bakongo e do seu lugar na nação
angolana. Nesse sentido, trata-se de entender, no período pós-independência, a
articulação bakongo na sociedade angolana mais ampla, já constituída como
nação, e com as instituições de Estado.
Tentando compreender o lugar ocupado hoje pelos bakongo na sociedade angolana,
mas considerando também a complexidade interna deste grupo na capital do país
lugar privilegiado para observação a dinâmica religiosa dos bakongo aparece
como uma dimensão fundamental para pensar a articulação que estes fazem entre
si, enquanto grupo, e com a sociedade nacional. Percebe-se assim que a
instituição religiosa vem permitindo ao grupo recompor seu passado e seu
presente, sua forma especial de associar processos de continuidade cultural e
mudanças, dando-lhes significados adequados ao seu contexto atual e a uma
história marcada pela migração e pelos deslocamentos. Investigar a dimensão
religiosa entre os bakongo pode permitir desvendar uma forma particular pela
qual é possível processar as rupturas entre os períodos colonial e pós-colonial
e as vivências experimentadas em espaços nacionais distintos. A religião
institucionalmente organizada através das igrejas cristãs sendo o cristianismo
a religião majoritária em Angola pode ser vista como o elo que liga estas
instâncias: passado e presente, sociedade nacional e grupo étnico, construção
de identidades internas ao grupo e para fora deste. A proliferação de igrejas,
no caso dos bakongo, pode demonstrar uma atualização, para o contexto nacional
angolano, de uma tradição de contestação política e a busca de afirmação
identitária, tendo-se em consideração um ambiente político restritivo.
Cabe considerar que entendemos que a articulação político-identitária associada
à expressão e às instituições religiosas tem sido uma forma regular da
organização de importantes setores bakongo. A religião assim não se configura
numa mera "válvula de escape" dentro de um ambiente político restrito, como
alguns autores interpretaram, ou seja, uma forma de organização possível à
espera de instituições "modernas", como partidos políticos ou organizações
formais. Entretanto, cabe observar que na história kongo há uma reiterada
relação entre emergência de movimentos religiosos e um contexto de perda de
autonomia política e crise institucional.
Do ponto de vista interno aos bakongo, a religião parece ser o idioma de
rearticulação do grupo, que vem sofrendo um processo importante de
transformação social, especialmente de parte de suas referências tradicionais,
pela urbanização acelerada. Assiste-se uma reordenação destas instituições
tradicionais, tendo em vista sua inserção na sociedade nacional.
Instituições tradicionais remetem principalmente àquelas baseadas no parentesco
que, no caso bakongo, estão ancoradas numa complexa interação entre a sucessão
matrilinear e a patrilateralidade, esta última relacionada à expansão
territorial do grupo e à função sagrada. A tendência à sucessão paterna,
através da influência ocidental, fortemente absorvida pelas sociedades
colonizadas, vem aumentando uma tensão nas sociedades cuja transmissão de
herança, de status e de poder político se dá pela linha materna. Essa
tendência, bem como uma percepção da diminuição da importância dos laços de
parentesco na sociedade "moderna" e urbanizada (onde não se coloca mais o
direito sobre a terra) vem gerando a necessidade de recomposição de novas e
antigas instituições e produção de lideranças que, entre os bakongo, vem sendo
levado a cabo, entre outras formas, pela instância religiosa, como pretendo
demonstrar.
O parentesco entre os bakongo de Luanda
O fundamento da estrutura social kongo, a organização baseada no "clã", o
conjunto de matrilinhagens, é uma característica que não se alterou na sua
base, embora tenha sofrido certas mudanças, se considerarmos o contexto urbano
na qual se insere boa parte da população bakongo de Angola.
Toda a literatura que descreveu a vida social kongo, tanto a etnológica como a
missionária (esta produzida desde os sécs. XVI e XVII), refere-se a essa
organização de parentesco.6 O fundamento do parentesco kongo reside na Kanda
(ou Nkanda). A Kanda é o grupo de parentesco organizado em linha materna,
descendente de uma antepassada comum. A kanda define o grupo exógamo.
Empiricamente, a Kanda costuma estar associada ao "clã" (mvila), embora aquela
faça mais referência ao grupo local do que o clã, que remete à categoria de
descendência mais ampla e não implique em exogamia.7 A Kanda se divide em
linhagens, ou "barriga" (vumu), ou seja, o grupo de descendência até a quarta
geração que regula os direitos de herança. A Kanda, que por sua própria
definição abrange os vivos e seus antepassados, estabelece duas categorias
fundamentais de pessoa entre os bakongo: os indivíduos de livre direito, que
são aqueles pertencentes a uma dada linhagem materna, com todos os direitos
relativos a sucessão e herança, e os outros, estrangeiros ou escravos que, não
possuindo Kanda e incapazes de declarar sua mvila (genealogia), têm um lugar
subordinado na estrutura social.
A colonização, o deslocamento de populações e o processo de urbanização, ainda
que diferenciado nos três espaços coloniais (expressiva nos dois Congos, mas
débil em Angola), implicaram na perda de poder político e no enfraquecimento da
sucessão e da herança da posse da terra.8 A urbanização, de modo mais
definitivo, fez cessar totalmente o exercício do poder das chefias sobre a
terra e sua alocação. Não é outro o motivo para ausência de referência, em
Luanda, a uma categoria importante, intermediária entre a Kanda e a linhagem,
que são as casas (nzo), que dividem a Kanda em três seções e regulam o acesso a
terra. Esta referência é encontrada na bibliografia que trata da organização
social kongo dos séculos passados e no meio rural mais recente.9 No espaço
urbano, não só não se coloca mais o direito a terra, como a distribuição
residencial é submetida a outras circunstâncias. Todavia, percebemos uma
continuidade do sistema virilocal (a mulher se desloca para viver junto ao
marido).
Atualmente, as estruturas da matrilinhagem têm a função, basicamente, de
regular os casamentos dentro do grupo (fora da Kanda), de definir o grupo de
herança, bem como de estabelecer a autoridade dentro da família, perdurando o
sistema de chefia familiar centrada na figura do tio materno ou tio-avô
materno, o membro mais velho da Kanda (nkazi).
Embora o nome da sua própria Kanda seja, em geral, de conhecimento de cada
mukongo (indivíduo do grupo bakongo), não são todos os que detêm o conhecimento
de toda a tradição que se expressa, entre outras coisas, na declamação da
mvila, a genealogia do clã, que remonta a várias gerações. O conhecimento e a
reprodução desta tradição permitem a circulação de poder e prestígio entre as
diversas lideranças familiares, reforçando a disputa deste mesmo prestígio e,
ao mesmo tempo, os laços de identificação do grupo como um todo. Deste modo, a
identificação da Kanda também tem sido um instrumento de reconhecimento e
exercício do reforço da identidade étnica para dentro do grupo.
A transformação considerada mais notável na estrutura de parentesco kongo,
mencionada por vários mais velhos, seria aquela ocasionada pela tendência à
valorização do poder do pai em detrimento do poder do tio materno. Este
processo indica se não uma transição do sistema matrilinear para patrilinear,
uma forte influência desta última nas formas de organização familiar, o que
também implica na nuclearização da família em detrimento da chamada "família
extensa". Esta transformação é atribuída à ocidentalização, seja pela
influência da missionação, seja pela imposição do direito ocidental advindo com
a colonização e depois.
Embora sem desprezar estes fatores de transformação, cabe lembrar que o lado
paterno nas sociedades kongo sempre desempenhou um papel importante, como no
acesso a terra e na sucessão de títulos políticos e espirituais. Entretanto, no
enquadramento urbano, o poder do pai teria aumentado ainda mais, tendo em vista
a proeminência da família nuclear, a mudança evidente do sistema econômico, que
alterou as formas de produção e distribuição de riqueza e o aumento da
fragmentação dos grupos de parentesco, sobretudo na distribuição residencial.
A dualidade entre a influência das famílias materna e paterna que se reproduz
nas situações de casamento tradicional, quando se divide os bens recebidos pela
família do noivo entre a família do pai e a família materna da noiva, parece
indicar, todavia, que esta tensão não é tão recente, estando inscrita no
sistema kongo.
Relação pai filho (tata-mwana) e a importância do pai
A dificuldade na compreensão dos sistemas de parentesco e do sistema político
decorrente ou relativamente divergente desta estrutura esbarra na própria
definição de um sistema como matrilinear, patrilinear ou misto (dupla
descendência) e da notável variação entre diversos sistemas empíricos diante da
mesma definição antropológica.10
A categorização da sociedade kongo como matrilinear, a partir da definição de
linhagem e sucessão por via materna, da concepção nativa de tradição e da
declaração da mvila para definir e defender direitos de herança, ocasionou
certa rigidez na definição do sistema. Disto decorreu a interpretação das
variações e transformações observadas no sistema empírico como mudanças
introduzidas a partir da cristianização, da colonização ou da urbanização e não
como variações resultantes da própria tensão e das contradições inerentes ao
sistema a um só tempo matrilinear e virilocal. O sistema segmentar kongo
baseia-se nestas contradições para fazer interferências constantes e construir
justificações ideológicas que objetivam mudanças e lutas por espaço político,
territorial e de autoridade de grupos colocados em posições de inferioridade
por conta da primazia da primogenitura e da antiguidade, que opõem irmãos e
linhagens mais velhas e/ou mais antigas a irmãos mais novos e linhagens mais
recentes.
Wyatt MacGaffey e António Gonçalves dão claras indicações da proeminência do
papel tradicional do pai e da patrilinhagem na transmissão ao filho
(classificatório) do direito a terra, uma transmissão de poder político.11 O
exercício do poder sobre a terra implica num pacto com os antepassados, donos
da terra, lhe permitindo sua fertilidade e produtividade e dando viabilidade ao
grupo postulante. A doação da terra é assim uma relação de pai para filho,
efetivando uma doação a um só tempo política e sagrada. O doador tem estatuto
de pai (tata) e é como filho (mwana) que o novo chefe político assume o comando
do novo território e deve deferência ao seu doador. Esta relação de doação
permite ao filho, exercendo seu poder sobre um novo domínio, constituir uma
nova (matri)linhagem.12
O acesso a terra através do pai é um recurso principalmente do filho ou
linhagem mais jovem ou mais recente, já que à primogenitura é facultada a terra
da matrilinhagem (o sobrinho mais velho herda do tio materno). Sendo assim a
relação tata mwana regula as fragmentações inerentes à linhagem, ou seja, as
cisões de linhagens menores que saem à procura de novas terras e de homens em
busca de exercerem chefia.13
A relação entre pai e filho é, portanto, a relação de aliança política
propriamente dita, que garante a legitimação das linhagens menores ou mais
novas que querem autonomizar-se. Dá ao pai a possibilidade de produzir uma
clientela que compensa sua situação desfavorável, de procriar para benefício de
outro (o irmão da esposa), como também de contrabalançar a pressão por poder
dentro da sua linhagem, vindo dos seus próprios sobrinhos. A estrutura
segmentar, fragmentada, da organização social kongo é assim equilibrada pelo
papel legitimador do pai, que confere a esta fragmentação uma linguagem de
parentesco, impedindo a atomização dos grupos kongo, garantindo a unidade, uma
identidade e o recurso comum (através da tradição) para resolução de litígios
sobre a terra e o poder.
Portanto, a relação pai-filho é uma relação de senioridade e de transferência
de autoridade espiritual.14 O filho recebe do pai as insígnias para governar.
Está inscrita nos mitos a passagem da autoridade espiritual de pai para filho,
mesmo quando este é o filho primogênito que herda do tio a chefia da
matrilinhagem.15
Esta relação espiritual encontrou uma homologia na cosmologia cristã, na qual a
autoridade sagrada é também uma herança de pai para filho (expressa pela
Santíssima Trindade). Ela nos possibilita demonstrar a hipótese de que a
relação espiritual e territorial entre pai e filho se reporia na organização
das igrejas pentecostais e proféticas e na estrutura segmentar da proliferação
destas igrejas, tal como sugere MacGaffey para o caso observado na RDC.
Os bakongo e as igrejas
Segundo o INAR (Instituto Nacional para Assuntos Religiosos, órgão do governo
que regula e registra as instituições religiosas), as igrejas se multiplicam
por toda a cidade de Luanda, do centro à periferia. Mas, em bairros cuja maior
parte da população é originária do norte de Angola é observado um número maior
de igrejas e de diferentes denominações.
Entre intelectuais angolanos, principalmente escritores ficcionistas,
jornalistas e alguns pesquisadores, a proliferação das igrejas é percebida como
um equivalente da candonga, uma espécie de "candonga espiritual".16 Candonga
refere-se ao comércio paralelo, hoje informal, alastrado pelo país, alimentado
pelo contrabando e pelas práticas tácitas ou informais de trocas e da
comercialização do favor, da pequena e disseminada corrupção. Esta percepção
alia-se a noção corrente de pastores inescrupulosos que enganam fiéis
desesperados em busca de cura para suas doenças e aflições e de que a expansão
e proliferação das igrejas é decorrência direta da crise econômica e da
pauperização da população. A abertura de igrejas seria, nessa chave, um
expediente para o enriquecimento ilícito, prática análoga à corrupção, ao
favorecimento, ao contrabando, ao comércio ilegal etc. A clientela da igreja
cresceria assim a braços com o aumento da pobreza e do desespero, com a
retirada do Estado do atendimento à população e com o crescimento desordenado
das cidades.
A "tese da candonga espiritual" casa-se facilmente com o histórico dos bakongo,
enquanto grupo que introduziu a prática do comércio informal/ilegal logo após a
independência de Angola. Reproduz-se desse modo, o mesmo estereótipo do
mukongo/regressado voltado para as práticas ilegais de comércio (práticas
depois seguidas por toda a população), aquele que teria tido a "iniciativa" de
"enriquecer" indevidamente com o "desespero" alheio, através da abertura de
igrejas e cobranças de dízimos.
Outra forma muito comum de analisar o fenômeno da proliferação de igrejas em
Angola e em África é relacioná-la ao declínio da solidariedade familiar. Esta
hipótese vê
o crescimento das igrejas protestantes e pentecostais [...] como uma
resposta à necessidade dos agentes sociais de construírem redes de
solidariedade e de se agarrarem a valores novos para enfrentar a
desintegração ocasionada pela guerra civil
como aponta Peter Fry em um artigo sobre a expansão das igrejas pentecostais no
Moçambique do pós-guerra.17 A situação de guerra ou pós-guerra que provocou o
deslocamento de populações para os centros urbanos teria gerado uma situação de
perda de referências e laços que seriam reconstruídos pela adesão à igreja, uma
instituição tão englobante e totalizadora como as sociedades de parentesco.
Esta interpretação, entretanto, não logra explicar como e porque esta "forma
muito específica de sociabilidade"18 substitui se é que substitui formas mais
antigas e também eficazes de sociabilidade. O autor duvida que tenha havido uma
sucessão dos laços religiosos sobre os familiares. A hipótese é que eles tenham
sido somados, e de formas variadas.
Da mesma forma que os bakongo não são os mais pauperizados no contexto da crise
social em Luanda, tampouco seus laços familiares encontram-se, de modo geral,
esgarçados. Os bakongo são notórios por serem muito persistentes em termos de
manutenção e revitalização de laços familiares, de coesão interna e de apego às
tradições. Foi a partir desta constatação que iniciei meu conjunto de
indagações sobre as relações entre igreja e família no grupo bakongo em Luanda.
Como se relacionaria a adesão às diversas igrejas e os laços familiares entre
os bakongo? As adesões religiosas seguem os já existentes laços de parentesco
ou desafiam estes laços? Qual o papel das relações de vizinhança na adesão
religiosa e no trânsito entre igrejas? Haveria alguma conexão entre a estrutura
social e de parentesco dos bakongo e a proliferação das igrejas, bem como as
cisões e desmembramentos dentro delas?
Os próprios bakongo buscam formular explicações de diversas ordens sobre o fato
de a proliferação de igrejas ser um fenômeno associado principalmente a este
grupo, notadamente entre os regressados. A primeira explicação diz que os
bakongo são os mais religiosos entre os angolanos, são cristãos há muito mais
tempo e, portanto, são naturalmente inclinados à vida religiosa e a frequentar
igrejas. Já a diversidade de igrejas, segundo alguns deles, estaria relacionada
ao fato dos "bakongo gostarem de mandar", referindo-se à estrutura segmentar da
sociedade kongo, na qual chefes de linhagens menores buscam novos espaços para
a criação (e a liderança) de novos grupos. Esta estrutura se reproduziria no
contexto atual através das cisões e desmembramentos entre as igrejas, nas quais
emergem novas lideranças que comandam grupos menores e autônomos numa
organização de menor hierarquia. Vamos voltar a este ponto mais adiante.
Uma constatação muito presente é a influência do Congo/Zaire e a presença de
"zairenses" na criação de múltiplas igrejas e dissidências de igrejas. Muitas
vezes, os bakongo de Luanda recusam a apreciação de que são angolanos do norte
os responsáveis pelo grande número de igrejas. Dizem que são os imigrantes
congoleses, e não os regressados, os que trazem as igrejas do Congo a Angola,
ou que a proliferação de igrejas está disseminada por todo o território
angolano, não sendo só "coisa dos bakongo".19
Outros, por sua vez, num sentido ao mesmo tempo de autocrítica e de
autoindulgência, afirmam que sendo os bakongo inclinados ao comércio e muito
mais viajados que os outros angolanos são capazes de ver mais longe e de
farejar um "bom negócio". Assim, apenas teriam feito mais cedo o que os outros
angolanos só vieram a realizar anos depois: tanto a montagem do comércio
informal como a abertura de igrejas (e de partidos políticos e de organizações
não-governamentais) foram iniciativas tomadas, primeiro, pelos angolanos do
norte, práticas depois "copiadas" pelos outros angolanos.
Juntando informações fornecidas pelos próprios fiéis e alguns dados obtidos
informalmente no INAR e em Viegas,20 comecei por mapear as igrejas de maior
adesão entre os bakongo, explorando a composição de sua audiência e as formas
pelas quais os fiéis aderem às diferentes igrejas. Mesmo não sendo possível a
percepção de um padrão claro, vamos procurar, mais adiante, entender os meios
pelos quais se processam os desmembramentos e cisões entre as igrejas, para
além da suposta vaidade e ganância de seus dirigentes.
A Igreja Católica, tal como em todo o país, é a que tem mais adeptos entre os
bakongo. A Igreja Batista, a principal igreja protestante implantada no norte
de Angola, segue como outra igreja de grande inserção e autoridade entre esta
população, ainda que se divida em diversas denominações. Dentre estas, a Igreja
Evangélica Batista em Angola (IEBA), a herdeira da antiga Baptist Missionary
Society (BMS) do tempo colonial, continua tendo mais adeptos,21 talvez um pouco
mais do que a Igreja Kimbanguista (Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a
Terra pelo Profeta Simão Kimbangu), a principal igreja africana dos bakongo de
Angola e do Congo também do período colonial. Ou tras igrejas de referência
entre a população bakongo, desde o período colonial e com forte presença em
Luanda são a Igreja Exército da Salvação e a Igreja Tocoísta (Igreja do Nosso
Senhor Jesus Cristo no Mundo).22 A tradição familiar parece conservar-se assim
como o principal critério de adesão dos bakongo às igrejas, reproduzindo,
dentro das famílias, ao longo das décadas, os adeptos das principais igrejas.
As igrejas pentecostais e proféticas,23 em geral, vão colhendo fiéis destas
igrejas citadas acima, a princípio entre os mais jovens e mulheres. Mas, com
poucas exceções, não parecem ter uma adesão numerosa, nem de base familiar.
Isso nota-se pela composição da audiência que acorre às igrejas aos domingos.
Nas principais igrejas de origem missionária ou herdeiras dos movimentos
messiânicos relacionadas acima, vê-se grupos familiares presentes, enquanto que
as igrejas mais recentes, pentecostais e proféticas, são procuradas mais por
mulheres e jovens e menos por homens. Nota-se também presença bem menor de
crianças nos cultos pentecostais em comparação às igrejas mais antigas.
Aspectos de identidade e cultura nos cultos religiosos
Há outros aspectos a destacar sobre as igrejas, não somente quanto à composição
etária, de gênero ou socioeconômica. Alguns sinais indicam, por exemplo, um
maior ou menor envolvimento de cada igreja com certas instituições bakongo,
dando evidências de situações de aproximação e/ou ruptura que cada comunidade
da igreja estabelece com instituições da esfera familiar. Estes aspectos
sinalizam também uma postura identitária de cada grupo religioso em relação à
sociedade mais ampla, seja nacional, seja de Luanda, seus símbolos e valores.
São eles: o uso das línguas nos cultos (português, kikongo,24 lingala25 e
outras), o tipo de cânticos, o uso ou não de roupas de estilo africano pelas
mulheres, a proporção de crianças e jovens nos cultos, a introdução de certos
rituais. O dinamismo demonstrado pelos grupos organizados dentro das igrejas
(grupo de mulheres, de jovens, de homens) em situações de óbito ou casamento,
por exemplo, indicam o envolvimento (e o respeito) da igreja nas situações em
que a autoridade localiza-se dentro das famílias.
Tomemos aqui como exemplo o uso das línguas nos cultos. A escolha do português
como língua principal de culto, para além da necessidade de atingir uma
audiência plural e multiétnica, como normalmente é justificado, indica também
uma vontade da própria igreja de assumir um ponto de vista mais "nacional", na
medida em que, em Angola, e especialmente em Luanda, o uso da língua portuguesa
se faz hegemônico. Este é o caso da igreja católica.
Já a predominância do lingala nos cultos, mais do que conformar-se a uma
assistência de maioria regressada ou congolesa, pode sugerir uma vontade ou uma
inclinação para um culto mais fechado, voltado para um grupo que encontra nas
igrejas, principalmente as proféticas, um espaço privilegiado de reprodução de
um modo de vida específico, tendência maior que a de assimilação.
O uso do kikongo, quase sempre mesclado com o português, aponta para um espaço
de valorização cultural fincado na tradição bakongo e voltado para um tipo de
público bastante sensível à manutenção do kikongo como língua de grupo, de
valorização da tradição e de suas instituições. O uso alternado com o português
indica a dupla necessidade de integração e atenção ao espaço nacional, numa
forma cadenciada que aponta para a construção de uma identidade que quer ser ao
mesmo tempo nacional e étnica.
Há uma variação enorme no uso das diferentes línguas nas diferentes igrejas nos
diferentes momentos de culto. Pode-se pensar em quatro espaços nos cultos, nos
quais o uso das línguas é demarcado. O primeiro espaço é o da pregação, no qual
há um discurso direto da autoridade religiosa, pastor ou padre, para os fiéis.
Há uma interação relativa entre fiéis e pastor, mas com o controle do último. O
segundo espaço é o da oração (e dos hinos), estabelecendo a comunicação entre o
corpo de fiéis (incluindo autoridades e assistência) com Deus. São situações
caracterizadas pela solenidade e pela contrição. O terceiro espaço é o das
leituras bíblicas, que pode ser feita pelo pastor, padre, mas também outros
ministrantes. É quando Deus e seus mediadores (apóstolos, profetas) se
comunicam com seus fiéis via palavra escrita (indicado pela expressão "vamos
ouvir a Palavra de Deus"). O ultimo espaço é o dos cânticos, canções e músicas
de empolgação, no qual há uma comunicação mais relaxada entre fiéis bandas,
corais e o público assistente. Neste espaço, podemos também inserir os avisos
comunitários e recomendações, que dizem respeito à comunidade religiosa e mais
ampla, bem como testemunhos feitos por fiéis (especialmente nas igrejas
pentecostais). Em muitos cultos, esse espaço é o que toma mais tempo e onde há
maior variação de línguas.
No caso do culto da IEBA, a pregação é feita em português, com tradução
consecutiva para o kikongo. As orações são feitas quase sempre em kikongo,
indicando, o lugar ritual e quase sagrado ocupado pela língua materna. As
leituras bíblicas são feitas em português e em kikongo, consecutivamente. Os
cânticos são cantados em várias línguas: lingala, kikongo, francês, embora
pouco em português.
Um inventário das variações encontradas nos cultos das várias igrejas seria
excessivo aqui, mas é relativamente frequente a situação de maior variedade
linguística nos cânticos, bilinguismo nas leituras e na pregação e
monolinguismo nas orações. Cabe reiterar que esta ordenação não atende apenas a
uma situação pragmática de adequação ao público ou de minimização do tempo ou
do esforço dispensado nas traduções. Quero dizer que, mais que uma adequação à
composição da congregação, as línguas utilizadas são fruto de uma escolha que,
além de levar em conta as características e necessidades desta audiência e a
trajetória do pastor ou ministrante, indica principalmente o lugar e o papel
que cada denominação e cada comunidade religiosa pretendem ocupar e desempenhar
dentro do grupo e fora dele.
Portanto, à dimensão "universal" ou nacional da igreja católica, expressa por
sua liturgia e sermão efetuados em português, mas com cânticos em kikongo e
outras línguas, vamos contrapondo igrejas de tradição missionária, como a
batista, que organiza seu culto buscando um equilíbrio entre o kikongo e o
português, até igrejas, como a maioria das proféticas/pentecostais, que fazem
seu culto quase que exclusivamente em lingala ou, como a Igreja Universal do
Reino de Deus, de origem brasileira, exclusivamente em português. A Igreja
Tocoísta, que prima por ser uma igreja especificamente angolana, dá um espaço
interessante às diversas línguas angolanas, especialmente nos cânticos, mas não
só, que não pertencem necessariamente ao público presente no culto em questão,
como o chokwe e o umbundo.26 É como se dissesse "nós somos 'a' igreja angolana
propriamente dita" e dizer angolano é dizer através de todas as suas línguas e
expressões. A pregação do culto tocoísta, assistida no bairro Palanca, foi
feita em português, kikongo e kimbundo, indicando uma afirmação de
"angolanidade" baseada no uso das diversas línguas, independentemente da
composição étnica dos fiéis, e não no uso quase exclusivo do português.
Se as comunidades e lideranças religiosas costuram meios diferentes de associar
identidade étnica e nacional a partir da manipulação do uso das línguas, outros
sinais expressos pelas comunidades de fé, durante os cultos, indicam outras
formas de relacionar a vivência religiosa e a participação das igrejas na vida
comunitária e nas redes de parentesco. Há também alguns indícios de como estas
"irmandades" vivenciam certos aspectos da cultura kongo, da influência da
cultura congolesa, recebida em Kinshasa, e os aportes da cultura "angolana"
veiculados pela sociedade envolvente de Luanda.
As roupas exibidas pelas mulheres nos cultos são um sinal interessante de como
se compõe o público das diferentes igrejas. O uso de panos e amarrados comuns
ao vestuário kongo, e/ou determinadas roupas tidas como tipicamente congolesas
(vestidos de mangas bufantes ou conjuntos de blusas, saias e torços,
determinados tipos de adereços), associado ao uso de maquiagem, tipos de
penteados, uso de lenços etc., indicam a composição da audiência bakongo
angolana, se tem maior ou menor presença de regressados ou de congoleses, ou
inclui população mais "luandizada" (como é percebida no uso de jeans e roupas
mais "ocidentais"). Essa composição de vestimentas não é aleatória e se
constrói a partir também de estímulos e controles vindos de dentro e de fora do
grupo (como o caso de pastores e lideranças religiosas que reclamam do tipo de
roupa utilizado pelas jovens, por exemplo, e a influência do modo de vestir da
capital). O fato é que uma presença maior de mulheres adultas vestidas de panos
e a maior frequência de crianças às costas apontam para um tipo de comunidade
de igreja que dá muito valor aos aspectos mais tradicionais da família kongo
radicada em Luanda, conferindo um relacionamento bastante íntimo entre
lideranças religiosas e tradições ancoradas na família. A dedicação de
determinadas igrejas à educação e evangelização de crianças e adolescentes
(caso principalmente das igrejas Batista, Exército da Salvação, Kimbanguista,
Católica) demonstra um investimento antigo na relação entre igreja e família
que se traduz pela adesão de tipo familiar que já apontamos acima.
Nesse sentido, podemos ver como as igrejas proféticas e pentecostais, cujos
fiéis aderem em busca da experiência extática de contato direto com o divino,
das promessas de cura e de proteção contra a feitiçaria, prescindem de um tipo
de organização baseada na adesão familiar. E assim, estabelecem estratégias de
captação destes fiéis nas bordas da clientela das igrejas de adesão
tradicional/familiar, muitas vezes rompendo com lealdades baseadas no
parentesco e nos sistemas culturais engendrados por estas redes. Assistindo
diversos cultos em igrejas proféticas e/ou pentecostais, percebemos pouca
presença de crianças e idosos e que pouco se fazia menção a eventos e
festividades comunitárias que não dissessem respeito especificamente à
comunidade de fiéis. O uso quase exclusivo do lingala ou do português (caso da
Igreja Universal do Reino de Deus - IURD) indicava pouca inclinação ao estímulo
de identidades culturais mais articuladas seja com o grupo bakongo enquanto
tal, seja com outros grupos étnicos e nacional.
Formas de adesão religiosa e modelos de igrejas
Se avançarmos na ideia de que as filiações às diferentes igrejas atendem a uma
divisão entre uma adesão de tipo familiar e uma adesão "pulverizada", ou seja,
não relacionada à inserção familiar e, talvez, de camadas do grupo menos
enquadradas do ponto de vista do parentesco (mais jovens, mais pobres, recém-
chegados do Congo ou do norte de Angola que não contam com rede estável de
apoio familiar), podemos pensar, seguindo a abordagem de MacGaffey na sua
análise sobre igrejas proféticas na região do Baixo Congo (RDC),27 que esta
divisão reflete dois grupos sociais, distinguidos entre grupos organizados em
torno das instituições familiares e grupos marginalizados, de diversas formas,
desta estrutura.
MacGaffey indica que a adesão às igrejas proféticas se dá predominantemente
entre indivíduos e grupos considerados "perdedores" dos dois setores, chamados
"costumeiro" e "burocrático", que compõem o sistema que ele chama de "sociedade
plural", seja ela colonial ou pós-colonial. As pessoas que estão tanto à margem
do sistema tradicional (ou seja, à margem do grupo de poder e prestígio que é
adquirido pela posição no grupo de parentesco ou nas linhagens mais
prestigiadas), quanto à margem do sistema burocrático (colonial ou do aparelho
de Estado, ou fora do acesso aos bens de consumo e simbólicos propiciados pelo
acesso ao sistema ocidentalizado) seriam passíveis de serem incorporadas nos
grupos religiosos de tipo profético, de organização menos hierarquizada, cujo
acesso à divindade se dá por via mais imediata (êxtase, possessão, cura divina,
"profetização").
No caso das adesões dos bakongo às diversas denominações em Angola, percebi
forte ressonância com as observações de MacGaffey. As igrejas mais antigas (as
mais estabelecidas, de organização mais hierarquizada e centralizada) são
aquelas nas quais os grupos familiares perfazem a maior assistência, com uma
presença expressiva de homens (e mulheres) mais velhos. Os sinais acima
apontados, que indicam o tipo de composição da "clientela" das diferentes
igrejas e sua aproximação com as instituições familiares língua, tipo de roupa,
presença de crianças etc. confirmam a distinção sugerida por MacGaffey entre um
modelo de igreja mais "universal" ou missionário (plurilíngues, hierárquicas,
com ênfase na liturgia e na leitura da Bíblia) e as igrejas de tipo
"espiritual" (monolíngues, com organização pulverizada de baixa hierarquia e
centradas na relação entre pastor/profeta carismático e fiéis, menos
hierárquicas, que priorizam os rituais extáticos e de possessão voltadas para a
cura e resistentes à burocratização e liturgias rotinizadas).28 Estas últimas
atendem a uma clientela de indivíduos deslocados de suas famílias,
principalmente mais jovem e mais pobre.
Nessa distinção, a trajetória da Igreja Kimbanguista torna-se interessante,
pois, com origem no movimento messiânico ou profético mais bem sucedido da
África Central, foi a igreja referida por MacGaffey para demonstrar a sua tese
da adesão dos "perdedores" do "sistema plural" aos movimentos proféticos.
Atualmente, a Igreja Kimbanguista é uma das mais importantes igrejas africanas:
bem estruturada, altamente hierarquizada e burocratizada, na qual as
manifestações "espirituais" (possessão, glossolalia, profetizações, cura
divina) vêm perdendo espaço para uma organização mais controlada e com uma
liturgia mais previsível.29 Hoje, a composição dos fiéis da Igreja Kimbanguista
é de tipo "familiar", tal como a Católica, Exército da Salvação, Batista. A
Igreja Tocoísta é outro exemplo de igreja herdeira dos movimentos proféticos
que se institucionalizou.
A Igreja Batista e seus desmembramentos me pareceu constituir um ponto de
observação interessante para explorar algumas questões em torno da adesão
religiosa, seus critérios e dinâmica, e das relações de afastamento e
aproximação da esfera religiosa institucional com a esfera familiar e as
relações de parentesco.
A IEBA é uma igreja que se encaixa bem dentro do modelo chamado de "universal"
ou "missionário", não apenas pela sua história, mas também pelo nível de
hierarquização e burocratização, com um corpo de bispos, pastores,
evangelistas, diáconos, organizada em conselhos, comissões e assembleias. A
formação de vários pastores é feita no exterior, seja no Congo, na Inglaterra
(com a colaboração da antiga matriz) ou no Brasil. A admissão do fiel na igreja
depende de ele atender a pré-requisitos, sendo necessário aguardar um período
até ser admitido como membro efetivo.
A União Evangélica Baptista de Angola (UEBA), por sua vez, é uma igreja de bem
menor expressão e com menos recursos, em comparação com a IEBA, tendo sido
fundada em 1991, em Angola, por um antigo pastor da IEBA.30 Com sede no próprio
bairro Palanca, conta com alguns templos em Luanda e outras províncias,
principalmente no Uíge. Embora formalmente tenha uma estrutura burocrática, com
conselho e administração, na prática as decisões são muito centradas no pastor.
A forma de adesão de seus membros se deu, prioritariamente, nas bordas da IEBA,
aproveitando-se da resistência de alguns membros a aceitar a rigidez
disciplinar e burocrática da última, e do carisma do pastor, capaz de
"arrebanhar" seguidores na sua própria região de origem, como veremos.
O culto dominical da UEBA segue de perto aquele visto na IEBA, alternando
cânticos, pregação e avisos comunitários, e com o mesmo tipo de organização
interna de fiéis. Todavia, segundo alguns destes fiéis, a UEBA estaria
aproximando o seu culto de um tipo mais pentecostal, o que não foi percebido
nos domingos, mas sim nos encontros das mulheres, às quartas-feiras, nos quais
acontecem, eventualmente, alguns rituais extáticos. O tipo de leitura bíblica
feita nestes encontros parece também confirmar este fenômeno de
pentecostalização. O acompanhamento contínuo do "culto das mamãs" da UEBA no
Palanca, bem como a visita a alguns encontros de mulheres da IEBA no bairro do
Petroangol, teve como objetivo entender a dinâmica entre comunidade de fiéis,
redes de parentesco e vizinhança.
As igrejas batistas me pareceram as mais interessantes como ponto de partida
para observar o entrelaçamento das esferas familiar e religiosa, já que pude
notar ali uma maior aproximação, em comparação com as igrejas pentecostais.
Estas parecem estabelecer um rompimento mais nítido, provocado por um
fechamento maior da comunidade religiosa em torno de si mesma. Observar as
igrejas a partir das suas relações de aproximação e afastamento com a base
familiar e a comunidade de vizinhança é uma maneira de compreender as formas de
adesão e trânsito religioso dos bakongo do bairro Palanca e de Luanda. Do mesmo
modo, pode-se compreender como as cada vez mais numerosas igrejas pentecostais
vão captando seus fiéis e como a esfera familiar/tradicional e a religiosa se
interferem e se complementam.
Algumas diferenças se apresentam entre duas igrejas de mesma matriz, no caso a
Batista, num mesmo tipo de culto, o "culto das mamãs". Além de cultos mais
dinâmicos na UEBA, nos quais eventualmente aconteciam situações de êxtase e
glossolalia, pude perceber mais autonomia das mulheres dessa igreja para
organizar seus próprios encontros do que entre as mulheres da IEBA (o que foi
observado nos encontros da paróquia da IEBA do bairro do Petroangol). Na UEBA
as mulheres cantavam e tocavam instrumentos, dirigiam o culto e convidavam,
elas mesmas, os pastores que iam fazer pregação, diferente das senhoras da
IEBA, muito dependentes da hierarquia e do comando masculino personalizado no
pastor. Na UEBA, o lingala era bastante utilizado tanto nos cultos das quartas-
feiras, traduzido quase sempre para o português, bem como nos cultos
dominicais, ao contrário da IEBA, onde se repete invariavelmente o padrão
português kikongo, ainda que a maioria das mulheres falassem preferencialmente
o lingala fora da situação de culto.
Estas diferenças dentro do campo das igrejas batistas indicam uma inclinação da
igreja dissidente para um tipo de organização e dinâmica de culto que se
aproxima da estrutura profética/pentecostal igreja menos hierarquizada,
autonomia das mulheres, cultos extáticos, uso do lingala, praticamente sem
referência ao kikongo. Considerando estas diferenças e levando em conta a
trajetória da Igreja Kimbanguista, percebemos que não é possível, a partir
apenas da denominação exterior comumente dada às igrejas protestantes
missionárias, pentecostais, proféticas, messiânicas ou igrejas independentes
depreender sua organização e dinâmica interna. Também as formas pelas quais os
seus fiéis aderem e transitam entre uma e outra, supostamente das protestantes
históricas e católicas para as pentecostais/proféticas, deve ser mais bem
matizadas. Deve-se observar especialmente como as igrejas estão relacionadas
entre si e o lugar que cada uma delas ocupa dentro do que chamaríamos campo
religioso angolano ou luandense e de acordo também com a sua história.
A distinção feita entre modelos missionário (universal) e profético/pentecostal
(sectário) deixa também de lado outra possibilidade de leitura que diz respeito
ao fenômeno da proliferação das igrejas, seja no caso das igrejas chamadas
proféticas ou espirituais, mas principalmente no caso dos desmembramentos entre
as igrejas mais antigas, como as protestantes missionárias e a Igreja Tocoísta
(a Igreja Kimbanguista não havia sofrido esta situação de desmembramentos até o
período de observação). Pensar em formas e modelos de adesão às diferentes
igrejas com base apenas no modelo da igreja e na posição social do adepto não
dá conta da lógica que opera nas múltiplas cisões ocorridas dentro das várias
igrejas e no trânsito contínuo de fiéis entre uma e outra igreja.
Sugiro assim nos voltarmos mais uma vez para o caso específico das igrejas
batistas, situadas no modelo "universal", para encontrarmos pistas para
compreender este fenômeno.
Adesão e trânsito religioso: o "poder local"
Em visita aos cultos das mamãs da IEBA, no bairro do Petroangol (outro bairro
da periferia de Luanda com forte presença de bakongo/regressados), ouvi de
algumas senhoras da direção que a UEBA era uma igreja de pessoas de Beu e de
Kimbele, localidades do município de Maquela do Zombo, Uíge, norte de Angola,
área de origem do pastor fundador da UEBA. Embora os membros desta rejeitassem
firmemente esta categorização, pude observar que vários dos membros da igreja
que estão em cargos de maior peso são de fato desta região.
Dois relatos que obtive destes integrantes da UEBA explicam como eles
ingressaram na igreja. Os dois eram membros da IEBA e se integraram a UEBA
quando chegaram a Luanda, vindos do Uíge, e antes, do Congo/Zaire. Um deles
havia recebido uma punição da IEBA por ter se envolvido com uma moça sem
contrair matrimônio. Não quis aceitar o prazo de punição e o tempo longo fora
dos quadros da igreja para sua posterior reintegração e, assim, mudou-se para a
UEBA. O outro relatou a dificuldade de transferir sua documentação da paróquia
do Uíge para Luanda e, não querendo perder sua condição de membro efetivo que o
obrigaria a cumprir de novo uma série de requisitos, preferiu se juntar a UEBA.
Cabe ressaltar que ele tinha relações de parentesco com o pastor, pai do seu
cunhado (marido da irmã).
Estes relatos confirmam outras conversas que indicaram a flexibilidade da UEBA
em receber fiéis com qualquer dificuldade de se adequar à rigidez e à
disciplina que seriam impostas pela direção da IEBA. Outras igrejas menores vêm
"roubando" aderentes das igrejas mais "ortodoxas" e a IEBA aparece aqui como
uma das principais igrejas "doadoras" de fiéis.
Independente da motivação para a saída de uma determinada igreja, a adesão
parece obedecer aos imperativos de solidariedade local, ou seja, pode ocorrer
entre fiéis de mesma origem e neste caso, local de origem pode alcançar a
escala da localidade (Beu ou Kimbele), do município (Maquela do Zombo) ou da
província (Uíge) , como de local de residência próximos (mesmo bairro ou área
do bairro) como também de parentesco por aliança. Estas variantes de localidade
e parentesco reeditadas em Luanda aparecem associadas quando observamos a
composição de pequenas igrejas. Verifica-se assim uma relação complexa e
diversificada entre os grupos religiosos, familiares, de vizinhança, de origem,
e outras alianças. O trânsito religioso produz também impactos variados dentro
das famílias, sobretudo dentre aquelas que têm uma adesão antiga às igrejas
católica e batista, as quais vêm perdendo seus adeptos para as igrejas menores
e mais recentes.31
As próprias famílias também adotam posturas diferentes quanto às exigências das
diversas igrejas, ou harmonizando as distintas lealdades de cada membro da
família, ou adotando uma postura de menor tolerância quanto ao trânsito
religioso de seus parentes. Comumente, as esposas costumam migrar para a igreja
dos maridos ao casarem-se, sem causar grande desagrado aos seus parentes. Por
vezes, há desavenças familiares devido a filiações religiosas divergentes entre
cônjuges e entre pais e filhos.
Porém, outro fator que chama atenção nestes constantes desmembramentos nas
igrejas é a semelhança deste fenômeno com a estrutura social bakongo. O
desmembramento de igrejas parece encontrar certo paralelismo com a segmentação
dos grupos de parentesco, que é uma característica reiterada da organização
social kongo. As fissuras constantes nas linhagens originalmente provocavam a
migração em busca de novas terras e a consolidação de novos poderes, de outra
forma incapazes de ascender na estrutura hierárquica kongo, que concentra o
poder na mão dos mais velhos, dos primogênitos e das linhagens centrais. A
emergência de novas lideranças parece semelhante à estrutura segmentar do
parentesco bakongo, que é segmentar justamente pela sua feição hierárquica,
geradora de tensões dentro do grupo. Situado no contexto urbano, no qual a
busca por poder não pode mais estar associada à conquista territorial, é
possível que as igrejas, inseridas nesta rede de contínuas fragmentações,
possam ser pensadas também como uma reposição desta estrutura original de
parentesco.
Poderíamos assim traçar um paralelo ou equivalência entre igrejas menores que
saem de igrejas maiores e as subdivisões de linhagens na estrutura de
parentesco. Esta reacomodação dá lugar não apenas para lideranças os pastores
controlarem novos "rebanhos", mas também para chefes de famílias menores, que
assumem cargos nas pequenas estruturas de comando destas igrejas, terem um
espaço de influência e poder que seria impossível exercerem tanto nas igrejas
maiores, como em suas próprias famílias extensas. Repõe-se assim, no âmbito das
igrejas, o reincidente conflito de gerações, que opõe não apenas os mais velhos
chefes de linhagem aos mais jovens (solteiros), mas, neste caso, homens que
comandam famílias nucleares ou seja, a unidade doméstica, que ganhou maior
importância no contexto urbano e nacional, de poder paterno mas que têm pouco
espaço nas decisões familiares mais alargadas. Possivelmente, estes homens
"pais de famílias nucleares" se apropriam do prestígio obtido com as igrejas
para se recolocarem melhor diante da rede de parentesco e mais amplamente no
âmbito das relações sociais mais alargadas. Homens bem posicionados nas
relações familiares possuindo família extensa são fiéis bem vindos à estrutura
das igrejas.
MacGaffey, na análise que faz sobre o movimento profético no Congo após sua
independência (1961), aponta para o fato de as igrejas ocuparem hoje o lugar
dos antigos cultos territoriais, desempenhados pelos antigos ngangas,os
sacerdotes locais.32 Os padres, durante a evangelização do reino do Kongo,
foram considerados pela cosmologia local como ngangas. MacGaffey defende que os
profetas atuais (ou os líderes de igrejas pentecostais, também chamados por
seus seguidores de profetas) substituíram os antigos ngangas, assumindo um
papel de chefia político-religiosa, num poder transversal àquele exercido pelas
autoridades de parentesco. A autoridade político-religiosa se exerce assim
localmente, em contraposição às chefias de linhagem que exercem seu poder de
forma não-local, posto que a matrilinhagem se encontre dispersa no espaço.
Pode-se considerar, portanto, as igrejas, no contexto de Luanda, como uma
estrutura de sociabilidade local transversal à de parentesco.
Retomando a discussão sobre a transmissão via paterna de poder territorial e
espiritual, vemos como esta relação é homóloga ao processo de fragmentação das
igrejas, evidenciada pelo poder dos líderes religiosos exercido localmente.
Seguindo este argumento, da mesma forma que a fragmentação de linhagens no
sistema kongo era regulada através de uma linguagem de parentesco (relação
tata-mwana), pode-se afirmar que a estrutura transversal de sociabilidade e
poder efetivada pelas igrejas e pelo sistema pastor lideranças religiosas
fiéis, mantém relações de continuidade com as relações de parentesco efetivadas
pela linhagem (kanda). Sugiro assim, que o padrão de multiplicação das igrejas
entre os bakongo obedece, em parte, a padrões de fragmentação de grupos de
parentesco já descritas na bibliografia sobre o grupo.33 Portanto, a
sociabilidade e organizações baseadas nas igrejas e aquelas baseadas no
parentesco possuem uma relação complexa e interdependente, e não de sucessão.
Conclusão
As questões aqui discutidas, de transformações sociais e culturais, que em
Angola foram agudizadas por uma guerra contínua, dizem respeito a um processo
global de mudanças de padrões culturais dados pela urbanização acelerada, pela
alteração das formas de sociabilidade através da integração ao conjunto
nacional. Essas mudanças tocam de perto os processos identitários e, em
consequência disto, a reformulação de demandas políticas num contexto ainda
autoritário, apesar da paz recentemente alcançada.
Reitero aqui que o modo como os grupos sociais pensam e reconstroem seus
percursos históricos, vividos sob o signo da mudança e da necessidade de
inserção nestes contextos difíceis, opera especialmente com a composição de
elementos e a partir de determinados sistemas de pensamento e ação que "façam
sentido" e que lhes permitam tentar controlar estas transformações e seu lugar
nelas.
Considera-se que uma das consequências promovidas pela urbanização aguda, no
caso angolano, mas também em outras situações africanas, seria o
enfraquecimento dos laços de parentesco e do seu papel como principal ordenador
social, em prol de outras formas de sociabilidade, autoridade e legitimidade
que vêm emergindo do processo de construção nacional e do espraiamento da
lógica de mercado. Este trabalho procurou distinguir-se de um senso comum que
supõe que laços de parentesco fragilizados neste processo de urbanização são
substituídos por outras relações, como religiosas, de vizinhança, ou por uma
etnicidade urbana "reinventada". Uma das perspectivas deste trabalho é que os
laços de parentesco, apesar de relativamente enfraquecidos no contexto urbano,
são somados e superpostos a outras formas de organização social. Esta nova
configuração, por sua vez, faz com que os laços de família e parentesco sejam
também recriados, garantindo sua permanência e pertinência como instância
fundamental nas redes sociais dos bakongo em Angola.
Texto apresentado em 25 de julho de 2011 aceito em 10 de outubro de 2011
1 Luena Pereira, "Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num
bairro de Luanda" (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2004).
2 Sobre movimentos religiosos africanos, ver: James Fernandez, "African
Religious Movements", Annual Review of Anthropology, n. 7 (1978), pp. 195-234. Sobre pentecostalismo em África, Birgit Meyer, "Christianity
in Africa: From African Independent to Pentecostal-Carismatic Churches", Annual
Review Anthropology, n. 33 (2004), pp. 447-74.
3 Georges Balandier, Sociologie actuelle de l'Afrique noire, Paris: PUF, 1963
[1955] ; John Thornton, The Kongolese Saint Anthony: Dona
Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706, Cambridge: Cambridge
University Press, 1998; António Gonçalves, Le lignage contre
l'Etat: dinamique politique Kongo du XVIéme au XVIIIéme siécle, Évora:
Universidade de Évora, IICT, 1985; Wyatt MacGaffey, Religion
and Society in Central Africa, Chicago: The University of Chicago Press, 1986.
4 Thornton, The Kongolese Saint Anthony.
5 Balandier, Sociologie actuelle; António Gonçalves, "Analyse sociologique du
Tokoisme en Angola", Anthropos,n. 79 (1984), pp. 473-83;
Martial Sinda, Le messianisme congolais et ses incidences politiques:
kimbanguisme, matsouanisme, autres mouvements,Paris: Payot, 1972; Alfredo Margarido, "The Tokoist Church and Portuguese Colonialism in
Angola", in Ronald Chilcote (org.), Protest and Resistance in Angola and Brazil
(Califórnia: University of Califórnia Press, 1972).
6 Baseei-me, para a caracterização do parentesco e do sistema social kongo,
principalmente em Balandier, Sociologie actuelle; e Wyatt MacGaffey, Custom and
Government in the Lower Congo, Berkeley/Londres: University of California
Press, 1970; MacGaffey, Religion and Society; António Gonçalves, Reestruturação do poder político e inovação social
na sociedade Kongo, Évora: Instituto Superior Econômico e Social de Évora,
1984; Gonçalves, Le lignage contre l'Etat.
Para o sistema social encontrado no Reino do Kongo, William Randles, L'ancien
royaume du Congo: des origines à la fin du XIXe siècle, Paris: EHESS, 2002
[1968] ; John Thornton, The Kingdom of Kongo. Civil war and
transition, 1641-1718, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1983; e Georges Balandier, La vie quotidienne au royaume de Kongo:
du XVI au XVIII siècle. Paris: Hachette, 1965.
7 Macgaffey, Religion and Society, p 18.
8 Macgaffey, Custom and Government; e Balandier, La vie
quotidienne.
9 Ver nota_6.
10 Audrey Richards, "Alguns tipos de estrutura familiar entre os bantos do
centro", in Radcliffe-Brown e Daryl Forde, Sistemas políticos africanos de
parentesco e casamento [African Systems of Kinship and Marriage] (Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1982 [1950] ).
11 MacGaffey, Custom and Government; e Gonçalves, Le lignage
contre l'Etat.
12 Gonçalves, Reestruturação do poder político, p 11.
13 Segundo Gonçalves, Reestruturação do poder político, p. 47, o casamento do filho com a prima cruzada patrilateral efetiva a
aliança entre pai e filho, assegurando o poder do filho sobre seu novo domínio.
14 MacGaffey, Custom and Government, p 55.
15 As relações de proximidade com o pai incluem a proteção contra a feitiçaria,
que é a forma pela qual se expressam as relações de disputa entre tios e
sobrinhos no sistema matrilinear. Sobre a complementariedade da linhagem
secundária (paterna) em sociedades matrilineares e sua função espiritual, ver
Victor Turner, O processo ritual: estrutura e anti-estrutura, Petrópolis:
Vozes, 1974, pp. 16-159.
16 Christine Messiant, "Angola, les voies de l'ethnisation et de la
décomposition. II - Transition à la démocratie ou marche à la guerre?
L'épanouissement des deux "Partis armés" (Mai 1991-Septembre 1992)", Lusotopie
- Transitions libérales en Afrique Lusophone (1995), pp. 181-220.
17 Peter Fry, "O Espírito Santo contra o feitiço e os espíritos revoltados:
'civilização' e 'tradição' em Moçambique", Mana, v. 6, n. 2 (2000), pp. 65-95.
18 Fry, "O Espírito Santo contra o feitiço", p. 82.
19 O Congo/Zaire, desde a história colonial, foi utilizado como bode expiatório
para certos fenômenos ocorridos em Angola, como a contestação nacionalista,
apontada pelos colonos portugueses como uma ação provocada exclusivamente do
exterior, alimentada pelo pânico que o conturbado processo de independência do
Congo causou entre os colonizadores. Depois, os regressados do Congo teriam
introduzido em Angola a desordem da economia informal e hoje a "desordem
religiosa". Esta acusação aos congoleses é feita pelos angolanos, inclusive os
de origem bakongo, que absorveram parte dos estereótipos que lhes são
atribuídos. Ver Luena Pereira, "Os regressados na cidade de Luanda: um estudo
sobre identidade étnica e nacional em Angola" (Dissertação de Mestrado,
Universidade de São Paulo, 1999).
20 Fátima Viegas, Angola e as religiões, Luanda: Do autor, 1999.
21 Sobre a Igreja Batista em Angola, James Grenfell, História da Igreja Batista
em Angola (1879-1975), Lisboa: BMS, 1998. Sobre a história
das igrejas em Angola, Lawrence Henderson,A igreja em Angola: um rio com muitas
correntes, Lisboa: Editorial Além-Mar, 1990.
22 A Igreja Tocoísta foi criada pelo profeta Simão Toco, mukongo angolano
emigrado no Congo. A igreja se tornou, ao longo do período colonial e depois,
uma igreja de âmbito nacional.
23 A distinção entre igrejas pentecostais e proféticas (também chamadas
africanas ou mpeve (y)a longo,termo kikongo para Espírito Santo) atende a um
critério de origem destas igrejas. Igreja profética ou africana seria uma
designação genérica para igrejas de origem africana (algumas herdeiras dos
chamados movimentos messiânicos ocorridos no período colonial), e pentecostal
seriam aquelas vindas da Europa ou da América. Quanto às práticas adotadas,
tais como rituais de cura, eventos de glossolalia e exorcismo, encontramos
entre elas mais semelhanças que distinções.
24 Língua materna dos bakongo
25 O lingala é a língua mais acionada na RDC, na região em torno da capital,
Kinshasa, que se expande para outras regiões do Congo e da África Austral. É a
língua do exército e, sobretudo, da disseminada música congolesa.
26 Línguas respectivamente do leste e do centro de Angola, esta, do maior grupo
étnico angolano, os ovimbundu.
27 Wyatt MacGaffey, Modern Kongo Prophets: Religion in a Plural Society,
Bloomington: Indiana University Press, 1983.
28 MacGaffey, Modern Kongo Prophets, p. 68.
29 MacGaffey, Modern Kongo Prophets, p.118.
30 Viegas, "Angola e as religiões", p. 301.
31 O trânsito de fiéis implica também no retorno destes às igrejas originais,
embora não tenha sido possível fazer um acompanhamento passo a passo do
trânsito religioso. Apenas tive notícia de retorno de fiéis às igrejas
anteriores, mas desconheço o impacto deste retorno.
32 MacGaffey, Modern Kongo Prophets, p. 62
33 Balandier, Sociologie actuelle; MacGaffey, Religion and
Society; Gonçalves, Reestruturação do poder político.