"Maria Crioula", "José Pretinho" e o "Mulato claro de olho de gato":
Representações de mestiços, pretos e negros no sertão baiano (1870 1930)
Neste artigo, centro-me na análise das representações construídas sobre a
população de descendente de africanos (mestiços, pretos, negros) por diferentes
atores do sertão baiano, particularmente do antigo Sertão da Ressaca, atual
região de Vitória da Conquista, sudoeste do estado da Bahia, no período
compreendido entre os anos de 1870 a 1930. As fontes que utilizo são,
sobretudo, processos crimes e jornais, por se tratarem de documentos que
possibilitam adentrar no universo social e cotidiano dos moradores.1
Tomo como ponto de partida a teoria das representações sociais, principalmente
a partir dos estudos de Pierre Bourdieu, para quem estas são sempre
determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.2 Assim, não são
discursos neutros, pois tendem a impor uma determinada visão de mundo, que
implica em condutas e escolhas. Segundo Bourdieu, é preciso incluir no real as
representações do real, pois "a representação que os indivíduos e os grupos
exibem inevitavelmente através de suas práticas e propriedades faz parte
integrante de sua realidade social".3
Procuro, então, enfatizar a função política das representações como sendo a
tentativa de legitimação de uma ordem com a sanção de um regime de dominação e
a contraposição a essa tentativa pelo grupo "subordinado". Assim, nesse artigo,
penso o afrodescendente como um agente político, que, mesmo em uma situação de
desigualdade, se manifestava politicamente e criava estratégias diferenciadas
para confrontar ou dialogar com o mundo do "branco".4
Para entender esses afrodescendentes, uso uma "categoria" criada por Homi
Bhabha: a noção de "entre - lugar", ou seja, eles poderiam estar em diferentes
"lugares", "posições", às vezes em uma mesma situação, levando assim a criação
daquilo que Bhabha chama de populações hifenizadas. Segundo esse mesmo autor, é
preciso passar para "além das narrativas de subjetividades originárias e
iniciais", ou seja, centrar-se nos processos de articulação das diferenças
culturais, os "entre-lugares", nos quais é possível perceber a criação de novos
signos de identidade e redefinições da própria ideia de sociedade.5
Para fins analíticos, separamos esse artigo em três seções diferentes, mas
complementares: primeiro as representações sobre mestiços e curandeiros; depois
as visões construídas sobre negros por outros igualmente negros; e por fim os
olhares dos "brancos" sobre a população descendente de africanos.6
Representando a ambiguidade: olhares sobre mestiços e curandeiros.
Para discutir sobre os mestiços e as tipologias criadas para representá-los,
convém lembrar o que diz Josildeth Consorte: "a mestiçagem abriu um leque de
possibilidades novas de identificação através das quais foi sendo fragmentado
todo o conjunto"; segundo ela os mestiços aqui nascidos, no período colonial,
foram sendo distinguidos a partir dos tipos de cruzamentos que representavam,
dessa forma surgiram os crioulos, mulatos, cabras, e anos mais tarde, os
pardos.7 Esses mestiços estavam no "entre - lugar" eram negro-não-negro",
"branco-não-branco",8 personagens "naturalmente" ambíguos,9 assim como eram os
curandeiros, temidos e necessários ao mesmo tempo.
Uma das primeiras representações de mestiços aparece, em 1872, em um processo
que envolve Maria Bernarda. Moradora da Rua do Espinheiro, na Imperial Vila da
Vitória, filha de Marcolina, em 1872, tinha "mais ou menos" 36 anos de idade.
Solteira, vivia de seu trabalho e da "porcentagem dos objetos que lhe
entregavam para isso".10 Que objetos seriam esses? Talvez escravos, já que ela
possuía ao menos uma escrava, de nome Felicidade, que estava batendo em uma
criança de nome Theotonio, filho de Carolina Teixeira. Diante das "alterações",
Rosa Silveira de Oliveira, pede na justiça um Termo de bem viver. Segundo
Eduardo Martins, esses termos de bem viver "não diziam respeito às infrações
consideradas criminosas, eram essencialmente normatizadores da ordem pública,
portanto podia-se fazer prender no caso da reincidência da sua assinatura", ou
seja, eram termos "civilizatórios", que visavam garantir a "moral" e os "bons
costumes".11
Pela pena do escrivão, Roza assim descreve Maria Bernarda: "Diz Roza Silvana de
Oliveira, viúva, e moradora na Rua do Espinheiro desta vila, onde vive de
negócios, aí é sua vizinha a crioula Maria Bernarda, prostituta, turbulenta, e
habituada a vociferar injurias contra qualquer pessoa".12
Na descrição feita por Rosa, o termo "crioula" aparece antes do nome, para
qualificar Maria Bernarda, em seguida, vem uma depreciação da sua condição de
mulher, "prostituta", e, logo depois, os qualificativos morais: "turbulenta" e
"injuriosa". O "vociferar injúrias" remete à inexistência de uma linguagem
polida. Cor e comportamento moral aparecem associados e marcam a presença do
racismo na representação feita. Além disso, existe a ideia de que ela não tinha
bons costumes: "turbulenta", "injuriosa" são palavras usadas pela acusação, o
que evidencia que o componente racial era mais um argumento pejorativo
associado a outros para desqualificar a ré. Analisando São Paulo, entre 1870 e
1920, João Batista Mazzieiro diz que o processo de criminalização e a
associação à doença eram constantes nas descrições feitas às prostitutas da
época.13
O processo não se estende; talvez Rosa quisesse apenas "assustar". No mesmo
ano, ela o retira, mas faz questão de ressaltar o que considera um
comportamento anti-social de Maria Bernarda: "desistia do processo crime
intentado contra a crioula Maria Bernarda e que perdoava as ofensas que por sua
turbulência lhe havia rogado a sua constituinte". Aqui, a ideia de que
"naturalmente" a ré era "turbulenta", ou seja, novamente a associação entre cor
(crioula) e comportamento moral (turbulenta).
Em 1874 temos o processo que envolve o "negro-curandeiro" Joaquim Antônio
Bandeira. Dois eixos discursivos, não excludentes, mas complementares, entram
na representação de Joaquim, "negro" e "curandeiro", mostrando que ele também
estava no "entre-lugar", ora negro, ora curandeiro. Ele aparece em um processo
por injúrias verbais, de 1874, impetrado por Severiano da Silva Pinha e sua
mulher (acusadores) contra Maximiliano José de Barros e sua mulher, Theofila
Boa Sorte (acusados).14
A acusação de Severiano é de que Maximiliano e Theofila estavam difamando sua
filha Balbina, por dizerem que ela estava a se envolver de forma "imoral" com
Joaquim Antonio Bandeira, um "negro-curandeiro". No primeiro relato, os
acusadores ressaltam o papel dele:
Diz Severiano da Pinha Silva, casado com família morador do lugar
chamado Olho d'Agua, que achando-se o suplicante ausente de sua casa
em fins do mês de junho passado, sua mulher e sua filha Balbina Maria
da Silva, menor de 21 anos, foram de visita a casa de Maximiano José
de Barros no lugar assim denominado Furados vizinho desta vila e aí
pernoitaram, mas a filha do suplicante nessa noite adoeceu gravemente
e achando-se presente um curandeiro de nome Joaquim Antonio Bandeira
aplicou-lhe algumas mezinhas, com as quais ela melhorou.15
Segundo Severiano, o curandeiro depois de ter bebido cachaça, disse que Balbina
estava com "fogo":
e que estava prenhe, depois de ter o mesmo curandeiro uma conversa
particular com a mãe da dita, foi esta atacada por uma moléstia
desconhecida na história médica. Que sendo Balbina conduzida para o
quarto onde dormem os acusados, aí pôs a estrebuchar e ao mesmo tempo
abraçando e sendo abraçada pelo curandeiro. Que Balbina, durante o
referido ataque pedia a todos, inclusive a mãe, que a deixassem só
com o curandeiro e proferia palavras obscenas e impróprias para uma
donzela.16
Na fala do acusador, uma "donzela" (menor de 21 anos) teria proferido palavras
"obscenas" e "impróprias". Uma "donzela" pura e casta teria sido "corrompida"
por um curandeiro. Nesse ponto, também os réus (Maximiliano e Theofila)
concordam e dão mais detalhes:
Que o curandeiro não consentia que pessoa alguma entrasse no quarto
onde ele e Balbina estavam; e querendo fazer também retirar a
acusada, esta teimou em ficar e não retirou-se, e depois do que pôs a
moça a dizer que não podia suportar a luz, e sendo esta apagada pelo
curandeiro, a acusada fez de novo acender, isto por duas ou três
vezes. Que vendo Balbina e o curandeiro que a acusada não saia do
quarto, trataram de sem rebuliço se abraçarem e pedindo o curandeiro
um vidro de banha, pos-se a esfregar as partes pudentas de Balbina,
consentindo essa e até manifestando prazer chegando mesmo a dizer que
o curandeiro fizesse do corpo dela o que quisesse.17
O curandeiro teria tocado as partes íntimas da "donzela", o que a teria levado
a pedir que fizesse com o seu corpo "o que quisesse". Imoralidade, lascívia e
prazer aparecem em destaque na fala dos réus. Continuam os réus a detalhar os
atos "imorais" do curandeiro:
Que entre beijos e abraços e tratando-se por meu bem, levaram Balbina
e o curandeiro grande parte da noite; e durante este tempo a acusada
saiu duas ou três vezes para ir buscar alguma coisa a pedido do
curandeiro. Que no dia seguinte Balbina não quis aparecer com a saia
que trazia e o curandeiro pediu a acusada uma saia emprestada para a
mesma Balbina vestir pelo que a acusada emprestou uma saia cor de
rapé. Que Balbina amanheceu com os beiços inchados e a cútis
rosada.18
Na citação, várias expressões demonstram uma suposta "lascívia" e "imoralidade"
da moça e do curandeiro, tais como: "beijos e abraços", "se tratando por meu
bem", "não quis aparecer com a saia que trazia" (manchada de sangue diante da
perda de virgindade da donzela?) e "beiços inchados".
Segundo os réus, a mãe de Balbina parece que sabia o que estava acontecendo,
mas confiava na "honra" que o curandeiro poderia oferecer a sua filha:
Que Balbina mandou que o curandeiro deitasse na cama com ela, e
opondo-se a isso a acusada, a mãe de Balbina, que tudo ouvira de
fora, disse à acusada que nenhum mal faria e que o curandeiro tinha
honra para dar a sua filha e à acusada".19
Já as impressões dos acusadores sobre o curandeiro são diferentes: "Que os pais
de Balbina são os primeiros a difamarem-na, consentindo que andasse em passeios
na garupa de um biltre como o negro curandeiro".20 No momento em que associam o
curandeiro a uma imagem negativa, a sua cor é logo posta em evidência. "Negro"
e "biltre" (vil, patife...), cor e comportamento associados.
Não tendo como escapar do fato de que sua filha teria tido um "relacionamento"
com o curandeiro, a mãe o justifica como movido por forças sobrenaturais, ou
seja, por um feitiço do curandeiro. Dessa forma, tanto na visão da defesa
quanto na acusação, o curandeiro é o responsável pela corrupção dos costumes,
Que os acusados guardavam silêncio de tais ocorrências por serem
muito vergonhosas até que foram descobertas pela própria mãe de
Balbina, que narrando os fatos, dizia que tudo tinha-se dado por
feitiço da acusada. Que se houve feitiço, o feiticeiro é o
curandeiro.21
João Moreira Prates, empregado público, testemunha do caso, reforça a ideia de
que o curandeiro era "imoral" e oferece detalhes sobre os acontecimentos,
particularmente sobre o seu comportamento:
[...] em certa hora depois de beberem muita cachaça, sentando-se o
dito curandeiro Bandeira junto a Balbina, e espreguiçando-se junto
dela, esta também fizera o mesmo, isto indicando sensualidade, e que
dali foram para o quarto onde dormem Maximiano e sua mulher, e indo
também o curandeiro, este não queria que pessoa alguma entrasse no
dito quarto ficando no mesmo a força a mulher de Maximiano e vendo
sem vestido a dita Balbina, o curandeiro deu a esta um pedaço de
ananaz dizendo que era para ela não mover o seu filho e depois de
esfregar a barriga de Balbina e mais outros lugares com a banha,
apagou a luz, porem a mulher de Maximiano fez acender de novo, e isto
por algumas vezes e pondo-se Balbina a dizer recebo a vós senhô. O
curandeiro dissera discunjura de sinhô que aqui está doutô.22
A imoralidade é associada ao consumo de cachaça, que teria levado a atos que
remetem à sensualidade.23 A mesma testemunha continua relatando os feitos
imorais do curandeiro e a referência às suas divindades:
[...] estando Balbina deitada adiante da mulher de Maximiano e
supondo o curandeiro estar já noite avançada que esta estava já
dormindo, o mesmo curandeiro foi devagar deitar-se na cama e abriu
com jeito as pernas de Balbina, que nelas se acomodava, e que sendo
visto pela mulher de Maximiano esta lhe dera um empurrão que o fez
cair no chão e ouvindo Maximiano que estava na tenda tal barulho
viera a porta do quarto e perguntara a sua mulher o que era aquilo e
antes de sua mulher responder o dito curandeiro pedira a esta que
pelo Senhor Bom Jesus da Lapa nada dissesse, pelo que a mulher
respondeu a seu marido que não era nada.24
"Imoral", o curandeiro fora lentamente deitar-se na cama e, com "jeito", abriu
as pernas de Balbina. O grau máximo de imoralidade tinha sido alcançado. Ao ser
descoberto, ele invoca então um santo católico, Bom Jesus da Lapa.25 O processo
termina com o despacho do juiz sobre a improcedência da denúncia por injúrias
verbais impetrado por Severiano e o condena a pagar a custa do processo.
Severiano recorre, mas perde novamente na segunda instância. As "imoralidades"
cometidas tanto pelo curandeiro quanto pela filha de Severiano, Balbina,
ficaram então provadas. A tese de que Balbina agira sob um feitiço do
curandeiro não convencera.
No processo, vemos uma busca pelo lugar do curandeiro; mas, por ele ser "negro"
e "curandeiro", sua caracterização era ambivalente e incerta, porém, de
qualquer maneira, o "lugar", onde parte dos personagens envolvidos acreditavam
que ele estava, era o lugar da "imoralidade" e nesse sentido o fato de ser
"negro" e "curandeiro" reforçava essa tese.
Outro processo que destaca um suposto "feiticeiro" é de 1876 e envolve Elias
Aneceto de Santana, tido por testemunhas como um homem valente, "que o réu, em
um só dia espancara três [...] que prometeu não sair desta vila enquanto não
tirar a vida de um".26
Segundo essas mesmas testemunhas, Elias se definia como "negro velho da Bahia"
e fazia questão de propalar isto pelas ruas da Imperial Vila da Vitória.
Tomando como verdadeira essa informação, em sua autoimagem transparece a cor de
sua pele e sua origem, no caso específico, a cidade de Salvador. Elias lida com
dois temores existentes na vila: o de ser negro e de ser forasteiro. A imperial
Vila da Vitória por ser uma cidade no cruzamento de uma rede viária que ligava
o Alto Sertão Baiano com o litoral Sul e o recôncavo e Salvador com Minas
Gerais, era espaço de circulação de diferentes forasteiros, o que proporcionava
"certo costume" com forasteiros, mas, mesmo assim, estes ainda causavam temor
nos moradores locais. Além do mais, Elias não era um forasteiro qualquer, quem
sabe até mesmo, como diz o documento, um negro "feiticeiro de Salvador". Tal
qual o curandeiro Joaquim Bandeira, era um personagem multifacetado, negro-
feiticeiro-da Bahia, estava também no entre-lugar.
Em 1888, na descrição daqueles chamados de "mulatos", a cor aparece também como
um determinante comportamental, mas de maneira mais específica, associada à
criminalidade. Em um processo cível de 1888, o negociante Deraldo Pereira, de
44 anos, assim relata o assalto que sofrera:
[...] inocente e pacificamente passeava em sua calçada, no dia vinte
do corrente às quatro horas da tarde, quando foi assaltado por um
mulato chamado Cândido que vive na companhia de Ancelmo da Silva
Brasileiro, o qual mulato pelas costas dele respondente abraçou-o de
forma tal que impossibilitou-o de qualquer movimento, neste ínterim
apareceu Ancelmo da Silva Brasileiro, o escravo Estevam, do domínio
de Dona Lydia Roza Guedes, e Onésimo da Silva Brasileiro, de idade de
mais ou menos dezesseis anos.27
Na narrativa do depoente, o discurso se desenvolve suave "inocente e
pacificamente passeava" para, depois, explodir: "quando depois foi assaltado
por um mulato". Mulato foi quem o assaltou, só depois é que aparece o nome,
Cândido, e reitera: "o mulato".28
Em um processo cível de 1889, encontrei a descrição de um ex-escravo chamado
Inocêncio. No processo, em algumas representações, construídas principalmente
pelo seu ex-tutor, a questão da cor logo aparece: "Inocêncio crioulo". O
"crioulo" funciona como um qualificativo descritivo do acusado.
No registro de batismo de Inocêncio, feito em 1873, o vigário José Moniz Cabral
Leal de Menezes descreve-o sucintamente: "Inocêncio, livre, crioulo" nome,
condição e cor, indissociavelmente ligados. Onze anos mais tarde, em 1884, já
sob a tutela de Luiz Moreira dos Santos, Inocêncio é retratado pelo tutor como
alguém que "não quis mais sujeitar-se a trabalhar no serviço do hoje ex-tutor,
e isso porque já estava possuído da influência de casar-se, o que realizou
pouco tempo depois".29 Expressões fortes, como "sujeitar-se", "possuído", são
utilizadas na representação das atitudes de Inocêncio. Segundo o tutor, para
impedir que Inocêncio se cassasse, seria preciso prendê-lo. Entretanto, "com a
realização do qual talvez fosse este espancado por soldados, conforme o abusivo
costume que há nesse termo".30 Luiz Moreira dos Santos apresenta-se como alguém
que poderia defender Inocêncio da violência contra os presos e/ou descendentes
de africanos.31
Morto em 1897, Inocêncio é novamente retratado pelo vigário, agora, com o nome
completo, "Inocêncio Minas dos Santos", possivelmente o "minas" do sobrenome
seja uma derivação do termo "Mina", presente no sobrenome de seu pai, Joaquim
Mina, e o "dos Santos", seja advindo de seu tutor Luiz Moreira dos Santos. Em
seu sobrenome, então, a sua procedência, "Mina", e a sua ligação posterior "dos
Santos". "Cor/procedência" (Mina) e "condição" (ligado à família dos Santos)
continuam aparecendo na descrição de Inocêncio.
Ao final do processo, percebo que antes da Abolição há um Inocêncio "crioulo",
"livre", "menor", "sem domicílio", "sem ocupação"; já depois da Abolição:
descendente de escravo ("Minas"), que não queria "sujeitar-se" mais, estando
"possuído" para casar-se. Se antes era "livre", "mas sem domicílio", "nem
ocupação", tinha que se sujeitar. Agora livre, mas na iminência de se casar,
não queria submeter-se mais. Entretanto estava suscetível a violências
(cadeia). Comum aos dois momentos é a associação direta à ancestralidade
escrava de Inocêncio.
Continuando a análise das representações de mestiços em processos crimes,
localizei um processo do início do século XX, de 1919, em que um ofendido
descreve seus ofensores com uma alusão a "mulato" como um dos eixos
explicativos: "que um de seus agressores é baixo, mulato e que tem dois dentes
de ouro, sabendo quanto ao outro que é alto da mesma cor".32 Nos dois casos um
atributo físico, a altura (baixa), aparece associada à cor (mulato).
Em outro processo de 1922, há uma descrição de Ana Maria dos Reis, nos autos de
corpo de delito, feita pelos "doutores" Crescêncio Antunes da Silveira e o
cirurgião-dentista Amphilóphio Pedral Sampaio. Ana é descrita como "surda e
dislálica, parda, de cabelos bons".33 Na descrição "técnica", a condição de
saúde aparece antes, para só depois, enfocar a questão da cor, "parda". A
expressão "de cabelos bons" parece uma tentativa de aproximar a parda do mundo
branco.
Anos depois, em 1924, outra menção a "mulato" aparece na descrição do escrivão
de polícia, quando diz que: "no dia 14 do corrente mês, foi assassinado Antônio
de Tal de cor mulato claro, olho de gato". Nessa descrição, "mulato claro" com
"olho de gato" chama a atenção a matiz de mestiçagem de Antônio. A imagem
construída no processo é a de alguém que "procedia mal", um "grande
turbulento", segundo uma testemunha:
o procedimento era péssimo, tanto que a [sic] poucos dias tinha
chegado de Itabuna com duas cutiladas no braço, em barulho de facão
que ali provocou, por tanto não deixaria de ser um grande turbulento,
e tinha por costume viver provocando a este e a aquele, tanto que
esteve preso nas cadeias desta cidade por duas vezes.34
A imagem de turbulência é associada ao comportamento de "viver provocando a
este e a aquele". O processo se estende por dez anos e, nele, duas imagens de
Antônio estão sempre presentes: na descrição do escrivão e do promotor, a
questão da cor, "o mulato"; já na descrição das testemunhas (seis no total,
todos lavradores e casados), Antônio aparece como "turbulento".35 A estratégia
era caracterizá-lo como alguém violento, e o acusado, como alguém que agira em
legítima defesa.
O que a análise da documentação nos permite dizer é que o racismo e a
ancestralidade escrava eram presentes na representação desses personagens,
feita, sobretudo por aqueles que detinham o poder na localidade, entretanto, a
distinção social também se fazia presente. Mas essas representações nunca
apareciam sozinhas, estavam associadas também a uma falta de "civilidade"
desses personagens e que chegava a atos condenáveis de imoralidade, como no
caso do negro-curandeiro.
Outra questão importante a ser ressaltada é a distinção que a população de
Vitória da Conquista fazia entre crioulo, pardo, mulato, cabra e preto, o que
revela a existência da noção da intensa miscigenação formadora daquele grupo
populacional. Essas denominações, embora não se refiram diretamente às
condições de vida daquela população de cor, evidenciam a existência de outros
níveis de diferenciação social que passavam ao largo das distinções de livres,
forros e escravos e mostram certa "mobilidade" no que se refere aos "lugares"
em que estavam esses personagens.
Negros representando negros: lugares e ambivalências
Um dos processos em que fica visível a representação de negros feita por outros
igualmente negros é de 1875, e envolve a história de duas famílias
afrodescendentes, a de Antônio Latão e a de Benedito Soares. Antônio Latão,
descendente de africanos, era casado com Umbelina, negra, ventre-livre, com
quem tivera ao menos uma filha, Maria. Já Benedito, negro, era casado com Joana
(sem identificação) e tinha um dos filhos chamado Gabriel. Todos eram moradores
do Arraial dos Poções, então pertencente à Imperial Vila da Vitória e eram de
famílias inimigas havia muito tempo. Não está claro no processo o início da
contenda, mas ela ganhou proporções judiciais quando foi lançado nas ruas de
Poções um pequeno "pasquim" em forma de cordel, onde Maria, viúva de Deolino,
filha de Antônio Latão é acusada, por Gabriel, filho de Benedito, de roubar,
juntamente com a escrava Sofia, a casa comercial de Raimundo Pereira de
Magalhães, onde trabalhavam.
O autor inicia a sua descrição de Maria com a "sugestão" de que, depois da
morte do marido, ela estava se comportando de maneira diferente:
Senhores eu estou pronto
Venham prestar atenção
Um causo que aconteceu
Com Maria de Latão
Senhores dão licença
Que quero explicar
Depois que Deolino morreu
Olha Maria como está.36
Para quem não conhecia Maria, ou não se lembrava dela, ele faz questão de
lembrar quem era e onde morava:
Muito dos senhores
Não conhece Maria
Mora na rua de baixo
Bem na beira do caminho.37
Maria morava na rua de "baixo", enquanto ele, Gabriel, morava na rua de "cima".
Mas quem definia o que era alto ("cima") e baixo? Talvez houvesse, na
diferenciação das ruas, uma gradação social e de cor. Depois de ter
identificado Maria e a forma como estava agindo, "diferente" ("olha Maria como
está"), o autor a acusa de estar roubando um dos maiores comerciantes do
Arraial dos Poções, Raimundo Pereira Magalhães:
O pai na rua de cima
Olhando para o padrim
A filha na rua de baixo
Roubando o Raimundim.38
Depois de acusar Maria de ser ladra, Gabriel a compara à mãe, Umbelina (negra/
mestiça) que, também, segundo Gabriel, era "torta". Já Latão (negro/mestiço),
pai de Maria, era "cego":
Torta como Umbelina
Nem tão cego como Latão
Nem tão ladra como Maria
Que furta até no balcão.39
Enquanto Latão era tido como "cego", a ex-escrava Umbelina era "torta", Maria
era "falsa", sorrateira, perspicaz. Por que Latão era cego? Por que não via a
filha roubar e/ou por ter se casado com a "torta" Umbelina?
A Maria de doze anáguas
Bastante serpentina
Latão tão bem pinta
Negocio bem a surdina.40
E principalmente "ladra", que roubou Raimundo em trinta mil réis. O roubo é
descrito de maneira alongada, especialmente a tentativa de Raimundo e sua
mulher de descobrirem quem era o ladrão:
Maria de doze anáguas
Para influencia do Mundo
Mais quem estava sofrendo
Era a casa de Raimundo
Logo naquele dia
Latão foi delegado
Raimundo tomou de Maria
Trinta mil réis furtado
Este é o que me consta
Quando foi o que ele tomou
Julgava ser gente da casa
E Maria foi quem furtou
Raimundo não sabia
Do roubo que ele sofria
[...]
Dele vender a nêga sufia
A mulher se apegou
Com os santos de sua devoção
Que ele lhe mostrasse
Quem era este ladrão
Falou esta palavra
Com dor no coração
De mandar dizer uma missa
E o ver com os pés no chão.41
Depois da "intercessão" dos santos, eis então que a "ladra" é descoberta:
Logo no outro dia
Em cima do balcão
Raimundo chamou Maria42
Venha ver o ladrão
Ficou ela muito contente
Em com bastante alegria
Perguntando quem era o ladrão
Ele disse que era Maria43
Ela se desanimou
Não me diga isso não
A Maria que furtou
Foi Maria de Latão.44
Depois da descoberta de Maria como suposta ladra, Gabriel agora ataca o pai,
Latão, que, segundo ele, dizia que os outros eram "ladrões" e que ele, Latão,
também queria ser um cidadão. Posso supor, ao menos, que aí havia certa ironia
pelo fato de um negro, liberto, morador da rua "de cima", querer ser cidadão.
Latão disse que não vinha
Mais nesta rua de cima
Porque cá só tinha ladrão
E porção de assassinos.
Como ele agora está
Querendo ser cidadão
Falando da rua de cima
E lá mesmo é que tem ladrão.45
Nesse momento, mais uma vez entra em cena outro personagem que tinha sido
citado anteriormente. Trata-se de Sofia, escrava de Raimundo Pereira Magalhães,
"negra" e que trabalhava ao lado de Maria.
No cordel, também o relato dos maus-tratos que essa escrava sofrera para
denunciar Maria:
Raimundo mais que depressa
Amarra a negra Sofia
Indo com ela na corda
Ela bateu na porta de Maria
Raimundo na ponta da corda
Vendo o que a negra dizia
Ela bateu na porta
Mim dá o dinheiro Maria.46
Vemos uma escrava amarrada, andando pelas ruas de Poções, puxada pelo senhor
pela ponta da corda e, também, a associação entre escravo e negro. Ao relatar o
momento em que a escrava delata Maria, Gabriel diz: "Vendo o que a negra
dizia". Dessa forma, com a ajuda da "negra" escrava, Maria é "descoberta" e
entrega o dinheiro. O autor do cordel manifesta então o seu contentamento com o
fato de Maria ser chamada de ladra.
Raimundo foi enxergando
Com muita alegria
Maria foi intregando
Todo o dinheiro que tinha
Ele foi arrecebendo
O dinheiro com as mão
Foi logo dizendo
Já sei quem é o ladrão
Alegre que ele ficou
Prejuízo que sofria
Disse ela em voz baixa
Você é uma ladra Maria.47
A escrava Sofia disse em "voz baixa" que Maria era a ladra. Duas possibilidades
complementares (ou não) podem conter essa situação: a primeira é o que a
escrava estivesse sendo torturada; e a segunda é que fosse cúmplice de Maria.
Segundo o autor do cordel, tanto a escrava Sofia como Maria estavam roubando
Raimundo Pereira Magalhães:
Ele chamou Latão
Assim que amanheceu o dia
Que estava roubado
Por Sofia e Maria.48
A partir daí, vemos que houve uma disputa com envolvimento de outros
personagens sobre o fato de Maria ter sido ou não ladra, tais como João Chaves,
Felisberto, Puluca e Juca, o que evidencia a amplitude que teve o fato na
sociedade do Arraial dos Poções.49 Na fala do autor do cordel, o caráter
racializado da escrava, "a negra", contrapõe-se à Maria, chamada apenas pelo
nome. A questão provavelmente não seja apenas de "cor", mas, de ser escrava:
Sofia era escrava e Maria não o era.
Raimundo estava falando
João Chaves disse que não
A negra tinha ido ver
Era um par de butão
A negra bateu na porta
Isto é muito certo
Maria de quem é os butão
São de Felisberto.
Raimundo disse mesmo
Que ainda tinha redevu
Que tem uma nopretissa (?)
E lá tem uns baús
O Latão com estas fala
Foi ficando cheio de angustia
Raimundo falou com Puluca
[...] mandado de busca
[...]
Por influência do mundo
Arretirou os baús
Franqeou a casa Raimundo
Raimundo requer busca
Pois falou com Puluca
Diga a Latão e a Maria
Que o ladrão e a mulher de Juca
Foi logo naqueles dias
Que veio [...] João
Quando faltava qualquer coisa
Raimundo chamava Latão.50
Após a participação desses diferentes personagens no debate sobre o
envolvimento ou não de Maria no roubo, inclusive da autoridade policial local,
"Puluca", Latão é chamado à cena, e Raimundo lhe revela que Maria teria sido a
responsável pelo roubo:
Venha cá Latão
Venha ver o que me faltou
Olha que tudo isto
E Maria que furtou51
Ao saber disso, Latão ficou estupefato, o que fez com que Gabriel o tratasse de
maneira jocosa, pois ficara com "a cara no chão", o que revela certo prazer de
Gabriel em descrever a cena:
Latão baixava a cabeça
Com a cara no chão
É bem feito para o torto
Chame agora os outros ladrão.52
Mas as impressões dele não são somente sobre Latão, mas também sobre João
Chaves, que anteriormente tinha protegido Maria. Isso se dera, segundo o
"cordelista", porque suas filhas teriam recebido presentes de Maria, mais
especificamente vinte mil réis.
No dia que João Chaves
Casou as duas filhas
Maria deu vinte mil reis
Para comprar duas novilhas.53
Novamente a fala se volta contra Latão, que "gostava de falar dos outros", mas
que, agora, se via numa situação em que sua filha era acusada de ser uma ladra:
Latão para falar dos outros
Juro que infara
Mais ninguém cuspa para cima
Que não lhe caia na cara.54
Agora se volta contra Maria e sua "desfaçatez" e destaca o fato de que não se
pode confiar em todo mundo:
Amancio bate sentido
Não se fie em todo mundo
Olha Maria que não te faça
O que ela fez a Raimundo.55
No final, ele deixa entender que estava prevendo que Maria se incomodaria com o
conteúdo e impressões contidas em seu cordel,
Já me despeço
A Deus que me arrretiro
Até quando cá tornar
Será breve a minha vinda
Se Maria não se incomodar.56
Gabriel termina, a meu ver, fazendo uma nova alusão a Latão, que vivia acusando
os outros, mas que não se dava conta das coisas que estavam acontecendo debaixo
de seus olhos:
Voz do povo
Quem não quer ser pele
Não vista o lobo.57
Apesar de ter sido escrito para relatar o roubo que, supostamente, Maria teria
cometido no estabelecimento comercial de Raimundo Pereira Magalhães, grande
parte das representações construídas no cordel são de Antonio Latão. Um
"negro", que se casara com a ventre-livre Umbelina, morador da rua "de cima", e
que, segundo Gabriel, "queria ser cidadão", dizendo que "os outros eram
ladrões", mas sua filha era quem estava roubando.
Convém discutir o que era um negro ser "cidadão" em 1875, provavelmente havia
todo um processo de "acomodação" da população negra com o crescimento de
alforrias e da formação de famílias negras, que antecedeu a própria Abolição de
1888 e que dizia respeito, entre outras coisas, à concessão, ainda que
extremamente precária, de algum tipo de cidadania para esses ex-escravos.
Outros traços da presença negra também são relatados, como os maus-tratos
contra a escrava Sofia, que fora amarrada com uma corda e assim andou por todo
o Arraial dos Poções até a casa de Maria, com o "senhor" na ponta da corda.
Torturada, Sofia revelara que era uma das ladras, ao lado de Maria.
Nesse caso, não posso também deixar de destacar o fato de que uma escrava e uma
livre, ambas descendentes de africanos, trabalhavam lado a lado no balcão de um
estabelecimento comercial e, segundo o autor do cordel, também estavam juntas
no roubo a Raimundo Pereira Magalhães.
Quando esse cordel começou a circular no Arraial dos Poções, Maria, enquanto
tomava banho na lagoa com Ana de Jesus, fala mal de Gabriel, filho de Benedito,
que escrevera o cordel. Outro filho de Benedito, Joaquim, ouve a notícia e
conta ao pai, que vai à lagoa com um chicote na mão e xinga Maria de "puta,
besta, vaca e ladra" e, segundo umas das testemunhas, "ameaçava na face do
rosto com uma taca (chicote)". Diante da tentativa de agressão, Maria recua e
diz que não estava contra ele, o que não o impede de continuar seus
xingamentos. Todos eles são comportamentais, senão vejamos: "puta", o seu
comportamento de mulher; "besta", "vaca" a sua animalidade ou falta de
educação/inteligência; e "ladra", a sua atitude moral.
Vendo a alteração, a mãe de Maria, Umbelina, intervém em defesa da filha e diz
que Benedito deveria provar que sua filha era ladra. Benedito então lhe
responde que, havia poucos dias, Raimundo Pereira de Magalhães e seus escravos
lhe tinham dito isso.58 Umbelina então contesta e diz que ladrões eram Benedito
e os escravos de Raimundo. Diante da ofensa, Benedito responde: "cala a boca
negra se não te meto o chicote" e xinga-a de "negra, cativa, besta e puta".
No xingamento, o uso dos adjetivos "negra e cativa" juntos evidencia que nem
todos os negros vieram do cativeiro; o termo "besta" sugere animalidade, aquele
que não enxerga nada, que usa viseira, e "puta", tal qual no caso de Maria,
constitui-se uma difamação à condição de mulher.
Mesmo sendo "negro", como atestam as testemunhas e o próprio processo, Benedito
demarca uma clara fronteira entre ele e Umbelina: ela era negra, e ele, não. E
para provar isso, se preciso fosse, "daria de chicote" em Umbelina, como assim
também faziam os antigos senhores de escravos. A construção de uma fronteira
está clara quando ele diz que "encontrando-se com a mulher do autor na beira do
rio, muito distante da casa, e recebendo da mesma mulher alguns insultos,
apenas respondia-lhe com estas palavras: não quero alterações com negra".59
Em um contexto marcado por intensos preconceitos, ao proferir: "não quero
alterações com negra", ele procura dizer de que lado queria estar. Em sua
defesa, a cisão racial presente naquela sociedade aflora, e ele tenta construir
uma auto-imagem pautada na negação do mundo negro.
No processo ele afirma que "a palavra negra não tem acepção injuriosa, ainda
mesmo falando-se de pessoa que nasceu de ventre livre" e, tentando mostrar que
havia uma separação entre ser negro e ser cativo, Benedito acaba por afirmar
que Umbelina era filha de escravos, informação que não tinha aparecido em
nenhum momento do processo. As testemunhas são unânimes em dizer que Umbelina
foi "xingada" de negra, cativa e que, tal qual escravo, se não se calasse, ela
entraria no chicote.
Ao que parece, a imagem que Benedito tenta passar é que, mesmo biologicamente
"negro", socialmente não o era, ou melhor, não queria ser, mesmo que fosse
preciso recorrer aos hábitos dos senhores de escravos ao ameaçar "dar de
chicote" em uma mulher "negra".
A defesa de Umbelina vem em sentido oposto à de Benedito, quando, em tom
provocativo, ela diz: "sim, ela era negra, mas Benedito também era, [...] se
sou puta é de meu marido e não dele e nem de outro dos Poções e que se ela era
negra que não era dele".60 A primeira "denúncia" de Maria é de que todos
estariam no mesmo "barco", isto é, todos eram negros. Umbelina se assume como
negra e como uma mulher que vive em felicidade com seu marido. A defesa dela
pode ser entendida à luz do que diz Bourdieu, que
o estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela
reivindicação pública do estigma, constituído assim em emblema
segundo o paradigma black is beatiful e que termina na
institucionalização do grupo produzido (mais ou menos totalmente)
pelos efeitos econômicos e sociais da estigmatização.61
No processo, diferentes dimensões da questão étnico-racial no Brasil se
entrelaçam: racismo e identidade étnica. Tudo isso aparece em meio às
diferentes representações sobre o que era ser negro naquela região e aponta
para a complexidade do debate das relações étnico-raciais, que envolve racismo
por um lado e por que não dizer? identidade étnica por outro lado, e ajuda a
entender as representações construídas na região sobre o ser negro e o "ser do
negro".62
No cordel há uma questão de moral, de furto e também de racismo. Um "negro" que
acusa outro de ter roubado, desqualificando-o socialmente e racialmente. Talvez
o que Gabriel (filho de Benedito) implicitamente quisesse demonstrar é que nem
todos os "negros" fazem isso, isto é, nem todos eram iguais. E se nem todos
eram iguais, havia um lugar que começava a se construir como uma fronteira.
Essa fronteira é de comportamento, mas se delimita também pelo saber escrever,
ou seja, pela possibilidade de dialogar por meio de um "instrumento" tido como
sendo de "branco", ou seja, a escrita personificada no cordel. As divisões, as
tensões já vêm de muito tempo, por isso o "cordelista" escreve, pois está
atento a toda a dinâmica social que o circunda. Ele está escrevendo e marcando
aqui começa o "novo" (os padrões comportamentais a serem assumidos pelos
negros, a cidadania a ser conferida), não em 1888, mas, ao menos em nossa
pesquisa, já em 1875.
O "ser negro" e o "ser do negro": representações do negro por brancos.
Em outra série de processos encontrados, o que estava em jogo eram também as
diferentes representações sobre o "ser negro" e o "ser do negro", articuladas
com outras dimensões da vida daqueles indivíduos. Entretanto essas
representações eram feitas, sobretudo, pelos "brancos", não no sentido de cor
de pele, mas construíam suas representações que partiam de uma ideologia do
branqueamento que atravessava as fronteiras fenotípicas.
Em 1896, oito anos depois da abolição da escravatura, temos um processo que
envolveu o pescador Tadeu, segundo uma das testemunhas:
[...] que estando ele (filho da testemunha) no rio mais Tadeu,
jogando tarrafa quando chegou Ireno Dias de Cerqueira, pedindo peixe
a Tadeu este respondeu que não tinha pegado e Ireno, vendo um saco
com umas piabas e foi logo apanhando, Tadeu, disse a ele que deixasse
minhas piabas, respondeu Ireno, não sei aonde [sic] estou que não te
dou um tiro, negro. Respondeu Tadeu, pois atira, e logo imediatamente
Ireno, atirou em Tadeu.63
Apesar de não estar claro no processo, parece que já havia uma disputa
anterior, que provavelmente não teria um cunho racial, entre Ireno e Tadeu e,
no aumento das tensões, a questão racial emerge: "[...] não sei aonde [sic]
estou que não te dou um tiro, negro". Tadeu não deixa a provocação sem resposta
e diz: "então atira", o que resultou no seu ferimento.
Outra testemunha, José Marques dos Santos, de 37 anos de idade, lavrador e
casado, ao descrever a mesma situação, não utiliza a palavra "negro", mas sim
"nomes injuriosos".
[...] um filho dele testemunha, de idade de dez anos que estando o
menino no rio mais Tadeu pescando no poço denominado da Pedra, Tadeu
jogando tarrafa e quando chegou Ireno, pedindo pelo peixe que tinha
pegado respondeu Tadeu, que não dava e ai Ireno, dirigiu-se a apanhar
os peixes, e Tadeu, requereu a ele que não apanhase e ai Ireno pos a
chingar [sic] nomes injuriosos os mesmos nomes Tadeu, respondera e no
mesmo momento Ireno, deu-lhe um tiro em Tadeu.64
Anos depois, em 1897, uma história parecida com a de Tadeu se dá com Juviniano,
que foi morto por Vicente com um tiro de garrucha na barriga. Segundo uma
testemunha, depois de ter feito o disparo, "o Vicente Pintado, provocando em
cima do cadáver do infeliz Juviniano de Tal, dizendo não te disse nêgo que eu
te matava?".65
Na mesma forma do caso anteriormente analisado, o crime decorreu do aumento das
tensões entre os dois por motivos que não ficaram claros para nós, mas, depois
de praticado, eis que emerge, da voz de Vicente (por meio da fala das
testemunhas), o racismo "Não te disse nêgo que te matava?". Há todo um
entrelaçamento entre a violência cotidiana e o racismo existente.
Essa situação parece se repetir em 1915, em um fato que envolveu José Urbano de
Magalhães, o "José Pretinho, participante de um Terno de Reis e morador de José
Gonçalves, atual distrito de Vitória da Conquista. Descreve assim Bernardo
Ribeiro de Menezes, 29 anos, solteiro e lavrador o que acontecera com José
Pretinho: "eu respondente fechei a porta e fui para o interior da casa, pouco
depois ouvi um tiro e em seguida muitos e ao terminar o tiroteio ouvi as vozes
de Serafim, dizendo: conheceu negro como se atira em homem?"66
O crime, aparentemente, foi em decorrência de uma disputa por questões de
honra: um homem mais velho desafiou um mais novo e, levado pela euforia da
bebida, o conflito se estabeleceu na manifestação da violência física.
Entretanto, como a dimensão racial se fazia presente, com força explode, quando
Serafim grita: "conheceu negro como se atira em homem?". O "preto" de José
Pretinho, é esquecido; o que está em questão é o "negro", não como cor, mas,
sobretudo como um lugar social, que entra na correlação de forças "homem mais
novo" versus "homem mais velho", como uma variável que dava a esse homem "novo"
e, segundo a fonte, branco, uma suposta superioridade frente ao homem "velho" e
"negro". Isso pode ser também percebido na fala dessa mesma testemunha em outro
depoimento dado um ano depois, em agosto de 1916, "ouviu o estampido de
diversos tiros e palavras que ele testemunha conhecia visivelmente serem do
denunciado que diziam, "conheceu negro, como é que moleque mata homem?"67
A questão da honra é associada à dimensão racial, como deixa claro outra
testemunha, Francisco Graia, 27 anos, solteiro, lavrador:
Disse mais que ele testemunha sendo chamado por uma mulher, cujo nome
não precisou, amazia [sic] de João Pretinho, para socorrer este,
ancedeu [sic] e ai chegado ainda encontrou João Pretinho em ancia
[sic] da morte e antes do lugar do crime o denunciado Serafim que lhe
disse haver atirado no negro.68
O escrivão absorve a linguagem da testemunha, pois não fica claro no depoimento
se teria sido a testemunha ou o escrivão que qualificara José Pretinho como
negro, ou seja, quem de fato disse "haver atirado no negro", a testemunha, ou
Serafim?69
Em 1922, encontramos a representação de Vicente Antônio da Silva, também
"tocador de Reis", que fora ferido com uma facada no peito direito. Ele tinha
34 anos, era natural de Caculé e vivia na região de Vitória da Conquista, no
lugar denominado Olho d'Água de Vital. A primeira representação de Vicente é
feita pelos peritos, os "senhores doutores" Nicanor José Ferreira e Aparício
Couto Moreira, e de natureza técnica: "Vicente Antônio da Silva, com trinta e
quatro anos de idade, de cor preta". Na descrição "técnica", a racialização de
Vicente.
As testemunhas tentam construir uma imagem de Vicente como alguém "metido a
valente". Diz Eusébio Gonçalves Costa, 34 anos,
tendo o mesmo chegado de Itabuna [...] chegando teve que trazer um
facão marca jacaré e uma pistola fogo central e dizendo que ele
respondente que trouxe aquele facão para batizar no costado do
pessoal do Pouso da Vaca.70
Essa imagem é reforçada por diferentes testemunhas, mas a dimensão racial do
conflito também estava presente no depoimento de outra testemunha, Serapião
Rodrigues dos Santos, 66 anos: "teve que saber por Geraldo Ribeiro de Queiroz
acusado que Vicente achava-se ferido com uma facada no peito e tendo Geraldo
dito para ele respondente que 'nós matamos o negro'".71
Dessa vez, o racismo não é evidenciado na hora da tensão, mas depois, quando os
acusados relatam o que haviam feito. Isso também se dá com João Felix em 1927.
No exame cadavérico realizado por Jovelino Rodrigues da Silva e João Queiroz de
Brito encontramos a primeira descrição, em que a cor é logo ressaltada: "que
examinando a pessoa de João Felix da Rocha, de cor preta, com vinte e oito anos
de idade natural e residente deste distrito veste brim branco, camisa
branca".72
Na fala de uma testemunha, percebe-se a naturalidade com que encara a violência
e a definição dada pelo autor do tiro (Theodovico) sobre João Felix:
viajando em caminho ele Theodovico me disse que tinha atirado no João
Felix, para que você fez isso! Ele não me respondeu mais nada
viajemos a noite toda para a casa e não subemos da morte então no
outro dia é que nós subemos que João Felix tinha morrido, mas
Theodovico não falou que tinha atirado no negro João Felix com uma
laproxe.73
Assim como no caso anteriormente analisado que envolveu José Pretinho, o
escrivão "absorve" a linguagem da testemunha, pois não é explicitado quem
dissera que João Felix era negro a testemunha ou o acusado. Talvez isso
aconteça por ser o qualificativo "negro", para pessoas como João Felix, um dado
"natural" naquela realidade.
A briga se dera por uma questão material, uma dívida de seiscentos réis, mas a
questão da cor estava ali, para os peritos e, indiretamente, para o próprio
Theodovico. Nesse caso, podemos perceber certa diferença entre "preto" e
"negro": para os peritos, João Felix era preto (cor), traço fenotípico,
racializado; para as testemunhas (e Theodovico?), João Felix era negro
(condição). Assim, o "preto" e o "negro" se misturam; preto como cor, e negro
como condição.
De forma mais detalhada do que nos casos de Umbelina e Elias, em um processo de
1929, que envolve pessoas de Belo Campo, então distrito do município de Vitória
da Conquista, é possível perceber, na fala de um advogado, que era viável
mostrar a positividade desse "lugar", o "ser negro", e, nesse caso, o "ser
africano". O processo é uma reivindicação de posse.
Um senhor de escravos (Antônio Ferraz de Araújo Catão) deixara, em testamento,
uma fazenda para seus escravos com a prerrogativa de que eles acompanhassem sua
esposa até a morte. Quando essa senhora se deslocou para Caetité, a terra dos
libertos, fazenda Preguiça, depois denominada "São Domingos dos Negros" foi
alugada por 24 anos. Ao morrer, o locatário colocou a fazenda como um bem para
ser inventariado.Para resolver a questão, os ex-escravos entraram com uma ação
ordinária de reivindicação de posse.
Diferentemente de outros processos, em que é possível perceber a fala da
população afrodescendente, nesse, a que mais se destaca é a do advogado Mário
Monteiro de Almeida, brasileiro, casado, residente em Vitória da Conquista. Na
primeira argumentação, ele ressalta a importância dos ex-escravos para Catão:
"o Sr. Antonio Ferraz de Araújo Catão era homem de muitos e largos haveres,
possuidor de abastados cabedais, ganho mercê de trabalho produtivo colaborado
por inúmeros escravos".74
De acordo com o testamento de Catão, os ex-escravos deveriam servir a sua
mulher até a sua morte e não poderiam vender a propriedade. Segundo o advogado
isso foi cumprido:
Com uma dedicação irrepreensível e uma fidelidade só vulgar, no
Brasil, na abundância de afetuosidade dos descendentes do generoso
negro africano para aqui transplantado pela cobiça exagerada do
europeu então mais que hoje incapaz da colonização pessoal das ricas
terras sul-americanas, os legatários continuaram a servir a viúva do
testador, seguindo-a resolutamente na sua peregrinação pela vida,
rodeando-a sempre, sempre acompanhando-a, até os derradeiros
momentos.75
Nas representações do advogado sobre o "generoso negro africano", é ressaltada
a "afetuosidade" e feita a denúncia de que, para aqui, só viera por conta da
"cobiça exagerada do europeu". A retórica utilizada pelo advogado mostra certa
"positividade" do "ser negro" e do "ser africano".
O advogado de defesa é Themistocles Álvares Lima, que sempre aparece em
processos analisados por mim em Ituaçu.76 Nele há outra visão sobre os "negros"
que estavam fazendo a reivindicação de posse, eles habitavam "uns terrenos que
se transformaram em verdadeiras capoeiras conhecidas geralmente pela
denominação capoeiras dos negros".
O processo termina fora da justiça, quando o advogado dos ex-escravos pede que
o processo seja suspenso, pois iriam fazer uma composição amigável. Se, de
fato, houve essa composição, ela não passou pelas esferas judiciais, pois não
localizei nenhum processo que fizesse referência a esse fato.
Considerações finais
Nas diferentes representações, percebo a racialização da sociedade na
associação ao primeiro nome do indivíduo de um "apelido" que denota sua cor e
origem. Vimos isso nos seguintes casos: Maria Crioula (1874), Inocêncio Crioulo
(1889); Antônio Preto (1904); José Pretinho (1916); Vicente Preto (1922);
Antônio Mulato (1924), entre outros.77 Ao discutir a "luta de classificações",
Bourdieu diz que "a imposição de um nome reconhecido opera uma verdadeira
transmutação da coisa nomeada que [...] torna-se uma função social, isto é, um
mandato, uma missão, um encargo, um papel".78 Nesse sentido, o "apelido"
representa um lugar social a não ser esquecido.
Mais do que uma "questão de cor", o que persistiu, mesmo depois da Abolição,
foi o racismo articulado com um cotidiano "naturalmente" violento. À luz dos
processos que analisamos, parece que o racismo era mais explícito com a
população identificada como "preta". Em relação à população mestiça era mais
sutil, mas, provavelmente, não menos perverso. Mesmo percebendo que havia uma
diferença na representação entre "mestiços" e "negros", é preciso dizer, tal
qual fez Consorte, que "a situação social dos mestiços, no entanto, mesmo que
melhorada em relação à dos negros, estava longe, de alcançar os níveis
atingidos pelos brancos, em seu conjunto, encontrando-se muito mais próxima
daqueles".79
Os "apelidos" evidenciam o que também percebi ao longo da pesquisa: não
importam os graus de mestiçagem, o lugar social era de negro. Tratava-se de um
lugar social em movimento; "lugares", principalmente quando percebemos que
havia negros que se consideravam menos negros do que outros, e que isso não
resultava necessariamente da cor da pele, mas do estabelecimento de fronteiras
sociais. Apesar das evidências empíricas não serem conclusivas, acreditamos que
esse negros, que conseguiram algum grau de ascensão social, eram influenciados
pela ideologia do branqueamento, construindo dessa forma parâmetros
comportamentais e civilizatórios, ligados ao mundo branco europeu.
Nas representações, os lugares aparecem associados ora à resposta a valores
dominantes na sociedade, como os bons modos e a civilidade, ora à afirmação de
valores de origem africana, ou seja, como "contra-lugares" construídos a partir
da negação do primeiro. Umbelina, Elias e o argumento de defesa feito pelo
advogado Mário de Almeida, são exemplos de que era possível ocupar um "lugar
social" ligado à "turbulência" e à "falta de civilidade" e nele construir
"contra-lugares", ou seja, construir "identidades de resistência", o negro, ou
seus interlocutores, assumindo a sua negritude e/ou africanidade e construindo
uma resistência a partir dela.
Todos os personagens descritos até aqui, negros e/ou mestiços, estavam em
determinados lugares que eram entrecortados por diferentes representações, ou
seja, um mesmo personagem poderia ocupar mais de um desses lugares, às vezes,
em uma mesma situação.
Como se vê os lugares do negro construídos até agora a partir de representações
formadas segundo a ideologia do branqueamento (mesmo difusa e não
sistematizada) não são estáticos, estão sempre em construção, tanto pela
imposição de determinados modelos como pela negação, resistência e
desconstrução desses mesmos modelos.
Pairando sobre todas essas representações, como um pano de fundo, um desejo de
civilidade e progresso para a região e para o país, existe, por parte dessa
sociedade conquistense, a constatação da diversidade de sua população e de que,
em uma sociedade com um profundo grau de mestiçagem e com uma grande quantidade
de negros, a "civilidade" é fundamental para a construção de uma cidade,
naquele momento, ainda retórica, não-real.
Por fim, cumpre destacar que, não obstante a mestiçagem, o racismo sempre
esteve presente entre nós. Não importam também as diferentes tonalidades de
pele, o lugar social é de negro, e quando esse lugar veio associado à condição
de pobreza e de mulher a vida não foi generosa com esses personagens, mas como
evidenciam de maneira mais clara alguns processos, eles estavam longe de serem
vítimas indefesas.
Texto recebido em 23 de janeiro de 2009 e aprovado em 10 de agosto de 2012
* Esse artigo é uma versão modificada do terceiro capítulo da dissertação
"Construindo o "negro": lugares, civilidades e festas em Vitória da Conquista/
BA" defendida em 2008 no programa de Pós-graduação em Ciências Sociais:
Antropologia, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob a
orientação da professora Josildeth Gomes Consorte.
** Fonte: AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
1 As fontes foram coletadas no Arquivo do Fórum João Mangabeira (AFJM) de
Vitória da Conquista entre os anos de 2006 e 2008. Alguns documentos estão
misturados, por exemplo, encontrei documentos de 1922 em uma caixa de 1924, uma
autuação de 1916 em uma caixa de 1890.
2 Ver Pierre Bourdieu, A distinção: crítica social do julgamento, Porto Alegre:
Editora Zouk, 2007; e Pierre Bourdieu. O poder simbólico.
Lisboa: Difel, 2005.
3 Ver Bourdieu, A distinção, p. 447.
4 Esse mundo "branco" é uma construção ideológica de uma sociedade sertaneja
naturalmente mestiça, mas que criava determinados parâmetros comportamentais e
de civilidade que deveriam ser, em tese, seguidos por toda a sociedade, é
justamente a essa noção de comportamento e civilidade que damos o nome de
"mundo branco".
5 Ver Homi K Bhabha, O local da cultura, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 20.
6 A descrição desses personagens como negros e brancos aparece nos processos
aqui analisados
.
7 Ver Josildeth Gomes Consorte, "A mestiçagem no Brasil: armadilhas e
impasses", Revista Margem, n.10 (1999), p. 109.
8 Parafraseando aqui Eneida A. Reis, Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-
branco, São Paulo: Altana, 2002.
9 Colocamos as aspas no "naturalmente" ambíguo, pois entendemos que a
mestiçagem não é sinônimo de ambiguidade natural e que não entendemos a
identidade como um fenômeno único e congelado.
10 AFJM, Caixa Diversos 1872 a 1873, Termo de bem viver, 1872.
11 Ver Eduardo Martins, Os pobres e os termos de bem viver: novas formas de
controle social no Império do Brasil (Dissertação de Mestrado, Universidade
Estadual Paulista, 2003) p. 102.
12 AFJM, Caixa Diversos 1872 a 1873, Termo de bem viver, 1872.
13 João Batista Mazzieiro, "Sexualidade criminalizada: prostituição, lenocínio
e outros delitos - São Paulo 1870/1920". Revista Brasileira de História
[online] vol.18, n.35, 1998.
14 Esse processo foi localizado por Itamar Aguiar e citado em sua dissertação.
Para mais detalhes, ver Itamar Pereira de Aguiar, "As religiões afro-
brasileiras em Vitória da Conquista: caminhos da diversidade"(Dissertação de
Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999), p. 66.
15 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo crime por injúrias verbais, 1874.
16 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo crime por injúrias verbais, 1874.
17 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo Crime por injúrias verbais, 1874.
18 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo Crime por injúrias verbais, 1874.
19 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo Crime por injúrias verbais, 1874.
20 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo Crime por injúrias verbais, 1874.
21 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo Crime por injúrias verbais, 1874.
22 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo crime por injúrias verbais, 1874.
23 Parece-me que Balbina tinha recebido santo, quando ela disse "Recebo a vós
senhô" e o curandeiro pediu que a entidade saísse, "O curandeiro dissera
discunjura de sinhô que aqui está doutô". O que seria esse conjuro? Analisando
o México Colonial, Serge Gruzinski diz que o conjuro era uma forte idolatria
entre a população indígena, que, por meio dela, chegava até o outro plano.
Segundo ele " é mais um poder sobre os seres e as coisas do que um saber, é uma
práxis, um estabelecimento de relações, mais do que uma especulação
intelectual. O que não significa que a exclua completamente: curandeiros e
outros poderem ter sido levados a pensar o conjunto dos conjuros que conheciam,
mas este não era seu objetivo imediato e habitual". Continua ele que o
conjurador é aquele que recebe por um período de tempo a energia divina, como
fazem os homens deuses pré-hispânicos; ele é a encarnação do próprio deus e
poderia manipular como bem quisesse uma determinada situação, mesmo que não
fosse fácil transmitir por meio de palavras o mundo criado pelas invocações.
Quanto aos medicamentos utilizados pelo curandeiro, existe o uso de elementos
do universo medicinal indígena, como o ananás e a banha. A utilização de óleos
e/ou banhas constitui-se numa prática comum entre os curandeiros/feiticeiros do
Brasil Colônia. Laura de Mello e Souza descreve vários exemplos de utilização
de untos de carneiros (sebo), banhas e diferentes tipos de óleos. Para mais
informações, ver Serge Gruzinski, A colonização do imaginário, São Paulo:
Companhia das Letras, 2003; e Laura de Mello e Souza, O diabo
e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colônia,
São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
24 AFJM, Caixa Diversos (1874), Processo crime por injúrias verbais, 1874.
25 Analisando as religiões afro-brasileiras em Vitória da Conquista (1930 a
1999), Itamar Aguiar nos diz que, nessa cidade, em algumas casas a entidade do
caboclo aboiador foi sincretizada com Bom Jesus da Lapa e em outras com Oxalá.
Segundo John Thornton, dos elementos culturais de matriz africana,
indubitavelmente as religiões foram aquelas que alcançaram um grau maior de mu-
tabilidade nas Américas. Para mais informações, ver Pereira de Aguiar, "As
religiões afro-brasileiras em Vitória da Conquista", p. 110 e 132; John Thonrnton, A África e os africanos na formação do mundo
atlântico, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
26 AFJM, Caixa Diversos, 1875 1879, Apelação crime 1876.
27 AFJM, Caixa diversos 1890 a 1899 (22), Auto de corpo de delito, 1888.
28 No ultimo ano da escravidão se vê "mulatos" livres e escravos juntos.
29 AFJM, Caixa Diversos 1888 a 1890, Termo de tutela, 1889.
30 AFJM, Caixa Diversos 1888 a 1890, Termo de tutela, 1889.
31 Em alguns documentos, a cadeia é associada a uma senzala, é o que se percebe
em ofícios enviados nos anos de 1871 e 1872 para o presidente da província.
32 AFJM, Caixa Diversos 1919, Sumário de culpa, 1919.
33 AFJM, Caixa Diversos 1919, Sumário de culpa, 1919.
34 AFJM, Caixa diversos 1924, Sumário de culpa, 1924.
35 A presença do termo "turbulento", nos diferentes depoimentos, talvez se deva
à normatização imposta pela pena do escrivão, como se pode depreender do caso
de Maria Bernarda (1872) anteriormente analisado.
36 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
37 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
38 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
39 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
40 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
41 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
42 A esposa de Raimundo Pereira Magalhães.
43 A filha de Latão.
44 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
45 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
46 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
47 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
48 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
49 Mesmo porque era um Arraial pequeno e o maior comerciante local supostamente
estava sendo lesado.
50 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
51 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
52 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
53 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
54 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
55 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
56 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
57 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
58 Interessante destacar que Benedito coloca em condição de igualdade, no que
se refere à autenticidade da informação Raimundo Magalhães e seus escravos.
59 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
60 AFJM, Caixa Diversos 1875 a 1879, Apelação crime, 1875.
61 Ver Bourdieu, O poder simbólico, p. 125
62 Parafraseando aqui Gislene Aparecida dos Santos, A invenção do ser negro,
São Paulo/Rio de Janeiro: Pallas/EDUC/Fapesp, 2002.
63 AFJM, Caixa Diversos, 1896, Auto de corpo de delito procedido contra Ireno
Dias de Cerqueira, 1986.
64 AFJM, Caixa Diversos, 1896, Auto de corpo de delito procedido contra Ireno
Dias de Cerqueira, 1986.
65 AFJM, Caixa Diversos, 1896, Auto de corpo de delito procedido contra Ireno
Dias de Cerqueira, 1986.
66 AFJM, Caixa Diversos 1890, Autuação 1916.
67 AFJM, Caixa Diversos 1890, Autuação 1916.
68 AFJM, Caixa diversos 1911 a 1917, Autuação 1916.
69 O processo termina quando, em 1917, Serafim é morto no distrito de São João
do Alípio, distrito da região de Condeúba.
70 AFJM, Caixa Diversos 1924, Processo a requerimento do Sr Vicente Antonio da
Silva contra os indivíduos Geraldo Ribeiro de Queiroz e Ponciano de Tal, 1922.
71 O processo não é concluído e é prescrito.
72 AFJM, Caixa Diversos 1927, Auto de corpo de delito, 1927.
73 AFJM, Caixa Diversos 1927, Auto de corpo de delito, 1927.
74 AFJM, Caixa diversos 1929, Ação ordinária de reivindicação da fazenda "São
Domingos" deste município e termo, 1929.
75 AFJM, Caixa diversos 1929, Ação ordinária de reivindicação da fazenda "São
Domingos" deste município e termo, 1929.
76 Uma discussão sobre a presença negra em Ituaçú e a atuação de Themístocles
Álvares Lima pode ser encontrada em Washington Santos Nascimento, "Famílias
escravas, libertos e a dinâmica da escravidão no sertão baiano (1876-1888)",
Afro-Ásia, n. 35 (2007), pp. 220-40; e Washington Santos
Nascimento, "Escravidão e memória: os negros no Arraial do Brejo Grande e na
cidade de Ituaçu, Ba", Memória Conquistense, n. 7 (2007), pp. 19-38.
77 Não encontrei no período estudado, mas levando em consideração alguns
apelidos ainda existentes na cidade de Vitória da Conquista, talvez houvesse
também apelidos como "branco", "claro" etc.
78 Bourdieu, A distinção, p. 444.
79 Ver Consorte, A mestiçagem no Brasil, p. 110-1.
Anexo A
Cordel na íntegra feito por Gabriel, no Arraial dos Poções (1875).**
Senhores eu estou pronto
Venham prestar atenção
Um causo que aconteceu
Com Maria de Latão
Senhores dão licença
Que quero explicar
Depois que Deolino morreu
Olha Maria como está
Muito dos senhores
Não conhece Maria
Mora na rua de baixo
Bem na beira do caminho
O pai na rua de cima
Olhando para o padrim
A filha na rua de cima
Roubando o Raimundim
Torta como Umbelina
Nem tão cego como Latão
Nem tão ladra como Maria
Que furta até no balcão
A Maria de doze anáguas
Bastante serpentina
Latão tão bem pinta
Negocio bem a surdina
Maria de doze anáguas
Para influencia do mundo
Mais quem estava sofrendo
Era a casa de Raimundo
Logo naquele dia
[...] Latão foi delegado
Raimundo tomou de Maria
Trinta mil reis furtado
Este é o que me consta
Quando foi o que ele tomou
Julgava ser gente da casa
E Maria foi quem furtou
Raimundo não sabia
Do roubo que ele sofria
[...]
Dele vender a negra sufia
A mulher se apegou
Com os santos de sua devoção
Que ele lhe mostrasse
Quem era este ladrão
Falou esta palavra
Com dor no coração
De mandar dizer uma missa
E o ver com os pés no chão
Logo no outro dia
Em cima do balcão
Raimundo chamou Maria
Venha ver o ladrão
Ficou ela muito contente
Em com bastante alegria
Perguntando quem era o ladrão
Ele disse que era Maria
Ela se desanimou
Não me diga isso não
A Maria que furtou
Foi Maria de Latão
Latão disse que não vinha
Mais nesta rua de cima
Porque cá só tinha ladrão
E porção de assassinos.
Como ele agora está
Querendo ser cidadão
Falando da rua de cima
E lá mesmo é que tem ladrão
Raimundo mais que depressa
Amarra a negra Sofia
Indo com ela na corda
Ela bateu na porta de Maria
Raimundo na ponta da corda
Vendo o que a negra dizia
Ela bateu na porta
Mim dá o dinheiro Maria
Raimundo foi enxergando
Com muita alegria
Maria foi intregando
Todo o dinheiro que tinha
Ele foi arrecebendo
O dinheiro com as mão
Foi logo dizendo
Já sei quem é o ladrão
Alegre que ele ficou
Prejuízo que sofria
Disse ela em voz baixa
Você é uma ladra Maria
Ele chamou Latão
Assim que amanheceu o dia
Que estava roubado
Por Sofia e Maria
Raimundo estava falando
João Chaves disse que não
A negra tinha ido ver
Era um par de butão
A negra bateu na porta
Isto é muito certo
Maria de quem é os butão
São de Felisberto.
Raimundo disse mesmo
Que ainda tinha redevu
Que tem uma nopretissa (?)
E lá tem uns baús
O Latão com estas fala
Foi ficando cheio de angustia
Raimundo falou com Puluca
[...] mandado de busca
[...]
Por influência do mundo
Arretirou os baús
Franqeou a casa Raimundo
Raimundo requer busca
Pois falou com Puluca
Diga a Latão e a Maria
Que o ladrão e a mulher de Juca
Foi logo naqueles dias
Que veio [...] João
Quando faltava qualquer coisa
Raimundo chamava Latão
Venha cá Latão
Venha ver o que me faltou
Olha que tudo isto
E Maria que furtou
Latão baixava a cabeça
Com a cara no chão
É bem feito para o torto
Chame agora os outros ladrão
No dia que João Chaves
Casou as duas filhas
Maria deu vinte mil reis
Para comprar duas novilhas
Latão para falar dos outros
Juro que infara
Mais ninguém cuspa para cima
Que não lhe caia na cara
Amancio bate sentido
Não se fie em todo mundo
Olha Maria que não te faça
O que ela fez a Raimundo
Já me despeço
A Deus que me arrretiro
Até quando cá tornar
Será breve a minha vinda
Se Maria não se incomodar
Voz do povo
Quem não quer ser pele
Não vista o lobo