O imaginário da branquitude à luz da trajetória de Grande Otelo: raça, persona
e estereótipo em sua perfomance artística
If there are forty million African Americans, then there are forty million ways
to be black.
Henry Louis Gates Jr.1
Em seus quase 70 anos de carreira, Grande Otelo atuou nos mais diferentes
projetos do cinema brasileiro. De Moleque Tião (1943) a Carnaval Atlântida
(1953); de Amei um bicheiro (1953) a Rio Zona Norte (1957); de Macunaíma (1969)
a Nem tudo é verdade (1983). Otelo conseguiu ultrapassar as barreiras dos
gêneros e movimentos cinematográficos, indo da comédia ao drama, das chanchadas
ao realismo carioca, do Cinema Novo ao Cinema Marginal.
Ator cujo talhe corporal, a fisionomia e a cor são, em tudo, opostos àquilo que
se convencionou como padrão do herói, é um dos poucos na história do cinema no
Brasil que participaram de diferentes projetos cinematográficos, às vezes
opostos, e em papéis centrais nas tramas dos filmes, cravando sua imagem na
memória coletiva dos brasileiros que viveram no século XX. Como compreender
essa trajetória singular numa sociedade em que os espaços destinados aos
intérpretes negros na televisão, teatro e cinema ainda estão muito aquém do
destaque dado aos brancos? Mais do que me contentar com a simples resposta de
que Grande Otelo constitui uma exceção que confirma a regra, penso que o
itinerário do ator permite analisar, em certa medida, como marcadores raciais
são mobilizados no campo cinematográfico. Busco dialogar com as mudanças na
discussão sobre a representação e o lugar do negro na sociedade brasileira,
tema este que se transformou ao longo da carreira do ator e com o qual ele teve
de se debater em variados momentos.2
Em linhas breves, seu percurso se inicia com personagens que incorporam o
imaginário da democracia racial, nas chanchadas dos anos 1940 e 1950, passando
em seguida ao realismo carioca e aos filmes de Nelson Pereira dos Santos,
diretor que irá problematizar o lugar do negro e da população mais pobre na
sociedade brasileira. Otelo vive um momento de ostracismo na primeira fase do
Cinema Novo, que adota como prerrogativa uma forma distinta de retratar a
população afrodescendente. Na assim chamada terceira fase desse movimento, nos
finais da década de 1960, ele retorna como Macunaíma, de Joaquim Pedro de
Andrade, e abre seu leque de representações para distintos diretores, incluindo
aqueles ligados ao assim chamado Cinema Marginal. Antes, entretanto, de me
aprofundar nessa trajetória, discuto os conceitos que ajudam a aquilatá-la
melhor, levando em conta a dinâmica das relações raciais e as convenções do
campo cinematográfico.
Persona,estereótipo, raça e corpo na performance cinematográfica
Ao lidar com o itinerário de Grande Otelo, é necessário elucidar as variáveis
que conformam sua trajetória em termos raciais e a lógica das convenções do
campo cinematográfico, bem como a intersecção entre eles. Nesse sentido,
mobilizo ao menos três conceitos: personacinematográfica,
personamemorialísticae estereótipo. Vejamos cada um deles separadamente, para
depois, analisarmos o conjunto.
O conceito de personacinematográfica (ou artística), conforme definido por
Sobral, diz respeito ao elo entre o intérprete e seus personagens que, ao longo
da carreira, irredutíveis uns aos outros, são colados a uma imagem através do
aparato técnico-cinematográfico (leia-se roteirista, técnico de som, diretor,
editor), em distintas etapas do processo da produção à distribuição e recepção
de um filme. A persona cinematográfica constitui, assim
uma individualidade artística delineada pela performance na tela uma
vez que é discriminada entre os filmes ao longo da carreira , a
partir da qual é descrita através de traços físicos e gestos
corporais [...]. A implicação é que os personagens [de] dois [...]
atores não são intercambiáveis [...]. A noção de persona artística,
então, diferencia um intérprete de outro, ou seja, é um mecanismo de
distinção, não apenas artística, mas também, e fundamentalmente
social, uma vez que estabelece uma posição para se alojar na
estrutura de produção cinematográfica.3
Tal conceito ganha maior clareza por meio da comparação entre o cinema e o
teatro moderno: se neste, os louros são alcançados pela versatilidade dos
papéis interpretados, naquele, a persona se constitui a partir da fórmula em
que, a cada repetição de um mesmo tipo, fazem-se pequenas variações. Por um
lado, a estratégia evita um estranhamento maior de parte do público, por outro,
faz com que não se canse. Como define Barry King,4 no cinema há um processo de
personificação entre o ator e seu papel, ao passo que no teatro, o processo é
de despersonificação. O primeiro diz respeito ao uso de características
corporais e gestuais do ator para constituir um mesmo tipo idiossincrático ao
viver diferentes personagens. Em contraposição, despersonificar se refere ao
mecanismo em que o intérprete se despoja de suas características mais marcantes
para adentrar diversos papéis, a ponto de não reconhecermos o ator por trás
deles. Entretanto, trata-se mais de uma diferença de grau do que absoluta entre
a atuação no teatro e no cinema. Em outras palavras, no cinema o intérprete
representa a si mesmo, como em outras ocasiões definiram Walter Benjamin5 e
Paulo Emílio Salles Gomes.6 Mas, isso não significa menor habilidade do ator de
cinema.
Como demonstra Paul Mcdonald,7 a atuação no filme é diversa dos comportamentos
cotidianos realizados por qualquer pessoa: não basta colocar alguém
inexperiente para atuar numa ficção ou um ator apenas com formação teatral em
frente à câmera, sem um treinamento prévio. Noutras palavras, ao representar a
si mesmo, o ator precisa seguir determinados códigos e convenções, o que requer
aprendizado, pois o efeito de realidade da performance cinematográfica se
escora em atuar, sem parecer que se está interpretando.8 Como tal mecanismo
exige personificar o personagem à sua imagem e semelhança, talvez seja mais
apropriado dizer que o ator no cinema representa geralmente sua persona.
Nesse métier, a descontinuidade do tempo e do espaço entre a interpretação e a
exibição requer uma continuidade em outro plano, que se sustenta na semelhança
entre o personagem e o ator na vida pública, enquanto no teatro a continuidade
temporal e espacial da interpretação, no instante do palco, exige do ator uma
despersonificação para adentrar o papel. Vale lembrar que tais diferenças entre
performances (a do teatro e a do cinema) não são constantes, elas mudam com o
decorrer do tempo e de acordo com o contexto.
Vejamos, por meio de exemplos concretos, de que maneira atores como Grande
Otelo, apesar de possuírem características físicas aparentemente consideradas
desfavoráveis, conseguiram se destacar, seja no cinema, seja teatro, ou mudando
de um campo a outro. Lembro as análises de Gilda Mello e Souza acerca de Fred
Astaire; Beatriz Sarlo, sobre Evita Perón; e Heloísa Pontes, sobre as atrizes
do moderno teatro brasileiro, em especial Cacilda Becker.9 Tais autoras
compreendem que os significados atribuídos aos corpos das figuras públicas são
forjados em meio a uma rede de relações que se inserem nas convenções do teatro
e do cinema e produzem hierarquias, situando o lugar de cada artista. Mas, ao
contrário do que possa parecer, predicados corporais tidos como desfavoráveis
em determinado espaço nem sempre significam menos trunfos, tudo depende das
convenções e licenças poéticas de cada campo e do grau de autonomia e
conhecimento do intérprete para poder agenciá-las a seu favor e que,
acrescento, implica em vivenciar conflitos que envolvem relações de poder.
Um exemplo pode ser buscado na conclusão de Mello e Souza, para quem Fred
Astaire, por não ser considerado belo como Gary Cooper ou Gene Kelly, "manteve-
se gesto [...] libertando-se dos cacoetes da mocidade para se tornar na dança
um desenhista, um dançarino gráfico".10 Neste caso, a ausência de um físico
tido como socialmente belo não ofuscava seus gestos e dança, resultando
contrariamente em proeminência para seu talento.
No caso de Cacilda Becker, os "atributos físicos menos favoráveis", somados "às
artimanhas das convenções teatrais",11 das quais soube tirar proveito, lhe
deram versatilidade para representar os mais diversos papéis capacidade e meio
de consagração que lhe renderam o título de melhor atriz no assim chamado
teatro moderno brasileiro, diferenciando-a de uma atriz de beleza clássica como
Tônia Carrero, que por tal atributo pouco conseguiu despersonificar seus
papéis.
De modo similar, como mostra Sarlo, a atriz Evita "era diferente de todas as
estrelas de auditório. Não se encaixava em nenhuma das categorias em que se
dividiam as atrizes: nem olhos grandes, nem boca na moda, nem um corpo
nitidamente classificável num tipo".12 Entretanto, ela ganharia destaque como
primeira dama: "sempre que Eva é fotografada ao lado de mulheres de políticos e
militares, ela é a mais jovem e, além disso, é distinta. Nenhuma é tão magra
como Eva, nenhuma é tão fotogênica; quase todas têm o semblante perturbado pela
insegurança própria de quem não está acostumada a ser vista em público, fora de
seu círculo".13
Assim como essas figuras, Grande Otelo tinha características físicas
"convencionadas" como desfavoráveis. Mas diferentemente de Fred Astaire,
Cacilda Becker e Evita, sua cor da pele, tipo de cabelo e formato do nariz
ganhavam tal conotação adversa em meio ao imaginário racista, que mediavam os
"espaços dos possíveis"14 em diversos campos da sociedade brasileira, em que o
branco era eleito como o padrão, ainda que existissem graus de separação entre
os mais e os menos belos, os magros e os gordos, os altos e os baixos, por
exemplo. É nesse gradiente variado que a brancura se torna um paradigma, que as
orelhas proeminentes de Fred Astaire, a magreza de Cacilda Becker e o rosto
inclassificável de Evita representavam desvantagens não referidas diretamente
ao signo racial branco e, por isso, com maior probabilidade de serem
contornáveis. Já os intérpretes negros, para angariar espaço, tinham atenuados
alguns significantes que, do ponto de vista branco, ganhavam uma conotação
explicitamente racial: ora escolhiam-se artistas com esses traços abrandados,
como Lena Horne, ora se lhes demandava mudanças, como o alisamento dos cabelos
e maquiagens que clareassem a pele.
Do contrário, as características tidas como signos raciais negros deveriam ser
exageradas para atingir a exata medida da estereotipia racial, como ocorreu com
Louise Beavers que, para interpretar um dos únicos papéis destinados a negras
em Hollywood nos anos 30 o tipo Mammy, teve que fazer uma dieta de engorda e
aprender o sotaque sulista.15 Grande Otelo, formado em São Paulo, teve que
mudar tanto o sotaque vocal, quanto o gestual para adentrar o personagem de
moleque/malandro carioca, um dos poucos disponíveis aos negros. A baixa
estatura do ator, somada aos significantes racializados, seria transformada na
medida do lugar reservado pelo imaginário racial ao negro, de modo que não
ameaçasse as hierarquias do patriarcalismo branco. Esses exemplos revelam que
para analisar a trajetória de intérpretes negros, levando-se em conta as
convenções do cinema, é necessário ter em mente que o processo de
personalização e construção da persona cinematográfica vem acompanhado de uma
equação conflituosa com estereótipos raciais, que apresento a seguir.
Como pontuam Stuart Hall e Avtar Brah, o processo linguístico não é neutro e
arbitrário, mas sim um processo de negociação em que alguns detêm maior poder
de fixar determinados significados aos significantes do que outros.16 É na
distribuição desigual entre os significados associados às populações negra e
branca que o conceito de estereótipo ganha importância, na medida que revela a
recorrência de determinados significados que se naturalizam de forma
metonímica17 em relação à população afrodescendente, em oposições binárias
nítidas e extremadas: "bom/mau, civilizado/primitivo, feio/excessivamente
atrativo, repulsivo porque diferente/atrativo porque estranho e exótico. E são
geralmente_chamados_a_seremas_duas_coisas_ao mesmo tempo".18
Para além do conteúdo dos significados dos estereótipos, é necessário atentar
também para a sua dinâmica. Conforme Homi K. Bhabha, a crítica ao estereótipo
não se deve basear na ideia de que, em algum momento, haverá um porto seguro de
identificação entre o espectador negro e sua representação, uma vez que o
processo de significação é movediço, ambivalente e variável, criando um hiato
entre as novas e infinitas formas de representação atribuídas aos brancos em
relação aos grupos estigmatizados, quer racialmente ou por sua etnia.19 Isso se
torna mais compreensível ao observarmos de que modo o estereótipo funciona, na
perspectiva dos brancos, dentro de uma "estrutura de sentimentos" da
branquitude, como explica Richard Dyer:
O privilégio de ser branco dentro de uma cultura branca é não ser
objeto de estereótipo em relação à sua branquitude. Os brancos podem
ser estereotipados em termos de gênero, nação, classe, sexualidade,
habilidade e assim por diante, mas o ponto aberto dessa tipificação é
gênero, nação e etc. A branquitude, de modo geral, coloniza as
definições estereotípicas de todas as categorias sociais, menos
aquelas raciais. Ser normal, mesmo o normal desviante (queer,
aleijado), é ser branco. As pessoas brancas em sua branquitude são,
entretanto imaginadas como indivíduos e/ou infinitamente diversas,
complexas e em mutação.20
Como aponta o autor, "há também gradações de branco: algumas pessoas são mais
brancas que as outras", e é nessa variabilidade que reside a capacidade de
negociação e potência de sua representação. A liberdade do branco, desse modo,
é poder ser a medida de todas as coisas, sem que isso se refira à sua
branquitude, mas a uma pretensa ideia de individualidade neutra. Como analisa
Avtar Brah,
há uma tendência [...] de considerar o racismo como 'algo que tem a
ver com a presença de pessoas negras'. Mas é importante salientar que
tanto negros como brancos experimentam seu gênero, classe e
sexualidade através da 'raça'. [...] Tal desconstrução é necessária
se quisermos decifrar como e por que os significados dessas palavras
[homem e mulher branca/homem e mulher negra] mudam de simples
descrições a categorias hierarquicamente organizadas em certas
circunstâncias econômicas, políticas e culturais. 21
Ou seja, a "estrutura de sentimentos" da branquitude faz com que o racismo, ou
os estudos de relações raciais, sejam algo percebido como restrito ao universo
negro, se assentando na pretensa concepção desse imaginário de que o branco se
constrói destituído de uma ideia de raça. Como demonstra Dyer, o imaginário da
branquitude (ou, nos termos de Stam e Shohat, o eurocêntrico), é fruto de
séculos de uma dominação que produziu uma infinita visibilidade do branco nas
formas expressivas canônicas do ocidente, como a literatura, as letras de
música, o cinema e o teatro.22 Paradoxalmente, isto o tornou um ente invisível,
como se fosse destituído de raça. Em contraposição, a invisibilidade
generalizada do negro e de outros grupos estigmatizados na economia das
representações resulta numa visibilidade exagerada, pois suas aparições
pontuais são decodificadas como imagens equivalentes a toda a população negra,
ignorando-se o fato de que esta é tão complexa e diversa como qualquer grupo
humano.
Tendo em mente as análises de Bhabha, Hall, Brah e Dyer, citadas acima, defino
estereótipo pela distribuição desigual do processo linguístico, que em sua
dinâmica estabelece uma relação centrífugaentre os significados e os
significantes dados ao signo branco, ao passo que os significados ligados ao
signo negro têm um movimento centrípeto em relação aos significantes raciais
(i.e. cor/fenótipo/cultura). Noutras palavras, as representações do homem
branco têm infinitos pontos de dispersão; como pontua Dyer, elas colonizam
qualquer categoria social, menos a de raça, ao passo que os significados das
representações do afrodescendente retornam ao significante negro e, portanto,
às categorias raciais, situando-o não como o universal per se,mas na maioria
das vezes em posição relativa.
Ao conceituar o estereótipo em termos de sua dinâmica linguística, busco evitar
certa forma de crítica ao estereótipo23 que tem sido cooptável por aqueles que
buscam minimizar a variável racial nas desigualdades sociais.24 Refiro-me à
definição do estereótipo apenas como referência a representações corretas/
incorretas ou positivas/negativas25 e procuro mostrar, por meio da definição
acima, que a liberdade representacional do branco se fundamenta justamente por
sua variação e transformação infinita em imagens boas, más, complexas,
ambíguas, características corporais diversas que contribuem para alçá-lo ao
lugar de homem universal.26
É verdade, como têm apontado alguns autores, que uma boa atuação poderia
conferir maior complexidade a um personagem estereotipado.27 De fato, Grande
Otelo seria aclamado também em papéis desse tipo, e diversos atores negros se
valeram dessa estratégia para dar novos sentidos a seus personagens.
Entretanto, como é possível ver nas críticas da época, por vezes o ator negro
era aclamado justamente por interpretar muito bem um estereótipo.28 Isto
significa que uma boa atuação, com destaque inesperado de um personagem menor,
não é necessariamente uma forma de se contrapor à reprodução de estereótipos,
mas pelo contrário, pode reforçá-los, mesmo contra a vontade do ator. Desse
modo, a habilidade de Grande Otelo possibilitou que, por um lado, ele
encarnasse personagens nos conformes do imaginário da branquitude; por outro,
que o ator se integrasse a projetos cinematográficos que buscaram diversificar
a representação do negro.
Como lembra Avtar Brah, o racismo e outras formas de opressão não incidem do
mesmo modo sobre as trajetórias individuais, uma vez que tais formas de
dominação são históricas, contextuais e lidas através de experiências e
subjetividades que se diversificam de uma pessoa a outra. É nesse sentido que
considero produtivo apresentar o conceito de personamemorialística.
Para além de uma personacinematográfica, como nos ensina Luiz Costa Lima, todos
nós guiamos nossas vidas através de uma persona, espécie de "armadura
simbólica" ou "janela" que nos permite ver o mundo e ser visto por ele. 29 A
esse tipo de persona, acrescento o adjetivo memorialística para evitar
confusões com a cinematográfica, uma vez que "o seu discurso próprio é o
discurso memorialístico", como define Lima.30 Recuperando novamente as
reflexões de Avtar Brah, seria possível traduzir essa persona por aquilo que
ela chama de identidade, qual seja, o que é "enunciado como eu", ou o processo
pelo qual, a despeito de seu caráter múltiplo e instável, a subjetividade "é
significada como tendo coerência [...] como tendo um núcleo".31
Tanto a persona cinematográfica, quanto a memorialística são formadas pelos
papéis pelos quais determinado sujeito opta e/ou os que lhe são dados a
escolher. Uma vez definido um papel ou papéis, outras tantas alternativas são
fechadas, conformando-se, no caso da personacinematográfica, uma singularidade
artística que deve seguir uma regularidade no decorrer da carreira. No caso da
memorialística, à medida que o sujeito
se convence que o que exibe é mais do que um papel, passa ver o mundo
de acordo com as coordenadas deste e só de acordo com elas (tomar-me
como tímido ou arrogante ou cínico ou revoltado etc., implica
considerar os acontecimentos de uma certa maneira). A janela do papel
cria uma estrada de mão única. Diante dela, deixa de trafegar o que
não entra em seu ângulo de visão; [...] assim sendo, o mundo da
persona é antes um mundo sonhado do que visto; potencialmente, nele
não há contradição; no máximo, o desacordo, o surpreendente, o
inesperado.32
Embora sejam cunhadas em processos similares, a persona cinematográficaé
produto das convenções do campo do cinema, ao passo que a memorialística, das
próprias formas de rememorar, ambas podendo ou não corresponder-se entre si em
determinados momentos. No caso abordado neste artigo, é possível perceber como
elas se distinguem através das fontes de que lanço mão, a saber: os filmes que
Grande Otelo interpreta e suas entrevistas, que têm o registro memorialístico
variando conforme o momento e o público a que se dirige. É a partir dessas duas
formas discursivas que Otelo se move e se constrói, ao mesmo tempo em que é
movido e construído por aqueles que o veem. Diante de Grande Otelo, esse
conceito torna-se mais profícuo à medida que o próprio ator modula seus nomes,
conforme a persona utilizada: Grande Otelo seria no mais das vezes a persona
cinematográfica, que se diferencia de Sebastião Bernardes de Souza Prata, a
memorialística, usada pelo ator para tomar distância dos seus personagens,
Tião, Azulão, Espírito, Passarinho e Macunaíma, entre outros.
No fundo, essa distinção entre personas cinematográfica e memorialística busca
borrar as fronteiras impostas por uma pretensa dualidade entre aparência e
essência, como se houvesse um ser verdadeiro por trás dos papéis, ou como se
fosse possível separar a nomeação dos próprios nomeadores. Afinal, o
distanciamento só é possível, conforme Lima, quando se muda da dicção
memorialística para a ficcional ou ensaística, ou "só parece praticável quando
um hiato se depõe entre o memorialista e o tempo rememorado". Do contrário, tal
processo seria "semelhante ao ato de quem arrancasse a própria pele".33
Dito isto, atino para hipótese de que, diferentemente do que ocorre com atores
brancos, a personacinematográfica e amemorialística de Grande Otelo são,
durante todo o seu itinerário, acossadas pelos estereótipos raciais. Nesse
sentido, seus papéis fílmicos e sociais são marcados por uma visão reducionista
do negro, recaindo sob suas costas aquilo que Henry Louis Gates Jr.34 define
como o "fardo da representação racial", na medida que suas ações a exemplo
daquelas dos grupos estigmatizados são examinadas como atitudes que
invariavelmente traem ou honram seu grupo.
Se a persona protege qualquer ser, ao mesmo tempo em que o aprisiona, no caso
de Grande Otelo, a personacinematográfica e memorialística por vezes
corresponderá ao estereótipo racial especialmente ao de "moleque malandro".35
Isto ocorre por conta da distribuição desigual de personagens e papéis sociais,
fruto de uma repartição desproporcional de bens materiais e simbólicos baseada
na raça. Por outro lado, em certos momentos em que ele consegue distanciar-se
em relação ao tempo rememorado, eclodem conflitos entre a personamemorialística
e os papéis representados anteriormente, com seguidas tentativas de buscar
apaziguamentos, procurando descarnar-se de uma personaa outra, num movimento
colidente e doloroso.
Mas, se há uma distribuição desigual dos significados no processo linguístico,
que constrange a trajetória dos afrodescendentes, como explicar a singularidade
do itinerário de Grande Otelo em relação a outros atores negros e brancos 36 no
cinema brasileiro, que possibilita cruzar diferentes movimentos
cinematográficos desde 1930 a 1980? A partir dessa questão e do que foi exposto
acima, é possível apresentar melhor a hipótese deste artigo. Argumento que o
itinerário de Otelo no cinema define-se por três fatores complementares: em
primeiro lugar, este ator e sua personacinematográfica tornam-se lugar de
expressão das vicissitudes da atribulada formação do campo cinematográfico no
Brasil, encarnando diferentes projetos; segundo, sua persona cinematográfica
ememorialística varia conforme as representações raciais se transformam no
interior do campo cinematográfico; por fim, ao adquirir uma habilidade
artística enorme, e por ter passado a maior parte de sua vida entre os brancos,
ele aprendeu estratégias para negociar com tal imaginário, sem ferir os brios
de uma sociedade racista que, como definiu Florestan Fernandes, tem
"preconceito de não de ter preconceito",37 angariando assim um espaço ímpar.
Sua singularidade no campo cinematográfico está mais fortemente ligada,
portanto, às vicissitudes desse espaço do que a uma mudança de mentalidade
geral na sociedade brasileira com relação ao imaginário da branquitude, uma vez
que os estereótipos que ele encenou nos anos 30 voltarão em seus papéis no
final de sua vida, mas agora na televisão.
Reconhecendo os limites impostos neste artigo, que impossibilitam fazer jus a
uma trajetória tão complexa, pretendo pontuar recorrências na vida do ator e
momentos que exemplificam mudanças, à medida que apresentem contribuições às
questões acima mencionadas. Prossigo, portanto, com dados biográficos que
esclarecem a entrada de Grande Otelo no campo do entretenimento, na década de
1920.
A infância de Grande Otelo e a Companhia Negra de Revistas
Nascido em Uberlândia (MG), a 18 de outubro de 1917, Sebastião Bernardo
Silva,38 como foi batizado, entrou cedo em contato com o mundo artístico. Filho
de Maria Abadia de Souza e de Francisco Bernardo Costa, ambos agregados de
famílias abastadas do triângulo mineiro, o menino apelidado Tião preferia
perambular pela cidade a ficar na escola onde era o único aluno negro. Diante
de uma professora que o repreendia, imaginando que o menino tinha dificuldades
de aprendizagem, na sala de aula vivia em desconforto. Já na rua, aprendeu a
cantar com a proprietária do Hotel do Comércio, que se valia do menino para
ajudá-la a receber os viajantes que chegavam à procura de uma noite bem
dormida. Com os trocados recebidos, aproveitava para assistir a filmes, comprar
guloseimas e a revista Tico-Tico, que via nas mãos dos filhos do patrão de seus
pais, mas que não tinha oportunidade de ganhar. Em suas cantorias pela cidade,
não tardou para que o menino se tornasse atração do Circo do Serrano, seja na
pantomima O tesouro,ou em Os bandidos da serra morena. É nessa época que a
família branca Gonçalves, dirigente da Companhia de Comédias e Variedades Sarah
Bernhardt, se hospeda no Hotel do Comércio e vê Sebastião. Com os Gonçalves ele
se muda para São Paulo, como filho adotivo. Também com eles, aprende monólogos
teatrais e canções brasileiras. Entretanto, a relação que mantém com a família
adotiva envolve desempenhar um trabalho pesado para crianças, revelando a
existência de um legado escravista ainda vivo.39 Ao acompanhar sua tutora nas
aulas de canto, Sebastião recebe o apelido de "Otelo" do maestro italiano
Filipo Alessio, que tentava prever o futuro do tenorino: dizia que quando
adulto, ele seria um intérprete da ópera homônima de Giuseppe Verdi (1887). Ao
relatar essa previsão, Otelo recriava em sua personamemorialística a ideia de
um destino incontornável, enquanto lamentava: "mas não deu certo, nem cresci e
nunca cantei ópera". 40
Em seus primeiros anos de carreira, as oportunidades abertas para o ator
ficaram restritas aos lugares destinados aos artistas negros e aos atores
mirins: o circo, a música e os teatros de variedades. Vale lembrar que, nesse
período, o ator negro Benjamin de Oliveira fazia sucesso no Circo Spinelli, no
Rio de Janeiro.41 João Cândido da Silva, De Chocolat, montava sua Companhia
Negra de Revistas, inspirado pela Revue Nègre parisiense, que ganhava destaque
com Josephine Baker.42 As duas companhias de revista eram compostas apenas por
artistas negros. Além de De Chocolat, ganharam destaque na Companhia
Pixinguinha e Donga que, a partir dessa época, receberiam notoriedade no
cancioneiro nacional. Com efeito, foi nesse período que se iniciou a voga do
Negrismo em Paris, com influências duradouras sobre o campo do entretenimento
brasileiro. Como explica Tiago Melo Gomes, no Brasil, em que grande parcela da
população era "de cor", diferentemente de Paris, o sucesso das novas atrações
francesas ganhava contornos distintos, abrindo possibilidades para uma maior
aceitação dos artistas negros e dos elementos de matrizes africanas nos
palcos.43 Tal processo teria contribuído para integrar, com restrições, o
negro, além do carnaval e do samba, na constituição de uma identidade nacional
brasileira.
Grande Otelo, destarte, insere-se no campo do entretenimento num momento de
maior abertura para atores negros, apesar dos papéis e tipos restritos. Ainda
sob a custódia da família Gonçalves, ele é contratado pela companhia dirigida
por De Chocolat para a estreia em São Paulo em outubro de 1926. Faz turnê por
várias cidades, interpretando peças sugestivamente intituladas Tudo Preto;
Preto no branco; Café torrado; Carvão nacional; e Revistas das revistas,
recebendo inúmeros elogios, que o destacavam como o melhor ator da Companhia. O
cronista da Tribuna de Santos, por exemplo, guarda
para o fim uma referência especial ao Pequeno Otelo, artistazinho de seis anos
de idade, vivo, esperto, como um azougue. É o melhor ator da companhia [...]
diz com naturalidade admirável poesias e monólogos em espanhol, italiano,
português etc. [...]. Em suma, a novidade que a Companhia Negra de Revistas
representa no teatro nacional deve ser encorajada como uma louvável iniciativa
para o levantamento moral da raça.44
![](/img/revistas/afro/n48/a03img01.jpg)
O aspecto mais destacado por este e outros cronistas era o fato de uma criança
declamar de memória poesias e monólogos em várias línguas. O virtuosismo e a
atuação como de um adulto era o elemento que o campo de entretenimento mais
buscava enfatizar em artistas mirins, como os brancos Jack Coogan e Shirley
Temple e o negro Allen Clayton Hoskins, o Farina. No caso de Otelo, sua baixa
estatura dava a impressão dele ser mais novo do que era, impressionando ainda
mais a plateia e os cronistas.45 Além disso, a cor seria enfatizada pelos
críticos, que atribuíam à Companhia Negra de Revista o papel de "levantamento
moral da raça", construindo sua crítica sem levar em conta suas inovações
formais dentro do gênero.
Mas o sucesso do pequeno Otelo duraria pouco. Em fins de abril de 1927, seus
tutores o buscam em meio à turnê no Espírito Santo, para voltar a São Paulo.
Após o retorno, ele foge, mora na rua e num abrigo de menores, até ser adotado
pela família do advogado Antônio de Queiroz, que se teria encantado com os
dotes artísticos do menino. Otelo passa a viver no bairro de Higienópolis e
estudar no Liceu Coração de Jesus lugares frequentados pela elite paulista. É
momento de uma socialização intensa com brancos, que lhe daria um traquejo para
lidar com eles sem ferir os brios e as hierarquias tácitas e, por vezes
explícitas, existentes nas relações raciais em uma cidade bastante segregada
como São Paulo.
Em 1932, ele canta hinos na Rádio Educadora em apoio à campanha
constitucionalista de São Paulo contra a Ditadura Vargas. Com cantores dessa
emissora, aprende a entoar jazz. Sob a custódia da família Queiroz, ele fica
até 1933, quando decide seguir a carreira artística. Em 1934, é contratado pela
Companhia de Revistas de Jardel Jércolis, que fazia turnê pelas cidades
paulistas. Entretanto, os monólogos, canções e números aprendidos na infância e
na Rádio Educadora não arrancaram aplausos do público carioca. Já crescido, a
estatura baixa, media por volta de um metro e meio, não mais contribuía para
que os longos textos recitados em diferentes línguas impressionassem a plateia,
que antes o aclamara como criança prodígio. Acrescente-se, como revelam as
resenhas teatrais da época46 e o próprio ator lembraria mais tarde, que público
carioca acharia seu sotaque paulista acentuado em demasia para interpretar os
dois únicos papéis disponíveis aos artistas negros: o de sambista malandro e o
de jazzista americano.47 A reinserção de Otelo na carreira artística enfrenta
uma indefinição durante dois anos, tempo em que canta jazz e faz papéis de
negro americano e pequenas pontas de malandro sem sucesso, enquanto se dedica a
conhecer a boemia, o samba e o sotaque carioca.48
A volta do sucesso: o teatro de revista, o Cassino da Urca e as chanchadas
No final de 1936, Grande Otelo é finalmente aclamado pelo público na peça
Maravilhosa,com o número Tabuleiro da Baiana, em parceria com a "mulata" Déo
Maia.49 O teatro de revistas e o próprio ator passam a incorporar cada vez mais
em seus esquetes e atrações aquilo que estava sendo construído como o folclore
nacional, com grande destaque para a Bahia, as baianas, samba, frevo e uma
estética estilizada dasreligiões afro-brasileiras.50 Com efeito, é nessa época
que diversos elementos de matrizes africanas são transformados em marcos da
identidade oficial, passando por um processo de supressão de qualquer aresta
que pudesse desbancar o imaginário branco. Feijoada, carnaval, samba e capoeira
convertem-se em símbolos oficiais da identidade brasileira;51 no futebol, dá-se
a profissionalização dos jogadores negros. Igualmente, os palcos dos cassinos,
emissoras de rádio e produtoras de cinema como a Cinédia e, posteriormente, a
Atlântida passam a incorporar tais elementos que encontravam a simpatia do
público.52 Tal fenômeno resulta em imperativos específicos para os atores e
atrizes negros caso de Grande Otelo; e produz novas expectativas, com as quais
terão de dialogar, na condição de quererem permanecer no campo.
Grande Otelo e Déo Maia fazem turnê pelo Estado de São Paulo e, logo depois,
são contratados pelo mais conhecido cassino da época o da Urca, onde encenam
diversos números carnavalescos. Também remontam a esse período as incursões
cômicas que lhe renderam loas, especialmente quando se travestia de mulher
loira, ou quando parodiava o cantor argentino Carlos Gardel. Já no filme Onde
está a felicidade? (1938), Otelo interpreta o papel de moleque preguiçoso e
malandro que além de consistir num dos estereótipos que, à época, estavam mais
associados à população negra, se tornaria sua persona cinematográfica,
percorrendo toda a sua carreira.53
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Redesenham-se, portanto, os lugares de Grande Otelo no campo do entretenimento:
nos cassinos, teatros de revistas e cinema, ele faz esquetes cômicos no papel
de moleque, além de números folclóricos com samba e carnaval. Também marca
presença nos filmes do gênero cinematográfico de maior sucesso, nos idos de
1940 e 1950, a chanchada, que uniu, em suas tramas de intenção cômica, esquetes
e números carnavalescos do teatro de revistas e dos cassinos. Grande Otelo
desponta ao fazer par com Oscarito e, posteriormente, com Ankito, ambos
comediantes brancos. A dupla formada por um branco e um negro reforça
justamente os marcadores raciais e a estatura de cada comediante, buscando
obter efeito humorístico em tramas que abordam: 1) a transformação de um
sujeito inábil em herói; 2) a inversão de hierarquias sociais; 3) trocas de
papéis; 4) nomes que frequentemente remetem à cor; e 5) relacionamentos
afetivo-sexuais entre brancos e negros.
Em filmes como Aviso aos navegantes (1950), Carnaval Atlântida (1952), Dupla do
barulho (1953), Matar ou correr (1954), Grande Otelo interpreta personagens de
classe baixa que, no decorrer do enredo, ganham destaque. De ajudante de
cozinha de um transatlântico a herói da tripulação, de faxineiro de estúdio
cinematográfico a colaborador do filme, de ajudante de circo à grande atração
do picadeiro, de vagabundo a herói de uma cidade. A escalada de tais figuras é
inesperada, ocorrendo por um golpe de sorte. Nesse tipo de enredo, calcula-se o
efeito cômico com base no processo de transformação de um personagem
aparentemente inábil em herói,54 mas também não se busca ultrapassar certos
limites, bem expressos pelo fato de Grande Otelo estar na maior parte das vezes
num patamar abaixo do de Oscarito.
Em meio a tal projeto, a cor, a proporção corporal e a fisionomia arredondada
de criança de Grande Otelo serviram de suportes ao humor, à medida que
sintetizavam tudo aquilo que diferia do herói cinematograficamente construído,
branco, alto e de rosto anguloso caso, por exemplo, de Bing Crosby, em
Hollywood; e Anselmo Duarte, no cinema brasileiro. As próprias convenções da
comédia permitiam tais licenças, vez que esse gênero construía seu humor
através da rigidez e normatividade existentes nas relações sociais e
representadas em outros gêneros cinematográficos, como o drama. Além disso, os
mesmos atributos que o habilitavam para o papel de moleque nesse tipo de
produção também contribuíam para que sua transformação em herói jamais
suplantasse o mocinho e o comediante brancos.
Mais especificamente, a manipulação de uma gama de significados sociais
indexados à cor e de outros atributos físicos do intérprete era feita por meio
de associações entre a posição social do personagem negro, suas características
corporais e seus nomes, não raro alusivos à sua cor caso de Azulão, Rapadura,
Milk Shake e Xis Cocada. No caso de Azulão, procurava-se encontrar efeito
cômico na sobreposição entre o nome no aumentativo e a baixa estatura do ator.
Outras justaposições reforçam, por contraste, a cor de Otelo, por exemplo,
quando ele parodia o tipo de palhaço conhecido como branco o clown , a Julieta
de Romeu e o cantor branco argentino Carlos Gardel. Referências entre
personagem e a origem racial, inexistentes nos papéis de Oscarito, José Lewgoy
e Anselmo Duarte, visto que estes encarnavam outras e diversas categorias
sociais, sem nunca estarem restritos por sua brancura.
Outro ponto que chama a atenção para a fabricação da persona
cinematográficaatravés do corpo de Grande Otelo é que na maioria desses filmes,
seus personagens dão vazão à ideia expressa pelas interpretações que se
tornaram clássicas sobre o Brasil, de que o homem negro está fora do mundo dos
afetos e dos prazeres, como observa Laura Moutinho.55 Apenas em Também somos
irmãos (1949) e Dupla do Barulho (1954), o tema das relações afetivo-sexuais
entre brancos e negros é abordado, mas enquanto tabu. Nestes filmes, os
personagens negros são castigados ao longo da trama por nutrirem o desejo de se
casar com mulheres brancas. Somente na comédia Aviso aos navegantes, esse tema
é abordado visando explorar elementos que poderiam ser percebidos, em seu
tempo, como disparatados: no início, o personagem de Grande Otelo está
acompanhado de uma mulher branca argentina; no final, de duas loiras altas.
Os casos são representativos dos usos da chave humorística para expor
constrangimentos e interditos sociais, procurando extrair efeito cômico da
contradição entre a aparência de Otelo e sua desejabilidade no terreno sexual.
Mais além, são exemplos que revelam justamente os limites de sua
personacinematográfica, encerrada na corporalidade do estereótipo de um negro
infantilizado por sua estatura e trejeitos cênicos. Vale reforçar a consonância
entre tal modelo de comicidade e o patriarcalismo branco que adere à convenção
cinematográfica de cariz hollywoodiano _ e isso a despeito de se colocar em
cena, no Brasil, o tema da miscigenação racial.56 Na mesma época das
chanchadas, o próprio Otelo, a partir de um relato memorialístico em que
contrapunha momentos diferentes de seu percurso, nos dá os elementos para
pensar em quão conflituosa era sua relação com a personacinematográfica à qual
estava ligado aquela esperada pelo público, persona que ele próprio ajudara a
fabricar, mas que fugia ao seu controle. Apresentando o projeto de protagonizar
a lenda gaúcha do Negrinho do pastoreio,57 o ator falava de como, apesar de
toda a sua habilidade para viver diversos papéis, as expectativas estavam
continuamente a recolocá-lo em lugar fixo:
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Eu estava acostumado "a sério", declamando, no estilo que mais me
agradava, poesias e trechos dramáticos. No Rio, porém um dia, fui
cantar no "No Tabuleiro da Baiana" em dupla com Déo Maia, e me
lembrei de fazer o que sempre me aconselhavam: pôr os beiços para
fora, balançar o corpo, fazer palhaçadas. Foi um chuá! De lá para cá,
com grande tristeza minha, venho fazendo só isso. Nada de arte, e sim
uma comicidade fácil, baseada apenas na exploração do meu tipo
humano, mirradinho, e na minha cor.58
A partir desses exemplos, é possível observar que a inserção do ator no campo
de entretenimento foi consoante com as representações raciais veiculadas pelo
que se constituiu como o conjunto das interpretações clássicas sobre o Brasil,
especialmente no caso dos personagens assexuados; foi, ao mesmo tempo, coetânea
ao processo de conversão dos símbolos de matrizes negras em emblemas nacionais,
mantendo intocadas as posições favoráveis à elite branca. Os filmes do período
divulgavam certa versão edulcorada da chamada "democracia racial", que parecia
se cristalizar na dupla formada por Grande Otelo e Oscarito que ora se ajudavam
mutuamente, ora zombavam-se entre si, para no fim terminarem como velhos e bons
amigos. Tudo se passava, portanto, como se não houvesse preconceito racial. As
personagens de Grande Otelo na chanchada cairiam como luva para a construção de
uma imagem cinematográfica do negro engraçado, malandro, mas também obediente,
diversa da ideia de revolta com que aparece em Também somos irmãos,do chamado
Realismo Carioca, ou de maldade, como acontecia nos filmes da década de 1920,
interpretados por outros artistas negros.59
O realismo carioca e as posições políticas de Grande Otelo
Apesar de suas tensões com os papéis cômicos,Grande Otelo seria um dos poucos
atores da época a incorporar à sua persona cinematográfica personagens
dramáticos, como nos longas Amei um bicheiro (1952) e Moleque Tião (1941), este
último baseado em sua própria biografia.
Tratava-se de uma façanha para poucos no campo cinematográfico da época, visto
que nem o eterno cômico Oscarito, ator que ganhava o primeiro crédito nas
chanchadas, nem o vilão José Lewgoy, formado em artes dramáticas em Yale nos
EUA, conseguiram readaptar suas personas cinematográficascom tanta propriedade
quanto Otelo.
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No terreno dos dramas, o papel de Grande Otelo no filme Também somos irmãos
(1949) traz outra dimensão à sua persona: o de revoltado. Realizado no final da
década de 40, o longa coloca em cena esse ator ao lado de Agnaldo Camargo e
Ruth de Souza, ambos do Teatro Experimental do Negro (TEN). Fundado no Rio de
Janeiro em 1944, por Abdias do Nascimento, o TEN buscou problematizar "a
representação [...] e os papéis que [...] eram reservados"61 aos
afrodescendentes, ao mesmo tempo em que não deixou de inserir suas
reivindicações no panorama naciona lista, reafirmando até certo ponto um ideal
de "democracia racial"62 cultivado pelo Estado Novo. Assim, o TEN produzia
peças de autores como O'Neill, trazendo uma representação diferente do negro,63
mas, simultaneamente, chamava pessoas que divulgavam certos estereótipos
associados ao negro, como Grande Otelo e Ary Barroso, para participarem de seus
eventos. Além disso, o Teatro realizava outras atividades, como cursos de
alfabetização, seminários, sessões de terapia e um concurso de beleza.64
Devido a esse contato com o TEN, o filme Também somos irmãostraz novas
perspectivas para a representação do negro, elegendo como tema o preconceito
racial. Grande Otelo (Miro) e Agnaldo Camargo (Renato) interpretam dois irmãos
que, durante a infância, foram criados por uma família branca, discordando um
do outro na vida adulta sobre os caminhos que se deve tomar para enfrentar o
preconceito racial. Miro é um sambista malandro que vive de expedientes escusos
e expressa uma atitude radical: defende que o negro deve ficar na favela junto
a seus pares, rejeitando sua família de criação e valorizando as próprias
raízes leia-se samba e carnaval, na visão do filme. Já Renato interpreta um
estudante de Direito que sonha em ascender socialmente e casar com sua irmã de
criação branca. É nesse filme que o personagem de Grande Otelo afirma para o
irmão: "A minha alma é mais preta do que essa mão que você está vendo [...]
preto com alma branca é fantasma!".
Ao interpretar Miro, Grande Otelo dialogava com os outros papéis cômicos de
sambista e malandro, a diferença ficando justamente na raiva presente neste
personagem de Também somos irmãos. Mas agora, seu tipo corporal e seus papéis
passados, mais do que atrapalhar, tornavam-se meios para que o conteúdo radical
de suas falas não amedrontassem e violassem a ufania do espectador. Além disso,
no epílogo do filme, a tentativa de vingança de Miro contra seu pai de criação
acaba prejudicando a si mesmo e ao seu irmão, o que suscita julgar sua atitude
como infantil. Seu tipo e personacinematográfica, entretanto, o afastavam do
papel do estudante de Direito vivido por Agnaldo Camargo (alto, magro e com
rosto afilado) e que representava o ideal de integração entre brancos e negros.
O parco sucesso de público, também devido ao período em que o filme foi
exibido,65 sugere que a associação entre a ideia de revolta e a persona
cinematográficade Grande Otelo, assim como o tema do preconceito racial foram
menos atrativos ao espectador do que os papéis interpretados pelo ator na
chanchada e os enredos destes filmes. O longa-metragem, entretanto, foi
aclamado pela crítica, que via com maus olhos os musicais carnavalescos. Ganhou
o prêmio de melhor filme do ano (1949) e Grande Otelo, o de melhor ator pela
Associação Brasileira de Críticos Cinematográficos.
Poucos meses depois da estreia de Também somos irmãos, ocorreria a maior
tragédia da vida do ator, que ganhou manchetes nos jornais: a esposa de Otelo,
Lúcia Maria, matou seu filho Chuvisco e, em seguida, suicidou-se. O episódio,
de difícil recuperação para o ator, voltaria em várias entrevistas ao longo da
carreira, bem como a característica visceral que agregaria elementos de
verossimilhança a seus personagens, tanto trágicos, quanto cômicos, mesmo
contra a sua vontade.66 Na semana da tragédia, José Lins do Rêgo, colaborador
do jornal do O Globo, escrevia um artigo em apoio ao artista, no qual descreve
ter visto a persona do atorse rasgar. Naquela noite
via a cara que é uma fonte de riso transformada em uma cara de
sofrimento, de amargura, de desespero. E li o noticiário impiedoso e
quase chorei, e uma repulsa geral pelos homens atiçou-me na alma a
vergonha de ser de uma sociedade de sádicos, de doentes de espírito.
Caro Otelo, estou contigo. [...] Ontem à noite, a força de um
contrato te levou ao palco para fazerem os outros rirem. E dizem que
não suportaste a dor. E a tua máscara se rasgou em público. E o
público que queria gozar o cômico arrasado pela dor, muito terá
sofrido, apesar do sadismo monstruoso. O pranto de Otelo abafou a
sala, encheu o teatro, rompeu a rua, correu para o apartamento vazio,
onde o seu Chuvisco, coitado, era uma sombra de menino morto.67
Esse instante do palco não passou para a cena cômica da fita Carnaval no fogo,
que Grande Otelo filmou logo após o enterro. Como lembraria anos depois o
diretor branco do filme, Watson Macedo, a cena emblemática do Otelo vestido de
Julieta, com Oscarito de Romeu, fora filmada nessa ocasião. Nos intervalos das
tomadas, Otelo caía aos prantos, mas em frente à câmera encenava uma de suas
sequências cômicas mais aclamadas. A vida, o corpo e a própria tragédia do ator
viravam matéria-prima de sua personacinematográfica, e posteriormente
memorialística, que ganhava agência própria através dos filmes, notícias de
jornais e nas lembranças de cada espectador.
Em 1953, ele voltaria ao papel dramático em Amei um bicheiro. Em uma cena
memorável, para salvar seu amigo mafioso, o personagem de Otelo morre sufocado.
Em 1957, paralelamente às comédias, Grande Otelo é o ator principal do filme
Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos diretor que inova ao representar o
negro como símbolo da classe explorada e possível devir histórico. Otelo
encarna o talentoso sambista Espírito que, ludibriado pelos empresários da
indústria fonográfica, tem suas composições roubadas. O ator seria a
corporificação desse personagem que representa o povo bom, generoso, porém
ingênuo e alienado, cuja pequenez do corpo e fisionomia infantil Grande Otelo
interpretando Passarinho minutos antes de morrer em Amei um bicheiro(1953)
contrastava com as atrizes e os atores brancos, altos e esbeltos que viviam a
burguesia. Se, no registro cômico, suas características corporais potencializam
justamente o inverso, ou seja, de anti-herói a herói, no registro dramático o
mesmo corpo reforça o sentimento de pena diante de uma figura vulnerável,
tornando-se foco de uma identificação imediata com o espectador. No decorrer da
trama, Espírito perde o filho e, ao final, ao tomar consciência da exploração,
morre ao cair do vagão de um trem.
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Os papéis em dramas, como Moleque Tião, Também somos irmãos e Rio Zona Norte, e
as notícias trágicas em sua carreira diversificavam a gama de personagens
negros no cinema e na mídia. Mas apesar do papel importante desses filmes na
construção de narrativas contra-hegemônicas, eles estavam longe de desconstruir
estereótipos. Como nos lembram Stuart Hall e Homi Bhabha, os estereótipos são
ambivalentes ao se movimentarem entre pólos extremos. Isto se deve, segundo
tais autores, à própria formação do discurso colonial que constitui a origem
primeira desse tipo de representação, pois ele mobiliza continuamente
sentimentos contraditórios, entre o desejo e o terror. Na medida que Otelo
reconhecido ator de comédias se torna visível nesses dramas, sua
personacinematográfica passa a referir-se aos extremos de outro par de
oposições estereotípicas: ele é ora extremamente alegre, ora intensamente
triste porquanto, está sempre nos extremos. Isto significa que esses filmes,
ainda que criassem representações antirracistas, eram insuficientes para
escapar da dinâmica própria à reprodução de estereótipos.
Entre as poucas fontes desse período em que é possível observar as opiniões e
percepções de Grande Otelo sobre as relações raciais, está o anúncio de sua
candidatura a vereador pelo PTB em 1958. Nele, Otelo aposta no lado cômico de
suapersonacinematográfica, exprimindo uma perspectiva diversa daquela nutrida
pelo TEN e da mensagem veiculada pelos personagens trágicos que interpretara
sobre as relações raciais. Seu slogan anunciava: "Não vote em branco; vote em
Grande Otelo". O dístico é um jogo entre termos, que potencializa a ambiguidade
da palavra "branco" nesse contexto, ou seja, a dupla referência à cor da pele
do candidato e a uma das opções de voto. No cartaz da campanha, fica mais clara
uma opinião sobre as relações raciais no Brasil. Nesta peça publicitária, Otelo
aparece dizendo "o negro é que está criando o problema do negro no Brasil", o
que vem seguido por frase do dr. Lyrio Coelho _ "eu só me lembro que sou negro
quando vou ao espelho".68 O cartaz parece sugerir que, na opinião de Grande
Otelo, a população negra agenciaria um discurso "racial" em torno de um
problema inexistente. A ideia parecia reforçada pela frase do dr. Coelho,
apresentado como um homem "negro" que não se sentia vítima de preconceito e,
portanto, só se lembra de sua "cor" quando ia ao espelho. Otelo não conseguiu
se eleger, pois o PTB retirou sua candidatura antes do pleito.69
Cinema Novo e Macunaíma: outra visão sobre o negro
Apesar de ter interpretado papéis dramáticos com profundidade em Moleque Tião,
Também somos irmãos, Amei um bicheiro e Rio Zona Norte filmes em cuja atuação
foi elogiado por Glauber Rocha70 na Revisão crítica do cinema brasileiro,
Grande Otelo não faria parte do elenco de atores centrais da primeira fase do
Cinema Novo. A década de 1960 é um período de pouco sucesso para o artista no
cinema, quando ele continuaria trabalhando em espetáculos de boates, no teatro
e na televisão. As chanchadas não rendiam a mesma bilheteria das décadas de
1940 e 1950, migrando do cinema para a televisão e mantendo-se viva através de
programas de auditórios, como o de Chacrinha, e nas telenovelas. Já os
diretores do movimento estético que entrava em voga no momento não o chamariam
para seus filmes. Consagrada nas chanchadas, a persona cinematográfica de
Grande Otelo já não convinha.
O Cinema Novo pode ser visto como produto de uma "estrutura de sentimentos" que
Marcelo Ridenti chamou de "brasilidade revolucionária". Segundo o autor,
"trata-se de uma aposta nas possibilidades da revolução brasileira, nacional-
democrática ou socialista, que permitiria realizar as potencialidades de um
povo e de uma nação".71 Este imaginário, por sua vez, remonta às mudanças que
começam após o fim da Segunda Guerra Mundial, à abertura democrática no Brasil
em 1945 e às revoluções comunistas na China, em 1949, e em Cuba, em 1959. O
movimento cinemanovista também guarda uma relação próxima com o renascimento do
cinema europeu, através do Neorealismo italiano e da Nouvelle Vaguefrancesa, e
com o espraiamento dos cineclubes no Brasil, organizados por membros do Partido
Comunista, que passam a exibir filmes outrora censurados, oferecendo
alternativas ao cinema comercial. Tais transformações possibilitaram uma
educação cinematográfica distinta do período anterior e frutificaram novos
sentidos para o cinema, que deixou de ser visto como um tipo de entretenimento
voltado à difusão de ideologias nacionalistas e crítica reformista, para
tornar-se uma arma de conscientização revolucionária. Disto resultou uma
diversificação nas formas de representar a população negra que em alguns filmes
se transformaria em sujeito histórico capaz de promover a revolução. Nelson
Pereira dos Santos, em Rio 40 grause Rio Zona Norte, citados acima, foi um dos
impulsionadores desse novo sentido de cinema. Como argumentou David Neves na V
Resenha do Cinema Latino-Americano, realizadaem 1965, em Gênova, Itália, a
chanchada, por seu caráter comercial, retratava o negro "através das
possibilidades de um exotismo imanentes".72 Já o Cinema Novo, de acordo com
Neves, vinha produzindo filmes "antirracistas", como Barravento,Ganga Zumba e
Aruanda,que não representariam "o negro como fizeram os filmes até aquele
momento". Além disso, o diretor explicava que essas películas eram frutos de
"uma identificação entre o realizador (branco) e os personagens negros, sem que
a cor fizesse qualquer diferença".73 Todavia, é possível relativizar a
interpretação de David Neves ele próprio um expoente do Cinema Novo. Renato
Silveira, por exemplo, encontra um certo olhar "etnocêntrico" em Barravento.74
Neste filme, Firmino, interpretado por Antônio Pitanga, é o alter ego de
Glauber Rocha, que professa a necessidade de uma transformação social. Como
argumenta Renato Silveira, o problema central de Barraventoestá no fato de este
personagem se contrapor à religião afro-brasileira, pois a vê como o "ópio do
povo", meio pela qual se justifica a exploração da comunidade da praia de
Buraquinho. Na opinião de Silveira, Glauber não apenas fez um retrato que
remonta aos estereótipos coloniais sobre o candomblé,75 mas "foi impermeável à
cultura negra antes, durante e depois das filmagens em Buraquinho".76
Mas, ainda que Glauber não consiga se despojar de seu olhar "branco" em
Barravento, se compararmos este filme com a produção dos anos de 1940 e 1950, é
inegável que ele opera uma diversificação na construção de personagens negros.
Este seria um traço constitutivo do Cinema Novo. Na película mencionada, a
maioria dos atores e atrizes são negros algo raro na cinematografia brasileira
e, além disso, eles revelam diferentes corporalidades e vivem personagens
distintos. Ainda que dentro da visão esquemática de um certo marxismo da época,
a comunidade não é retratada apenas como alienada; as divergências internas dão
o tom da narrativa: Firmino, retornado da cidade, faz o papel de figura
consciente, ativa, desobediente. Aruan (Aldo Teixeira) vive o ingênuo,
conformado, mas capaz de tomar consciência. Já o Mestre (Lídio Silva) é
autoritário. Há ainda João, que ajuda Aruan a questionar os preceitos do
Mestre, e Cota (Luiza Maranhão), uma mulher independente. Logo, em comparação
com as chanchadas, em que Grande Otelo era praticamente o único personagem
negro, Barraventocontribui até certo ponto para desconstruir alguns
estereótipos. Evidentemente, seria o caso de discutir também a construção de
outros estereótipos pelo filme e o argumento de Silveira sobre o candomblé
ajuda a perceber sua incidência sobre a produção de Glauber.
Além de Barravento, vale mencionar Ganga Zumba, dirigido por Cacá Diegues, que
narra a história do primeiro líder do Quilombo dos Palmares, também vivido por
Pitanga. Este ator se consolida como o principal intérprete negro do Cinema
Novo e vira uma espécie de cristalização do negro ativo e consciente de sua
luta contra a opressão de classe e racial no Brasil. Tal imagem é oposta à de
Grande Otelo, que, conforme os cinemanovistas, teria reforçado uma
representação exotizante e estereotipada, e se faz perceber no corpo dos
artistas: em termos de marcadores raciais e de dimensões corporais, Antônio
Pitanga é alto e tem o rosto anguloso, aspectos considerados socialmente belos,
que reforçam o peso de uma expressão facial decidida e séria.
A mudança no modo de representar o negro repercutiria na primeira entrevista de
Grande Otelo ao projeto "Depoimentos para a posteridade", do Museu da Imagem e
do Som, em 1967. Entrevistado por Alex Viany, historiador do cinema brasileiro
ligado ao Cinema Novo, e Alinor Azevedo, principal roteirista da Atlântida, o
ator seria cobrado a dar resposta sobre os seus papéis nas chanchadas:
Alex Viany: Grande Otelo [...] você foi acusado várias vezes de que
você teria prejudicado a sua raça aparecendo às vezes em papéis
ridículos, principalmente nas chanchadas, que você fazia travestis e
outra coisa dessa natureza, você lembra dessa acusação?
Grande Otelo: Oscarito prejudicou a raça dele alguma vez? Quando
apareceu de Rita Hayworth? [...] eu apareci de Julieta, ele apareceu
de Rita Hayworth. E ele prejudicou a raça dele por isso?77
A pergunta de Alex Viany lidava com o "fardo da representação racial",78 que
recaía sobre as costas de Otelo. De fato, muitos de seus personagens, como
vimos acima, carregam estereótipos correntes na sociedade brasileira.
Entretanto, é necessário compreender melhor o contexto em que isto ocorria
antes de julgar o ator por tais papéis. O fato de Grande Otelo ser um dos
poucos atores negros que conseguiu se inserir no mercado cinematográfico do
período fez com que recaísse sobre ele esse fardo o que, como bem notou, não
ocorrera com Oscarito, ator cuja liberdade residia justamente em poder atuar de
modo desvinculado das expectativas para sua raça. Dada a gama extremamente
limitada de atores negros que conseguiam acesso ao mundo artístico, Grande
Otelo enredou-se num campo em que, fizesse papéis cômicos ou dramáticos,
personagens unidimensionais ou multidimensionais, recairia na ambivalência
própria ao ato de estereotipar.79 Movimento incessante, em que os pontos
seguros de identificação entre espectador, ator negro e os personagens negros
são fugidios e se encontram em constante mutação.80 Razão pela qual, durante
toda a sua trajetória, Grande Otelo identificou-se com seus personagens, para
logo depois estranhá-los.
Além de não se identificar com o personagem, agora Otelo via sua
personacinematográfica colada a um movimento que não fazia mais sentido frente
à representação valorizada pelo Cinema Novo e aos novos debates sobre raça. No
mesmo depoimento ao MIS, ele reclamava:
Grande Otelo: Formou-se no Brasil, na minha opinião, assim uma
espécie de círculo fechado com relação ao cinema brasileiro. E esse
círculo fechado é da opinião que só eles sabem fazer cinema [...]
eles impõem ao povo brasileiro o cinema que eles querem.
Alex Viany: Mas, você não tem lugar nesse cinema?
Grande Otelo: Pelo menos até hoje, eu nunca fui chamado por esse
cinema. Porque eu sou caro, porque eu falto, porque eu não apareço,
porque eu não quero. [...] primeiro caro eu não sou. Não sou caro.
As razões que a personamemorialística de Otelo atribuía ao seu ofuscamento
cinematográfico eram os boatos de que o ator era irresponsável e de índole
difícil, que se colaram à sua imagem pública da mesma forma que algumas
características de seus personagens. Mas os rumores de que se confundia com
seus papéis, que o afastavam dessas produções, também foram decisivos para que
Otelo fosse escalado para seu primeiro filme do Cinema Novo, Macunaíma. Lançado
em 1969 dois anos de pois da entrevista ao MIS , o longa-metragem de Joaquim
Pedro de Andrade se anunciava pelo seguinte slogan: "Grande Otelo é Macunaíma".
A escolha do ator superava os boatos sobre uma índole difícil. Entre fins da
década de 1950 e o lançamento de Macunaíma, os ideais revolucionários do Cinema
Novo entrariam num impasse, para o qual contribuiriam uma ampliação dos bens de
consumo e a institucionalização do pólo de produção cultural no Brasil,81 mas
também o golpe de 1964 e o recrudescimento da ditadura militar com o AI-5, em
1968. O filme de Andrade buscava fazer frente a tais impasses por meio da
articulação entre o Cinema Novo e o gênero que conseguira maior sucesso
comercial no cinema brasileiro: a chanchada.82 Segundo o diretor, o filme
procura
uma comunicação popular tão espontânea, tão imediata, como a da
chanchada, sem ser nunca subserviente ao público. Apesar de não ser
subserviente, o filme não é paternalista, no sentido em que talvez
fossem paternalistas os primeiros filmes do Cinema Novo: dando uma
lição. Ele procura ser feito do povo para o povo, é a orquestração
mais simples possível, mais direta de motivos populares, atendendo à
definição de rapsódia, que foi como Mário de Andrade qualificou o
livro.83
Grande Otelo é justamente esse elo que propicia uma comunicação espontânea
entre o diretor e o público. Ponte que faz uso da personacinematográficade
moleque e malandro que o consagrou para, em seguida, servir de pivô às críticas
que o ator recebeu. Noutras palavras, Joaquim Pedro de Andrade não buscava um
casamento feliz entre Chanchada e Cinema Novo, mas uma síntese que objetivava
superar os impasses e fazer uso das potencialidades desses dois projetos
cinematográficos no Brasil. Nesse contexto, Macunaíma interpretado por Otelo
não é representante de classe baixa pueril, como em Rio Zona Norte, pois é
malandro e arrivista. Tampouco se trata de uma exaltação do malandro das
chanchadas, uma vez que Macunaíma é um personagem sem um projeto próprio, e
cuja busca pelo muiraquitã não lhe rende maturidade. Igualmente, não constitui
uma apologia à democracia racial, pois quando Macunaíma se torna branco (agora
interpretado pelo ator branco Paulo José), ele também vira racista, maltratando
seus irmãos entre eles Maanape, interpretado pelo ator negro Milton Gonçalves.
Por fim, o "herói de nossa gente" desdenha seu próprio filho, negro no filme e
interpretado novamente por Grande Otelo. São os registros alegórico e grotesco
e o tropicalismo do longa metragem que permitem a presença de um ator como
Otelo, cujas marcas corporais traziam sentidos moldados por filmes anteriores.
Elo espontâneo e reflexivo que permite a Joaquim Pedro de Andrade pensar sobre
os impasses do cinema brasileiro no pós-AI-5.84
Macunaíma lhe rendeu três prêmios de melhor ator: no Festival de Brasília;
Coruja de Ouro; e Prêmio Air France, além da aclamação no Festival de Veneza. A
partir desse filme, Grande Otelo não apenas se legitima como ator em meio ao
círculo dos cinemanovistas, mas agrega à sua personacinematográficaum signo
reflexivo, tornando-se capaz de sintetizar projetos e impasses do cinema
brasileiro por meio de sua presença. Abre-se, nesse momento, espaço para a
inserção do ator em outras produções, como O homem do Pau Brasil, de Joaquim
Pedro de Andrade; Quilombo, de Cacá Diegues, e filmes de Luís Sérgio Person,
Rogério Sganzerla, Hector Babenco, Júlio Bressane e no Fitzcarraldo, de Werner
Herzog. Os personagens cômicos e dramáticos, realistas e grotescos ganham novos
sentidos à medida que aderem ao projeto de cada diretor, variando a gama de
representações do negro, sem, contudo, ultrapassar a predominância de um
imaginário da branquitude. Sua fisionomia também mudava à medida que o ator
avançava na casa dos 60 anos, os sulcos no rosto e os fios grisalhos no cabelo
e barba, bem como a voz rouca de cordas vocais desgastadas, abrem portas para
interpretar outros personagens, como o avô e curandeiro de Quilombo de Cacá
Diegues, que incorporava uma agenda antirracista em seus filmes, em certa
consonância com o nascente movimento negro da década de 1970.
Os lapsos do tempo: repensando a persona cinematográfica a partir da
memorialística
Quase dez anos depois, e ainda colhendo os frutos do sucesso recuperado, Grande
Otelo oscilava entre momentos de forte identificação com Macunaíma e momentos
de crise diante de tal figura. Por um lado, nutria a vontade de pesquisar o
acervo de Mário de Andrade para ver se o escritor havia feito comentários a seu
respeito, pois acreditava que Mário teria visto a Companhia Negra de Revistas
pouco antes de escrever Macunaíma.85 Por outro, estava cansado de ser associado
a tal personagem.
Otelo: Agora, o maior atraso da minha carreira foi Macunaíma...
Nelson Pereira dos Santos (NPS): Atraso? Por quê?
Otelo: Porque parou, porque vocês todos, diretores, acharam que
tinham que fazer alguma coisa comigo que fosse superior a Macunaíma
[...]. Daí eu fiquei ao sabor do vento [...] Foi bom do ponto de
vista intelectual, do ponto de vista da crítica, fama, mas não
adiantou para pagar supermercado.
NPS: Vou dizer uma coisa que eu já lhe disse [...] a tua
personalidade é tão forte e tão histórica que é muito difícil
encontrar um personagem dentro do qual você seja um ator e não o
Grande Otelo, tá entendendo o que eu tô querendo dizer? Você é sempre
você mesmo, você é muito mais forte do que qualquer personagem.
Então, quando a gente tem que propor [...] um personagem [...] muito
rico, bem estruturado, com muitos valores, senão vai ser sempre o
Grande Otelo que vai estar na tela, não vai ser o personagem que a
história está colocando...
Otelo: Mas, dentro da Atlântida [...] eu era personagem. Eu fui
"Moleque Tião", eu fui Benevides, eu fui Natalino, eu fui vários
personagens..."86
Conforme Nelson Pereira dos Santos, a personacinematográfica de Otelo era tão
forte que superava qualquer personagem. Ao contrário do mecanismo do teatro
moderno, em que atrizes como Cacilda Becker se despersonificavam para dar vida
ao seu papel, no caso de Grande Otelo no cinema, o personagem era
personificação do ator, como disse o diretor "é muito mais forte do que
qualquer personagem". Não à toa, para responder a Nelson Pereira, Otelo
precisou voltar aos filmes do começo da Atlântida, quando ainda a sua persona
não era tão forte.
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Mas essa relação conflituosa com sua personacinematográfica não era apenas uma
sensação presente em qualquer estrela de cinema, somava-se a Otelo o fato de
ser negro em uma sociedade racista, pois na medida que as reflexões sobre as
relações raciais no Brasil ganhavam novos contornos, o ator precisava se
reposicionar. Se nas décadas de 40 e 50, não se abordava o preconceito racial
em suas entrevistas, na década de 70 e 80 quase todas irão tocar nesse tema.
Vale lembrar que os anos 70 e 80 foram férteis para militância negra no Brasil,
que, conforme Antônio Sérgio Guimarães, teria um perfil "radicalmente diferente
dos seus antecessores",87 em especial do Teatro Experimental do Negro. O
movimento negro coloca
para a cena brasileira uma agenda que alia política de reconhecimento
(de diferenças raciais e culturais), política de identidade
(racialismo e voto étnico), política de cidadania (combate à
discriminação racial e afirmação dos direitos civis dos negros) e
política redistributiva (ações afirmativas ou compensatórias).88
Pauta política que, segundo Antônio Sérgio Guimarães, seria de difícil
cooptação pelo Estado brasileiro, rendendo uma sobrevida maior a essa
militância.
Se, por um lado, a emergência de um novo movimento negro explica essa agenda de
discussão nos mais diferentes meios e reposicionamentos de Grande Otelo com
relação ao preconceito racial; por outro, os juízos do ator não seriam
unívocos. De fato, seu discurso ganharia outras dimensões diferentes do seu
slogan de vereador de 1958, que responsabilizava apenas os negros por sua
situação. Nesse novo contexto, ele teria que confrontar seu passado e essa
espécie de "armadura simbólica", através do qual se apresentava e via o mundo
num movimento conflituoso:
Entrevistador: E por que só agora, sexagenário, você se preocupa com
o problema racial do negro?
Grande Otelo: De certa forma a preocupação sempre existiu. Mas achava
que não tinha condições pessoais, emocionais para me integrar em um
movimento em prol de minha raça. Com o tempo, porém, criou-se em
torno de mim uma situação que não é nada confortável: os negros estão
me cobrando atitudes. E isso me dá uma responsabilidade tremenda.
Resolvi assumir quando achei que tinha condições, pois elas surgiram
só depois de muito sofrimento e amadurecimento. Hoje eu já sei que
vou encontrar respaldo, dentro e fora da raça, para qualquer atitude.
Por ser, ou apesar de ser Grande Otelo, serei ouvido, terei cobertura
da imprensa.89
Ao se colocar na terceira pessoa "por ser, ou apesar de ser Grande Otelo",
observa-se um distanciamento a sua personacinematográfica, o peso de seu nome
artístico daria mais respaldo para a militância negra. Talvez essa sensação
viesse das críticas que continuaria a receber por seus papéis nas chanchadas,
exigindo dele uma reinterpretação em consonância com o novo discurso racial:
Entrevistador: Na época da chanchada você e o Oscarito eram os reis
da tela. Como você analisaria essa sua participação no cinema
nacional?
Grande Otelo: Se você for fazer a análise da psicologia do povo
brasileiro vai encontrar a resposta. Era um negrinho e um branco. O
negrinho sempre tirando o branco das encrencas, o negrinho sempre
parceiro do branco [...] O negro sempre participou das manifestações
culturais do Brasil. E naquela época o povo era mais simples, a
chanchada retratava a vida brasileira. Em toda casa sempre tinha um
negrinho criado pela família como eu tinha sido em São Paulo [...] O
negro e o branco juntos no cinema, no teatro, na televisão sempre
agradavam ao público porque existia o ranço da escravatura. Hoje,
felizmente, o preconceito já não se exibe tanto, ele é mais velado.90
Nessa entrevista, sua personacinematográfica dos tempos das chanchadas está
indissociável de sua personamemorialística: seus personagens eram a expressão
da própria história, "um negrinho e um branco", assim como ele havia crescido
numa família branca em São Paulo. O lapso temporal de um período a outro exigia
do ator uma justificativa, que desse coerência sem estilhaçar essa espécie de
"janela para o mundo": "a chanchada retratava a vida brasileira", colocando no
passado o "ranço da escravatura". Em outras entrevistas, ele afirmaria a
existência da discriminação racial sem vacilar:
Entrevistadora: Então o preconceito racial no Brasil é um fato?
Grande Otelo: Claro, existe preconceito racial em todas as áreas,
inclusive na área artística. Você não vê nunca um preto numa situação
de destaque. Eu pra chegar ao ponto que cheguei tive que dizer muito
"sim, senhor" [...] Em primeiro lugar, eles acham que o negro é um
irresponsável, segundo, eles acham que o negro não tem capacidade pra
fazer determinados papéis. Então, ainda hoje pintam o branco de preto
pra fazer papel de preto [...]91
Em outra entrevista em 1986:
Eliseth Cardoso: Você concorda com o Maurício, de que no Brasil tem
um grande preconceito racial?
Otelo: Completamente. O preconceito é uma coisa que tá na pele.
Eliseth: Você sofreu muito com esse preconceito.
Otelo: Não porque eu sempre fui muito malandro, muito moleque.92
Adotar a perspectiva da luta contra a discriminação nas décadas de 70 e 80 não
era simples para Sebastião Prata que carregava consigo a sua própria
experiência e a força da personade Grande Otelo. Tanto é que embora
reconhecesse o grande preconceito racial no Brasil, quando perguntado
diretamente se havia sofrido, ele nem sempre dizia que sim, buscava outras
interpretações, como o fato de ter nascido em uma época diferente, por ter
usado a malandragem como estratégia: fazendo de sua personacinematográfica uma
"moldura" para as suas memórias. Tais respostas também não deixariam de
sinalizar os modos como a construção da reminiscência individual busca
silenciar, consciente ou de forma irrefletida, situações duras como a da
discriminação racial. É comum nesses casos, como ensina Michael Pollack, o
entrevistado emudecer ou transpor experiências pessoais intragáveis para outras
pessoas.93 Como também faria Grande Otelo: "Sei que o racismo existe aqui, até
certo ponto eu sei. Mas eu Grande Otelo posso dizer que não sinto o racismo. O
racismo eu sinto quando vejo um sujeito da minha cor não poder entrar num lugar
em que eu entro".94 Mas ele mesmo, em outras entrevistas, diria que fora
barrado em alguns estabelecimentos. Esse descompasso, e a variação em suas
respostas, entre um período em que não se reconhecia o racismo no Brasil
(discurso sob o qual ele se criou) e a nova perspectiva tornava-se mais
evidente quando confrontado por negros que incorporaram essa nova agenda:
Jacyra Silva: Você colocou que o ator não tem cor e eu concordo
plenamente com você, mas a bem da verdade, os scripts quando chegam
às nossas mãos agora isso se modificou por uma luta ampla geral e
irrestrita de nós mesmos atores negros , mas o scripts vinham
"empregada negra", "faxineiro negro", "engraxate negro". Quer dizer,
se nós não temos a discriminação, se nós nos achamos atores e não
importa a nossa cor [...], para o sistema monopolizador [a
discriminação] existe [...]. Tanto existe, e você diz "ah, comigo não
foi assim", mas você era ensaiado pelo Mesquitinha de duas a três
horas [...] às vezes até quatro horas exaustivamente para dizer a
palavra "pigmento".
Grande Otelo: Era uma frase, era expressão...
Jacyra Silva: Sim, essa frase já trazia dentro da expressão do Grande
Otelo, uma mágoa, uma dor, porque a moça era branca [a personagem] e
sempre o que te atrapalhava era a palavra pigmento [...] Existe ou
não existe discriminação racial?
Grande Otelo: A discriminação racial, na minha opinião, ela passa
muito pela discriminação econômica, porque eu por exemplo,
economicamente eu pude ir até o terceiro ginasial. Então quando eu
cheguei, eu já estava apto a falar em inglês, francês [...] italiano,
inclusive, porque eu estudei italiano no palco [...] E então, para
tirar, não é bem para tirar essa discriminação, para poder entrar
dentro [sic] do ambiente, quando me dava uma frase em francês, eu
chegava para o primeiro ator e dizia: 'o senhor quer me ensinar, como
se diz isso aqui?'.
Jacyra Silva: Você já sabia?
Grande Otelo: Já, mas era uma maneira de eu chegar a falar com o
primeiro ator, que em geral era branco. Mas eu não ligava pelo fato
dele ser branco, porque eu tinha sido criado com brancos e nas minhas
brigas infantis, apesar de eu ter ouvido, muitas vezes "negro fedido"
aquele menino que me chamava de "negro fedido" às vezes dividia a
merenda dele comigo depois [...] Mas tivemos muito influencia da
America do Norte [...] então essa coisa ficou muito feia, muito à
tona.95
Analisar a experiência de Grande Otelo nos novos termos era apontar para
contradições que, em sua juventude, não eram vistas enquanto tais, mas sim como
uma estratégia "para poder entrar dentro [sic] do ambiente", como o próprio
ator explicava. Estratégia, talvez comum entre muitos de sua geração, que deu
certo para ele,96 mas que não era suficiente nos novos termos da luta ampla,
inclusiva e constitucional que almejava o novo movimento negro, com o apoio de
outros setores sociais. Reconhecer retrospectivamente a própria contradição na
intimidade de sua experiência era algo difícil, equivalia, como lembra Lima, a
rasgar "a própria pele"97 simbólica que nos envolve e dar as caras e corpo para
o mundo; mais assimiláveis para ele eram as explicações que buscavam diminuir o
peso da discriminação racial através do fator econômico, do ideal de um Brasil
mestiço e diverso do contexto norte-americano.
Quando se reposicionava, ao afirmar a existência da discriminação, isso vinha
acompanhado de um hiato. Dizia ele, "fiz muitas concessões", "disse muito sim,
senhor", como formas de manter coerência em sua personacinematográficae
memorialística. Novamente, convém compreender a complexa situação em que o ator
se encontrava, mais do que apontar desacertos: a variação de suas respostas, em
descompasso com os novos discursos, é fruto de como um racismo à brasileira,
construído sob o imaginário da democracia racial, se refletiu e conformou sua
trajetória. Se no cinema, Grande Otelo conseguiu se inserir e se renovar,
dotando sua persona de novos sentidos ao longo do tempo, no debate racial, na
maioria das vezes, houve uma distância entre as várias definições do negro que,
por vezes, se colaram à sua persona, e, por outras, entraram em conflito com
essa "armadura simbólica", por meio da qual se enredava e via as coisas.
Na medida que se discutia a questão racial no Brasil nas décadas de 1970 e
1980, o ator era incorporado pelos diretores do Cinema Marginal, como Júlio
Bressane e Rogério Sganzerla, que se contrapuseram ao Cinema Novo _ a seus
olhos, já em processo de institucionalização pela Embrafilme. Em Rei do
Baralho, de Bressane, no qual Grande Otelo era protagonista, recebeu a seguinte
análise de Décio Pignatari: "todas as situações se reportam a situações
(signos) já cinematizadas, principalmente no cinema brasileiro [...] Há algo aí
de uma biografia do cinema brasileiro na figura de Grande Otelo".98
Nas lentes de Rogério Sganzerla, o ator ganharia sentido similar, ao converter-
se em testemunha histórica das desventuras de Orson Welles no Brasil, em três
filmes: Nem tudo é verdade, A linguagem de Orson Welles e Tudo é Brasil.99
Nestes, Grande Otelo é mais uma alegoria do cinema brasileiro do que uma
metonímia da população negra. Sua personacinematográfica, pela primeira vez, se
desvencilha por um instante do processo que reduz o intérprete negro à sua
atribuição racial e ultrapassa fronteiras, tornando-se signo da própria
história do cinema brasileiro. É como se ele pudesse transformar a categoria
"cinema brasileiro", fazendo-a ir contra a dinâmica centrípeta da estereotipia
racial. De modo dessemelhante ao que ocorria com Macunaíma e Rio Zona Norte,
ambos filmes que utilizam o negro como metáfora de categorias racializadas100
como as de povo e classe, agora, paradoxalmente, Grande Otelo colonizava uma
categoria pretensamente neutra a de cinema. Deixava, assim, de representar o
conjunto de sua raça, para representar a história do cinema no Brasil. Lampejo
raro na história da cinematografia, possível pela posição avessa de Rogério
Sganzerla e Júlio Bressane aos imperativos do mercado e da institucionalização
do cinema no Brasil, através da Embrafilme. Nos meios institucionalizados, como
a televisão, os papéis de Grande Otelo seguiam revelando que a singularidade de
sua trajetória tinha mais a ver com as vicissitudes desse campo e a maneira
como ele se inseriu, do que com uma mudança ampla do imaginário racial. A
despeito dos movimentos empreendidos pelo Cinema Novo, Marginal e a nova
militância negra, o ator terminaria sua vida televisiva na Globo, já na década
de 90, interpretando Eustáquio: o único aluno negro da Escolinha do Professor
Raimundo que, "não sabendo o português correto", colocava trema em todas
palavras e, para responder às questões do personagem de Chico Anísio, precisava
da ajuda de todos os colegas. Papel que remontava a seus primeiros filmes da
Cinédia, na década de 1930, prenhe do racialismo e estereótipos do século XIX.
A televisão, nesses idos, se espraiou por todo o território nacional. Já o
cinema foi paralisado na era Collor, ainda que sua formação houvesse insinuado
o legado de estratégias contranarrativas de representação racial.
Texto recebido em 6 de agosto de 2012 e aprovado em 26 de outubro de 2012
* Este artigo é produto de várias versões que foram apresentadas em diversos
congressos em que tive a oportunidade de dialogar com professores e
pesquisadores a quem agradeço: Fabiano de Souza Gontijo, Laura Moutinho, Peter
Fry, Heloísa Pontes, Caroline Cotta de Mello Freitas, Heloísa Buarque de
Almeida, Ronaldo Almeida, Lilia Schwarcz, minha orientadora, e aos demais
colegas dos núcleos Etnohistória e Numas. Também agradeço a Tatiana Lotierzo
pela interlocução intensa e frutífera em diversos momentos da pesquisa e ao
parecerista ad hoc pelos comentários e sugestões.
** Esse artigo se insere em minha pesquisa de Doutorado, no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da USP, intitulada Cinema em negro e branco:
brasilidade e imaginário racial na cinematografia brasileira, financiada pela
Fapesp. O artigo também se vale de uma série de informações pesquisadas durante
o meu estágio de doutorado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos,
financiando pela Capes, sob a orientação de Nicolau Sevcenko e Clémence Jouët-
Pastré, a quem agradeço pelo apoio e interlocução profícua. E-mail:
lfhirano@gmail.com_
1 "Se há quarenta milhões de afro-americanos, então há quarenta milhões de
modos de ser negro", tradução minha, de Henry Louis Gates Jr. e Jennifer
Burton, Call and Response: Key Debates African American Studies, Nova York:
Norton, 2011.
2 Uma discussão mais aprofundada, procuro realizar na minha tese de doutorado,
em andamento, em que analiso mais detidamente as questões aqui propostas
levando em conta também a performance de Grande Otelo nos filmes.
3 Luís Felipe Sobral, "Bogart duplo de Bogart: pistas da persona
cinematográfica de Humphrey Bogart, 1941-1946" (Dissertação de Mestrado,
Universidade de Estadual de Campinas, 2010), p. 62. É
interessante notar que embora os principais autores da história de Hollywood
utilizem o conceito de persona cinematográfica, não há nenhuma definição deles
sobre tal conceito, compreensível apenas através de suas economias explicativas
nos textos. Ver Thomaz Schatz, Hollywood Genres: Formulas, filmmaking, and the
Studio System, Boston: McGrawHill, 1981; Tino Balio, History
of the American Cinema: Grande Design (1930-1939), Los Angeles, University of
California Press, 1995.
4 Barry King "Articulating Stardom", Screen, v. 26, n. 5 (1985), pp. 27-50.
5 Walter Benjamin. "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", in
Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1987.
6 Paulo Emílio Salles Gomes, "A personagem cinematográfica", in Antonio Candido
(org.), A personagem de ficção (São Paulo: Perspectiva, 1976).
7 Paul Mcdonald, "Film acting", in John Hill e Pamela Church Gibson (orgs.),
The Oxford Guide to Film Studies (Oxford: Oxford University Press, 2008).
8 Parte das principais críticas, na década de 1930 e 1940, no Brasil,
considerava exagerada a atuação dos atores teatrais nos filmes e, logo,
diferente do que seria próprio do cinema. Ver, nesse sentido, a crítica de
cinema nas revistas Cena Muda (1921-1955) e Cinearte (1926-1942).
9 Gilda de Mello e Souza, A ideia e o figurado, São Paulo: Duas Cidades e 34,
2005; Beatriz Sarlo, Paixão e exceção: Borges, Eva Perón,
montoneros, São Paulo / Belo Horizonte: Companhia das Letras e Editora UFMG,
2005; Heloísa Pontes, "Beleza roubada: gênero, estética e
corporalidade no teatro brasileiro", Cadernos Pagu, n. 33 (2009) e idem, Intérpretes da metrópole, São Paulo: Edusp, 2011.
10 Mello e Sousa, A ideia e o figurado, p. 177, grifo da autora.
11 Heloisa Pontes, "Beleza roubada", p. 141.
12 Sarlo, Paixão e exceção, p. 53.
13 Sarlo, Paixão e exceção, p. 70.
14 Pierre Bourdieu, As regras da arte, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
15 Donald Bogle, Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, e Bucks: An Interpretative
History of Blacks in American Films, Nova York: Continuum, 2009.
16 Sobre a relação entre poder, linguagem e representação, ver Stuart Hall
(org.), Representation: Cultural Representation and Signifying Practices
(Londres: Sage, 2009); Avtar Brah, "Diferença, diversidade,
diferenciação", Cadernos Pagu, n. 26 (2006), pp. 329-65.
17 A metonímia é aqui entendida como um processo de redução de um todo a uma
fração menor de suas partes. Cf Hall, Representation.
18 Tradução livre, feita pelo autor, de Stuart Hall, "The Spectacle of the
'Other'", in Hall (org.), Representation, p. 229.
19 Homi Bhabha, O local da cultura, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
20 Tradução livre, feita pelo autor, de Richard Dyer, White, Londres:
Routledge, 1997, pp. 11-2.
21 Avtar Brah, "Diferença, diversidade, diferenciação", p. 345.
22 Ella Shohat e Robert Stam, Crítica da imagem eurocêntrica, São Paulo: Cosac
Naify, 2006. Diferentemente de Dyer, os autores usam a ideia
de eurocentrismo ao invés de branquitude. Mas assim como o eurocentrismo não
está reduzido aos europeus, a branquitude também não. Ela é uma "estrutura de
sentimentos", um modo de ver e sentir o mundo sem estar restrita a um grupo
racial, embora ela seja produto do poder de uma elite branca que domina os
meios econômicos e simbólicos. Como aponta Dyer, esse conceito pode ser sim
utilizado no Brasil, uma vez que o incentivo à miscigenação e as políticas de
branqueamento carregam consigo uma ideal de branquitude e eurocentrismo.
23 Refiro-me ao livro de João Carlos Rodrigues O negro brasileiro e o cinema,
Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
24 Basta ver as respostas das empresas que veiculam esses anúncios e os
comentários de internautas contrários às atuais denúncias da SEPPIR e da CONAR
quanto ao racismo nas propagandas da Duloren, Bombril, Devassa e Azeite Gallo.
Em geral, as empresas e internautas argumentam que a imagem é positiva ou que
não passa de algo trivial, quando o que se procura mostrar com a definição de
estereótipo acima é que o problema é mais profundo, pois se relaciona pela
própria distribuição desigual dos significados no processo linguístico.
25 Como atenta Robert Stam, nem sempre as representações realistas são aquelas
que têm o maior potencial de crítica, pois a épica e mesmo a grotesca podem ser
estratégias contranarrativas muito mais poderosas. Robert Stam e Louise Spence.
"Colonialism, Racism and Representation", Screen, v. 24, n. 2 (1983), pp. 2-20; idem, Multiculturalismo tropical, São Paulo: Edusp, 2008.
26 Denunciar estereótipos negativos talvez seja o primeiro passo de uma
estratégia que requer uma crítica profunda. Para estratégias contranarrativas,
ver Stuart Hall (org.), Representation.
27 Donald Bogle, Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, e Bucks; e Noel dos Santos
Carvalho "Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul" (Tese
de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2005).
28 Conforme aparece na crítica de um leitor do filme Caminhos do céu (1943), da
Cinédia: "Grande Otelo, o ótimo ator cuja cara já nos faz rir, esteve magnífico
nas cenas em que tomou parte, principalmente naquela das bananas", in A Cena
Muda, 7 de setembro de 1943, p. 22.
29 Luiz Costa Lima, Pensando nos trópicos (Dispersa demanda II), Rio de
Janeiro: Rocco, 1991.
30 Lima, "Persona e sujeito ficcional", p. 53.
31 Avtar Brah, "Diferença, diversidade, diferenciação", p. 371.
32 Lima, "Persona e sujeito ficcional", pp. 52-3.
33 Lima, "Persona e sujeito ficcional", p. 55.
34 Henry Louis Gates Jr., Thirteen Ways of Loking at a Black Man, Nova York:
Vintage Books, 1997.
35 Grande Otelo é representativo da incorporação do estereótipo de moleque
malandro, que lhe é dado, e do qual faz uso, mas jamais sem conflitos. Atores
como Abdias do Nascimento, Zózimo Bulbul e Antônio Pitanga buscaram questionar
e criar suas trajetórias contra esses estereótipos. O que pontuo aqui é que a
distribuição desigual de significados na linguagem costuma produzir
estereótipos que acossam grupos estigmatizados, mas cada membro desse grupo
lidará com tais estereótipos de maneiras diversas.
36 Poderíamos citar Ruth de Souza, José Lewgoy e Wilson Grey que, de certo
modo, percorrem diferentes períodos e movimentos do cinema brasileiro, mas não
têm a mesma presença no imaginário nacional que Grande Otelo.
37 Conforme define Fernandes, trata-se de uma característica do preconceito
brasileiro, em que "o 'preconceito de cor' é condenado sem reservas, como se
constituísse um mal em si mesmo, mais degradante para quem o pratique do que
para quem seja vítima. A liberdade de preservar os antigos ajustamentos
discriminatórios e preconceituosos, porém, é tida como intocável, desde que
mantenha o decoro e suas manifestações possam ser encobertas ou dissimuladas
(mantendo-se como algo 'íntimo'; que subsiste no recesso do lar; ou se associa
a 'imposições' decorrentes do modo de ser dos agentes ou do seu estilo de vida,
pelos quais ele 'têm o dever de zelar'). Embora o negro e o mulato façam
contraponto [...], eles não são considerados de maneira explícita. Ao contrário
ficam no background, numa confortável amnésia para os 'brancos'. [...] Do ponto
de vista e em termos da posição sócio-cultural do 'branco', o que ganha o
centro do palco não é o 'preconceito de cor'. Mas, uma realidade moral reativa,
que bem poderia ser designada como 'o preconceito de não ter preconceito'.
Minando em sua capacidade de agir acima das normas e dos valores ideais da
cultura, em vez de condenar a ideologia racial dominante [...]. Em lugar de
procurar entender como se manifesta o 'preconceito de cor' e quais são seus
efeitos reais, ele suscita o perigo da absorção do racismo, ataca as 'queixas'
dos negros ou dos mulatos como objetivação desse perigo e culpa os
'estrangeiros' por semelhante 'inovação estranha ao caráter brasileiro'".
Florestan Fernandes, O negro no mundo dos brancos, São Paulo: Diefel, 1972, pp.
24-5, grifos do autor.
38 Grande Otelo mudou o seu nome de batismo para Sebastião Bernardes de Souza
Prata. Discuto essa mudança de forma mais detalhada na minha tese, em
andamento.
39 Grande Otelo conta que levou surras quando deixou de passar as roupas dos
artistas da companhia para brincar com outras crianças. Cf. Sérgio Cabral,
Grande Otelo: uma biografia, São Paulo: 34, 2007, pp.33-4.
40 Ver Ana Karicia M. Dourado, "Fazer rir, fazer chorar: a arte de Grande
Otelo" (Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2005).
41 Ermínia Silva, Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense
no Brasil, São Paulo: Altana, 2007.
42 Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na metrópole, São Paulo: Companhia das
Letras, 1992; Thiago Gomes, Um espelho no palco, Campinas:
Editora da Unicamp, 2004.
43 Gomes, Um espelho.
44 "Tribuna de Santos", 12 de janeiro de 1927, apudCabral, Grande Otelo, p. 37.
45 Nas críticas, os cronistas erram a idade de Otelo, atribuindo cinco, seis e
sete anos quando na verdade ele tinha nove. Ver Sérgio Cabral, Grande Otelo; e
Orlando Barros, Corações de chocolate: a história da Companhia Negra de
Revistas (1926-1927), Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2005.
46 Ver as críticas teatrais diárias do Jornal do Brasil, de 31 de maio de 1935
a 4 de julho de 1935; e Deise Santos de Brito, "Um ator de
fronteira: um análise da trajetória do ator Grande Otelo no teatro de revista
brasileiro entre as décadas de 20 e 40" (Dissertação de mestrado, Universidade
de São Paulo, 2011).
47 Outros intérpretes, inclusive brancos, enfrentariam o problema do sotaque
italianado de São Paulo no Rio de Janeiro, como Cacilda Becker. Mas, neste
caso, ela ao menos tinha uma gama mais variável de papéis, podendo até
interpretar uma paulista, italiana ou estrangeira, sem que seus personagens
estivessem limitados por uma visão de estereotipia racial.
48 Ver Depoimento para Posteridade no Museu da Imagem e do Som do Rio de
Janeiro, em 1967.
49 Essa era a definição que a artista recebia nos anúncios do Jornal do Brasil
da época. Ver José Carlos Burle, "Música popular brasileira", Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1936, p. 18.
50 Ver, nesse sentido, o artigo de Rita do Amaral e Vagner Gonçalves da Silva,
"Foi conta para todo canto: as religiões afro-brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro", Afro-Ásia, n. 34 (2006), pp. 189-235. Nele os autores analisam como a Bahia, a baiana e as filhas
de santo do Candomblé ganharam estilizações nas letras de samba, cassinos,
emissoras de rádio e casas de espetáculo do Rio de Janeiro, projetando-se
nacionalmente. Tais elementos foram sintetizados por Carmen Miranda que, em seu
vestuário e gestos, "usou múltiplos signos saídos do universo simbólico dos
terreiros e cantados por ela nos versos de 'O que é que a baiana tem?', de
1939".
51 Lilia Schwarcz, "Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na
intimidade", in Lilia Schwarcz (org.), História da vida privada IV (São Paulo:
Companhia das Letras, 1993); Peter Fry, A persistência da
raça, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; Hermano
Vianna, O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
52 Vale lembrar que José Carlos Burle, fundador e um dos principais diretores
da Atlântida, em seus artigos no Jornal do Brasil, entre 1936 e 1937,
defenderia a música, teatro e cinema genuinamente brasileiros, citando Mário de
Andrade e Gilberto Freyre. O cineasta tecerá loas a Grande Otelo por conta da
peça Maravilhosa. Ver Luís Alberto Rocha Melo, "Argumento e roteiro: o escritor
de cinema Alinor Azevedo" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal
Fluminense, 2006).
53 Em estudo realizado por Thales de Azevedo sobre os estereótipos raciais na
Bahia, em 1951 o mesmo período de sucesso das chanchadas , os estereótipos da
indolência e da feiura dos negros são recorrentes. Thales de Azevedo, Cultura e
situação racial no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
54 Utilizo a definição de humor de Mary Douglas, que, segundo a autora, nasce
da justaposição entre elementos considerados disparatados. Mary Douglas,
Implicit Meanings, Londres: Routledge, 1999. Cf. também,
sobre o mesmo tema, Sigmund Freud, The Jokes and its Relation to the
Unconscious, Nova York: Penguin Books, 2003. Henri Bergson, O
riso, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
55 De acordo com a autora, nas obras de Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Paulo
Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, o homem negro e o mestiço
não aparecem jamais no mundo dos "afetos e prazeres", somente no mundo do
trabalho. Isso pode indicar que, na visão dos autores, apenas o branco foi
elemento ativo no processo de miscigenação sendo os demais destituídos,
portanto, de sexualidade. Laura Moutinho, Razão, "cor" e desejo, São Paulo:
Editora Unesp, 2003. Vale lembrar que os livros de Paulo
Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, analisados pela autora,
foram escritos na década de 1930, quando Otelo despontava como astro das
chanchadas. A proximidade temporal indica que tal imaginário estava vivo no
período de maior êxito desse gênero cinematográfico.
56 É importante lembrar que a representação de uma masculinidade negra
assexuada seria convenção em Hollywood após as várias rebeliões e proibições do
filme O nascimento da nação (1915), que mostrou tentativas de estupro de uma
mulher branca por um homem negro, fazendo apologia da Ku Klux Klan. Essa
convenção se transformaria em lei para todos os filmes, com o Production Code
de 1934, que proibia cenas de relações interraciais ou sugestão delas nos
filmes de Hollywood, bem como cenas em que o espectador branco/branca pudesse
sentir atração por artistas negros(as). Ver, nesse sentido, Thomas Cripps, Slow
Fade to Black, Nova York: Oxford University Press, 1993;
Barry Langford, Film Genre: Hollywood and Beyond, Edinburgh: Edinburgh
University Press, 2005. Sem estar restrito a esse tipo de
lei, mas influenciado por tais convenções, o cinema brasileiro apresentaria, na
maior parte dos filmes, uma masculinidade negra assexuada, mas também não
eliminaria sugestões de relações interraciais.
57 Este é o drama de um menino escravo que, suspeito de ter perdido um cavalo,
é castigado pelo seu fazendeiro até a morte, tornando-se, no fim da história,
um anjo. O projeto só se concretizou mais de 20 anos depois, em 1973.
58 Entrevista de Grande Otelo ao Semanário Radar, 20 de abril de 1951.
59 Ver Noel dos Santos Carvalho, "O negro no cinema brasileiro: o período
silencioso", Plural (Revista de pós-graduação em Sociologia da FFLCH/USP), n.
10 (2003), pp. 155-79.
60 Não encontrei nenhuma informação sobre a atriz que contracenava com Grande
Otelo.
61 Márcio Macedo, Abdias do Nascimento: a trajetória de um negro revoltado
(1914 1968) (Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo 2006), p. 110.
62 De acordo com Carvalho, as reivindicações do documento preparado na
Convenção Nacional do Negro, encontro organizado pelo TEN em São Paulo, mantêm
um tom conciliador, reafirmando o mito das "três raças fundamentais" do "povo
brasileiro", além de exigir que o preconceito racial se torne crime. Noel dos
Santos Carvalho, "Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo
Bulbul" (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2006), p. 34. Ver também Sérgio Costa, Dois Atlânticos, Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2006; Antônio Sérgio Guimarães e Márcio Macedo, "Diário
trabalhista e a democracia racial negra nos anos 1940", Dados, v. 51, n. 1
(2008), pp. 143-82.
63 Posteriormente, em depoimento, Abdias do Nascimento diria: "Precisávamos
pegar um autor como O'Neill que, aliás, nunca tinha sido encenado no Brasil e
calar a boca dessa gente! Ninguém acreditava que negro pudesse fazer teatro: o
que se esperava dos negros eram as macacadas do Grande Otelo ou as reboladas da
Pérola Negra". Abdias do Nascimento apud Márcio Macedo, Abdias do Nascimento: a
trajetória de um negro revoltado, 2006.
64 Carvalho, "Cinema e representação racial".
65 Conforme a crítica de Moniz Vianna, publicada pelo Correio da Manhã de 14 de
setembro de 1949, Também somos irmãos foi lançado justo na semana de Os três
mosqueteiros e Os sapatinhos vermelhos, com os quais não pôde concorrer. Grande
Otelo e Agnaldo Camargo recebem algum reconhecimento do crítico, em comparação
com o restante do elenco: "No comportamento dos atores, não há surpresas, salvo
a de Agnaldo Camargo, cujo desempenho é quase correto não lhe falta sobriedade
e até certa firmeza no falar. Os demais [com exceção de Grande Otelo] declamam
os seus papéis, não sabem andar em cena, têm medo de olhar para a objetiva e se
vestem muito mal".
66 Em depoimento concedido ao MIS, Otelo negou que as tragédias na sua vida
teriam influenciado seus papéis dramáticos. Grande Otelo em Depoimentos para
Posteridade, Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro, 26 de maio de 1967.
Número do CD: 440-1.
67 José Lins do Rêgo, apud Cabral, Grande Otelo, p. 135.
68 Cabral, Grande Otelo, p. 181.
69 Sérgio Cabral considera que os votos recebidos por Otelo foram irrisórios,
porque o eleitorado não votou em Sebastião Bernardes de Souza Prata, seu nome
de batismo, sob o qual se candidatou. Entretanto, na entrevista de Grande Otelo
à revista Veja, em 14 de fevereiro de 1973, ele conta outra versão: diz que seu
nome foi vetado pelo o PTB.
70 Glauber Rocha, Revisão crítica do cinema brasileiro, São Paulo: Cosac Naify,
2003.
71 Marcelo Ridenti, Brasilidade revolucionária, São Paulo: Editora da Unesp,
2010, p. 10.
72 David Neves apud Carvalho, "Cinema e representação racial", p. 112.
73 David Neves apud Carvalho, "Cinema e representação racial", p. 115.
74 Renato Silveira, "O jovem Glauber Rocha e a ira do Orixá", Revista da USP,
n.39 (1998), pp. 88-115. O autor se contrapõe à interpretação
canônica de Ismail Xavier, para quem Barravento revela um duplo ponto de vista
de Glauber Rocha: a um só tempo, o filme criticaria a religião afro-brasileira
como fator de alienação e aderiria a ela em termos de linguagem
cinematográfica. O argumento de Silveira de que não há um duplo ponto de vista,
mas sim um olhar etnocêntrico de Glauber se constrói tanto a partir de dados
históricos sobre o contexto das filmagens, quanto por meio da análise interna
do filme. Ver também: Ismail Xavier, Sertão Mar, São Paulo, Cosac Naify, 2007.
75 Refiro-me à seguinte análise de Silveira: "Na página 17 do livro de Gatti
temos uma foto de Firmino ao lado de Cota. Cabelo desgrenhado, olhar de
soslaio, expressão rancorosa, a própria cara do maluco encrenqueiro. Temos aí
uma ótima ilustração da imagem de Exu propagada pelo imaginário colonialista: a
do negro rebelde, medonho, demente e sanguinário". Silveira, "O jovem Glauber",
p.107.
76 Silveira, "O jovem Glauber", p.100.
77 Depoimento de Grande Otelo ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro,
Série Depoimentos para posteridade.
78 Henry Louis Gates Jr., Thirteen ways, p. xvii.
79 Ver Stuart Hall (org.), Representation, p.229.
80 Homi Bhabha, O local da cultura, p.110.
81 Como mostra Marcelo Ridenti, em Brasilidade revolucionária, nos anos 1970, a
ditadura militar, por um lado, reprimia os opositores; por outro, abria "espaço
dentro da ordem", com a criação da Embrafilme, do Serviço Nacional de Teatro,
da Funarte, do Instituto Nacional do Livro e do Conselho Federal de Cultura.
82 Vale lembrar, que a chanchada foi retomada já em meados da década de 1960 e
teria seu valor histórico reconhecido por Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos
e até Glauber Rocha.
83 Joaquim Pedro de Andrade, "Macunaíma: o cinema do herói vital", entrevista a
Oswaldo Caldeira de O Cruzeiro, 21 de agosto de 1969, grifos
do autor. Acessado no site oficial do cineasta: http://
www.filmesdoserro.com.br/jpa.asp. Data do acesso: 25/09/2012.
84 Para uma análise mais detalhada do filme, ver Ismail Xavier, As alegorias do
subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal, São Paulo:
Brasiliense, 1993.
85 Como afirma no Programa Roda Viva, no dia 15 de junho de 1987.
86 Entrevista ao Jornal da Pitumba, 27 de fevereiro de 1986.
87 Antônio Sérgio Guimarães, "A questão racial na política brasileira", Tempo
Social, v.2, n. 13 (2001), p. 132.
88 Guimarães, "A questão racial na política brasileira", p. 135.
89 Entrevista ao Jornal da Tarde, 10 de junho de 1978,
recorte de jornal do Dôssie número 2 de Grande Otelo, presente na Funarte do
Rio de Janeiro (sem referência à página).
90 Entrevista para A Gazeta da Vitória, 29 de maio de 1988,
recorte de jornal do Dôssie número 3 de Grande Otelo, presente na Funarte do
Rio de Janeiro (s/p.).
91 Entrevista a O Pasquim, 22-28 de janeiro de 1970, pp.14-7.
92 Depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 24 de janeiro de 1985.
93 Michael Pollack, "Memória, esquecimento e silêncio", Estudos Históricos, v.
2, n. 3, 1989, pp. 3-13 e idem, "Memória e identidade
social", Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10 (1992), pp. 200-12.
94 Entrevista à revista Realidade, abril de 1967, p. 90.
95 Depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 23 de março de 1988 Série 100 anos
de abolição.
96 Ruth de Souza, que teve experiências similares a de Grande Otelo, também
demonstraria uma atitude semelhante à do ator quando confrontada com a agenda
do movimento negro na década de 1970 e 80.
Ruth de Sousa: "[...] eu sou brasileira mesmo, eu amo esse país [...]. Mas,
quando diz afro-brasileira, ítalo-brasileira, japonês-brasileiro, eu acho que
gente é muito importante, então a minha maneira de viver é essa, nós somos
gente, com nossos sonhos e nossos desejos de realização, branco ou negro,
mulato ou branco [...]. Então eu acho, vamos se preocupar mais em termos de
Brasil, se vamos separar negro ali e branco ali, não vai dar certo, pois o
branco tá todo no poder, temos que lutar para conseguir o seu espaço. No
momento em que você tem poder aquisitivo, as coisas melhoram. Se a pessoa olha
torto para mim, eu até me esqueço, eu penso, ela não gosta de mim, não porque
eu sou negra, se não a vida fica muito difícil, fica muito difícil se pensarmos
assim. [...]. Ruth de Souza, Depoimento para Posteridade do Museu da Imagem do
Som do Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1988.
97 Lima, "Persona e sujeito ficcional", p. 55.
98 Décio Pignatari, "História sem estória", in Bernardo Vorobow e Carlos
Adriano (orgs.), Julio Bressane: cinepoética (São Paulo: Massao Ohno, 1995), p.
48.
99 Grande Otelo era um dos principais personagens do documentário inacabado que
Orson Welles tentou realizar no Brasil sob os auspícios da chamada "política de
boa-vizinhança" (1941-1945), que buscou o fortalecimento das relações
bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, tendo como objetivo principal
propiciar uma ofensiva contra os países do eixo nazifascista durante a Segunda
Guerra Mundial. Baseando-me nos roteiros de It's All True, presentes no Arquivo
de Welles na Lilly Library, na Universidade de Indiana, faço uma análise desse
episódio e dos filmes de Sganzerla em minha tese de doutorado, em andamento.
Para uma discussão detalhada sobre o projeto de Welles no Brasil, ver:
Catherine Benamou, It's All True: Orson Welles's Pan-American Odyssey, Los
Angeles: University of California Press, 2007. Sobre a
"política de boa vizinhança", ver Antonio Pedro Tota. O imperialismo sedutor: a
americanização do Brasil na época da segunda guerra. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
100 Não se pretende sugerir aqui que não o façam de maneira antirracista, mas
refletir sobre os sentidos indexados ao corpo de Grande Otelo nesses filmes