Um Funeral "Digno": Celebrações da morte na Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito, Florianópolis (1888-1925)
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito1 de Florianópolis
As irmandades são organizações religiosas criadas na Idade Média, entre os
séculos XII e XV, na Europa, com o objetivo inicial de congregar fiéis em torno
da devoção a um santo padroeiro. Essas associações seguiam regras internas
estabelecidas em um compromisso que definia objetivos, obrigações dos irmãos,
deveres, formas de entrada, taxas de pagamento, etc. Os compromissos dividem-se
em capítulos que tratam dos objetivos da irmandade, da condição jurídico-civil
daqueles que poderiam ser aceitos como irmãos, e também de seus direitos e
deveres, sua forma de organização, além de questões religiosas e sociais.
Apesar de surgirem por meio do catolicismo, eram organizadas por homens e
mulheres leigas. Essas irmandades passavam pelas instâncias da Igreja e,
dependendo do reino e da época, deviam passar, também, pelas instâncias do
Estado - principalmente nas regiões nas quais vigorou o padroado, a exemplo da
ibérica -, para aprovação, mas eram mantidas, organizadas e administradas pelos
irmãos leigos, que compunham uma mesa administrativa. Além da finalidade
religiosa, as irmandades tinham função social, auxiliando na resolução de
problemas econômicos, prestando assistência em caso de doenças ou desamparo e
pobreza.2
No século XVIII, as irmandades remetiam seus compromissos a Lisboa, para
aprovação da Coroa, motivando, inclusive, o cuidado com esses documentos, em
vista da demora na autorização e da remessa necessária a Portugal para
aprovação. Até a República, "em função do Padroado Régio, estes estatutos
compromissais deveriam ser aprovados tanto pela Igreja Católica quanto pelo
Estado", representando o poder temporal e o espiritual, respectivamente.
Com a assinatura do Decreto que firmou a separação entre Igreja e
Estado (1890) e a Proclamação da República (1889), o Padroado foi
abolido. Dentro deste contexto, as reformulações das práticas
católicas começaram a fazer sentido, pois a implantação do regime
republicano, que se dizia laico, dirigiu para a Igreja Católica a
alçada da problemática da sua separação do Estado. Nesse sentido, a
necessidade de suscitar condições organizacionais do catolicismo em
todas [...] as unidades da federação e articular-se ao poder
constituído, no sentido de defender seu patrimônio e conquistar
espaços [...], passou a ser estratégia de uma Igreja Católica em
plena reforma estrutural.3
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Desterro/
Florianópolis, cujo primeiro compromisso data de 1750,4 já realizava suas
atividades em período anterior, como indica um documento de 1726.5 Percebemos,
com base na documentação e bibliografia sobre diferentes irmandades existentes
desde o Brasil Colonial, que esta era uma prática comum, pois havia um tempo
entre a organização dessas instituições e sua legalização, baseada na aprovação
do compromisso.6 Tal associação, fundada, no século XVIII, por africanos e
africanas devotos de Nossa Senhora do Rosário e, em meados do século XIX, de
São Benedito, compunha o cenário de uma cidade múltipla, movimentada por
diferentes populações e por um porto com grande fluxo de trabalhadores.
Pensar na Desterro do século XIX permite entender quem fazia parte do
contingente populacional e, para isso, nos debruçamos um pouco sobre o
Relatório apresentado à Assembleia Provincial de Santa Catarina pelo presidente
Adolpho de Barros Cavalcanti Lacerda, no ano de 1867, e o Censo de 1872, do
qual Fernando Henrique Cardoso (2000) se utiliza para observar a sociedade
desterrense daquele período. De acordo com os dados a que Cardoso recorreu, a
freguesia de Desterro tinha, em 1866, 4.361 brancos, 1.275 pretos7 e 838
pardos; em 1872, havia 5.884 brancos, 1.910 pretos e 1.296 pardos.8 Tais
números nos permitem considerar que a população afrodescendente nos dois
períodos chegava, respectivamente, a 32,64% e 35,27%. Tais números apresentam
indícios significativos da presença de origem africana numa cidade localizada
ao sul do Brasil, marcada na memória hegemônica da região como branca e
europeia.
Na periferia da cidade, localizavam-se os bairros habitados por pessoas mais
pobres, geralmente de origem africana: a Figueira, a Tronqueira, a Pedreira, o
Beco do Sujo, o Toca, o Campo do Manejo e a Cidade Nova. Segundo Silva, o
bairro da Figueira, possivelmente o maior, era considerado um "antro de
prostituição", muito frequentado por marinheiros, habitado por pessoas
extremamente humildes. Situado a oeste do centro histórico de Florianópolis,
possuía trapiches, estaleiros, armazéns, inúmeras casas de negócios, hotéis,
padarias, boticas, o que, segundo Cardoso, "transformou a região em uma ativa
zona produtiva e, ao mesmo tempo, atraiu centenas de miseráveis de todos os
matizes em busca de trabalho e moradia. Era uma área ativa e perigosa, onde nem
mesmo as forças de segurança pareciam estar a salvo".9
Nessa área movimentada e central, localizava-se a capela da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito, cuja construção da igreja, como ressaltou
Oswaldo Rodrigues Cabral, resultou de árduos dias de trabalho e dedicação de
muitos cativos, livres e libertos que, nos dias santificados e domingos,
planejavam e executavam as obras da capela. De acordo com os livros-caixas e as
atas, foram constantes as obras, os reparos, as reformas. Nesses documentos,
encontramos itens que fizeram parte das despesas da capela durante praticamente
todo o século: pedra, cal, vidros, pregos, tijolos, tábuas, telhas, e outros
utensílios e materiais. Além disso, era recorrente o pagamento de pessoas para
a execução de serviços, tanto das obras como da conservação do local. Desse
modo, além de reformar, era preciso manter o local asseado, capinado, pintado,
limpo.
A edícula foi construída na antiga Rua do Rosário, hoje Rua Marechal Guilherme,
próximo da igreja matriz da cidade de Florianópolis. A iniciativa da construção
da atual igreja surgiu em fins do século XVIII. "Só em 1787, entretanto, chegou
ao Destêrro a licença do Bispo do Rio de Janeiro para a construção da nova
Igreja". As obras foram lentas. "Em [17]92, sete anos depois de iniciadas, foi
que a Mesa pôde determinar fazer o madeiramento para faixar a nova Capela e
juntamente feixar o arco da mesma com tijolo singelo".10 As imagens de santos
existentes na capela antiga, que naquele ano fora demolida, destinou-se à
igreja matriz, onde ficariam abrigadas até que as obras da nova capela
findassem. Longos anos... Segundo Cabral, "ao raiar do século XIX, não estava
ainda a nova igreja concluída", "entretanto, em 1800, já se encontra notícia da
tradicional missa de 26 de dezembro, embora ainda sem as solenidades que haviam
marcado época em outros tempos, isto é, sem cantos e sermão".11
A capela da irmandade compunha o cenário movimentado da cidade de então, em
fins do século XIX, ainda denominada Desterro.12 As reformas urbanas da
capital, já Florianópolis, ocorreram efetivamente na Primeira República, sendo
a nova elite republicana responsável pela remodelação de espaços e práticas
urbanas.13 A "picareta modernizadora" empurrou afrodescendentes,14 pobres e
desvalidos para as periferias da cidade, "especialmente com a abertura da
Avenida Hercílio Luz, que delimitou a segregação espacial e provocou o início
da ocupação dos morros adjacentes ao centro urbano".15
Um funeral "digno": sinos, velas, cortejo... e missas pela alma
Nos dizeres de João José Reis, a "boa morte significava que o fim não chegaria
de surpresa para o indivíduo", que sua alma estivesse pronta para a "partida",
com todos os direitos ao cortejo fúnebre que lhe coubesse e que seus irmãos e
irmãs pudessem proporcionar. Participar de uma irmandade também significava
contar com socorro na hora da morte, seja de seus parentes ou de si próprio,
desde que arcassem com os devidos gastos. Apenas para os filiados muito pobres
e incapazes de arcar com o funeral, abriam-se exceções.16
O medo de ter o corpo insepulto ou ser sepultado sem honra fez com que pretos
quisessem um funeral cristão. Dessa forma, não apenas o morto recebia uma morte
digna, mas também a irmandade mostrava sua pompa e os cuidados com seus
mortos.17 Era costume, até o século XIX, enterrarem-se os mortos nas igrejas,
capelas e demais lugares "santos", pela proximidade que acreditavam existir com
a salvação. Assim, quanto mais próximo ao altar, maiores as "garantias" de ter
a alma salva. Nas mais diferentes regiões do país, encontram-se informações
sobre tais práticas e isso não foi muito diferente na Irmandade do Rosário de
Desterro/Florianópolis.
No entendimento de Reis, esse caráter leigo compunha um jeito de compreender a
morte e seus rituais pela "pompa", no chamado catolicismo barroco,
caracterizado por um desejo de externar práticas devocionais em ritos de
passagem como indicativo de fé e renovação da vida.
O funeral barroco se caracterizava pela pompa: o luxo dos caixões,
dos panos funerários, a quantidade de velas queimadas, o número de
participantes no cortejo - de padres, pobres, confrarias, músicos,
autoridades, convidados -, a solenidade e o número das missas de
corpo presente, a decoração da igreja, o prestígio do local escolhido
para sepultura.18
A cultura católica ocidental, desde a Idade Média até a Idade Moderna, tinha na
procissão fúnebre uma demonstração de brilho, suntuosidade, elementos que
chamassem a atenção, uma cerimônia composta por música, muitas pessoas e a
condução do corpo até seu destino final. É interessante refletir sobre os panos
funerários e o cuidado com a "pompa". Nas tradições africanas, famílias
confeccionam panos para a morte de seus parentes até hoje.19 O catolicismo
praticado por essas populações deve ser considerado particular, próprio,
repleto de significados complexos diferentes do que outros grupos culturais
experienciavam enquanto católicos.
Essa forma de compreensão do catolicismo praticada por populações de origem
africana, um catolicismo dinâmico, inserido em universos culturais de matrizes
africanas, também implicou formas diferenciadas de lidar e sentir a morte, por
mais que as práticas fossem denominadas católicas. "A força das releituras
negativas sobre os cultos africanos marcaram as trajetórias de muitos
indivíduos que precisaram encontrar mecanismos para, ao mesmo tempo, manter os
cultos afro-ancestrais e professar a religião socialmente aceita", o
catolicismo.20
Discutindo as apropriações da morte católica por africanos e afrodescendentes
no Rio de Janeiro setecentista, Cláudia Rodrigues apresenta indicativos da
presença de elementos herdados das concepções africanas no que tange às
práticas católicas, em especial como as concepções e representações sobre a
morte impactaram as vivências católicas de africanos e seus descendentes.21 A
partir do estudo de testamentos de homens e mulheres de origem africana, a
autora percebeu os cuidados e as práticas envolvidas na obtenção da salvação
ou, pelo menos, no anseio pela salvação. Chama a atenção para o fato de que
muitos elementos apontam para a convivência entre representações católicas e
africanas na hora da morte. Ou, como bem ressalta, "por algum motivo, fizeram
questão de se apresentar como sabedores de que precisavam se mostrar contritos
na iminência da morte".22
Ao analisar experiências associativas de africanos e seus descendentes na
Bahia, em Portugal e em Angola, Lucilene Reginaldo também registrou que a
"manutenção destes espaços permitiu a criação de práticas e vivências do
catolicismo imbuídas de valores e representações africanas".23 No caso da
região centro-africana, a autora destaca que o catolicismo não significou
abandono de práticas tradicionais, pois a "poligamia e os cultos tradicionais
foram fontes inesgotáveis de conflitos entre os convertidos centro-africanos e
missionários de várias épocas".24 Abordando vivências culturais de africanos e
seus descendentes na Bahia, em especial organizados em irmandades, a autora
acrescenta que ritmos, danças, palmas, cantos e muitas formas coletivas de
celebração eram marcantes em acontecimentos das irmandades, como apresentam
inúmeros relatos de viajantes e documentos oficiais.25
Tanto culturas africanas quanto católicas preocupavam-se com a morte, sendo
diferenciadas, no entanto, suas concepções com relação a esse momento de
passagem. Possuindo visões de mundo distintas, suas relações com os mortos e a
própria ideia de morte, de antepassados e tradições, constituíam-se de
perspectivas diversas. As experiências relacionadas com a morte por parte das
populações de origem africana em Desterro/Florianópolis permitem conhecer
códigos culturais presentes nessas populações entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do XX, época de interferências do catolicismo romanizado26 e
tensões entre associações religiosas de caráter leigo e a Igreja Católica.27
O catolicismo romanizado trouxe padres de origem europeia para as paróquias de
Santa Catarina, em especial muitos germânicos que atuaram na Primeira
República, envolvendo a Igreja Católica em reformas em sua estrutura, tornando-
a uma forte instituição disciplinar. A germanização do clero acarretou maior
rigidez no controle das práticas dos devotos, incidindo também nas
manifestações devocionais mágico--religiosas, presentes em especial nas
irmandades.
Nos séculos XVIII e até as primeiras décadas do XIX, era comum, em Desterro, o
enterro de corpos envoltos em mortalhas, prática também existente em outras
regiões brasileiras.28 No caso de Salvador, Reis explorou o significado social
e cultural do uso das mortalhas; cores diferenciadas e invocações a santos
compunham inúmeros repertórios no momento da morte, em especial a intercessão
solicitada a esses santos quando ocorresse a partida.29 As vestimentas
funerárias demonstravam um tipo de preocupação com a morte e, em muitos casos,
as melhores roupas tidas em vida eram utilizadas para o enterramento. Segundo
Cláudia Rodrigues, para os "cristãos, o objetivo era obter a salvação. Quanto
aos africanos, tratava-se de se preparar para o encontro com os ancestrais".30
Nesse sentido, o uso de mortalha indicava que a alma, ao se desprender do corpo
no mundo dos vivos, não ficaria vagando pela Terra. Além da mortalha, o corpo
era depositado numa espécie de rede, e algumas irmandades utilizavam esquifes
para carregar os corpos, um tipo de armação de madeira forrada, como se fosse
uma padiola.31
Quase em meados do século XIX, apareceram os primeiros caixões para condução
dos corpos aos seus destinos, sem que houvesse, no entanto, exclusividade,
sendo utilizados basicamente como transporte do cadáver. Assim, o corpo era
conduzido e, após ser sepultado, o caixão retornava ao seu local de origem -
uma irmandade ou instituição - à qual pertencesse. Nessa época, era muito comum
que as associações alugassem os caixões para quem os necessitasse.
Inicialmente, ser conduzido num caixão era sinal de status, mas, com o passar
do tempo, essa prática se popularizou, e até os mais pobres acessavam este
"conforto" na hora da morte.32
Nas palavras de André Luiz Santos, quem estivesse no porto ouviria os sinos das
igrejas anunciando um cortejo que se aproximava. "Os mortos eram carregados em
caixões abertos ou nos esquifes das Irmandades. [...]. Os defuntos escravos ou
crianças abandonadas eram carregados de qualquer jeito, sem caixão".33 Essa
descrição apresentada por Santos refere-se aos corpos de mortos no Hospital de
Caridade, ou com enterro sob a responsabilidade do hospital. Esses dados
permitem imaginar, por exemplo, o deslocamento necessário do Hospital de
Caridade até o Cemitério Municipal, então localizado na cabeceira da atual
Ponte Hercílio Luz. Além disso, o trajeto, bastante longo e feito pelas ruas da
cidade, com soar de sinos, não passaria despercebido. A Figura_1 apresenta um
indicativo da distância entre o hospital e o cemitério. A localização do
cemitério em relação ao Hospital de Caridade e à Irmandade do Rosário
demandavam, assim, um longo deslocamento em diferentes ruas para realização dos
enterramentos.
Figura 1 Vista do centro da torre da ponte Hercílio Luz (1945). Destaque em
realce branco para o Hospital de CaridadeFonte: Acervo Velho Bruxo <http://
hid0141.blogspot.com.br/2010/12/florianopolis-antigo.html>, acessado em 25 de
fevereiro de 2013.
O primeiro Cemitério Público de Desterro foi construído em 1841, numa região
mais afastada do centro da cidade, no terreno que hoje aloca o Parque da Luz,
nas proximidades da cabeceira da Ponte Hercílio Luz. Sua instalação, no alto do
morro, logo na entrada da cidade, aos olhos de todos, foi alvo dos higienistas
e urbanistas no começo do século XX, quando estavam a pleno vapor as obras de
reforma da cidade. O cemitério interrompia o caminho de passagem da ponte, cuja
construção seria iniciada em 1923.34 Assim, o cemitério foi transferido para a
região de Itacorubi.
A localização de cemitérios esteve entre os pontos de tensão na história das
cidades, em especial com as ações do higienismo e da medicalização da
sociedade. No entendimento de Mara Regina do Nascimento, que discutiu o
processo de transferência do cemitério na cidade de Porto Alegre em meados do
século XIX, as reformas nas cidades e as intenções de "alargamento" do
território promoveram uma ampliação no espaço e um distanciamento de
determinados ambientes da cidade para zonas mais afastadas do perímetro urbano,
de maior circulação de pessoas.35 No caso de Desterro/Florianópolis, quando o
cemitério foi construído em 1841, a região era afastada do centro da cidade, um
local de pouca circulação de pessoas e quase sem residências nas proximidades.
No entanto, ao longo das décadas, a situação se alterou, e as demandas por
modificações foram surgindo, culminando na mencionada transferência.
Em 3 de setembro de 1888, a Assembleia Provincial de Santa Catarina, em sessão
ordinária, discutiu a questão do cemitério público, informando sobre seu
terreno e a divisão entre as irmandades e demais associações. A preocupação com
a morte, os enterramentos e as condutas para os rituais eram manifestações e
cuidados efetivos de leigos, mas também estavam sob os olhares da administração
provincial.
A figura_2, fotografia da década de 1920, permite perceber a localização do
cemitério e como estava construído. O espaço também foi utilizado pelos
protestantes para construção de um cemitério, ao lado do municipal, visto que
eram proibidos pela Igreja Católica de serem enterrados em cemitérios
católicos.36 A ideia de transferir os enterros para o cemitério foi planejada e
sua concretização distanciada do perímetro urbano da cidade. O lugar atendia ao
pensamento da época com relação a cemitérios: "terreno [...] enxuto, longe dos
rios, e ajuntamento de aguas; bastantemente vasto, para dar lugar a todos os
corpos, durante quatro anos pelo menos, sem se bulir no lugar das primeiras
covas".37 As mudanças no cuidado com o enterro de mortos, em especial pobres e
cativos, às vezes enterrados "à flor da terra", ou seja, em covas rasas, também
influenciou, de modo geral, no Brasil, a questão de onde inumar os corpos e
como fazê-lo.
[/img/revistas/afro/n50//0002-0591-afro-50-00129-gf2.jpg]
Figura 2 Vista parcial de Florianópolis, 1920. Destaque em realce branco para
o cemitério localizado na cabeceira da Ponte Hercílio LuzFonte: Acervo do
Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.
Até 1840, quando foi proibido, o sepultamento dos membros da irmandade era
feito na própria capela da associação. "O alto da colina do estreito entre a
Ilha e o continente no terreno da chácara de José Vieira de Castro foi o lugar
escolhido para o cemitério". Cada irmandade e associação religiosa de Desterro
adquiriu uma área específica, indicada por uma cruz de ferro.38 O jornal A
Regeneração noticiou a decisão adotada pela Assembleia com relação ao
cemitério: "as irmandades e particulares, que possuam qualquer porção de
terreno no atual cemitério público, terão direito a igual porção em o novo
cemitério, independente de qualquer pagamento".39
O Cemitério Público no Morro do Vieira, a caminho do Estreito, atualmente
cabeceira da Ponte Hercílio Luz, foi o espaço destinado ao sepultamento dos
mortos. No entanto, nem todos poderiam ser enterrados naquele espaço, pois quem
não proferisse a fé católica ou assim se afirmasse corria o risco de ficar
insepulto, visto que protestantes eram proibidos pela Igreja Católica de ser
sepultados em cemitérios católicos.40 Assim, em terreno comprado ao lado do
Cemitério Público, instalou-se o Cemitério Alemão, em que se sepultariam
protestantes e outros. Por terem sido descobertos protestantes, foram expulsos
da irmandade José Epiphanio da Cunha, excluído em 1899, Justo Mario da Costa,
em 1897, e Roza Camara da Cunha, em 189941 e não teriam destino certo quando a
morte lhes acometesse. O Cemitério Alemão, embora particular, destinou-se,
também, a atender tais demandas.
Vale indagar se o cemitério, construído ao lado do municipal, demonstrava uma
tensão presente entre católicos e protestantes na cidade, resvalando nos
membros da irmandade, mais assiduamente vislumbrados pela Igreja, evitando que
"seitas" proibidas permeassem o universo da associação. Os protestantes
excluídos talvez indiquem uma disputa existente na cidade com relação a um
"mercado de almas", sendo possível uma perda de "domínio" da Igreja Católica. O
cemitério dos alemães, como ficou conhecido, relacionado com os casos de
expulsão de protestantes da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito, permite-nos conjeturar que a presença de protestantes e adeptos
estava em expansão na cidade, acompanhando a ampliação de novas elites e o
projeto político. Nesse sentido, as antigas elites portuguesas, suplantadas por
elites de origem germânica em fins do século XIX e primeiras décadas do XX,
iniciaram um novo modo de compreensão da cidade e um projeto, um reordenamento
da estrutura urbana e a tentativa das elites locais de "forjá-la como modelo de
uma urbe moderna", de acordo com os sonhos da República.42
A questão de onde enterrar os mortos sofreu grandes interferências, tanto da
Igreja Católica quanto das pressões e ideias político-sanitárias,43 e os
elementos presentes nos enterros ocidentais possuem as marcas dessas
influências, ocorridas, em grande medida, ao longo do século XIX: afastamento
do cemitério do espaço urbano, caixões individuais, túmulos separados e
lacrados, prazo limite para enterro do morto, evitando-se possíveis contágios,
entre outras.
Até meados da década de 1880, Desterro havia se alarmado com as inúmeras
epidemias. Uma das questões que nos chamou atenção foi a alteração na forma de
condução dos corpos de mortos vítimas dos contágios. A inspetoria da cidade
recomendou "que os mortos por varíola fossem conduzidos até o cemitério em
carroças fechadas e sem acompanhamento, revela[ndo] a dimensão e o extremo das
medidas para combater a epidemia de 1882".44 É interessante estabelecer relação
entre esse surto epidêmico de varíola e o relatado por Jucieldo Ferreira
Alexandre no Cariri (CE), que envolvia o cólera. Tais surtos provocaram
alterações nas práticas funerárias, por envolverem uma enorme quantidade de
mortes repentinas, quase ao mesmo tempo e a urgência dos enterros. Nesse
sentido, como ressaltou Alexandre, a intenção era "colocar os mortos o mais
longe possível", sendo que algumas diferenciações indicavam os status dos
mortos, como o caso de pessoas abastadas serem carregadas em caixões fechados,
e os pobres em pequenas redes atravessadas por varas.45 No entanto, apesar
dessas diferenças na condução do corpo, a urgência da epidemia implicava que
muitos mortos "partissem" sem receber a encomendação da alma, um dos ritos
necessários a uma boa morte.46
No caso de Desterro/Florianópolis, a experiência com epidemias que haviam
levado centenas de pessoas à morte, a cada momento que um novo surto se
estabelecia na cidade, gerou medidas preventivas. Uma delas implicou alterações
emergenciais nas práticas funerárias. Em se tratando de uma epidemia, o corpo
do morto era conduzido em uma carroça lacrada, evitando possíveis
contaminações. Como a irmandade conduziu seus funerais diante da
impossibilidade de fazer o cortejo pela Rua do Príncipe até o cemitério? Nesses
casos, talvez o enterro digno ficasse desprovido de cortejo adequado. São
apenas ilações, visto não termos dados suficientes para afirmar se associados
da irmandade vieram a óbito em virtude das endemias e quais os procedimentos
tomados pelos irmãos e irmãs diante disso.
Desde o Código de Posturas de 1845, as preocupações com os cortejos fúnebres e
os caixões para condução dos mortos estavam sob a mira das autoridades. O alvo
principal eram as irmandades e suas práticas - as irmandades católicas
utilizavam, nos cortejos, esquifes abertos, o que permitia certa exposição do
corpo: aos olhos preocupados das autoridades com as epidemias, a prática
deveria ser extinta, passando-se a utilizar caixões fechados.
Nenhum corpo de qualquer tamanho, e cor que seja será conduzido a
sepultura sem ser em caixão fechado, quando qualquer Facultativo
tiver declarado que a enfermidade do falecido fora contagiosa. A
administração da Caridade terá um, ou mais caixões, que servirão de
conduzir os cadáveres [...] Ficam extintos os Esquifes das
Irmandades, e substituídos por caixões fechados [...].47
O medo, principalmente da varíola, constituiu preocupação do Governo com as
medidas sanitárias e os cuidados com a higiene, assim como intensificou a
fiscalização sobre residências, lixo, águas servidas e a própria condução da
morte por parte das associações. O receio de uma nova epidemia chegou ao
extremo de proibir os "cortejos fúnebres que atravessassem áreas habitadas".48
A morte envolvia diferentes instâncias, para além do sagrado e dos preparativos
de cada sociedade em relação a ela.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, ainda denominada dos
Homens Pretos até 1905, recebeu influências das alterações sanitárias e da
Igreja, necessitando realizar mudanças em suas práticas para adequar-se às
novas regras mortuárias em vigência a partir de 1845, especialmente quando os
Códigos de Postura, baseados nas preocupações médico-sanitaristas e
higienistas, exigiam modificações para evitar contágios.49
A mudança de local do Morro do Vieira para o Itacorubi envolveu muitos
aspectos, dentre os quais, a divulgação em jornais informando que a
municipalidade solicitava que os responsáveis pelos corpos sepultados no
cemitério que funcionara desde 1841 fizessem a exumação dos cadáveres e
providenciassem a transferência para o novo local. O espaço em que se situava o
então cemitério fazia parte de novos interesses políticos, pois seria destinado
à construção da Ponte Hercílio Luz, que ligaria o continente à ilha de Santa
Catarina, possível apenas por barco ou balsa. Dada a urgência em construir esse
acesso mais facilitado à ilha e condizente com o processo de automobilização
ocorrido em inícios do século XX, medidas foram encaminhadas pela administração
da cidade, inclusive a retirada do cemitério do espaço central da cidade.
Publicou-se, então, em 25 de setembro de 1924, um edital com prazo de sessenta
dias para as providências cabíveis de remoção dos corpos. Caso os familiares
não cumprissem essa obrigação, as exumações seriam feitas pelo município.50
A reserva de áreas dentro do cemitério São Francisco de Assis para as
sete irmandades tem raízes históricas no século XIX quando da
construção do Cemitério Público no Morro do Vieira. As irmandades
receberam, por volta de 1841, da Câmara municipal de Desterro áreas
demarcadas dentro do cemitério para as suas necrópoles, já que haviam
sido proibidos os enterramentos dentro e ao redor das igrejas.
Diferentemente, a pequena comunidade alemã da cidade, quase todos
comerciantes protestantes, por sentir-se depreciada pelo tratamento
recebido pela comunidade católica, que lhes reservava espaços dentro
dos cemitérios destinados aos indigentes, decidiu comprar um terreno
ao lado da necrópole pública de uso restrito aos seus associados no
Morro do Vieira, hoje cabeceira insular da Ponte Hercílio Luz.
Interessada na desativação do Cemitério Público, a Prefeitura da
capital ofereceu, em 1925, às irmandade e a Associação da Comunidade
Alemã áreas dentro do extenso Cemitério São Francisco de Assis, onde
permanecem até hoje.51
Teria a Irmandade do Rosário providenciado a exumação de irmãos e irmãs
enterrados no cemitério público? Como procedeu? Pela documentação pesquisada,
essas indagações ficam sem respostas. Sabemos, no entanto, pelo estudo
realizado por Maristela dos Santos Simão, que o cemitério localizado no bairro
Itacorubi abriga atualmente ex-membros da irmandade, com cruz da irmandade
identificada com o letreiro I.B.N.S.R.S.B. (Irmandade Beneficente Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito, conforme passou a se denominar com a reforma do
compromisso em 1905).
No ossuário, sob a cruz, é pertinente pensar que alguns dos ossos ali
depositados remetam a pessoas sepultadas ainda dentro da capela, e que já
passaram, antes dali, pelo espaço ao lado da Igreja e pelo Cemitério Municipal
no Bairro Estreito.52
No caso das irmandades, havia um cuidado com os mortos e seus sepultamentos. Na
Irmandade do Rosário, muitos foram os associados falecidos cujos enterramentos
ocorreram por conta da associação e com todas as pompas possíveis, de acordo
com os direitos do morto e os cofres da agremiação. A morte constituía um
evento, pois, assim como os demais acontecimentos do ciclo da vida (nascimento,
crescimento, intempéries, etc.), estabilizava esse ciclo natural,
reestruturando a ordem. Tais acontecimentos eram vivenciados como práticas
mágico-religiosas, espetáculos da vida para os quais não sabemos a explicação,
mas sobre os quais criamos significados, inserimos expectativas e
reatualizações. A morte significa desordem em relação ao quotidiano; por mais
que seja esperada e preparada, indica uma ruptura. Assim, organizar o
"espetáculo fúnebre" reconstituía a ordem perdida, "ajudando os vivos a
reconstruir a vida sem ele [o morto]", significando positivamente o seu lugar
no mundo dos mortos. Como um dos fenômenos sociais, a morte e os ritos a ela
associados ligavam-se à tarefa de desvincular, desagregar o morto do domínio do
universo dos vivos e introduzi-lo no dos mortos.53
Os ritos fúnebres em culturas de matriz africana, assim como os demais momentos
de passagem - nascimento, casamento, ritos de iniciação, etc. -, são fundantes,
pois refazem tempos cíclicos, constituem fluxos contínuos, potencializando
vivências comunitárias. A morte, nesse caso, não significa o abandono de um
corpo inerte, inativo, mas reatualização de sua experiência de vida, no sentido
de celebrar seus feitos e sua memória. Essa forma de lidar com a morte utiliza-
se das experiências do morto para o funcionamento de suas comunidades, pois as
práticas ligadas à morte potencializam a vida, são significativas para o
estabelecimento da renovação, ressignificação e reatualização "de tudo" e de
"todos". Os vivos reunidos em solidariedade ao morto, "recuperavam algo do
equilíbrio perdido com a visita da morte, afirmando a continuidade da vida".54
Sendo um elo entre o mundo dos vivos e dos mortos, celebrar esse momento, essa
passagem, significava vivenciar a morte como capacidade de renovação de
equilíbrio que salvaguarda interações presente/passado das próprias tradições,
usos e costumes. Implicava o sentido de uma energia que circulava sob o regime
distinto das culturas ocidentais, isoladas e atomizadas nos sujeitos
individuais. Esse modo de experienciar a morte, como parte da vida e necessária
ao reestabelecimento do equilíbrio, é coletivo, constituído de valores e
saberes a serem preservados, decorrendo daí a importância de celebrar a vida e
a memória dos mortos, pois seus corpos não são considerados matéria inerte, um
cadáver apenas, como supõe a ciência ocidental. O corpo não se extingue no
momento da morte, pois sua função, a partir da passagem para o mundo dos
mortos, seria atuar nesse mundo para estabelecer, ou manter, o equilíbrio.
O corpo de uma pessoa possui sentidos, demonstra formas culturais e
compreensões de mundo, diferenciadas em cada cultura. É no corpo que se operam
mudanças, que se recebe o poder de alguma coisa ou de alguém, de um morto.55
Nele estão impregnados símbolos, resíduos, energias e códigos que se põem em
ligações múltiplas, dinâmicas. Quando o corpo sofre alterações, como em caso de
doença, ou mesmo de morte, as memórias e experiências vivenciadas pelo corpo
não se extinguem com o cadáver, em ditames da ciência ocidental.
Esses signos, codificações presentes no corpo precisam ser entendidos,
reafirmados e desenrolados em práticas, permitindo que a passagem do mundo dos
vivos ao mundo dos mortos seja adequada, e que a ordem natural de viver e
morrer seja mantida. O corpo, codificado segundo traços de sua cultura, é uma
linguagem que, afastada de reconhecimento e afeto (entendimento desses
códigos), não se sustenta.56 Talvez, as lógicas de sentido de culturas
africanas na diáspora, seus modos de reatualizar e ressignificar práticas,
tenham possibilitado ao corpo do morto adentrar o mundo dos mortos, auxiliando
na administração de energias do mundo dos vivos. Os ancestrais possuem papel
significativo na consolidação dessa transição, ritual e comunitária, em que a
morte não constitui experiência a ser vivenciada na solidão mas em conjunto.
Diante desse modo de ver o mundo, percebe-se uma disputa cultural com a Igreja
Católica, que afirmava sua
supremacia no tocante a estes assuntos [de morte], sendo sua visão de
salvação a ser seguida. Nesse modo de lidar com a morte, a Igreja não
demonstrava preocupação com o corpo, voltando seu foco apenas para o
cuidado da alma.
A morte estava dentro dos limites da religiosidade, circunscrita ao perímetro
da fé. "Nesse sentido, pouco importava o que era feito do corpo, considerado
mero invólucro da alma, da qual importava a salvação".57 Cumpre destacar que a
própria forma de compreensão do corpo morto, a ser velado e sepultado pela
Igreja dentro de seus preceitos, possui variações ao longo do tempo. Até as
primeiras décadas do Império, o corpo morto integrava o universo do sagrado,
pois corpo e alma estavam ligados. A própria preocupação com os ossuários nos
túmulos apontava que, quando chegasse o momento da ressurreição, o corpo "seria
recomposto em todo o seu esqueleto - o único a sobreviver à decomposição. [...]
Ao corpo morto também era atribuída uma função ou um papel no processo que
culminaria na ressurreição".58
O entrelaçamento entre corpo e alma era muito forte, envolvendo cuidados com a
saúde e cuidados com a morte, visto que um dos receios de ter o corpo insepulto
era de que a alma não encontraria a salvação. "A preocupação com o abrigo do
corpo morto nos sagrados templos católicos levou a que, em seu interior e seu
redor, os vivos convivessem cotidianamente com as várias sepulturas",59 prática
essa alterada na segunda metade do século XIX.
A visão cartesiana do mundo implicou alterações na forma de lidar com a relação
entre corpo e alma. O corpo virou cadáver, deixando de possuir significados
entrelaçados à alma. Essa perspectiva também foi incorporada pelas ciências
médicas do século XIX, tanto que os corpos mortos passaram a ser considerados
danosos aos corpos dos vivos, pois os miasmas emanados pelos primeiros
significariam doenças e epidemias para os segundos. Não à toa, cemitérios
passaram a ser construídos ou foram transferidos para regiões periféricas das
cidades.60 No entanto, a medicalização não implicou a concretização imediata de
alterações nas práticas das pessoas.
Para além dessa visão mais preocupada com a alma e sua salvação, as culturas de
matriz africana produziam seus corpos com códigos culturais, marcas de vida e
experiência. O corpo precisava ser cultuado, pois estava embrenhado de
vivências, saberes e práticas a serem transmitidas, repensadas e reatualizadas,
não necessariamente ligadas à ideia de alma e salvação atribuídas pela Igreja
Católica.
Assim como as festas compunham momento de reatualização, de estabelecimento da
ordem e sentidos para continuar as demais atividades do ano, também a morte,
sua celebração coletiva, seus sentidos, encontros e sociabilidades,
estabilizava os mundos. Vida e morte, choro e riso,61 sagrado e profano e
outras dicotomias impostas pela visão de mundo ocidental não constituíam
oposições nas culturas de matrizes africanas. Essas dicotomias foram incapazes
de explicar os modos de vida dessas populações, mas isso não impediu que formas
eurocêntricas de ver o mundo categorizassem, nomeassem negativamente e
usurpassem saberes e práticas julgadas por olhares racializantes. Cremos que
esses valores estiveram em constante conflito no século XIX e nas primeiras
décadas do XX, pois o modo de vida das populações de origem africana em
Desterro/Florianópolis não condizia com os "novos ares" republicanos nem com as
práticas exigidas pelo catolicismo.
A Figura_3, uma obra de Rugendas, em visita ao Brasil no século XIX,
possibilita percepções sobre como era conduzido o funeral de uma irmandade
religiosa organizada por africanos e seus descendentes.
[/img/revistas/afro/n50//0002-0591-afro-50-00129-gf3.jpg]
Figura 3 Johann Moritz Rugendas. Enterro de um negro na Bahia, c. 1830.Fonte:
<http://www.google.com.br/imgres?hl=pt-BR&client=firefox-
a&hs=W0b&sa=X&tbo=d&rls=org.mozilla:pt-BR:
official&biw=1358&bih=614&tbm=isch&tbnid=jO8KNd-iKhVybM:
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upoimagens4.html&docid=eo0EsfBf2sJVoM&imgurl=http://people.ufpr.br/
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1t:429,r:3,s:0,i:91>.
Percebe-se que todos estão descalços, sinal alusivo à condição de cativos dos
acompanhantes do cortejo, exceto o padre e alguns membros mais ao final da
procissão. À frente, segue um jovem carregando a cruz, acompanhado de dois
meninos conduzindo as tochas e um adulto, portando um estandarte indicativo de
um cortejo fúnebre, tendo em vista a caveira retratada na flâmula. O padre
parece ocupado em leitura da Bíblia, organizando as orações ao morto, carregado
num caixão aberto, logo atrás, por um grupo de homens. Ao lado do padre,
sacristãos, um deles utilizando um turíbulo e dispersando incenso. O corpo
aparenta estar coberto por uma espécie de mortalha cuja cor, tipo de tecido, ou
se possui algum indício de relação a um santo de devoção não é possível
identificar. Em seguida ao caixão, uma mulher e uma criança. Seriam a mulher e
o filho do morto, que parecem secar as lágrimas levando a mão ao rosto? Não
sabemos exatamente, mas são possibilidades diante de um momento quotidiano e
repleto de significados na vida e na morte. A pintura de Rugendas evidencia,
ainda, um cortejo organizado em alas distintas, compondo a apresentação do
morto ao seu destino, o mundo dos mortos.
Segundo o costume, vários componentes formavam as alas que davam ao cortejo um
andamento, ritmado pelos cânticos da condução do corpo do morto sobre o caixão
fúnebre. Fazia-se fundamental o preparo organizado pelos vivos para a passagem
do morto, porque, em se tratando de populações africanas e seus descendentes,
preparava-se o encontro com os ancestrais, diferentemente da ideia cristã de
"salvar a alma" do morto. Uma das formas de concretizar essa passagem era a
utilização de mortalhas adequadas, roupas que pudessem facilitar e embelezar
essa transição,62 que depois seriam guardadas por seus familiares.
De acordo com Reis, os tipos de mortalha compunham os desejos finais do morto e
o acompanhariam na hora da passagem. O tipo de mortalha ou roupa que cobria o
defunto variava bastante, não existindo um padrão, havendo "mortalhas brancas,
pretas, coloridas, vermelhas. Havia mortalhas que imitavam roupas de santos,
como a franciscana, as de várias invocações de Nossa Senhora, as de são João,
são Miguel, são Domingos, santo Agostinho, santa Rita, santa Ângela".63 Ao
analisar as vestes mortuárias de irmandades de origem africana na Bahia,
percebeu que, em muitos casos, a preferência dos mortos era pela mortalha
franciscana, uma herança ibérica, ou pela mortalha branca, cor funerária
utilizada no candomblé.64 "Vestir o cadáver com a roupa certa podia significar,
[...] salvação. [...] A mortalha falava pelo morto, protegendo-o na viagem para
o além, e falava do morto como fonte de poder mágico, mas também enquanto
sujeito social".65 Segundo interpretação do autor, as irmandades forneciam as
mortalhas aos irmãos pobres que, em geral, eram brancas, visto ser a mais comum
entre os pobres.
Aparentemente, as irmandades não tinham orientação definida quanto ao
tipo de mortalha usado por seus membros. Nenhum compromisso, por
exemplo, obrigava ou mesmo recomendava ao irmão esta ou aquela
mortalha. As irmandades negras forneciam mortalhas aos irmãos pobres
e a do Rosário das Portas do Carmo chegou a mencionar no compromisso
de 1820 que 'lhe dará pelo amor de Deus uma mortalha branca', a
típica roupa fúnebre de pobre.66
Enfim, conforme Mariza de Carvalho Soares, dada a preocupação com a morte,
muitos africanos e afrodescendentes, mesmo não possuindo bens materiais, faziam
"testamento para deixar ali registradas as condições de seu sepultamento". De
acordo com a autora, a preta Tereza de Jesus, forra mina, "casada com um preto
forro, é amortalhada no hábito de Santa Rita e sepultada em Santa Efigênia",67
irmandade de pretos do Rio de Janeiro. No entendimento de Reis, os africanos
tinham uma preocupação muito grande com os funerais para os seus mortos,
experiência que "adaptou-se à tradição luso-barroca de pompa fúnebre". Assim,
as irmandades acompanhavam e enterravam os seus mortos, rezavam por suas almas,
num projeto para o "além vida".68 Essa preocupação com a morte era algo
peculiar às irmandades, pois não apenas os ritos de passagem, como os funerais,
eram importantes, mas, "especialmente, as orações pós-morte pelas almas, que
eram consideradas fundamentais para que os irmãos alcançassem a salvação".69
Florinda Emericiana de Sousa, liberta, associada à Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito de Desterro/Florianópolis desde 1860, faleceu em 9 de
dezembro de 1911, ano em que os sepultamentos aconteciam no antigo cemitério, e
seu corpo seguiu, provavelmente, em cortejo até a sepultura em espaço destinado
à irmandade. Ao que tudo indica, Florinda teve um funeral digno de sua
participação e atuação na irmandade: procissão, enterro no cemitério da
associação, sinos repicando ao vento e informando a todos que a irmã do Rosário
falecera. A bandeira com a insígnia da irmandade seguia à frente, como
distintivo, e seus membros vestiam-se com as tradicionais opas brancas. As
tochas seguiam a iluminar o caminho do morto, os associados acompanhavam o
trajeto cantando, às vezes seguindo a banda musical contratada para o cortejo,
dependendo dos recursos disponíveis da irmandade. Florinda Emericiana de Sousa
talvez vestisse a comum mortalha branca, ou, quem sabe, tivesse optado por uma
mortalha associada aos seus santos de devoção. A irmandade costumava adquirir
muitos rosários, em parte para distribuição nas festas, durante as procissões e
celebrações, e também para uso em momentos fúnebres. Reis percebe algo
interessante no que tange ao uso do rosário amarrado às mãos do morto e os
significados de suas cores: "rosários pretos para homens e mulheres casados,
azuis para as virgens, brancos para as crianças, roxos para as viúvas. Entre as
mãos, uma vela acesa para iluminar os caminhos".70
Sobre o cortejo fúnebre organizado por irmandades de origem africana, Júlio
César Medeiros da Silva Pereira, alude a algumas práticas culturais e elementos
utilizados e/ou incorporados pelas populações de origem africana em seus ritos
fúnebres católicos na cidade do Rio de Janeiro:
O cortejo composto do padre, dos irmãos de irmandade, curiosos e
pessoas que acompanhavam, ia até a residência do morto. Dali, o morto
seria transportado para o local do sepultamento. As pessoas se
aglomeravam para observar a cena, um outro grupo composto pelos
irmãos da irmandade, conhecidos como transeuntes, acompanhava o corpo
inerte transportado numa esteira, sob o ritmo de uma fanfarra de
negros. O percurso deveria findar na igreja em que fosse acontecer o
sepultamento.71
Esses dados são valiosos por acompanhar o trajeto do corpo até seu destino. O
caso narrado enfoca um sepultamento que, normalmente, ocorria até meados do
século XIX, visto o destino final ser a igreja ou capela72 onde seria inumado o
morto, prática comum até meados do século XIX, quando as Posturas Municipais
criaram regras "mais higienizadas" para os enterramentos e cemitérios.73
Entretanto, o recorte temporal não impede que façamos aproximações com práticas
posteriores a esse período. O cortejo saía da casa do falecido, o conjunto de
pessoas - associados à irmandade, familiares, curiosos, conhecidos -
acompanhava a comitiva carregando o morto numa esteira ou esquife - comum às
irmandades -, caminhando ao ritmo entoado por uma fanfarra, ou banda, de
músicos africanos e afrodescendentes.
Marcelina Maria da Conceição, crioula liberta, morava na residência do senhor
Abel Ignácio da Silveira, quando, em 1866, aos 37 anos, matriculou-se na
irmandade. A mesma Marcelina aparece registrada novamente em 1905, na condição
de livre, quando entra para a beneficência, pois, ao que tudo indica, não
possuía mais condições de sobreviver por sua própria conta, talvez em virtude
da idade ou de alguma doença que a impossibilitava de trabalhar. Marcelina
estava, então, com 70 anos, e não há registros de onde residia. Talvez não
morasse mais na residência de Abel Ignácio da Silveira. Ela faleceu em 31 de
dezembro de 1908, aos 73 anos74 e teve seu funeral organizado pela Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, sendo sepultada no espaço da
associação dentro do Cemitério Municipal. "Para o transporte do féretro havia
toda uma infra-estrutura montada e especializada, que permitia o deslocamento
do cortejo fúnebre".75 As ruas chamavam a atenção pelo repique dos sinos, as
vozes a cantar, a banda de músicos a acompanhar a procissão com o corpo do
morto carregado no caixão pelos irmãos da agremiação. O caminho, até o
cemitério, passava pela Rua do Príncipe (atual Conselheiro Mafra), supondo-se
sua saída da capela da irmandade, conforme imagem disponível no mapa (Figura
4). A partir de 1925, quando os mortos passaram a ser sepultados no cemitério
do Itacorubi, o trajeto ficou mais longo, fora do perímetro destacado no mapa,
pois o novo cemitério ficava no sentido oposto ao Cemitério do Estreito.
[/img/revistas/afro/n50//0002-0591-afro-50-00129-gf4.jpg]
Figura 4 Trajeto de cortejo fúnebre com saída da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito a caminho do Cemitério Público do Estreito - destaque em
realce branco.Fonte: Mapa elaborado a partir da matriz disponível em Cardoso,
Negros em Desterro, p.65.
O funeral, antes de direcionar-se ao cemitério, realizava práticas litúrgicas
na casa do falecido e na própria capela da associação à qual pertencia. A
encomendação da alma era feita pelo pároco, na presença de conhecidos,
familiares e irmãos da associação, cujo rito envolvia música. Mas os
procedimentos não findavam no cemitério. Após o cortejo e o sepultamento,
cuidava-se dos resquícios deixados pela morte e, sempre que possível, rezava-se
pelos falecidos, mandando celebrar uma missa por sua alma.
Tendo saído o enterro, procurava-se apagar os rastros da morte em
casa. As roupas do defunto, especialmente suas roupas de cama e o
colchão (no que sono e morte aparecem associados), eram destruídas ou
jogadas fora. Varria-se a casa cuidadosamente, lançando a poeira pela
porta da frente, que permanecia semicerrada como sinal de luto e para
facilitar a saída da alma do morto, caso ainda rondasse por ali.76
Em importante trabalho sobre as irmandades de pretos em Pernambuco e no Rio de
Janeiro, Antonia Aparecida Quintão registra, de modo enriquecedor, os
procedimentos fúnebres destinados ao morto:
Em falecendo algum nosso irmão ou irmã [...] indo na nossa tumba se
tocará o sino e todos os irmãos que morarem na povoação e seus
arredores, sendo avisados pelo Procurador se ajuntarão na nossa
igreja, para que saiam em ordem acompanhando a cruz e guião com suas
opas brancas e tochas ou velas nas mãos e pela rua irão todos com
muita compostura e modéstia até a parte onde estiver o corpo do irmão
ou irmã defunta e daí irão com a mesma ordem até a igreja donde se
for sepultar.77
Era função do Procurador ou, em algumas irmandades, do Irmão Andador avisar a
todos o falecimento de um membro e chamá-los para o cortejo. O Compromisso da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Florianópolis, de 1905,
especificava, como função do Procurador de Caridade: em "caso de falecimento de
algum irmão, logo que receba aviso, comunicar ao irmão Juiz para este dar ordem
de fornecer o funeral por conta da Irmandade".78
A cruz e o guião (estandarte da associação que vai à frente às procissões e
demais atos importantes da agremiação), símbolos da associação, integravam a
solenidade, estando os Irmãos da Mesa Administrativa trajados com as opas
brancas destacando a distinção da irmandade, levando tochas ou velas nas mãos
durante o trajeto do préstito. Todo esse aparato em celebração à morte de um
membro simbolizava a concretização de uma "boa morte".
A boa morte significava que o fim não chegaria de surpresa para o indivíduo.
Esta seria uma forma de "morte bonita", em que morrer era um esforço coletivo.
O fim da vida não poderia ser uma experiência solitária,79 a preparação para a
morte envolvia, em vida, a coletividade de irmãos e irmãs, por ser uma situação
fundamental da vida, algo significativo nas vivências comunitárias das
populações de origem africana no seu universo cultural.
Saliente-se o papel fundamental da morte no equilíbrio dessas culturas, regidas
por tempos cíclicos - em que vida e morte fazem parte da vida -, porque seus
saberes e valores, tradições e códigos culturais são preservados, transmitidos
entre gerações. Até na morte, em sociedades mantidas em perspectivas de tempo
linear, forjados em sociedades de progresso e desenvolvimento (ocidentalizadas
e ocidentalizantes), visões de mundo europeias e africanas revelam seus
desencantos. No Ocidente, a morte é enxergada e cultivada como expressão de
finitude, superada em vida por si mesma, sendo os ritos fúnebres desfigurados
enquanto conexão entre vida e morte.
A Irmandade do Rosário dispendeu muitos recursos para atender às demandas
mortuárias e ritos fúnebres de seus associados. Estar com os anuais em dia era
um dos requisitos para ser enterrado como membro da irmandade e com as pompas
que ela possibilitava. No entanto, mesmo com esses recursos prévios pagos pelo
filiado, os gastos eram grandes: pagamento ao padre para a missa, pagamento ao
coveiro para a abertura da sepultura, compra de ceras, velas, flores e
pagamento ao capelão.
Em abril de 1900, a Irmandade dispendeu 18$000 (dezoito mil réis) para
pagamento do coveiro do cemitério pela abertura de sepulturas no "Cemitério
desta Irmandade, sendo 4 maiores e uma menor".80 Nesse caso, chama a atenção a
indicação do cemitério da irmandade. Tendo em vista que, nesse período, já não
se realizavam os sepultamentos dentro das capelas ou ao seu redor, é muito
provável que a irmandade seguisse a prática de enterrar seus mortos no
Cemitério Municipal.
Ter acompanhamento funeral, um lugar certo para sepultamento, sinos tocando,
orações, missas e rezas pela alma durante a passagem ao além-vida era
privilégio dos associados. Em vários capítulos dos Compromissos das
Irmandades,81 Quintão constatou a importância do sino para os confrades:
Cap. 13º Quando morrer qualquer irmão ex-Juiz, o Juiz mandará fazer
por ele os sinais, principiando pelo sino grande, e depois de empinar
quatro vezes entrarão os outros. Pelo Escrivão, Juízes brancos,
Juízas, Pessoas Reais, Bispo e General da capitania, também deve se
principiar pelo grande, porém só com duas vezes de empinado, e não
mais por pessoa alguma terá princípio pelo referido sino grande.
[...]
Cap. 28º (O rei) também será obrigado a fazer governador em cada
Nação, e os que vierem tomar posse nesta Igreja, e ao dito Rei no dia
de sua posse o receberá a Irmandade com repiques de sinos".82
Os sinos eram empregados em diferentes momentos da existência associativa,
sendo importante realçar a celebração da vida, da festa e da morte. "E, pelo
toque do sino em finados, ao longe, já se sabia que havia falecido um irmão do
Rosário, do Carmo ou do Santíssimo".83 Fazer soar os repiques dos sinos
funcionava como um aviso em locais comunitários, pequenas vilas. Ao longe,
ouvia-se o rufar do tambor e as vozes que contagiavam a curiosidade de alguns
viajantes, assim como os sinos cujos dobres emitiam sinais, identificavam a
morte e quem morreu. Anunciava-se, pelo toque do sino, a partida, e a
necessidade de organização comum para os encaminhamentos do morto ao mundo
além-vida. O sino transmitia a notícia, ao passo que as sinetas chamavam o povo
para o cortejo,84 pois eram utilizadas durante a procissão fúnebre,
anunciadoras da passagem do préstito por ruas e praças, até a chegada ao
cemitério.
Relacionando experiências afrodiaspóricas e africanas, Quintão retrata os sinos
como "emblemas de chefia política" utilizados por pessoas de elevado estatuto
social.
A relação entre os sinos e a chefia pode datar de antes do primeiro
milênio. Sinos redondos sem badalo encontravam-se em número
preponderante entre os bronzes produzidos ao sul da Nigéria, por
volta do século XV. Sinos quadrados figuravam nas insígnias usadas
pelos governantes do Benim no século XVI e nos altares erigidos aos
antepassados. Na África Central, sinos duplos como insígnias de reis
e da nobreza eram mais comuns e consistiam de 'dois sinos cônicos de
ferro de tamanho desigual'. Os sinos eram tocados pelos servidores
para anunciar a presença sagrada de um soberano e julga-se que a sua
função simbólica era de convocar os antepassados, estabelecendo
'campos de poder' à volta do rei.85
Ao que tudo indica, os sinos caracterizavam um ponto de tensão entre a
Irmandade do Rosário e as autoridades eclesiásticas, principalmente aquelas
reunidas nos sínodos diocesanos. Em 1910, quando se realizou o Primeiro Sínodo,
vários pontos foram discutidos pela Igreja Católica, ações que deviam ser
implementados para a concretização de seus propósitos. Muitas práticas
realizadas constantemente pelos leigos faziam parte das associações religiosas
em geral, as irmandades em especial, sendo, no entanto, desaprovadas pela
Igreja.
Essas tensões podem ser percebidas pelo uso dos sinos e, de certo modo, as
pressões eclesiásticas em relação às atitudes e formas de viver o catolicismo
experimentadas pelas populações de origem africana. Segundo norma do Sínodo
Diocesano de 1910, "não permitam os dobres a finados como sinais de festa, e só
nas cerimônias fúnebres ou na quaresma".86 A normativa proposta pela Igreja
voltava suas atenções ao modo como estava sendo vivenciado e praticado o uso do
sino em situações de morte. Assim, na visão do catolicismo - romanizado, mais
rígido e menos condizente com práticas exteriores de fé -, os dobres de sinos,
expelidos das capelas, quando da morte de algum associado da irmandade, não
deveriam manifestar uma possível celebração festiva para o morto. Mas, como
destaca Reis, "em nome da boa morte, os fiéis rompiam com as normas da Igreja,
que proibia os funerais noturnos, os insistentes dobres de sinos e música na
rua".87
As pessoas não compunham apenas as celebrações festivas de reis e rainhas,
Nossa Senhora do Rosário ou São Benedito, mas se faziam presentes nos festejos
fúnebres, exteriorizando no cortejo suas devoções e concepções de morte. A
morte portava um conteúdo público, a ser exteriorizado, demonstrado, vivido e
compartilhado, muito além de sua dimensão privada,88 particular. A procissão,
seguindo o caixão carregado pelos membros da irmandade, atraía pessoas,
instaurava uma situação adversa ao dia a dia, tal qual a festa, mobilizando
sentimentos e manifestações coletivas.
As sinetas chamavam os "admiradores" nas janelas, conhecidos, amigos, irmãos e
irmãs para seguirem acompanhando o préstito. Esse era o espetáculo, a
ostentação, a vivência e, não necessariamente, a inumação, o ato de enterrar o
cadáver. Isso, no entanto, não exclui a importância de onde sepultar o corpo,
pois o local de enterro também indicava uma condição. Ser enterrado em
cemitérios, por exemplo, enquanto a prática era a realização dos sepultamentos
nas igrejas e capelas, significava um descaso para com o morto, muitas vezes
sendo o destino de indigentes e cativos.
Segundo Pereira, muitos são os códigos culturais presentes nos rituais
mortuários nas mais variadas culturas, sendo o local de sepultamento carregado
de implicações simbólicas.89 No caso das análises realizadas sobre os
sepultamentos no Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro, local de enterro
de africanos recém-chegados oriundos das rotas do tráfico, o autor traz
indícios de práticas expressas na própria forma e posição como os corpos eram
inumados.
Por exemplo, a simples averiguação da posição dos caixões pôde
revelar a preferência escrava em serem inumados com a cabeça na
direção do norte. Sabemos que na África, muitos africanos foram
sepultados em posições diferenciadas dos demais, que indicavam o
momento particular da morte ou a posição social do morto. Desta
forma, mortos por relâmpagos, suicidas, abortos e mortos em batalha
possuíam tratamento mortuário diferenciado.90
Destacamos que tanto africanos como portugueses destinavam atenção especial aos
seus mortos, e isso resultou em formas de lidar com a morte e práticas no
Brasil. Para Reis, algumas preocupações assemelhavam-se, como a arte de banhá-
los, cortar o cabelo, a barba e as unhas, vesti-los com roupas adequadas à
ocasião ou com as mortalhas, conforme já mencionamos. Constituía objetivo
dessas cerimônia tornar a passagem para o além mais segura, alegre e
certificando-se de que a alma do morto completasse a transição, impedindo que
ficasse entre os vivos a atormentá-los.91 Lidamos com aspectos, formas, artes e
códigos de culturas diferentes,
próprias, revestidas de sentidos díspares, mas que foram amplamente
reapropriadas e reelaboradas por ambas as tradições. Não se trata,
pois, de simples aculturação nem assimilação de culturas, mas sim de
reelaboração de significados.92
Algo que chama atenção a partir das reflexões de Reis refere-se ao modo como
rituais mortuários africanos estabeleciam comunicação com o mundo dos mortos,
diferentemente das propostas da Igreja Católica, cujo discurso pautava-se na
salvação das almas. A constituição de um catolicismo diferenciado, múltiplo,
permitiu que, para além dos rituais católicos "oficiais", outras práticas
culturais, simbólicas, fossem efetuadas pelas populações de origem africana na
diáspora. "Os mortos ganharam mais importância no catolicismo popular, ainda
impregnado de fortes componentes mágicos e pagãos. Nessa tradição figuravam
como personagens poderosas, capazes de atormentar ou de ajudar os vivos".93
As celebrações constantes, demonstrando preocupação com os mortos, marcaram as
atividades da irmandade. Seu compromisso possuía um capítulo destinado aos
sufrágios de irmãos e irmãs.
CAPÍTULO XVII - DOS SUFRÁGIOS DOS IRMÃOS
Art. 29. Falecendo qualquer irmão que esteja quites com a Irmandade,
o irmão Procurador dará as providências necessárias, para o que
receberá ordens do juiz.
§1. A Irmandade deve acompanhar os corpos dos seus irmãos falecidos,
não só aos jazigos da Irmandade como a outros particulares.
§2. Qualquer pessoa que desejar ser sepultada nos jazigos desta
Irmandade dará uma joia de cinquenta mil réis, e terá direito ao que
diz o §7 do art. 28.
§3. Todos os filhos legítimos de irmãos até a idade de oito anos,
terão direito a ser sepultados nos jazigos da Irmandade.
§4. No caso de falecimento de qualquer pessoa que tiver o título de
benfeitor da Irmandade ou que deixar legado a esta, o irmão juiz
mandará fazer dobres de sino e rezar uma missa por sua alma.94
A missa pelas almas era prática corrente, no entanto, benfeitores tinham
direito a uma missa "sem custos", ou seja, um benefício dado pela irmandade em
gratidão às benesses oportunizadas pela benfeitoria do morto.
No que tange aos cargos mais importantes da Mesa Administrativa, Irmãs Juízas e
Associados beneméritos, os cortejos fúnebres deveriam ser organizados de forma
solene. As hierarquias existentes na confraria também implicavam pomposidade e
reconhecimento na hora da morte:
CAPÍTULO XIX - DOS FUNERAIS
Art. 31. A Irmandade terá um depósito na Igreja, com caixões
fúnebres, essa, velas castiçais e altar para colocar nas casas dos
irmãos que falecerem.
§único. Os irmãos que ocuparem os cargos de Juiz de Nossa Senhora, de
São Benedito, Secretário, Tesoureiro, Procurador e irmãos
beneméritos, assim como as senhoras que forem Juízas, terão o seu
enterro solene.95
Em 1906, faleceu Maria Felipa de Faria Veiga, irmã desde 1890. O custo do
pagamento de sua sepultura e mais a capinação do cemitério implicou em 22$000
(vinte e dois mil réis) para os cofres da associação. Talvez Maria Felipa
esteja na relação dos últimos associados a contar com a organização do funeral
aos moldes antigos da irmandade, pois, a partir de 1907, segundo ata do dia 6
de setembro de 1908, decide-se contratar uma casa fúnebre para auxiliar nos
enterros.
A Casa Funerária havia sido fundada em 1907, pela Liga Operária Beneficente de
Santa Catarina,96 uma associação multiprofissional organizada por operários e
fornecedora de serviços funerários, não apenas a seus associados mas a toda a
cidade. É interessante destacar que os serviços contratados pela irmandade à
Casa Funerária ficaram acordados em 36$000 (trinta e seis mil réis anuais),
conforme discutido em reunião da Mesa.97 Em comparação com os gastos do enterro
de Maria Felipa, quando a irmandade dispendeu 22$000 (vinte e dois mil réis), o
valor negociado com a Casa Funerária pareceu financeiramente adequado. Os
cuidados com a disposição do morto no caixão, o próprio caixão, e outros
componentes necessários ao ritual fúnebre seriam fornecidos pela funerária.
Velas, castiçais, vestimentas mortuárias, rosário para as mãos do finado,
decoração do caixão e tantos outros itens que se fizessem necessários poderiam
ser encomendados. Além disso, a condução até a sepultura também poderia ser
feita por conta da funerária.
Há uma gravura conhecida de Debret que apresenta um acontecimento fúnebre no
Largo da Carioca, no Rio de Janeiro no século XIX, com a condução do corpo por
uma carroça bastante luxuosa, com o séquito seguido por inúmeras carroças e
pessoas a pé.98 No caso do final do século XIX, em Florianópolis, o uso de
carroças ainda era muito frequente, tornando-se o carro funerário mais comum a
partir dos anos 1920.
Como proporcionar aos irmãos um enterro digno era tarefa da irmandade, muito
estranhamento deve ter causado o fato ocorrido em novembro "de 1922, em que
haveria uma romaria ao cemitério na qual a banda [Amor à Arte] acompanharia a
Irmandade do Rosário, porém tal evento não chegou a acontecer por falta de um
padre, conforme escrito no livro de presença".99
Como explicar esse acontecimento? O padre passou por um imprevisto? Como
reagiram os irmãos do Rosário ao saber que, após os preparativos para a
procissão ao cemitério, nada se concretizaria? Provavelmente, tiveram de
recorrer ao capelão para realizar os encaminhamentos, que tinha algumas
obrigações e que recebia para desempenhá-las, em compromisso assumido com a
agremiação: "Cabia ao Reverendo Capelão, comparecer a todos os atos da
Irmandade, acompanhar enterros de irmãos graduados e beneméritos, e celebrar
missas pelos irmãos defuntos".100
O evento da irmandade em que o padre não pôde participar foi cancelado às
pressas, desmarcando-se a solicitação enviada à Banda Amor à Arte, que, além
das festividades, era convidada a seguir acontecimentos ligados à morte e suas
celebrações. As marchas fúnebres tocadas pela banda "possuíam andamento lento e
caráter solene, sendo muito utilizadas no acompanhamento de enterros [...]
foram, após as marchas carnavalescas, as mais abundantes dentre as marchas
presentes no acervo"101 da banda. Outras bandas cumpririam, também, essa função
de animação nas procissões fúnebres? Quais bandas, orquestras ou grupos, e o
que tocavam? Havia alguma atividade performativa além dos instrumentos e do uso
do corpo para a música? Muitas são as perguntas para as quais não alcançamos
respostas, mas atentamos para algumas possibilidades.
Tal como as festas, os rituais de morte não eram eventos isolados. Envolviam a
vida quotidiana da associação, a mobilização dos sócios, aconteciam o ano todo.
É interessante perguntar por que justamente essas organizações mais africanas -
formadas por homens e mulheres africanas ou de origem - se aproximaram tanto da
preocupação católica do cuidado com a morte e com o sufrágio das almas. Como
bem ressaltou Cláudia Rodrigues, a devoção às almas enquanto prática católica
indica que o catolicismo compunha o universo cultural de muitos africanos e
seus descendentes na diáspora. Tanto os costumes transmitidos pelas culturas
africanas, como os oriundos do catolicismo se faziam marcantes nas experiências
cotidianas "das comunidades negras, uma vez que a complexidade das relações
culturais era dada pela constante apropriação e reapropriação dos códigos e
valores religiosos de diferentes tradições".102
A preocupação com a morte estava presente nos dois universos culturais que se
entrelaçaram numa celebração africana do catolicismo.103
Os negros combatiam pelo direito de celebrar a vida a seu modo. Mas
também de celebrar a morte. É conhecida a preocupação dos africanos
em promover funerais elaborados para seus mortos. Essa atitude
adaptou-se bem à tradição luso-barroca de pompa fúnebre. As
irmandades acompanhavam e enterravam em suas capelas os seus mortos,
e rezavam missas por suas almas, projetando para além da vida a
comunidade étnica terrena.104
No entendimento de Reis, o catolicismo e a constituição de uma identidade
étnica na diáspora possibilitaram o encontro de culturas distintas em torno do
interesse comum de bem cultuar seus mortos. Tradições herdadas das culturas
africanas e formas de lidar com o catolicismo se faziam presentes no cotidiano
das comunidades de origem africana em Desterro/Florianópolis, numa complexidade
de relações culturais com códigos e valores religiosos.
Considerações finais
Conhecer práticas culturais de populações de origem africana nessa cidade
localizada ao sul do Brasil, ainda hoje fortemente marcada pela ideia de uma
"Europa" ao sul do país, constitui-se fundamental para possibilitar, à
historiografia e aos cidadãos brasileiros, um diferente entendimento da
história deste pedaço "de terra perdido no mar", permitindo, assim, que
milhares de pessoas tenham direito à memória e à história. Os dizeres de Mara
Regina do Nascimento, ao explorar as transformações ocorridas em Porto Alegre
no que tange às crenças e comportamentos religiosos, a cidade, os mecanismos de
circulação em seu território e seus usos pelas pessoas nas vivências
cotidianas, permitem compreender as experiências aqui expostas.105 As versões
históricas disponíveis até a década de 1990 excluíam, minimizavam ou,
simplesmente, ignoravam homens e mulheres, no sentido de invisibilizá-los
ideologicamente.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, associação existente e
atuante na cidade de Florianópolis até os dias atuais, permanece com sua cruz
distintiva do espaço dessa agremiação no Cemitério do Itacorubi. Suas festas,
não enfatizadas neste artigo, deixaram de cobrir de alegria as ruas de
Florianópolis na década de 1960, quando, em 1968, realizaram sua última
procissão e festa "conforme o costume", ocorrendo, a partir daí, apenas
celebrações menos "pomposas" e, muitas vezes, realizando apenas uma missa como
solenidade em homenagem a São Benedito ou Nossa Senhora do Rosário. A irmandade
serviu de guia em nossos caminhos pela cidade, possibilitando-nos visões de
mundo, modos de sentir, pensar e organizar a vida prática de cada dia,
permitindo-nos vislumbrar uma Florianópolis mais plural, dinâmica e permeada de
diferentes atores sociais.
1A irmandade passou a ser assim denominada a partir da reformulação do
Compromisso, em 1905. Antes tinha a denominação "dos homens pretos", muito
comum à época e por serem os cargos da Mesa assumidos por esta "qualidade" de
homens. Durante a elaboração desse trabalho, perceberemos melhor essas
mudanças, não apenas no nome, mas no sentido da associação, cujo foco principal
passou a ser a beneficência.
2Consultar: Antonia Aparecida Quintão, Lá vem o meu parente: as irmandades de
pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (século XVIII), São Paulo:
Annablume/Fapesp, 2002; Catherine Vincent, Les confréries médiévales dans le
royaume de France - XIIIe-XVe siècle, Paris: Albin Michel, 1994; André Vauchez,
A espiritualidade da Idade Média Ocidental séc. VIII-XIII, Lisboa: Estampa,
1995; Alicia Bazarte Martínez, Las cofradías de españoles en la ciudad de
México (1526-1860), México, D.F.: Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad
Azcapotzalco, División de Ciencias Sociales y Humanidades, 1989; Thomas Calvo,
"Le blanc manteau de l'urbanisation sur l'Amérique hispanique (1550-1600)",
Perspectivas Históricas, n.5-6, (2000), pp.12-62; Penteado, "Fontes para a
história das confrarias: algumas linhas de orientação para uma pesquisa na
Torre do Tombo", Lusitania Sacra, 2ª série, v.7 (1995), pp.151-80; Pedro
Penteado, Arquivos de confrarias e irmandades: alguns pressupostos para o
sucesso de uma intervenção arquivística, in: Maria de Lurdes Rosa e Paulo F.
Oliveira Fontes (coords), Arquivística e arquivos religiosos: contributos para
uma reflexão(Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade
Católica Portuguesa, 2000), pp.163-88, <http://repositorio.ucp.pt/bitstream/
10400.14/7219/1/HRFS_4_Arquivista%20e%20arquivos.pdf>; Laurinda Abreu, O
Hospício e Irmandade de Nossa Senhora da Piedade, em Évora: uma experiência de
reclusão e controlo de pobres em Portugal, S/D, <http://ler.letras.up.pt/
uploads/ficheiros/4877.pdf>; Laurinda Abreu, "O papel das Misericórdias dos
lugares de além-mar na formação do Império português", História, Ciências,
Saúde - Manguinhos, v.8, n.3 (2001), pp.591-611, <http://www.scielo.br/pdf/
hcsm/v8n3/7646.pdf>; Isabel dos Guimarães Sá, "Justiça e Misericórdia(s):
devoção, caridade e construção do Estado ao tempo de D. Manuel I". Penélope,
n.29 (2003), pp.7-31, <http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_29/
29_04_ISa.pdf>; Caio César Boschi, Os leigos e o poder: irmandades leigas e
política colonizadora em Minas Gerais, São Paulo, Ática. 1986; Anderson José
Machado de Oliveira, "Devoção e caridade: irmandades religiosas no Rio de
Janeiro imperial (1840-1889)" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal
Fluminense, 1995); Lucilene Reginaldo, Os rosários dos angolas: irmandades de
africanos e crioulos na Bahia setecentista, São Paulo, Alameda, 2011; Fritz
Teixeira de Salles, Associações religiosas no ciclo do ouro: introdução ao
estudo do comportamento social das irmandades em Minas no século XVIII, São
Paulo, Perspectiva, 2007; Julita Scarano, Devoção e escravidão: a Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII, São
Paulo, Nacional, 1978; Maristela dos Santos Simão, As irmandades de Nossa
Senhora do Rosário e os africanos no Brasil do século XVIII, Lisboa
(Dissertação de Mestrado Universidade de Lisboa, 2010); Mariza de Carvalho
Soares, Devotos da cor: identidade étnica e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; Naiara Ferraz
Bandeira Alves, "Irmãos de cor e de fé: irmandades na Parahyba do século XIX"
(Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, 2006).
3Consultar Michelle Maria Stakonski, Da sacristia ao consistório: tensões da
romanização no caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homens Pretos - Desterro/Florianópolis (1880-1910), Itajaí: Casa Aberta, 2008,
pp.68-9; 109. Para maiores informações, consultar também: Élio C. Serpa, Igreja
e poder em Santa Catarina, Florianópolis, Ed. da UFSC, 1997.
4"Lucas Alexandre Boiteux, nas suas preciosas 'Notas para a História
Catarinense', diz que 'com Provisão de 6 de junho dêsse ano (1750) começou a
Irmandade do Rosário a erigir uma igreja', o que evidencia a existência da
Irmandade naquela data, com seu Compromisso e a devida aprovação eclesiástica,
tanto que se lhe permitia a construção da sua capela. Atendendo a que, na
época, os passos para a concessão da aprovação eclesiástica e real bem como
para a concessão do compromisso não eram possíveis com grande presteza,
demorando sempre as providências e muito mais ainda os transportes, a nossa
opinião é que a fundação da Irmandade remonta a época anterior a 1750, pelo
menos de um a dois anos" (Oswaldo Rodrigues Cabral, Notícia Histórica da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário, Florianópolis, 1950, p.3).
5"Segundo o atual provedor [falecido em 2009], Sr. Oscar Paulo de Souza, a
história da primeira capela de Nossa Senhora do Rosário data de antes de 1750.
Para ele esta seria a data de fundação da irmandade em caráter oficial, mas a
rústica capela já deveria existir desde 1728 pois por determinação do rei de
Portugal, o 1º pároco enviado para o Brasil foi Francisco Justo Santiago, em
1730 e este teria rezado missa na referida capela" (Sandra Makowieck Salles,
Débora da Rosa Lima e Marcelo Machado, "As igrejas e capelas de Florianópolis:
séculos XVIII e XIX" (Relatório de Pesquisa, Universidade do Estado de Santa
Catarina, Florianópolis, 1994).
6Consultar: Naiara Ferraz Bandeira Alves, "Irmãos de cor e de fé"; Maristela
dos Santos Simão, Lá vem o dia a dia, lá vem a Virge Maria. Agora e na Hora de
Nossa Morte" - A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homens Pretos, em Desterro (1860-1880), Itajaí: Casa Aberta, 2008; Karla
Leandro Rascke, Festas, procissões e celebração da morte na Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos em Desterro/SC (1860-1890),
Itajaí: Casa Aberta, 2010.
7Segundo trabalho de Mattos, interpretação incorporada também por Cardoso, ao
pensar as populações de origem africana em Desterro no século XIX: a cor estava
associada à condição social do indivíduo. Portanto, no entendimento de Mattos e
Cardoso: mulato era a pessoa de origem africana de pele clara; o termo pardo
significava o escravo descendente de homem livre (branco) ou nascido livre, mas
com as marcas da ascendência africana; preto designava a origem africana;
crioulo era o escravo nascido no Brasil. "Já a palavra 'negro' designava sempre
a condição cativa do indivíduo". Consultar: Paulino de Jesus Francisco Cardoso,
Negros em Desterro: experiências das populações de origem africana em
Florianópolis na segunda metade do século XIX, Itajaí: Casa Aberta, 2008; Hebe
Maria Mattos, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste
escravista, Brasil século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
8Fernando Henrique Cardoso, Negros em Florianópolis: relações sociais e
econômicas, Florianópolis: Insular, 2000, p.136.
9Cardoso, Negros em Desterro, p.69.
10Cabral, "Notícia histórica",pp.7-8.
11Cabral, "Notícia histórica",p.9.
12A cidade passou a se chamar Florianópolis a partir de 1894.
13Norberto Dallabrida, A fabricação escolar das elites: o Ginásio Catarinense
na Primeira República, Florianópolis: Cidade Futura, 2001, p.59.
14Trabalhamos com a noção de afrodescendentes ou populações de origem africana,
não no sentido de uma raça, mas enquanto grupos populacionais com suas
perspectivas de cultura, na tentativa de fugir dos "pesos" que termos como
"negro" pode carregar enquanto uma identidade entre pessoas das mais variadas
origens e experiências, possível homogeneidade e ideologia, o que não nos cabe
trazer neste texto. Percebemos, nos irmãos e irmãs do Rosário que vivenciaram o
espaço urbano de Florianópolis, muitos "dissabores" entre si, acontecimentos
que nos permitem interpretar diversidades e dinâmicas de identificação. Ao
pensar em populações de origem africana, despertamos para possibilidades mais
amplas, podendo inserir e tentar vislumbrar diferentes povos e experiências.
Consultar: Cardoso, Negros em Desterro; Antonio Sérgio Alfredo Guimarães,
"Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa negra de São Paulo e Rio de
Janeiro, 1925-1950", Revista Afro-Ásia, n.29/30 (2003), pp.247-69.
15Dallabrida, A fabricação escolar das elites, p.61.
16João José Reis, A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no
Brasil no século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
17Reis, A morte é uma festa, p.92; Mariza de Carvalho Soares, "Escravidão
africana e religiosidade católica (Rio de Janeiro, século XVIII)" (trabalho
apresentado ao Prêmio Silvio Romero, 1999, p.142.
18Reis, A morte é uma festa, p.75.
19Reis, A morte é uma festa; Cláudia Rodrigues, Lugares dos mortos na cidade
dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1997; James H. Sweet, Recriar África:
cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770). Lisboa:
Edições 70, 2007.
20Mara Regina do Nascimento, "Irmandades leigas em Porto Alegre: práticas
funerárias e experiência urbana (séculos XVIII e XIX)" (Tese de Doutorado,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006), p.109, <http://
www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8574/000581308.pdf?sequence=>.
21Cláudia Rodrigues, "Apropriações da morte católica por africanos e seus
descendentes no Rio de Janeiro setecentista", Cadernos de Ciências Humanas -
Especiaria, v.10, n.18 (2007), pp.427-67.
22Rodrigues, "Apropriações da morte", p.443.
23Reginaldo, Os rosários dos angolas, p.23.
24Reginaldo, Os rosários dos angolas, p.39.
25Reginaldo, Os rosários dos angolas.
26O período de fins do século XIX foi marcado pelo catolicismo romanizado ou
ultramontano, ação impetrada pela Igreja Católica a fim de controlar os
costumes do catolicismo dito tradicional (leigo) praticado, em especial, pelas
irmandades. O poder religioso, na ótica desse catolicismo, concentrava-se nas
mãos do clero, tendo os leigos, perda na autonomia e gestão das associações nas
quais atuavam como dirigentes. De acordo com Michele Maria Stakonski, "essa
estrutura devocional católica contava com pouquíssimos padres que lhes davam
assistência. Em Santa Catarina, o catolicismo sustentou-se por iniciativa de
poucos padres e muitos leigos nas direções de irmandades e confrarias
católicas. Os primeiros resquícios de catolicismo romanizado foram introduzidos
inicialmente nas áreas de imigração europeia na segunda metade do século XIX,
pelos próprios imigrantes e pelos sacerdotes que lhes davam assistência
religiosa" (Stakonski, "Da sacristia ao consistório", p.97).
27Segundo Riolando Azzi, o catolicismo tradicional ou barroco constitui-se
baseado no caráter leigo, popular e com manifestações públicas de fé, em geral,
sem muitos "controles" ou regulamentos sobre essas práticas devocionais, o que
muitas vezes era visto pela Igreja como profanidade. Como o próprio autor
destaca, esse catolicismo dito tradicional, popular é leigo, medieval, luso-
brasileiro, familiar e social, comporta compreensão limitada, pensada apenas a
partir dos parâmetros oriundos de influências lusas, com alguns indícios de
elementos indígenas e africanos, restringindo a compreensão, por exemplo, de
todas as manifestações de reisados e festas com ritmos, cores, performances e
instrumentos africanos ou de origens africanas. Ver: Riolando Azzi, "Elementos
para a história do catolicismo popular", Revista Eclesiástica Brasileira, v.36,
n.141 (1976).
28Em trabalho sobre o cemitério dos "pretos novos", Júlio César Medeiros da
Silva Pereira busca "desvelar práticas funerárias africanas" que possibilitem
compreender os motivos pelos quais cativos se filiavam às irmandades, visto que
muitos encontravam nessas associações uma forma de garantir enterro digno, um
sepultamento. "Cientes do falecimento de um irmão, caberia à irmandade
encomendar o corpo, preparar a mortalha adequada, o transporte e o sepultamento
com a presença de um religioso, assim como a missa e as velas" (Júlio César
Medeiros da Silva Pereira, À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro: Garamond/IPHAN, 2007, p.54).
29Reis, A morte é uma festa, pp.118-9.
30Rodrigues, Lugares dos mortos, p.196.
31Oswaldo Rodrigues Cabral, Nossa Senhora do Desterro. Notícia I,
Florianópolis: Editora da UFSC, 1971, p.503.
32Cabral, Nossa Senhora do Desterro, p.503.
33André Luiz Santos, "Do mar ao morro: a geografia da pobreza urbana em
Florianópolis" (Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina,
2009), p.354.
34Elisiana Trilha Castro,"Aqui jaz um cemitério: a transferência do cemitério
público de Florianópolis (1923-26)" (Trabalho de Conclusão de Curso,
Universidade do Estado de Santa Catarina, 2004), p.13.
35Nascimento, "Irmandades leigas em Porto Alegre", p.312.
36Para maiores informações a respeito, consultar: Elisiana Trilha Castro, Um
chão para cair morto: os cemitérios de imigrantes protestantes em Santa
Catarina no século XIX, Florianópolis, 2009, p.4, <http://
elisianacastro.files.wordpress.com/2009/06/artigo-elisiana-siepea.pdf>,
acessado em 15 de dezembro de 2012.
37Biblioteca Nacional, Jornal Aurora Fluminense, n.145 de 23/1/1829. "Sobre o
depósito de pretos novos e a necessidade de um cemitério" apud Pereira, À
florda terra, p.95.
38Santos, "Do mar ao morro", p.204.
39Ata da 2ª Sessão Ordinária da Assembleia Provincial de Santa Catarina. Jornal
A Regeneração, 07 de setembro de 1888, n.188, Desterro. Acervo da Biblioteca
Pública do Estado de Santa Catarina, Setor de Obras Raras.
40Para maiores informações a respeito, consultar: Elisiana Trilha Castro, Um
chão para cair morto: os cemitérios de imigrantes protestantes em Santa
Catarina no século XIX, Florianópolis, 2009, p.4, <http://
elisianacastro.files.wordpress.com/2009/06/artigo-elisiana-siepea.pdf>,
acessado em 15 de dezembro de 2012.
41Tabela de Registro de Irmãos (1816 a 1937). Acervo da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito.
42Para maiores informações sobre essas alterações na conjuntura política da
cidade e as tensões políticas oriundas dessa modificação nos grupos das elites
dirigentes, consultar: Dallabrida, A fabricação escolar das elites; Cardoso,
Negros em Desterro.
43"A partir da segunda metade do século XIX torna-se consenso entre as
autoridades médicas e governamentais de várias cidades brasileiras a
necessidade da exclusão dos cemitérios do perímetro urbano, inclusive os
cemitérios contíguos às igrejas, devido ao fato de serem facilitadores da
propagação dos miasmas culpados pelas epidemias. Começa, então, a criação de
cemitérios extra-muros [...]". Consultar: Edna Teresinha Rosa, "A relação das
áreas de cemitérios públicos com o crescimento urbano" (Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, 2003), p.33.
44Santos, "Do mar ao morro", pp.379-80.
45Jucieldo Ferreira Alexandre, "Quando o 'anjo do extermínio' se aproxima de
nós: representações sobre o cólera no Semanário Cratense O Araripe (1855-1864)"
(Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, 2010).
46Reis, A morte é uma festa.
47ALESC, Código de Posturas de Desterro de 1845. Capítulo Segundo, Artigo 9,
p.211. Lei n.222 de 10 de maio de 1845. Arquivo Histórico da Assembleia
Legislativa/SC
48Santos, "Do mar ao morro", p.372.
49Aliada aos cuidados sobre a localização do cemitério, lugar por onde poucas
pessoas transitavam ou em cujos arredores poucos moravam, a região da atual
cabeceira tornou-se ideal segundo médicos higienistas e políticos. Desterro
sentiu os horrores das epidemias na segunda metade do século XIX. A população
foi acometida, entre 1840 e 1841, por "febres cerebrais", deixando muitas
vítimas, em especial militares. "No primeiro ano dessa epidemia o Cemitério do
Estreito foi inaugurado e foram proibidos os enterramentos nas Igrejas da
cidade". "Esses anos de epidemias devem ter influenciado o código de posturas
da cidade aprovado em 1845, quanto ao conjunto de medidas médicas sobre higiene
e saúde e as medidas de sanidade urbana que o código continha. Um longo período
de epidemias de 'febres escarlatina e amarela' assolou a província durante os
anos de 1850 até 1853. Segundo Almeida Coelho (1877, p.178 e 179), mais de um
terço da população de Desterro foi atingida, o que fez diminuir a população. A
febre causou grande mortalidade no colégio dos padres jesuítas, o que, segundo
Almeida, foi a causa do fim do estabelecimento na província" (Santos, "Do mar
ao morro", p.356).
50Castro, "Aqui jaz um cemitério", p.30.
51Rosa, "A relação das áreas de cemitérios públicos", pp.45-7. As sete
irmandades mencionadas pela autora são: Irmandade do Divino Espírito Santo,
Irmandade Senhor Jesus dos Passos, Irmandade Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito, Irmandade Nossa Senhora do Parto, Irmandade Nossa Senhora da
Conceição, Irmandade do Santíssimo Sacramento e a Ordem Terceira de São
Francisco de Assis.
52Simão, Lá vem o dia a dia, lá vem a Virge Maria, p.102.
53José Carlos Rodrigues, Tabu da morte, Rio de Janeiro: Achiamé, 1983 apud
Rodrigues, Lugares dos mortos, p.173.
54Reis, A morte é uma festa, p.138.
55José Gil, Metamorfoses do corpo, Lisboa: Relógio D'Água, 1997, p.26.
56Gil, Metamorfoses do corpo, p.42.
57Pereira, À florda terra, p.88.
58Cláudia Rodrigues e Maria da Conceição Vilela Franco, "O corpo morto e o
corpo do morto entre a Colônia e o Império", in Mary Del Priore e Marica
Amantino (orgs.), História do corpo no Brasil(São Paulo, Editora da Unesp,
2011), pp.157-83.
59Rodrigues e Franco, "O corpo morto e o corpo do morto", p.170.
60Rodrigues e Franco, "O corpo morto e o corpo do morto", p.181.
61É interessante trazer a descrição do viajante Louis Choris, destacando uma
passagem em que comentava "negros dançando e chorando ao mesmo tempo", pois, em
culturas de origem africana, riso e choro, cantar e chorar ao mesmo tempo não
constituíam oposição. Consultar: Martim Afonso Palma de Haro (org.), Ilha de
Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX,
Florianópolis: Editora da UFSC/ Lunardi, 1996.
62Rodrigues, Lugares dos mortos, p.196.
63Reis, A morte é uma festa, p.119.
64Reis, A morte é uma festa, pp.117-8.
65Reis, A morte é uma festa, p.124.
66Reis, A morte é uma festa, p.127.
67Soares, "Escravidão africana e religiosidade católica", p.113.
68Reis, A morte é uma festa, p.16.
69Alves, "Irmãos de cor e de fé", p.86.
70Reis, A morte é uma festa, p.130.
71Pereira, À florda terra, pp.57-8.
72No Brasil, principalmente até a segunda metade do século XIX, o sepultamento
no interior das igrejas era costume. Ser enterrado próximo ao altar significava
ocupar um cargo importante na vida religiosa daquela capela ou irmandade. Esse
era o objetivo de muitos devotos quando de seu falecimento. De acordo com
Elisiana Castro, "os enterramentos cercavam os altares, as paredes, o chão de
capelas e matrizes e, quanto mais próximo aos santos e ao altar, mais desejado
era o local da sepultura. A crença que sustentava tal prática era a de poder
ser salvo, no dia do Juízo Final, por estar 'repousando' mais próximo do altar
sagrado. Estando o cemitério dentro das igrejas, o cotidiano da morte
prescrevia uma proximidade entre mortos e vivos, que também se dava por meio de
ritos, como a realização de cortejos e de velórios em casa, ritos que estão
caindo em desuso, sobretudo nos centros urbanos brasileiros". Consultar:
Castro, Um chão para cair morto, p.4.
73No entanto, como bem ressaltou João José Reis, a população reagiu a essas
medidas, pois o catolicismo vivido compreendia o espaço da igreja como sagrado
e, desse modo, ser enterrado nesse espaço conferia certo status e aumentava as
possibilidades de salvação da alma. A Cemiterada, conforme destaca o autor,
demonstra o significado dessa alteração na vida das pessoas comuns, habituadas
com o enterro nas igrejas e os sentidos dessa prática: "Pois o enterro nas
igrejas era visto como uma das estratégias de salvação da alma. [...] Com a
chegada da morte se preparava o morto para o funeral. [...] Os funerais eram
pomposos, e para isso contribuía o número de participantes no cortejo, de
padres, confrades, pobres, músicos, parentes, amigos e estranhos". Ver: Reis, A
morte é uma festa, em especial o capítulo 1.
74Tabela de Registro de Irmãos 1816-1937. Acervo da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Transcrição realizada por
Maristela dos Santos Simão e Michelle Maria Stakonski.
75Rosa, "A relação das áreas de cemitérios públicos", p.40.
76Reis, A morte é uma festa, p.132.
77Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da
Freguesia de Santo Antonio do Cabo, Pernambuco, 1765 apud Quintão, Lá vem o meu
parente, p.159.
78Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de 1905,
capítulo VIII - Atribuições dos irmãos Procuradores de Caridade. Acervo da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Transcrição da autora.
79Reis, A morte é uma festa, p.100.
80Livro Caixa 14 (1899-1906), p.14. Acervo da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito.
81Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo -
Salvador/BA (1820): "Quando qualquer irmão falecer, e for enterrado no ato da
Irmandade se convocará esta no maior número de que puder ser, e todos com suas
capas, e velas em duas alas com o Esquife, guião, e manga, irão buscar para a
capela onde será enterrado, e não faltará sair com o Esquife o Capelão, ou
outro sacerdote a seu rogo, e os Juízes com mais irmãos que poderem, e se
acharem no dito ato, cobrirão a Irmandade levando capas e tochas distintas".
Reginaldo, Os rosários dos angolas, p.200. Compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos de Ouro Preto - MG (1750): "Assim que falecer
algum Irmão ou Irmã, branco ou preto forro ou cativo, se fará logo saber ao
Procurador, ou Sacristão da Irmandade, o qual avisará logo esta, não só fazendo
com os sinos os sinais costumados para o enterro, e juntos que sejam, sairão
todos com suas opas brancas, levando o Sacristão, ou outro qualquer irmão
adiante a cruz, e quatro Irmãos a tumba da Irmandade e atrás de todos, irá o
Juiz de Nossa Senhora, ou outro qualquer dos mais santos, que presente se
achar, com sua vara, e levará à sua mão direita o Reverendo pároco Capelão, e
chegados à porta do Irmão defunto, entrará o Reverendo Pároco a encomendá-lo, o
que feito mandará o juiz meter na tumba o corpo do defunto, e postos os Irmãos
em duas fileiras com a cruz adiante, levantada, levarão o corpo até a
sepultura, que lhe estiver destinada em nossa igreja ou outra qualquer onde for
sepultado nesta vila, e o Procurador irá regendo a Irmandade para que vá com
toda modéstia, e compostura, que se requer em aqueles atos, rezando pela alma
do dito defunto". Reginaldo, Os rosários dos angolas, p.201.
82Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Recife, 1758 apud
Quintão, Lá vem o meu parente, p.195.
83Salles, Associações religiosas no ciclo do ouro, p.103.
84Parece-nos importante destacar essa passagem discutida por Mara Regina do
Nascimento. A autora possui uma visão restrita das práticas religiosas,
festivas e mortuárias realizadas por africanos e seus descendentes na Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário, São Domingos e São Benedito, incluindo as
manifestações culturais e devocionais dessas populações no mesmo universo das
irmandades organizadas por brancos. Para a autora, a irmandade organizada por
africanos e afrodescendentes era igual a irmandades construídas por brancos, o
que, em nosso entendimento, é equivocado, visto que tal ponto de vista exclui
universos culturais africanos e suas práticas na diáspora, apesar de estarmos
discutindo uma irmandade católica. Ver: Nascimento, "Irmandades leigas em Porto
Alegre".
85Jill R. Dias, África, nas vésperas do mundo moderno, Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa, Comemorações dos descobrimentos portugueses, pp.220-1 apud
Quintão, Lá vem o meu parente, p.156.
86I Sínodo Diocesano de Florianópolis, 1910, p.100.
87Reis, A morte é uma festa, p.139.
88Rodrigues, Lugares dos mortos, p.218.
89Pereira, À florda terra, p.97.
90Pereira, À florda terra, p.136.
91Reis, A morte é uma festa, p.90.
92Pereira, À florda terra, p.174.
93Reis, A morte é uma festa, p.90.
94Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de 1905,
capítulo XVII - Dos sufrágios dos Irmãos. Acervo da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito. Transcrição da autora.
95Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de 1905,
capítulo XIX - Dos Funerais. Acervo da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito. Transcrição da autora.
96A Liga Operária Beneficente de Santa Catarina foi fundada em 1891 e existe
até os dias atuais, alternando-se várias sedes localizadas no centro de
Florianópolis. Seu caráter era multiprofissional e um dos objetivos principais
estava no auxílio (a beneficência) aos seus membros. É interessante ressaltar
que dentre osassociados, estavam muitos estivadores e marítimos (trabalhadores
do porto), sapateiros, alfaiates, carpinteiros, pintores, marceneiros,
pedreiros, barbeiros, cigarreiros, costureiras, ferreiros, domésticas e tantas
outras profissões, muitas delas exercidas por populações de origem africana, em
sua grande maioria. Para maiores informações sobre a Liga Operária e sua
atuação, consultar: Rafaela Leuchtenberger, "O lábaro protetor da classe
operária": as associações voluntárias de socorros-mútuos dos trabalhadores em
Florianópolis - Santa Catarina (1886-1932)" (Dissertação de Mestrado,
Universidade Estadual de Campinas, 2009).
97Ata n. 21, Livro Ata 4 (1905-1914). Acervo da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito.
98Debret,Todas as pranchas originais de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil,
com legenda de Herculano Gomes Mathias, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1980.
99Alexandre da Silva Schneider, Sociedade Musical Amor à Arte: um estudo
histórico sobre a atuação de uma banda em Florianópolis na Primeira República
(Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado de Santa Catarina, 2011),
p.45.
100Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de 1905,
capítulo XIX - Dos Funerais. Acervo da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito. Transcrição da autora.
101Schneider, Sociedade Musical Amor à Arte, p.60.
102Rodrigues, "Apropriações da morte", pp.461-2.
103João José Reis, "Identidade e diversidade étnica nas Irmandades negras no
tempo da escravidão", Tempo, v.2, n.3 (1996), pp.7-33, <http://
www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg3-1.pdf>.
104Reis, "Identidade e diversidade étnica", p.16.
105Nascimento, "Irmandade leigas em Porto Alegre", p.343.
Received: August 21, 2013; Accepted: October 20, 2013