As nações de maracatu e os grupos percussivos: as fronteiras identitárias
Há, na atualidade, uma grande quantidade de grupos musicais reproduzindo a
sonoridade dos maracatus-nação pernambucanos espalhados pelo Recife e mundo
afora. Atribui-se tal fato ao advento e sucesso do movimento Mangue Beat nos
anos 1990 e à atuação do grupo parafolclórico Maracatu Nação Pernambuco que,
nos anos anteriores, positivou a imagem do maracatu perante a classe média
recifense e sociedade pernambucana em geral. Em outros trabalhos, venho
enfatizando também a ação de muitos maracatuzeiros e maracatuzeiras que
"insistiram" em manter suas nações, apesar das muitas adversidades, o que
contribuiu para a permanência desses grupos na cena cultural pernambucana.
Muitos desses ilustres maracatuzeiros e maracatuzeiras foram objeto de
discussão em recente trabalho publicado.1
Esses maracatus são distintos entre si e podem ser agrupados em duas grandes
categorias.2 A primeira é a dos denominados maracatus-nação, formados
majoritariamente por comunidades de negros e negras que compartilham práticas e
costumes, dentre os quais se destacam as religiões de divindades e de
entidades.3 Devido ao sucesso dos maracatus nos anos 1990, uma categoria que
não pode ser classificada como nação, já que não possui vínculos comunitários,
ganha maior visibilidade. Trata-se de grupos percussivos formados normalmente
por jovens brancos de classe média, interessados, sobretudo, em fazer música. É
importante salientar que a maior parte desses grupos não tem cortejo, elemento
indispensável na caracterização do maracatu-nação.
Há aproximadamente em torno de cinquenta desses grupos que se apresentam e
ensaiam ao longo do ano na cidade do Recife e região metropolitana, disputando
espaços com vinte e oito maracatus-nação.4 Um encontro semanal congrega muitos
integrantes desses grupos, conhecido entre os jovens batuqueiros como Traga a
Vasilha, que tem angariado sucesso e legitimidade entre os que frequentam o
Bairro do Recife às sextas-feiras, dia em que se reúnem. Fora de Pernambuco, há
grupos que se reivindicam como maracatus, dotados de força e visibilidade
significativa. No Sudeste, esses grupos adquirem relativa visibilidade,
sobretudo por estarem em "grandes vitrines" culturais e por disporem de
recursos que lhes permitem ter um maior alcance, gravando CDs, realizando
apresentações em casas de shows famosas e arrebanhando simpatizantes.
Entre os maracatuzeiros, seja das nações ou dos novos grupos denominados
percussivos, há uma forte tensão em torno da legitimidade. Pode-se dizer que
essa tensão é o resultado de uma disputa pelo mercado cultural, inflacionado
pela grande quantidade de grupos. Nessa disputa, os argumentos giram em torno
daquilo que legitima ou deslegitima os "autênticos" maracatus. A proliferação
dos grupos percussivos tem sido vista como uma ameaça à "tradição" e como uma
descaracterização dos "autênticos" grupos populares, esses sim mantenedores de
uma tradição consubstanciada numa vinculação com um terreiro da religião dos
orixás. Muitos velhos maracatuzeiros insistem em afirmar que esses novos grupos
não podem ser chamados de maracatus, pois não se constituem numa nação. Esse
conflito traz em seu bojo algumas interrogações: O que faz um maracatu
"tradicional" do Recife ser uma "nação"? Quais as suas diferenças em relação
aos demais grupos percussivos pernambucanos e brasileiros de modo geral?
Ao percorrer a bibliografia sobre a relação entre identidade étnica e a
formação das "nações" entre os escravos, comecei a me interrogar quais poderiam
ser os vínculos existentes entre essas antigas nações de escravos e as nações
de maracatu. O desafio lançado foi o de investigar as razões que levaram à
permanência da categoria "nação" para designar tais grupos. Essa designação
teria mantido os mesmos sentidos dos séculos XVIII e XIX, ou teria sido
ressignificada de acordo com as práticas sociais e culturais de cada um dos
grupos? Essa não é uma questão de menor importância, uma vez que nos remete à
discussão das permanências da história e das transformações que nela ocorrem.5
Para mostrar a complexidade em que a questão está envolvida, é necessário
esclarecer que o termo "nação" é usado ainda hoje, e o foi ao longo do século
XX, com duplo significado.
O primeiro diz respeito a diversas manifestações culturais, tais como
maracatus, sejam eles os de baque virado ou solto, caboclinhos e bois. Na forma
de se referir das pessoas que participam dessas manifestações, cada grupo
constitui uma nação particular. O grupo caboclinho Canindés, localizado na
Bomba do Hemetério (zona norte do Recife), por exemplo, considera-se uma nação
diferente e, muitas vezes, rival do caboclinho Sete Flechas (localizado em Água
Fria, também na zona norte do Recife). Do mesmo modo, podemos nos referir aos
maracatus de orquestra e nação. Cada grupo constitui uma nação diferente.
A segunda acepção do termo diz respeito à sua utilização entre os praticantes
das religiões de divindades. Na religião dos orixás (xangô ou candomblé), um
terreiro constitui-se parte (membro) de uma nação, mas o terreiro vizinho
também pode integrar a mesma nação. Desse modo, a nação no candomblé e no xangô
não se refere a um grupo específico, mas a uma série de práticas comuns que
possuem uma linhagem, algumas das quais consubstanciadas em mitos de origem
"africana", como é o caso da nação nagô, no xangô pernambucano, ou queto, no
candomblé baiano. Assim, pode-se afirmar que a utilização do termo "nação"
entre as manifestações da cultura negra não é decorrente de seu uso na
religião, como poderia se afirmar à primeira vista, ou como é corrente no
discurso quotidiano entre os maracatuzeiros (como se uma "nação" de maracatu
fosse também uma nação de xangô). Um maracatu possui (ou pode possuir) em seu
interior membros de diversas nações religiosas. Os significados aludem a
práticas distintas, e pode-se concluir que o sentido com que a palavra "nação"
era utilizada nos séculos XVIII e primeira metade do século XIX mudou no
decorrer da segunda metade do século XIX e em todo o XX. Não dispomos de fontes
para acompanhar essa mudança em sua complexidade, mas há indícios suficientes
para aventar algumas hipóteses.6
Trânsitos entre o saber acadêmico e o fazer popular na busca pela legitimidade
Os principais intelectuais que pesquisaram os maracatus-nação da atualidade em
Pernambuco foram os folcloristas, e não há ainda, no âmbito acadêmico, uma
produção abundante sobre o tema, apesar dos recentes trabalhos que surgem a
cada ano. Atualmente, Roberto Benjamin (ex-presidente nacional da Comissão
Nacional do Folclore) e Leonardo Dantas são os mais conhecidos e ativos
intelectuais que escrevem sobre o maracatu-nação e outras formas de
manifestação cultural pernambucana. Em seus trabalhos, fruto de suas longas
carreiras, prevalece a ideia de que os maracatus-nação possuem uma origem
possível de ser conhecida e de que são dotados de práticas e costumes que se
repetem há anos, resultado da manutenção de uma tradição há muito existente,7
argumentando, desse modo, no campo do folclore. A partir de seus trabalhos,
poderia se pensar que a permanência da palavra "nação" se deveria a uma
continuidade dos usos do passado, como se tivessem o mesmo significado. Essa
continuidade é atribuída à origem dos maracatus, com a coroação dos reis e
rainhas do Congo.
Desde Pereira da Costa, passando por uma série de cronistas, literatos e
jornalistas, foi se firmando no campo do folclore um modelo do que é o
maracatu-nação. Não vou aqui voltar a uma discussão já enfrentada em outros
trabalhos, mas me parece que essa questão pode ser alargada se nos perguntarmos
se e como a produção desses intelectuais tem influenciado a prática popular. Na
historiografia brasileira, essa mesma questão foi magnificamente enfrentada por
Beatriz Góis Dantas, em seu livro Vovó nagô e papai branco, no qual analisa as
influências dos antropólogos na construção da ideologia da pureza nagô, bem
como a utilização desse discurso por parte dos praticantes da religião na busca
pela legitimidade e por uma fatia maior no mercado das almas.8 Quando se
pensava que essa era uma questão há muito superada, Stefânia Capone demonstrou
que o "mito" da pureza nagô persiste entre os praticantes e é corroborado por
uma série de antropólogos que também legitimam os campos em que pesquisam. Em
outras palavras, Capone se interroga sobre as razões que levam os antropólogos
a recorrentemente estudarem os mesmos terreiros, ignorando uma quantidade
enorme de outros que não poderiam se encaixar no modelo.9 O que essas questões
podem nos dizer sobre os maracatus?
Nesse caso, estamos propriamente no campo do folclore, em que as categorias de
análise mais valorizadas são a "tradição" e sua "manutenção", o que redundaria
na autenticidade de certas práticas (conformes à tradição) e na sua pureza. É
evidente que, assim como em outros estados do país, os folcloristas em
Pernambuco não ficaram adstritos aos seus escritórios e foram para as ruas,
interferindo nas práticas e manifestações da cultura popular.10 Disso redundou
um contexto muito semelhante ao ocorrido na questão acima colocada a respeito
da religião dos orixás e da atuação dos antropólogos. No caso dos folcloristas,
formou-se um saber consagrado e cristalizado em que normas e modelos de
práticas e manifestações da cultura popular são definidos. No entanto, essas
questões têm trânsito de mão dupla, e importa para nosso objetivo discutirmos
como os populares, ou melhor, os maracatuzeiros, vão se inserir nessa discussão
e se apropriar desse discurso em busca de legitimidade.
Na visão de grande parte desses intelectuais, o que define a fronteira entre os
maracatus-nação e os grupos percussivos é a manutenção de uma tradição há muito
repetida e consubstanciada na relação entre a nação e a religião dos orixás.
Tanto esta última quanto o maracatu, com suas "origens africanas", são postos
como naturalmente relacionados. Um maracatu "legítimo e tradicional" deve,
portanto, possuir uma ligação com um terreiro de xangô (que alguns dos atuais
praticantes dessa religião denominam candomblé), ter um rei e uma rainha de cor
negra que, de preferência, sejam "feitos no santo" (que sejam iniciados na
religião dos orixás) para que o grupo tenha o status de "autêntico ou
tradicional". Nessa perspectiva, a autenticidade e tradicionalidade serão
maiores ainda se o rei e a rainha forem autoridades sacerdotais e possuidores
de vínculos familiares antigos, se forem filhos e filhas de homens e mulheres
reconhecidamente antigos no "santo", para que o maracatu tenha o perfil de
matriarcado ou patriarcado. Sem a ligação com o terreiro de xangô, o maracatu-
nação terá sua legitimidade comprometida; se, porventura, houver liames
religiosos desse grupo com outra religião (a exemplo da jurema ou da umbanda),
isso será sinal de que aquela tradição e pureza estarão "se perdendo", ou "se
descaracterizando".
Roberto Benjamin foi um dos folcloristas empenhados em garantir que o Maracatu
Nação Leão Coroado tivesse sua continuidade assegurada após a morte de seu
principal mantenedor e articulador, o famoso Luiz de França. Benjamin e outros
membros da Comissão Pernambucana do Folclore, preocupados com o
"enfraquecimento dos maracatus", trataram de garantir que a sucessão ocorresse
de modo que a "tradição não se perdesse".11 Nesse contexto, Afonso, afamado ogã
de alguns terreiros de xangô "tradicionais", foi o escolhido para dar
continuidade ao grupo, apesar de os antigos integrantes do maracatu bem como os
familiares "adotivos" de Luiz de França não terem sido ouvidos ou considerados.
Nesse processo de transição autoritária, o Leão Coroado "mudou" da comunidade
em que estava sediado há mais de quarenta anos, o Córrego do Cotó, para Águas
Compridas, e a filha adotiva de Luiz de França, Mana, que, segundo ele, poderia
dar continuidade ao maracatu, foi totalmente excluída do processo.
Por mais criticável que seja o conceito de tradição "mantida com base na
repetição, e possível de ser localizada no tempo e no espaço" (com uma história
linear, visto ter uma origem única), ele é ainda hoje dotado de força
suficiente para que a sociedade pernambucana, representada nas Secretarias de
Cultura e Turismo (além dos poderes públicos em geral), possa cassar o direito
de determinados grupos se apresentarem no carnaval. E a tradição está
representada pelo maracatu-nação! Um maracatu (ou grupo percussivo) como o
Cabra Alada ou o Batuque Estrelado, mesmo possuindo uma corte real e expressivo
número de batuqueiros, não pode participar do concurso de maracatus-nação
organizado pela Prefeitura da Cidade do Recife ou da tão famosa Noite dos
Tambores Silenciosos.12 Para um maracatu, não ser "tradicional" significa,
nesse contexto, ter diminuída sua importância simbólica e, ao mesmo tempo,
perder oportunidades de ganhos significativos, comprometendo a sua viabilidade
e existência. Não é de se estranhar, portanto, que todos os maracatus-nação -
por meio de seus integrantes - afirmem possuir vínculos com a religião dos
orixás e se reivindiquem tradicionais. Se, em um passado não muito distante,
essa relação era ocultada, hoje é não só proclamada como também se constitui em
principal argumento para definir os maracatus-nação e os "descaracterizados" ou
"estilizados". Essa disputa pode ser vista como um alargamento do campo, em que
novos grupos buscam legitimidade, mas não dispõem ainda de capital simbólico
para se inserirem no campo nem modificarem as regras que o definem.13
Entre os populares, é possível perceber-se o poder do discurso sobre a
tradição, consubstanciado na ideia de uma obrigatória relação do maracatu com o
terreiro. Os grupos percussivos formados por jovens oriundos, em sua maioria,
das camadas médias urbanas da região metropolitana do Recife são, grosso modo,
denominados estilizados, e alguns sofrem rejeição dos mais idosos, que afirmam
serem aqueles grupos um perigo para a "tradição do maracatu". Em suma, para um
maracatu ser considerado "nação", entre seus pares, deve ter uma relação
explícita com um terreiro, de preferência da religião dos orixás, e deve estar
sediado em uma comunidade. Mas isso não basta. Para que ele tenha plena
legitimidade, deve seguir o modelo de maracatu preconizado por alguns
intelectuais que escreveram sobre cultura popular, como se fossem os únicos
dotados do conhecimento do que é "pureza" e "tradição" nas práticas e nos
costumes do "povo pernambucano". Essa relação do maracatu com a religião dos
orixás (xangô) ganhou visibilidade a partir do trabalho de Guerra-Peixe, tomado
ainda hoje como modelo de tradição entre os maracatus-nação e os
intelectuais.14
Apesar de todo o questionamento e das acusações de que se desrespeita a
tradição, pode-se dizer que há práticas em comum entre os grupos percussivos do
país inteiro, algumas das quais constituidoras de legitimidade. Ressalte-se que
esses indivíduos construíram essa legitimidade para poder "fazer" maracatu, sem
que lhes fosse questionado o fato de estarem fazendo algo que não lhes
pertencia, ou que não dispunham da permissão de se apropriar de uma cultura
reconhecidamente centenária e, ao mesmo tempo, com status "tradicional". Os
grupos percussivos em questão (os do Rio de Janeiro, que observei, e os de
Pernambuco que conheço, sobretudo) possuem discursos de legitimidade, práticas
norteadoras e constituem identidades. Ressalte-se o fato de que alguns dos
componentes desses grupos percussivos se dizem membros de nações "tradicionais"
(e participam, no carnaval, dos batuques dos maracatus-nação), tornando a
tarefa de definir as fronteiras entre os grupos percussivos e os maracatus-
nação muito mais complexa.15 Como estabelecer essas fronteiras? Elas existem na
realidade? Deveria ser aceita a forma pela qual alguns desses grupos
percussivos se veem, adotando-se uma prática bastante comum da Antropologia
contemporânea, que é a de analisar as práticas a partir do ponto de vista do
"nativo"? Ou deve-se efetivamente tentar entender os jogos discursivos destes
"jovens batuqueiros" em busca de espaço e legitimidade?
Para responder a algumas dessas questões, acredito que a história dos usos e
sentidos de "nação" pode nos ajudar a entender os processos da
contemporaneidade, por mostrar que tais usos foram constantemente
ressignificados, atendendo a interesses diversos bem como circunstanciados
historicamente. E não deixam de sê-lo ainda hoje.
O conceito de nação: História e Historiografia
Ao apresentar o trabalho de Fredrik Barth, Tomke Lask observa que uma de suas
principais preocupações a respeito da teoria diz respeito ao fato de que ela
tem de se adaptar à realidade, e não o inverso:
Em que momento da pesquisa a posição teórica do antropólogo deve se
tornar predominante? Quando, e de que maneira transformar a
terminologia dos nativos em terminologia técnica, quer dizer, em
conceitos sociológicos? Segundo Barth, não se deve passar cedo demais
para essa transformação porque esses termos dependem do contexto
local em que estão inseridos e podem ter significados variados numa
mesma sociedade.16
Sem dúvida, ao conceito de "nação" que é utilizado no universo dos maracatus se
aplicam as observações acima, uma vez que possui diversos significados e que se
modificaram historicamente. Em seu uso mais corriqueiro na contemporaneidade,
refere-se à tradição iluminista, analisada por Hobsbawn em Nações e
nacionalismos desde 1870.17 Para seus usos na historiografia brasileira e suas
reverberações com as discussões acerca da identidade nacional, um bom apanhado
pode ser encontrado no trabalho de Marilena Chauí.18
No entanto, outros significados existiram para o termo "nação", bem como
existem ainda hoje. Como ficaram invisibilizados durante tanto tempo? Afirmo
isso porque é relativamente recente a série de trabalhos acerca da história da
escravidão que aponta outros sentidos para a palavra "nação". Para Marina de
Mello e Souza, a não percepção dessa questão deve-se ao fato de que os
primeiros estudiosos da cultura negra no Brasil, dentre os quais se destaca
Nina Rodrigues e seu trabalho Os africanos no Brasil, dividiram os africanos
escravizados em dois grandes grupos, os bantos e os sudaneses. Apesar de Nina
Rodrigues esmiuçar esses grupos, houve uma tendência à sua homogeneização,
presente ainda nos dias de hoje em trabalhos como os de Reginaldo Prandi.19
Pode-se afirmar que o trabalho de Mary Karasch constitui um divisor de águas ao
mostrar a existência, na cidade do Rio de Janeiro, de diversos grupos étnicos,
apontando para a diversidade e a complexidade das relações que esses povos
estabeleciam com a sociedade e entre si. O trabalho de Karasch foi, sem dúvida,
um dos responsáveis e incentivadores do esmiuçar que a atual historiografia
promove no estudo dos grupos de escravos, suas culturas e práticas, tal como
discutido pela extensa bibliografia analisada.20
Quase um século foi necessário para que a homogeneizadora categoria de
"africano", que passou a ser recorrentemente utilizada na segunda metade do
século XIX, após o fim do tráfico negreiro, começasse a ser questionada, e os
historiadores começassem a pensar sobre quem eram esses africanos, deslocando o
olhar do geral para o específico, do macro para o micro. Sem dúvida, não
podemos aqui deixar de apontar as contribuições do debate promovido pela Micro-
História, que privilegia em sua análise as tramas miúdas e, em se tratando de
método, busca reduzir a escala de análise.21
Porém, o conceito "africano", assim como o seu caráter homogeneizador, foi
fundamental para a transformação dos significados das "nações" de escravos do
século XVIII e XIX, e a consolidação de outras, estreitamente relacionadas com
as mudanças ocorridas na segunda metade do século XIX, bem como o surgimento
das "nações" de candomblé. Na atualidade, existem grupos de indivíduos
organizados pelo país afora que se reivindicam pertencentes a uma nação de
candomblé ou de xangô. Dizem essas pessoas (ou um número significativo delas)
que são herdeiras das antigas nações trazidas para o Brasil com os escravos.
Jeje, nagô, queto, angola, moçambique, cabinda são alguns dos nomes utilizados
por esses indivíduos para nomear seus grupos intitulados "nações" e
reconhecidos como tal em diversos trabalhos acadêmicos que tiveram as religiões
de divindades e de entidades como objeto. A "nação" de xangô ou candomblé é,
portanto, vista como herdeira dos escravos que para o Brasil foram trazidos ao
longo da vigência do período em que predominou a mão de obra escrava.22
A "nação" do período escravista, no entanto, não poderia ser vista ou
considerada como um grupo étnico homogêneo, mas uma forma pela qual vários
povos foram agrupados e organizados, levando-se em conta o porto em que eram
embarcados bem como as afinidades e o compartilhamento de práticas, dependendo
da perspectiva em que se observa o processo de criação dessas nações, seja do
ponto de vista dos traficantes e senhores, seja do escravo.23 Segundo Mariza
Soares, as nações aqui criadas não constituíam grupos homogêneos e possíveis de
serem confundidos com um grupo étnico. Essas "nações" de escravos possuíam em
seu interior indivíduos de diferentes grupos étnicos que eram agrupados a
partir da lógica do tráfico negreiro, sendo aqui nomeados de modo que fosse
possível ter identificada sua procedência.24 O título do artigo de Mariza
Soares define bem a condição das nações aqui existentes: aos escravos que
desembarcavam nos portos era imposta uma "nação", que doravante lhe imprimiria
uma marca tão forte, a ponto de estar presente no seu nome.25 O fato de serem
essas nações fruto da lógica do comércio escravista, segundo Mariza Soares, não
permitiria afirmar que os escravos não se utilizavam desta nova identidade,
pois ressignificaram o sentido das "nações", conferindo-lhe organização social
e identitária diversas.
A forma como era constituída a nação ou o local de procedência do escravo não
eram isentos de regras ou algo totalmente arbitrário. Os nomes das nações
constituíam excelente recurso adotado pelos traficantes e comerciantes de
escravos para designar e classificar os africanos traficados da África para a
América.26 Ao serem desembarcados, os escravos "ganhavam" um termo que lhes
indicava a procedência, além do nome e sobrenome de seu proprietário, que
poderia variar se houvesse a mudança de dono. O termo identificador da
procedência (o nome da nação à qual o escravo ou liberto pertencia), porém, não
mudava, mesmo após a alforria do escravo.27
No tocante ao nome que designava os cativos em geral, Mariza Soares mostrou que
houve uma progressiva substituição do termo genérico "gentio da Guiné", ao qual
todos os escravos eram submetidos, pelos nomes das nações. Essa substituição
atendia melhor as exigências do tráfico e foi também utilizada por muito tempo
como fator distintivo entre os diferentes comerciantes, alguns dos quais rivais
entre si, como mostra Maria Inês Oliveira, ao discutir as disputas entre os
traficantes baianos e os portugueses.28 Para Mariza Soares, a substituição se
deve também ao fato de os escravos não mais serem classificados apenas de
acordo com sua contribuição para a expansão do Cristianismo, mas pela relação
do indivíduo com os conflitos existentes no continente africano e tendo em
vista o porto em que teria sido embarcado. Outro reflexo que explica essa
mudança diz respeito à forma como os portugueses se relacionavam com as
populações africanas.29
Em alguns casos, o grupo étnico ao qual o escravo pertencia era levado em conta
quando da identificação de sua nação, mas, grosso modo, o caráter definidor das
nações no Brasil era mesmo o porto de embarque, a marca que garantia a
procedência do "produto" vendido no "novo mundo". No entanto, isso não nos
permite afirmar que, para os traficantes, o local de procedência em nada
importava, uma vez que, nos livros de batismo, alguns indivíduos eram
classificados como pertencentes a grupos minoritários (quissamã e loanda, por
exemplo) em meio a vários outros majoritários, conforme lembra Mariza Soares.30
A "nação" pode ser entendida como a categoria que classifica e distribui os
escravos no tráfico atlântico. Esses indivíduos, agrupados em determinada
"nação", eram de vários grupos étnicos em seu continente de origem. Diferenças
podem ser encontradas na forma como as "nações" eram definidas em cada local, o
que permite afirmar que a "nação mina" da Bahia, necessariamente não seria
semelhante àquela de mesmo nome existente no Rio de Janeiro ou em Minas
Gerais.31 As "nações" mina e angola também abrangiam uma grande diversidade de
grupos étnicos, uma vez que existia uma grande quantidade de povos que
pertenciam a inúmeros grupos, mas, ao serem embarcados nos portos do tráfico,
ganhavam os nomes das nações com as quais trabalhavam os traficantes.32
Segundo Carlos Eugênio Soares, essas nações eram nomeadas tendo por base os
portos e, na maioria das vezes, as "origens" étnicas não representavam uma
informação válida, devendo mesmo, em determinados momentos, ser ocultadas, em
se tratando de períodos de doenças em alguma região ou das qualidades que se
atribuía à nação da qual se afirmava ser o escravo. Nesse sentido, os escravos
teriam, grosso modo, duas "nações", uma de origem, à qual se referia para
marcar sua diferença em relação aos seus companheiros de infortúnio, e a outra
imposta pelo comércio de escravos, que o marcaria para sempre no "novo mundo".
Essa é também a conclusão de Mariza Soares, no já citado artigo intitulado "A
'nação' que se tem e a 'terra' de onde se vem".33
As diferenças existentes entre as nações nos estados não estão presas ao
passado, uma vez que ainda hoje, em pleno século XXI, o que é definido como
nagô em Pernambuco, necessariamente não corresponde à "nação" de mesmo nome nos
estados de Alagoas, Paraíba e Sergipe. Mesmo nas "nações religiosas" da
atualidade, predomina a diversidade, e inexistem relações que possam ser vistas
como originadas de um único grupo étnico.34 Isso não impede que os praticantes
religiosos de uma mesma nação não reivindiquem um escopo identitário em comum.
Desse modo, consubstanciando a discussão historiográfica e a própria história
de como as nações foram criadas no "novo mundo", há uma disputa em torno dos
processos de identificação e etnicidade. Se, por um lado, para os senhores, era
importante que as identidades escravas fossem as mais pulverizadas possíveis,
evitando-se agrupamentos de sentido que pudessem levar a revoltas ou sedições,
por outro, para os escravos, recriar o mundo perdido, as relações sociais e
mesmo familiares era fundamental para que a vida fosse dotada de um mínimo de
sentido em meio à escravidão. Assim, reafirmo, a discussão em torno das
criações da "nação" é, acima de tudo, política.
Mariza Soares foi quem melhor definiu e interpretou o conceito de "nação",
permitindo o entendimento dos modos como se deram as ressignificações dessas
nações no âmbito do Brasil escravista pelos africanos escravos:
Em alguns casos, nações, grupos étnicos, reinos, vilas, regiões e
grupos lingüísticos podem coincidir, em outros não. Os mahi são um
bom exemplo dessa diversidade. No que pode parecer um jogo de
palavras, a nação é o "lugar" de representação das novas identidades
constituídas no Rio de Janeiro, tendo como base uma referência ao
passado manifesta no uso de expressões como "terra de brutos",
"quando vim de minha terra", "deus da sua terra".35
A formulação "grupo de procedência" é uma importante construção conceitual que
permite entender melhor o que se denominava "nação" no Brasil escravista. Nesse
sentido, a "nação mina" é um "grupo de procedência" e não um grupo étnico,
assim como as demais nações que, durante muito tempo, foram consideradas por
alguns estudiosos como grupos efetivamente existentes no continente africano.
Essa questão está ainda presente nos debates antropológicos acerca das
religiões de divindades e de entidades, bem como, ou principalmente, entre seus
praticantes que afirmam, por uma questão identitária (dentre outras razões), a
"origem africana de sua nação". Evidentemente, os membros dessas nações de
candomblé não constituem grupos étnicos e, ao longo do século XIX, foram
reunindo diversos outros indivíduos das mais variadas procedências.36 Devo
destacar que existe ainda hoje uma forte tradição nos estudos de caráter
histórico e antropológico das religiões de divindades e de entidades, em que a
ideia de pureza e de superioridade de um grupo étnico (os nagôs) para outro (os
bantos) predomina de modo arraigado.
Quanto ao conceito de "grupo de procedência", utilizado por Mariza Soares e
outros estudiosos, há uma reflexão (e inspiração) no conceito de sistemas
sociais abrangentes de Fredrik Barth, em que indivíduos de diferentes grupos
étnicos participam, interagindo entre si.37 É importante salientar que, para
Barth, "os grupos étnicos são categorias atributivas e identificadoras
empregadas pelos próprios atores: consequentemente têm como característica
organizar as interações entre as pessoas".38 Assim posto, nada mais correto do
que manter a designação de maracatu-nação para os grupos em questão, pois assim
se autodenominam e o fazem na medida em que essa designação confere sentido e
significado às suas práticas e costumes.
No que diz respeito à relação entre identidade e o conceito de "nação", Mariza
Soares estabeleceu a discussão mostrando que, mesmo tendo sido criada pelos
traficantes e senhores de escravos, estes últimos tomaram para si e
ressignificaram a ideia e os sentidos de "nação", refazendo as identidades a
partir de um novo contexto. O trecho abaixo elucida com melhor propriedade essa
questão:
Assim sendo, entendo que "nação", inicialmente uma identidade
atribuída no âmbito do tráfico Atlântico, acaba sendo incorporada
pelos grupos organizados no cativeiro e servindo como ponto de
referência tanto para o reforço de antigas fronteiras étnicas e
territoriais, como para o estabelecimento de novas configurações
identitárias, sejam elas étnicas, ou não.39
Para Soares, a importância da terra de onde se vinha não deve ser desprezada,
visto que até muitos ex-escravos, mesmo no fim de suas vidas, ao falarem sobre
si, diziam de onde eram e informavam o nome de seus grupos e regiões de origem.
Nina Rodrigues, ao entrevistar alguns desses remanescentes da escravidão,
registrou com propriedade esse aspecto, destacando certo estranhamento pelo
fato de que os minas do Maranhão não procediam do mesmo lugar que os minas
baianos. Uma das suas conclusões a esse respeito é de que havia mais de um
grupo étnico com o mesmo nome.40
Mariza Soares também indicou a existência da diversidade no seio da "nação
mina", no Rio de Janeiro do século XVIII, mostrando que entre eles havia cabus,
mahis e claras (ou charas).41 Maria Inês Oliveira, em seu trabalho sobre a
origem dos africanos na Bahia, também discutiu os aspectos em torno da
procedência dos escravos e dos equívocos que alguns estudos de historiadores e
antropólogos nos legaram, por não terem levado em conta o fato de que a
denominação do tráfico não possuía a mesma precisão dos informantes
africanos.42 A importância das terras de onde se vinha e da nação que se tinha
também pode ser atestada na larga aceitação e uso do termo "nagô" por parte dos
diversos iorubanos de diferentes grupos que para o Brasil foram trazidos, os
quais aceitavam tal termo como identificador genérico, mesmo que, em
determinados momentos, expressassem suas diferenças no uso de complementos ao
vocábulo nagô, tais como nagô-bá, nagô-jebu, nagô-gexa.43
Uma importante reflexão acerca dos estudos em torno da identidade dos africanos
que viveram em cativeiro pode ser encontrada na recente obra de Luiz Nicolau
Parés. Com base nos conceitos e estudos sobre etnicidade e identidade
elaborados por Barth, afirma o autor que os africanos desenvolviam estratégias
de identidade "nas quais os atores sociais, em função da sua avaliação da
situação, utilizavam seus recursos de identidade de maneira estratégica,
geralmente com o intuito de atingir algum objetivo".44 Para a questão em torno
da identidade e das muitas possibilidades que os escravos possuíam para obter
determinadas vantagens, Nicolau Parés utiliza uma metáfora baseada na
comparação de identidades ao estilo das famosas bonecas russas encaixáveis umas
às outras. Os africanos, segundo ele, podiam fazer uso de várias identidades,
indo da categoria mais particular à mais genérica (savalu, jeje, mina, ou
africano). Tal questão, acerca das muitas possibilidades em torno do uso das
identidades, me fez pensar em outra metáfora, concebida por Lovejoy na
comparação das identidades aos chapéus, possíveis de serem usados em diferentes
momentos. Mahhommah Gardo Baquaqua foi um dos muitos africanos que dispôs do
uso de muitas identidades, e as utilizou a seu favor, em diferentes ocasiões a
que foi submetido no cativeiro.45
Sobre o processo de identificação, Nicolau Parés nos lembra que o fazer e
refazer das identidades (entendendo-as como múltiplas e não essencializadas)
pressupõe sempre a constituição do "outro", que pode ser um membro do mesmo
grupo - e aqui a identidade se firma individualmente - além dos "outros" de
outros grupos - para se referir às identidades grupais ou étnicas. Utilizando
os conceitos barthianos acerca da etnicidade e identidade, Nicolau Parés
enfatiza que é o contraste que demarca as fronteiras ou as relações baseadas na
oposição. As diferenças, construídas por homens e mulheres vivendo em grupo,
fazem e refazem suas identidades em um processo constante e dinâmico.
A identidade deve ser entendida como uma construção em um dado contexto e,
nesse sentido, um nagô de Porto Alegre dificilmente será igual a um "irmão de
nação" pernambucano.46 Partindo do conceito de "guarda-chuva étnico", formulado
por João José Reis, uma tendência historiográfica procura mostrar o fato de que
as nações foram mesmo usadas como forma de identidade mais ampla, na qual
diversos grupos compunham sua identidade.47 Nessa perspectiva, as nações devem
ser vistas como construções transnacionais, formadas no contexto urbano, e não
apenas a partir de heranças africanas essencializadas.48
As identidades eram constituídas por muitos elementos, que iam além do simples
fato de terem os escravos sido embarcados em um mesmo porto, ou de serem de um
suposto grupo étnico em comum. Tatuagens, marcas diversas (os ferros que
marcavam os escravos), forma de se vestir e cortes de cabelos eram alguns dos
sinais diacríticos utilizados pelos escravos no processo de invenção das
identidades. A produção dos sinais, a exemplo dos cortes de cabelo, foi
fundamental para a criação e conformação das nações, além, sobretudo, de seu
reconhecimento.
Os jejes possuíam múltiplas identidades, apesar da aceitação e do uso do termo
generalizante - jeje - que ainda hoje serve como sinal diferenciador daqueles
que se consideram herdeiros desse legado e que se agrupam nos terreiros de
candomblé dessa nação. Nina Rodrigues revelou existirem diferenças entre os
jejes baianos e os brasileiros de um modo geral. Maria Inês Oliveira, em artigo
já citado, afirmou que eles não se viam como uma unidade cultural, existindo,
em determinados momentos, fortes conflitos resultantes das diferenças políticas
do continente de origem.49
A maior parte dessas nações recriadas vão desaparecendo ao longo da segunda
metade do século XIX, ou melhor, deixam de ser usadas como autorreferência
étnica ou identitária, na medida em que o tráfico de escravos termina e se
consolida a grande designação de "africanos", para se referir aos escravos
oriundos do continente, em oposição aos escravos nascidos no Brasil. No
entanto, a África, de um modo genérico, continua a ser uma referência
identitária. Manuela Carneiro da Cunha, em seu estudo Negros estrangeiros: os
escravos libertos e sua volta à África, brilhantemente demonstra como esses
indivíduos, quando voltam para a África, não são mais reconhecidos como
pertencentes aos grupos étnicos de que se originaram, por terem perdido
relações de parentesco, dentre outras questões. Aqueles que foram para a África
em busca de seu lar são considerados estrangeiros, brasileiros.50
Stuart Hall, em seu artigo "Identidade cultural e diáspora", lembra o quão
importante é, para o processo de produção de identidades culturais e dos
movimentos negros, essa busca de uma identidade essencial, que é definida por
Franz Fanon como uma "busca profunda", uma identidade em que a África é central
porque se baseia não numa arqueologia, em desenterrar as continuidades ocultas,
os "africanismos" ainda presentes nas manifestações culturais, mas em recontar
o passado. Trata-se de uma redescoberta imaginativa, de uma "unidade subjacente
do povo negro, que a colonização e a escravidão dispersaram com a diáspora
africana."51 Tal identidade essencializada busca "impor uma coerência
imaginária à experiência da dispersão e fragmentação, que é a história de todas
as diásporas forçadas". Fazem-no representando ou figurando a África como mãe
de todas essas civilizações diferentes. O triângulo, afinal de contas, está
centrado na África. África é o nome do termo ausente, a grande aporia que jaz
no centro de nossa identidade cultural e dá-lhe um sentido que ela, até
recentemente, não tinha. Ninguém que contemple essas imagens textuais agora, à
luz da história do tráfico, escravidão e migração, deixará de entender como o
abismo da separação, a "perda da identidade", [...] "só começa a ser superado
quando essas conexões esquecidas são, mais uma vez, reestabelecidas".52 Essa
África imaginária permite, em outras palavras, cruzar o abismo produzido pelo
tráfico. Essa África ainda é fundamental para a constituição das identidades
dos maracatus-nação na atualidade, pois constitui o mito de origem.
Os maracatus: em busca de sua história
Ao me deparar com um debate em torno das nações constituídas durante o tráfico
de escravos, a primeira pergunta que me fiz foi sobre a relação entre as mesmas
e os maracatus. É possível transpor esse debate colocando os maracatus-nação
como continuadores das antigas nações que porventura existiram em Pernambuco? É
preciso, a meu ver, pensar a forma como a ideia de nação vai se constituindo
para os maracatus no seu fazer histórico em Pernambuco, em sua relação própria
com as religiões. Esses liames entre os xangôs, as juremas e os maracatus não
são naturais, mas uma construção feita por homens e mulheres ao longo dos anos
e em meio a uma infinidade de questões relacionadas com contextos diversos.53
Os maracatuzeiros tomaram os terreiros como locais de possibilidades, e os
praticantes das religiões de divindades e de entidades viram a recíproca nos
maracatus. Isso em se tratando de tomarmos como dado o fato de que as
separações existiram e que os praticantes dessas religiões não são os mesmos
maracatuzeiros nos momentos de descontração, ou que estes não são aqueles nos
períodos de dificuldades diversas. Se há, na atualidade, liames entre as
religiões de divindades e de entidades com os maracatus-nação, esses também
ocorrem no seio de outras manifestações culturais, e isso não deve ser tomado
como um dado da natureza, ou que, desde os seus primórdios, tenha havido laços
envolvendo ambas as práticas. Os maracatus possuem uma historicidade, e o
processo de construção das relações com as religiões de divindades e de
entidades possui diversas lacunas a serem preenchidas. Sequer sabemos, por
exemplo, as razões que nortearam homens e mulheres a se reunirem em
determinados grupos denominados maracatus, e os motivos que fizeram com que
existissem por tanto tempo, por mais que fossem reprimidos e malvistos. Se,
atualmente, os maracatus possuem grande aceitação, época houve em que eram
denunciados como práticas incivilizadas e estúpidas, indignas de existirem em
um Brasil que se queria branco, europeu e civilizado.
Também não se sabe como eram esses maracatus do final do século XIX, se eram
chamados efetivamente de nações bem como quais os sentidos que estavam por trás
desse termo. Sabe-se que havia vários sentidos para a palavra "maracatu", mas
não encontrei evidências documentais que me permitam afirmar algo sobre os
sentidos da palavra "nação" entre os maracatuzeiros do final do século XIX e
dos trinta primeiros anos do século XX, bem como se os maracatuzeiros
utilizavam a palavra com o mesmo sentido em que era empregado nas religiões de
divindades e de entidades, o que não ocorre na atualidade. Nos debates travados
sobre as origens e os significados da palavra "maracatu", ressalta-se a
polissemia do termo, além da evidente dificuldade em definir seu campo
semântico.
Importa que a palavra tenha seus usos - e práticas - que se tornam
historicamente perceptíveis na segunda metade do século XIX, quando também
nasceu Dona Santa, famosa rainha do Maracatu Nação Elefante. Até então, e
concomitantemente ainda durante algumas décadas, o termo corriqueiro para se
referir às festas de negros em que música e dança se associavam era
"batuque".54 No Recife do período em questão, batuques e maracatus conviviam no
vocabulário cotidiano, visíveis nos jornais como sinônimos, sem que fosse
possível demarcar nítidas diferenças e fronteiras. Não temos como entrevistar
os maracatuzeiros desse período, e tampouco existem documentos produzidos por
eles ou pelos órgãos de repressão (pelo menos, eu ainda não os encontrei),
restando-me alguns indícios nos jornais que registraram feroz oposição à
prática do maracatu. Esse processo se torna perceptível ao final do século,
quando os maracatus aparecem nos carnavais, como "brincadeira" ou grupo
próprio.
Reprimidos, como muitas festas e batuques por todo o Brasil, o maracatu
encontraria no carnaval espaço legítimo para transitar nas ruas, ocupar o
espaço público. Ganhar visibilidade e legitimidade social podem ser algumas das
razões que levaram os maracatuzeiros a ocupar as ruas durante o carnaval.55
Ainda que esses grupos de maracatu não passassem de uma dezena - ou pelo menos
assim deduzo, tomando como base aqueles que desfilavam pelo centro da cidade e
eram registrados pelos jornais -, já se firmavam como "reminiscência africana"
a partir da célebre descrição feita por Pereira da Costa em "Folk-lore
pernambucano", em que estão dadas sua origem africana, características
próprias, tais como o cortejo real e a orquestra de percussão, classificando-
a como uma manifestação folclórica.56
Adentramos o século XX com parcos registros que nos possibilitem pensar
diferenças, divergências ou mesmo mudanças em relação ao modelo proposto por
Pereira da Costa. O maracatu aparece brevemente nas colunas carnavalescas, que
tão somente registram os grupos que desfilavam em frente à sede dos jornais, ou
aqueles que provocaram brigas e arruaças. Lendo as colunas policiais, observo
pequenos detalhes desses grupos, rivalidades e brigas que pontuavam as notícias
carnavalescas.57 Nas memórias de jornalistas e cronistas que viveram e
escreveram nestas primeiras décadas, aparecem, ainda que muito raramente,
alguns maracatuzeiros, a exemplo de Adama, descrito por Oscar Melo como valente
capoeirista.58
Desde o final do XIX, intensificando-se na década de 1920, a maior fiscalização
por parte do aparelho policial e um enrijecimento das normas oficiais,
promovido pelo Estado Republicano, fizeram com que práticas culturais como os
maracatus, pastoris e outras fossem objeto de intervenção pública, algumas
proibidas pelos códigos de postura municipal, tornando-se passíveis de
criminalização e perseguição policial, a exemplo dos batuques ou cerimônias das
religiões de divindades e de entidades.59
Não só maracatus como também blocos e troças carnavalescas, pastoris, circos,
fandangos, além de pensões e casas de cômodo, bares, clubes esportivos e até
barraquinhas de festas religiosas eram fiscalizados periodicamente por
"peritos" e "censores" indicados pelo Inspetor de Polícia, que, mediante o
pagamento de valores previamente arbitrados, expediam as licenças de
funcionamento. Respaldados no poder que os discursos de cunho sanitarista lhes
conferiam, os fiscais aprovavam ou proibiam o funcionamento das diversões e
práticas culturais, fixando dia, horário de funcionamento e exigindo o
cumprimento das normas instituídas com base nos padrões estéticos e morais
ditados pela elite. Tais medidas, calcadas nos ideais em voga nessa fase
(civilização, progresso, higienismo e moralização da sociedade), apesar de
aumentarem a repressão sobre os divertimentos e práticas culturais populares e
contribuírem para a diminuição do número de grupos de maracatus organizados,
não obstante, não conseguiram controlar ou extinguir em definitivo as
manifestações da cultura "dita popular", que vão elaborar outras estratégias
para fugir das perseguições policiais.
Nos anos finais do século XIX e adentrando as primeiras décadas do século XX,
assistimos no Recife um formidável teatro de controle social em que as ruas da
cidade e diversos tipos de divertimentos populares se transformam em cenário
para as mais dramáticas ocasiões para a encenação de confrontos e conflitos. O
carnaval se encontra no epicentro dessa questão, e é em torno de sua
normatização - visando a controlar a "turba incivilizada" - que giram os
debates.60 O carnaval vai se constituindo como um palco em que blocos, troças,
maracatus e caboclinhos são instados a desfilar ordeira e civilizadamente em
espaços determinados da cidade, seguindo traçados pré-estabelecidos, e sendo
posteriormente agraciados com prêmios e taças, enquanto a população é instada a
comprovar pelo voto aqueles que melhor seguiam as regras.61
Em 1935, criou-se a Federação Carnavalesca que, durante o Estado Novo ou o
governo de Agamenon Magalhães, consolidou esse controle. A tal ponto que, em
1947, nas páginas dos jornais da cidade do Recife, acompanhamos o debate sobre
o "excesso" de controle que a Federação exercia sobre a folia carnavalesca.
Gilberto Freyre já podia se opor à Federação em favor de um carnaval
"espontâneo" e popular, raiz da "autêntica" cultura pernambucana, pois então
não mais os capoeiras acompanhavam as "brincadeiras" provocando arruaças, e a
violência se expressava em outros contextos simbólicos.62
Muito ainda há que ser feito em torno da história dos maracatus, mas, no
fundamental, é perceptível a constituição de identidades em torno de alguns
grupos que conseguem sobreviver à repressão e aos duros momentos do Estado
Novo. Se alguns autores, a exemplo de Katarina Real, afirmam ter sido esse o
momento em que os laços envolvendo os terreiros e os maracatus se estreitaram,
faz-se necessário afirmar que a ausência de maiores informações a respeito dos
trinta primeiros anos do século XX me deixa atordoado o suficiente para
discorrer sobre essa questão com fortes certezas.63 O certo é que os
maracatuzeiros constituíram laços com os terreiros, e isso foi fundamental para
que a ideia de "nação" ganhasse força e terreno. Apesar de que, como afirmo na
introdução deste trabalho, "nação" também é um termo usado por outras
manifestações para designar um grupo específico, sem que necessariamente tenha
relação com as religiões de divindades e de entidades.
A ideia de "nação", para os maracatus, é uma construção ressignificada, e
infelizmente não existem vestígios que possam nos levar a algumas pistas sobre
os sentidos das nações de maracatu até os anos 1930 do século passado. O que
entendo por "nação", portanto, é uma construção identitária bastante atual, com
novos significados agregados, sobretudo o aspecto religioso, que nos dias de
hoje é imprescindível e definidor de um maracatu que se queira legítimo e
autêntico entre seus congêneres. Em diversos depoimentos tomados com os
fundadores do Maracatu Cambinda Estrela, a palavra "nação" aparece com
recorrência, demonstrando a coloquialidade com que a relação "maracatu" e
"nação" estava estabelecida nos anos 1930. Dona Leinha, ao se lembrar de
diversas histórias que envolviam seu pai e o Cambinda Estrela, utiliza a
palavra "nação" como sinônimo de maracatu: "colocar a nação na rua"; "quem saiu
com a nação", etc. No entanto, um dado complicador precisa ficar explícito: o
Cambinda Estrela era um maracatu de orquestra e não um maracatu-nação! Assim,
nação e maracatu de baque virado não são associações naturais, mas
historicamente construídas! E os maracatus de orquestra continuam se
autodenominando de nação, e não há entre essa manifestação nenhuma relação
explícita com a religião dos orixás, ao menos diante das leituras que venho
fazendo sobre esse assunto.64
Há também a ideia muito forte entre os populares de que um maracatu-nação só
possui vínculos com a religião dos orixás, apontando para o discurso da "pureza
africana" existente no modelo nagô, daí por que os maracatus do tipo orquestra
são empurrados para uma suposta ligação com a jurema. Guerra-Peixe fez
afirmações nessa mesma perspectiva, corroborando para que se fortalecessem,
dada a grande representatividade que a obra Maracatus do Recife tomou nos anos
1980, os laços entre o maracatu-nação "africano" e "puro", com o terreiro de
xangô nagô "autêntico". Escreveu Guerra-Peixe sobre essa questão:
É oportuno realçar o que nos esclareceram os informantes de vários
grupos: a gente do maracatu tradicional - nagô, como dizem, no
sentido de africano - é constituída, na maioria, por iniciados nos
xangôs; a que prefere o maracatu-de-orquestra, tende para o catimbó,
culto popular de características eminentemente nacionais. Parece que
há procedência nas informações, pois nos cânticos do maracatu-de-
orquestra é constante o aparecimento de vocábulos como aldeia,
caboclo, jurema e outros - todos refletindo identificações que acusam
a preferência religiosa dos seus participantes.65
Entretanto, faz-se necessário deixar claro que a jurema nunca deixou de fazer
parte do universo mítico-religioso dessas nações de maracatu, por mais que
estivesse invisibilizada. As duas rainhas de maracatu-nação mais
representativas no imaginário dos maracatuzeiros da atualidade, Dona Santa e
Maria Madalena, eram juremeiras e não escondiam de ninguém a prática dessa
religião, assim como os vínculos de seus maracatus com a mesma. Também Luiz de
França, outro grande maracatuzeiro, tido como ícone de legitimidade entre os
seus pares, não escondia o fato de que no maracatu existem "os senhores
mestres", forma pela qual a jurema também é conhecida em Pernambuco.
Nesse sentido, existem muitas lacunas a serem preenchidas acerca dos
significados que a palavra "nação" tomou para os maracatuzeiros ao longo do
tempo. O certo é que, na atualidade, tal termo tornou-se um dos aspectos mais
fortes na constituição das identidades e dos perfis exibidos pelos maracatus-
nação para se diferenciarem dos "estilizados" ou "grupos percussivos". Esta
questão, a construção dos perfis e das diferenças, pode ser mais bem pensada à
luz das discussões encetadas por Fredrik Barth, em seus estudos sobre as
fronteiras existentes entre os grupos étnicos. Para Barth:
As fronteiras étnicas permanecem apesar do fluxo de pessoas que a
atravessam. Em outras palavras, as distinções entre categorias
étnicas não dependem da ausência de mobilidade, contato e informação,
mas implicam efetivamente processos de exclusão e de incorporação,
através dos quais, apesar das mudanças de participação e
pertencimento ao longo das histórias de vida individuais, essas
distinções são mantidas.66
Tendo essa assertiva em nosso horizonte, podemos nos interrogar: quais as
fronteiras que existem entre os maracatus-nação e os grupos percussivos na
atualidade?
Nas fronteiras dos maracatus: a(s) identidade(s) em questão
Não creio ser possível afirmar a existência de uma identidade de caráter étnico
nos maracatus-nação. Ainda que sejam formados em grande parte por negros e
negras, o que ocorre é muito mais um compartilhamento de algumas práticas,
ideias e principalmente sentidos, mas nunca uma identidade de caráter étnico,
uma vez que os maracatus-nação, apesar de compartilharem identidades, não se
constituem em grupos de parentesco, ou comunidades fechadas. No tocante à
questão da negritude, majoritária nos maracatus-nação, ocorre, a meu ver, o que
Lívio Sansone denominou negritude sem etnicidade, uma vez que não há a
valorização de sinais diacríticos ou de traços particulares a uma identidade
que diferencie os maracatuzeiros dos demais indivíduos que convivem na mesma
sociedade.67
Há nos maracatus um compartilhamento de práticas, modos de fazer, de viver e de
ver o mundo, sobretudo pelo fato de que a maior parte das pessoas que convivem
nos maracatus-nação residem próximas, e essa é a principal diferença entre os
maracatus-nação e os grupos percussivos. Não existem apenas laços religiosos
entre os integrantes de um maracatu-nação, mas principalmente o
compartilhamento de práticas, o que lhes confere, em muitos casos, uma espécie
de ethos, que não existe em um grupo que se reúne para tocar, cantar e se
divertir nos finais de semana. Tomando por empréstimo a noção de permanência
das fronteiras étnicas de Barth, de que elas independem da ausência de
mobilidade e contato, para entendermos os maracatus-nação é necessário levar em
conta seu processo de formação histórica. Cada maracatu tem um processo próprio
de formação dos grupos, e consequentemente da identidade grupal.
Não posso homogeneizar o processo de formação dos grupos de maracatus, e, nesse
sentido, as discussões sobre as possibilidades que o uso da biografia tem
apontado para os historiadores vêm sendo fundamentais para pensar a ação
singular de alguns líderes maracatuzeiros. Dona Santa, no Elefante, Luiz de
França, no Leão Coroado, Madalena e Rosinete, no Elefante dos anos 1990, como
pensar essas nações sem levar em consideração as ações desses indivíduos, suas
capacidades de elaborarem estratégias de inserção social, bem como as disputas
por espaços e visibilidade que estabeleceram entre si? Giovanni Levi alerta que
uma nova abordagem das estruturas sociais, que leva em consideração as
solidariedades sociais:
[...] nos induz a apresentar de modo menos esquemático os mecanismos
pelos quais se constituem redes de relações, estratos e grupos
sociais. A medida de sua solidariedade e a análise da maneira pela
qual se fazem e desfazem as configurações sociais levantam uma
questão essencial: como os indivíduos se definem (conscientemente ou
não) em relação ao grupo ou se reconhecem numa classe?68
Devo afirmar que o compartilhamento de práticas e sentidos é, em muitos casos,
anterior à constituição do maracatu, mas contribui sobremaneira para
retroalimentar as mesmas práticas. Se determinado grupo de pessoas, integrantes
de um mesmo terreiro, com laços pessoais diversos e residentes em uma
determinada comunidade fazem a opção pela construção ou reativação de um
maracatu, então fica claro o entendimento de como esse se serviu dos laços
identitários que o antecedem. Porém, o decorrer do processo, bem como da
própria vida, contribuirá para que o maracatu propicie o reforço desses laços,
influindo em modificações, em alguns casos, e permanências em outros. O que
define a fronteira entre o grupo percussivo (não nação) e o maracatu-nação são
os laços comunitários presentes neste último, tanto nos modos de fazer e os
sentidos, do que no pertencimento a uma determinada religião. Seja ela de
divindades ou de entidades, pois o fato de um grupo de maracatu percussivo
constituir laços com um terreiro não irá lhe propiciar sentidos em comum.
As observações que fiz em alguns grupos percussivos cariocas me permitiram
estabelecer algumas conclusões. A maior motivação existente entre os
integrantes dos grupos à época existentes (2006 e 2007) estavam relacionadas
com a diversão, o prazer e a higiene mental. Esses grupos eram integrados por
médicos, psicólogos, professores, dentistas, estudantes universitários, dentre
outros. Não pude perceber um compartilhamento de sentidos, ideias e práticas,
tampouco constatei a existência de laços que não fossem além do final de semana
em que se encontravam para tocar um instrumento nas festas ou espaços em que
ensaiavam. Nos maracatus-nação, é comum encontrar homens e mulheres que residem
em uma mesma comunidade, convivendo com os mesmos problemas e constituindo
identidades semelhantes. Importa para essa questão, entretanto, pensar nas
diferenças e como elas propiciam práticas distintas no interior dos grupos
percussivos e dos maracatus-nação.
O compartilhamento de práticas também ocorre nos terreiros em que seus
integrantes residem em uma mesma comunidade, corroborando a ideia de nação
religiosa e de uma comunidade de sentidos semelhante à visão proposta por
Turner, ao discutir seus conceitos de communitas e de liminaridade.69 Estou
tratando não de uma comunidade de sentidos na exata acepção do termo formulado
por Turner, mas na perspectiva de compreender os maracatus-nação como
construções feitas por pessoas que possuem muitos laços entre si, dos quais o
compartilhamento de práticas e o fato de residirem próximos uns dos outros lhes
permite maiores possibilidades de conformarem uma "nação", mesmo que esta tenha
enormes diferenças das nações formadas no âmbito do tráfico de escravos do
período escravagista.
Esse compartilhamento de práticas e sentidos, no entanto, não impede que
existam trânsitos entre os integrantes dos maracatus-nação. Não há rigidez ou
imobilidade no pertencimento a um determinado maracatu-nação, apesar de que
este não existe pelas mesmas razões dos grupos percussivos. O núcleo central
dos maracatus-nação da atualidade são as comunidades, principalmente aquelas em
que seus moradores possuem práticas e costumes compartilhados. Refiro-me ao
fato de que as comunidades em que os maracatus estão inseridos possuem maiores
laços entre as pessoas, não sendo apenas o local da moradia, mas principalmente
o ponto em que os maracatuzeiros reconhecem como sendo seu e fundamentalmente
possui identificação com as pessoas e os laços existentes entre elas.
Algumas conclusões
Uma das conclusões possíveis de serem apontadas neste trabalho diz respeito às
grandes diferenças existentes entre o termo "nação", que se construiu ao longo
do tráfico e da escravidão no Brasil, e a que nomeia os grupos "tradicionais"
de maracatus na cidade do Recife, sobretudo após os anos 1930. A ideia de
"nação" existente nesses grupos está presente nos maracatuzeiros que exibem
símbolos, coroas e soberanos, mostrando que se trata de grupos com maiores
afinidades entre si do que na sociedade como um todo. Faz-se necessário, no
entanto, perceber que essa ideia de nação, ressignificada ao longo do século
XX, não imputa a esses grupos a imobilidade no pertencimento ou rigidez no
ingresso. Os limites entre as nações estão presentes nos contrastes em que os
seus discursos são construídos, notadamente na forma como esses grupos se
relacionam com os poderes públicos e as comunidades em que estão inseridos, nas
cores que escolhem, nas toadas que cantam e nos instrumentos que os batuqueiros
utilizam. Cada maracatu-nação possui uma forma de tocar seus instrumentos e,
principalmente, um conjunto de estratégias levadas a efeito pelos seus
principais articuladores.
Se, entre um maracatu-nação e um grupo percussivo, existe uma relação de
alteridade, em que o pertencimento a uma comunidade é a marca fundamental,
entre as nações de maracatu as escolhas quotidianas separam-nas umas das
outras, fazendo com que seus integrantes a cada dia reforcem os vínculos com o
grupo, retroalimentando os sentidos compartilhados presentes entre os membros.
Alguns maracatus-nação escolhem o discurso da tradição como principal
estratégia de inserção social e busca da legitimidade, ao passo que outros
optam pelo diálogo com o mercado e a indústria cultural como melhor forma de
manter seus espaços. Em ambos os tipos, existem estratégias que não podem
jamais ser vistas como simples atos folclorizados ou destituídos de sentido e
lógica.
Os tipos de toques, as formas de cantar, as letras das toadas, os vínculos
religiosos e o modo pelos quais são tecidos, as conveniências propiciadas aos
integrantes da nação, o prazer que advém em fazer algo com que se identificam,
e os discursos identitários construídos pelo grupo, dentre outras questões,
fazem as fronteiras entre os diferentes maracatus-nação. As escolhas de cada
grupo e as regras estabelecidas por eles impõem limites suficientes para que o
trânsito existente entre seus integrantes ocorra numa proporção pequena, quando
comparado com o número de pessoas que permanecem. O que faz um maracatu-nação
ser uma nação é, antes de tudo, o compartilhamento tenso, constante e dinâmico
de um sem número de modos de fazer, de sentir e de compreender que tecem liames
entre as pessoas, tornando-as parte de um grupo, levando-as a se assumirem como
maracatuzeiros e constituindo uma identidade na qual estão presentes valores e
sentimentos religiosos peculiares, muitas vezes existentes apenas naquele
terreiro, entre as pessoas daquela comunidade que fazem determinado maracatu.
Esse fazer dinâmico e tenso é objeto de algumas questões aqui colocadas, mas
que não serão facilmente resolvidas, pois estou convicto de que, muito mais do
que ter categorias de análise prontas e adequar os objetos aos nossos
propósitos, o trabalho do historiador consiste em observar como essas
categorias se constituem historicamente, como são usadas pelos atores sociais e
como muitas vezes são apropriadas pelos intelectuais, principalmente das
ciências humanas. E para essa questão é fundamental o diálogo da História com a
Antropologia, a partir do uso de categorias conceituais por parte de ambas.
Importa para agora, no entanto, pensar como os maracatus-nação adquirem novas
características e ressignificam suas identidades. Pensar como se impuseram em
diferentes contextos, nesse sentido, é buscar o entendimento das lógicas que
teceram, em meio a diferentes identidades possíveis de serem estabelecidas, e
constituíram-se em grupos de espetáculo, adentrando o mercado simbólico do
carnaval pernambucano, obtendo legitimidade e espaços numa sociedade fortemente
disputada por outras manifestações da cultura negra. Eis a complexidade que
permeia os maracatus-nação, suas diferenças entre si e os grupos percussivos.
1 Ivaldo Marciano de França Lima, Maracatus do Recife: novas considerações sob
o olhar dos tempos, Recife: Bagaço, 2012.
2 Essa categorização não inclui os maracatus de orquestra, ou de baque solto,
uma vez que inexistem, até o momento, grupos que reivindiquem sua prática fora
de Pernambuco.
3 Estou utilizando os termos "religião de entidades e de divindades" em
substituição aos conceitos "afro-brasileiro", "afrodescendente" e "matriz
africana", utilizados largamente pelos pesquisadores e estudiosos para nomear
religiões que possuem elementos indígenas, cristãos e kardecistas, como é o
caso da jurema e da umbanda. Essas religiões, quando recebem a denominação
exclusiva de "afro", deixam invisibilizadas as contribuições "não negras".
4 Há grupos percussivos em diversos estados do país, a exemplo do Rio de
Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais,
Paraíba e Ceará. Só em Pernambuco, somam-se mais de cinquenta grupos. Também
existem grupos percussivos em outros países, a exemplo da Alemanha, França,
Rússia, Estados Unidos, Canadá, Espanha, Portugal, Japão, dentre outros. A cada
dois anos, ocorre na Europa um encontro internacional de grupos e pessoas que
fazem maracatu. No Brasil, na região Sudeste, também ocorrem tais encontros, em
geral organizados pelos grupos paulistas. Alguns desses grupos percussivos
"internacionais" já dispõem de registros sonoros e, em alguns casos, se
constituem em grupos com mais de quinze anos de existência, a exemplo do Stern
der Elbe, da Alemanha. Também há grupos percussivos brasileiros dotados de CDs,
a exemplo do Rio Maracatu e de diversos grupos paulistas. São estes os
maracatus-nação existentes em Pernambuco: Almirante do Forte, Aurora Africana,
Axé da Lua, Cambinda Estrela, Encanto da Alegria, Encanto do Dendê, Encanto do
Pina, Estrela Brilhante do Recife, Estrela Dalva, Estrela de Olinda, Gato
Preto, Leão da Campina, Linda Flor, Nação de Luanda, Oxum Mirim, Porto Rico,
Raízes de Pai Adão, Sol Nascente, Tigre, Tupinambá, Lira do Morro da Conceição,
Rosa Vermelha, Leão de Judá, Centro Grande Leão Coroado, Cambinda Africana,
Elefante, Estrela Brilhante de Igarassu e Leão Coroado de Águas Compridas.
Quase todos os grupos, exceto os quatro últimos, são filiados à Associação dos
Maracatus Nação de Pernambuco (AMANPE).
5 Carlo Ginzburg, História noturna: decifrando o sabá, São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. Neste trabalho, Ginzburg interroga-se sobre as permanências de
mitos, ritos e símbolos em diferentes regiões do mundo.
6 Apesar de ser assunto já muito referido, nunca é demais lembrar as discussões
levadas a efeito por Carlo Ginzburg a respeito da importância do método
indiciário para o conhecimento histórico. Ver: Carlo Ginzburg, Mitos, emblemas,
sinais: morfologia e história, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
7 Para conferir alguns dos trabalhos dos autores em questão, ver: Leonardo
Dantas da Silva, "A calunga de Angola nos maracatus do Recife", in Leonardo
Dantas da Silva (org.), Estudos sobre a escravidão negra (Recife: Massangana,
1988, v. 2); Leonardo Dantas da Silva, "A corte dos reis do
Congo e os maracatus do Recife", Notícia bibliográfica e histórica, n. 184
(2002), pp. 43-64; Leonardo Dantas da Silva, "A instituição
do rei do Congo e sua presença nos maracatus", in Leonardo Dantas da Silva
(org.), Estudos sobre a escravidão negra; Roberto Benjamin,
"Congos da Paraíba", Cadernos de Folclore, n. 18, Rio de Janeiro: FUNARTE,
1977.
8 Beatriz Góis Dantas, Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no
Brasil, Rio de Janeiro: Graal, 1988.
9 Stefania Capone, A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil,
Rio de Janeiro: Pallas/Contracapa, 2004.
10 Luís Rodolfo Vilhena, Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro
(1947-1964), Rio de Janeiro: Funarte/FGV, 1997; Katarina
Real, Eudes, o rei do maracatu, Recife: FUNDAJ/Massangana, 2001.
11 Para conferir parte das opiniões de Benjamin sobre Afonso e o Leão Coroado,
ver: Roberto Benjamin, "Dona Santa e Luiz de França: gente dos maracatus", in
Vagner Gonçalves da Silva (org.), Memória afro-brasileira: artes do corpo (São
Paulo: Selo Negro, 2004). Discuti essa questão, mostrando que
existem outras versões sobre o processo sucessório desse maracatu, a exemplo do
desejo de Luiz de França em entregar o Leão Coroado a sua filha adotiva, além
de declarações suas afirmando em outros momentos que desejava ter o Leão
Coroado no "museu", junto com o Elefante de Dona Santa. Para conferir, ver:
Ivaldo Marciano de França Lima, Identidade negra no Recife: maracatus e afoxés,
Bagaço: Recife, 2009. Sobre as declarações de Luiz de França
e o seu desejo em ver o Leão Coroado no museu, ver: "Um leão sem coroa", Diário
de Pernambuco, 14 de janeiro de 1996, Caderno Viver, p. 1. Em
2010, ocorreu uma assembleia dos antigos integrantes do Leão Coroado,
juntamente com os netos e a filha adotiva de Luiz de França, que decidiram dar
continuidade ao maracatu. Há, na atualidade, portanto, dois grupos homônimos
que disputam o legado do antigo Leão Coroado de Luiz de França.
12 Sobre a Noite dos Tambores Silenciosos, ver: Isabel Cristina Martins
Guillen, "Xangôs e maracatus: uma relação historicamente construída", Ciências
Humanas em Revista, v. 3, n. 2 (2005), pp. 59-72; Isabel
Cristina Martins Guillen, "Noite dos Tambores Silenciosos: ritual e tradição
entre os maracatus-nação do Recife", Anais Eletrônicos da 25ª. Reunião
Brasileira de Antropologia. Goiânia, ABA/UFG/Universidade Católica de Goiás,
2006.
13 Pierre Bourdieu, O poder simbólico, Lisboa: Difel, 1989.
14 César Guerra-Peixe afirmou que os maracatus de orquestra estavam ligados à
jurema, enquanto os de baque virado (nação) se relacionavam com o xangô. A
partir de seu trabalho, essa relação se tornou "natural" e tem sido repetida
como se constituísse uma regra geral. Ver: Guerra-Peixe, Maracatus do Recife,
Recife: Prefeitura da Cidade do Recife/Irmãos Vitale, 1980.
15 Para as diferenciações das experiências entre grupos e indivíduos no
processo de constituição identitária, ver: Simona Cerutti, "Processo e
experiência: indivíduos, grupos e identidades", in Jacques Revel (org.), Jogos
de escala: a experiência da microanálise (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998). Para se livrarem da acusação de que
simplesmente se apropriam da cultura popular, os grupos percussivos costumam
argumentar que contribuem para a sobrevivência dos maracatus e,
consequentemente, da tradição.
16 Tomke Lask, "Apresentação", in Fredrik Barth, O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas (Rio de Janeiro: Contracapa, 2000), p. 11.
17 Eric Hobsbawm, Nações e nacionalismo desde 1780, Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1998.
18 Marilena Chauí, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo:
Perseu Abramo, 2000.
19 Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista: história da festa
de coroação de Rei Congo, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 144; Reginaldo Prandi, "A dança dos caboclos: uma síntese do Brasil
segundo os terreiros afro-brasileiros", <http://www.fflch.usp.br/sociologia/
prandi/dancacab.rtf>, acessado em 11/11/2012; Reginaldo
Prandi, "Música de fé, música de vida: a música sacra do candomblé e seu
transbordamento na cultura popular brasileira", <http://www.fflch.usp.br/
sociologia/prandi/musicafe.rtf>, acessado em 11/11/2012.
20 Mary C. Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850, São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
21 Jacques Revel, "Microanálise e construção do social", in Revel (org.), Jogos
de escala.
22 Vivaldo da Costa Lima, "O conceito de 'nação' nos candomblés da Bahia",
Afro-Ásia, n. 12 (1976), pp. 65-90.
23 Veja-se para a questão: Mariza de Carvalho Soares, "A 'nação' que se tem e a
'terra' de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no Império
português, século XVIII", Estudos Afro-Asiáticos, v. 2, n. 26 (2004), pp. 303-
30.
24 Soares, "A 'nação' que se tem".
25 A designação de procedência no nome do escravo passou a constituir-se em
prática efetiva ao longo do século XVIII. Para essa questão, ver: Mariza de
Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão
no Rio de Janeiro, século XVIII, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000,
pp. 96-7.
26 Mariza de Carvalho Soares, "Mina, Angola e Guiné: nomes d'África no Rio de
Janeiro setecentista", Tempo, v. 3, n. 6 (1998), p. 73.
27 Soares, "Mina, Angola e Guiné", p. 76.
28 Maria Inês Côrtes Oliveira, "Quem eram os negros da Guiné? A origem dos
africanos na Bahia", Afro-Ásia, n. 19/20 (1997), pp. 37-73.
29 Soares, "Mina, Angola e Guiné", p. 78.
30 Soares, "Mina, Angola e Guiné", p. 80.
31 Soares, "A 'nação' que se tem", p. 306.
32 Soares, "Mina, Angola e Guiné", p. 78.
33 Sobre esta questão, ver também: Carlos Eugênio Líbano Soares, A negregada
instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Prefeitura da
Cidade do Rio de Janeiro, 1994, p. 37.
34 Sobre a diversidade entre os nagôs, ver: Dantas, Vovó nagô.
35 Soares, Devotos da cor, p. 319.
36 Sobre a origem étnica dos grupos de candomblé na Bahia, ver: João José Reis
e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista, São Paulo: Companhia das Letras, 1999; João José
Reis, "Magia jeje na Bahia: a invasão do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1795",
Revista Brasileira de História, n. 16 (1988), pp. 57-81.
37 Soares, "A 'nação' que se tem", p. 307; Bath, O guru, o iniciador, p. 26 e
passim Barth, O guru, o iniciador, p. 26 e passim
38 Barth, O guru, o iniciador, p. 27.
39 Soares, "A 'nação' que se tem", p. 308.
40 Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, São Paulo: Nacional, 1932.
41 Soares, "A 'nação' que se tem", p. 317.
42 Oliveira, "Quem eram os negros da Guiné?", p. 60.
43 Oliveira, "Quem eram os negros da Guiné?", p. 66.
44 Luis Nicolau Parés, A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje
na Bahia, Campinas: Ed. da UNICAMP, 2006, p. 15.
45 Paul E. Lovejoy, "Identidade e a miragem da etnicidade. A jornada de
Mahhomah Gardo Baquaqua para as Américas", Afro-Ásia, n. 27 (2002), pp. 9-39.
46 Juliana Barreto Farias, Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio dos Santos
Gomes, No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro,
século XIX, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 51.
47 Farias, Soares e Gomes, No labirinto das nações.
48 Farias, Soares e Gomes, No labirinto das nações, p. 50.
49 Oliveira, "Quem eram os negros da Guiné?", p. 72.
50 Manuela Carneiro da Cunha, Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua
volta à África, São Paulo: Brasiliense, 1985.
51 Stuart Hall, "Identidade cultural e diáspora", Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, n. 24 (1996), pp. 68-75.
52 Hall, "Identidade cultural e diáspora", p. 69.
53 Guillen, "Xangôs e maracatus".
54 Martha Abreu, O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no
Rio de Janeiro, 1830-1900, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, especialmente
páginas 287-90; João José Reis, "Tambores e temores. A festa
negra na Bahia na primeira metade do século XIX", in Maria Clementina Pereira
da Cunha (org.), Carnavais e outras f(r)estas (Campinas: Ed. Unicamp, 2005).
55 Sobre maracatus e batuques no século XIX, ver: Clarissa Nunes Maia, Sambas,
batuques, vozerias e farsas públicas: o controle social sobre os escravos em
Pernambuco no século XIX (1850-1888), São Paulo: Annablume, 2008; Marcelo Mac Cord, O Rosário de D. Antônio: irmandades negras,
alianças e conflitos na história social do Recife, 1848-1872, Recife: FAPESP/
Editora Universitária UFPE, 2005. Sobre a migração dos
maracatus para o carnaval, ver: Rita de Cássia Barbosa de Araújo, "Festas
públicas e carnavais: o negro e a cultura popular em Pernambuco", in Luiz Sávio
de Almeida, Otávio Cabral e Zezito Araújo (orgs.), O negro e a construção do
carnaval no Nordeste (Maceió: EDUFAL, 1996). Para o carnaval
carioca, ver: Maria Clementina Pereira da Cunha, Ecos da folia: uma história
social do carnaval carioca entre 1880-1920, São Paulo: Companhia das Letras,
2001; Rachel Soihet, A subversão pelo riso, Rio de Janeiro:
FGV, 1998. Para o carnaval na Bahia, ver: Peter Fry, Sérgio
Carrara e Ana Luiza Martins Costa, "Negros e brancos no carnaval da velha
república", in João José Reis (org.), Escravidão e invenção da liberdade:
estudo sobre o negro no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1988).
56 Pereira da Costa, "Folk-lore pernambucano. Subsídios à história da poesia
popular em Pernambuco", Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
tomo LXX, parte II (1908). Sobre Pereira da Costa e os
maracatus, ver: Ivaldo Marciano de França Lima, "Práticas e representações em
choque: o lugar social dos maracatus na cidade do Recife, nos anos de 1890-
1930", Clio, Série História do Nordeste, v. 1, n. 21 (2003), pp. 85-106.
57 O Jornal Pequeno, Recife, de 12 de fevereiro de 1902, noticia uma dessas
brigas.
58 Oscar Melo, Recife sangrento, Recife: Edição do Autor, 1953, especialmente
as páginas 139-42. Sobre Adama, ver: Ivaldo Marciano de
França Lima, "Adama e Nascimento Grande: valentes do Recife da Primeira
República", Cadernos de Estudos Sociais, v. 22 (2006), pp. 49-61; Israel Ozanan de Souza Cunha, "Capoeira e capoeiras entre a Guarda
Negra e a Educação Física no Recife" (Dissertação de Mestrado em História,
Universidade Federal de Pernambuco, 2013).
59 Maia, Sambas, batuques, vozerias; Sylvia Costa Couceiro, "Artes de viver a
cidade. Conflitos e convivências nos espaços de diversão e prazer do Recife nos
anos 1920" (Tese de Doutorado em História, Universidade Federal de Pernambuco,
2003).
60 Rita de Cássia Barbosa de Araújo, Festas: máscaras do tempo, Recife:
Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1996, especialmente cap. IV, "No
frevedouro da República". Sobre a noção de teatro, ver: E. P.
Thompson, As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, Campinas: Ed. da
UNICAMP, 2001, p. 241 e passim.
61 Os concursos carnavalescos começam a ocorrer nos dez primeiros anos do
século XX com o incentivo dos jornais e empresas privadas. Eis alguns jornais
que noticiaram os concursos carnavalescos do período: Jornal do Recife, 21 de
fevereiro de 1909, p. 1; Jornal do Recife, 23 de fevereiro de 1911, p. 2. Nos
anos 1930, antes da criação da Federação Carnavalesca, assiste-se ainda a
considerável número de certames, todos promovidos por jornais e empresas
privadas: Jornal do Recife, 24 de fevereiro de 1933, p. 2. Diversos outros
concursos aconteceram nesses anos, a exemplo da "Taça A. Souza de Mello",
Jornal do Recife, 23 de fevereiro de 1933, p. 2 e "Taça Silgo", Jornal do
Recife, 25 de fevereiro de 1933, p. 5.
62 Francisco Mateus Carvalho Vidal, "A fresta do Estado e o brinquedo para os
populares: histórias da Federação Carnavalesca Pernambucana" (Dissertação de
Mestrado em História, Universidade Federal de Pernambuco, 2010). Para esse debate em 1947, ver: Gilberto Freyre, "Carnaval do povo.
Carnaval de Federação", Diário de Pernambuco, 08 de janeiro de 1947. O debate se estendeu por vários dias.
63 Katarina Real, O folclore no carnaval do Recife, Recife: Fundação Joaquim
Nabuco/Massangana, 1990.
64 Sobre os maracatus rurais, ver: Roberto Benjamin, "Maracatus rurais de
Pernambuco", in Américo Pellegrini Filho (org.), Antologia de folclore
brasileiro (São Paulo: Edart, 1982), pp. 199-212; Mariana
Cunha Mesquita do Nascimento, João, Manoel, Maciel Salustiano: três gerações de
artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco, Recife: Reviva, 2005.
65 Guerra-Peixe, Maracatus do Recife, p. 23. Tal questão influenciou
sobremaneira os estudiosos que lhe seguiram nas pesquisas sobre os maracatus-
nação, e a relação estabelecida por Guerra-Peixe sequer foi questionada e ainda
hoje é aceita como tal, inclusive entre alguns maracatuzeiros que afirmam terem
vínculos apenas com a religião dos orixás, negando qualquer tipo de vínculo com
a jurema. Sobre a questão da "pureza africana e nagô" nas religiões de
divindades e de entidades, ver: Dantas, Vovó nagô; Roberto Motta, "A invenção
da África: Roger Bastide, Édison Carneiro e os conceitos de memória coletiva e
pureza nagô", in Tânia Lima (org.), Sincretismo religioso: o ritual afro. Anais
do IV Congresso Afro-Brasileiro (Recife: Massangana/Fundaj, 1996), pp. 24-32; Roberto Motta, "Antropologia, pensamento, dominação e
sincretismo", in Sylvana Brandão (org.), História das religiões no Brasil, v. 3
(Recife: Ed. da UFPE, 2004), pp. 487-523. Sobre a questão da
dominação iorubá (nagô), ver: Lívio Sansone, "Da África ao afro: uso e abuso da
África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século
XX", Afro-Ásia, n. 27 (2002), pp. 249-69.
66 Barth, O guru, o iniciador, p. 26.
67 Lívio Sansone, Negritude sem etnicidade, Rio de Janeiro: Pallas; Salvador:
EdUFBA, 2004.
68 Giovanni Levi, "Usos da biografia", in Marieta de Moraes Ferreira e Janaína
Amado (orgs.), Usos & abusos da História oral (Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1996), p. 173. Ver ainda: Pierre Bourdieu, "A
ilusão biográfica", in Ferreira e Amado (orgs.), Usos & abusos; Sabina Loriga, "A biografia como problema", in Revel (org.), Jogos de
escala.
69 Victor W. Turner, O processo ritual: estrutura e anti-estrutura, Petrópolis:
Vozes, 1974. Ver especialmente os capítulos 3 e 4.