A dialética da modernização conservadora e a nova história do Brasil
A DIALÉTICA DA MODERNIZAÇÃO
A passagem das diversas formações sociais para a modernidade tem sido desde
sempre um problema a chamar a atenção dos cientistas sociais, consistindo, de
resto, em um tema formativo para a própria sociologia. Marx, Weber e Durkheim,
assim como a teoria da modernização e as alternativas a ela que a partir do
marxismo se apresentaram, todos emprestaram centralidade a essa questão. No
Brasil, uma ampla literatura a esse respeito foi articulada, uma vez que, na
verdade, ele tem sido crucial para o desenho da própria identidade do país,
nesse sentido reproduzindo questão que se põe em coordenadas mais gerais
através do mundo. Em particular, a história parecia crucial para que se pudesse
dar conta do presente do país, pois a explicação e a correção de seus
descaminhos eram percebidas como radicando em uma precisa identificação de seus
processos ' e taras ' formativos. Oliveira Vianna e Nestor Duarte, Sérgio
Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Raymundo Faoro, entre
tantos outros, debruçaram-se, assim, sobre nosso passado colonial e pós-
independência, buscando identificar aqueles elementos que acabariam por moldar
nossa passagem para a modernidade.
Uma das teorias mais bem-sucedidas na tentativa de analisar essas transições
para a modernidade, seja nos países centrais em que esta se originou seja nos
periféricos, que apenas de forma derivada foram empurrados para o mundo
moderno, foi elaborada por Barrington Moore Jr. (1966). Nessa abordagem, as
vias socialista revolucionária, democrática e autoritária foram identificadas
como três possíveis caminhos de chegada à modernidade. Esse foi um livro de
grande impacto no Brasil. Em especial, a última das três vias para a
modernidade parecia se encaixar perfeitamente com nossa trajetória. Em Moore
Jr., o grande exemplo do que chamou de "modernização conservadora"
era dado pelos Junkers alemães, que durante bastante tempo conseguiram
controlar a transição para o mundo moderno sem deixar de contemplá-la e
inclusive estimulá-la, sobretudo no que tange à industrialização, mas sem
perder tampouco o controle do campo e mantendo suas propriedades oriundas do
período feudal. No Brasil, os grandes proprietários agrários, que surgiram no
período mesmo de formação da Colônia e, deslocamentos não obstante, continuaram
preeminentes e poderosos durante o Império e a República, espelhavam aqueles
agentes originais da modernização conservadora. Reis (1982) estudou-a durante o
período do café, na República Velha, ao passo que Werneck Vianna (1976) se
concentrou no período pós-1930, aproximando o conceito de Moore Jr. daquele que
em Lenin definia uma "via prussiana" para o capitalismo, com
referência exatamente ao caso alemão.
De forma resumida, pode-se compreender o conceito de "modernização
conservadora" a partir das seguintes coordenadas. Primeiramente, a recusa
a mudanças fundamentais na propriedade da terra. Os grandes proprietários
manteriam, destarte, controle também sobre a força de trabalho rural, que não
seria capaz, portanto, de se libertar de relações de subordinação pessoal e de
extração do "excedente" econômico por meios mais diretos. Foi isso
que teve lugar na Alemanha e no Brasil, ao contrário, por exemplo, do que se
passou na Inglaterra, com a transição para uma mercantilização do trabalho
agrícola, ou na França e no México, com a revolução camponesa levando ao fim ou
ao menos a um profundo enfraquecimento da grande propriedade rural e ao
parcelamento da terra. Na modernização conservadora, as tradicionais elites
agrárias forçaram uma burguesia relutante e avessa aos processos de
democratização a um compromisso: a modernização fazia-se, sob a liderança e
levando muito em conta os interesses dos proprietários agrários, conformando-se
uma "subjetividade coletiva" centrada em um bloco transformista,
cauteloso e autoritário em suas perspectivas e estratégias.
No Brasil, a inelasticidade e o controle da fronteira agrária foram cruciais
para a subordinação das massas rurais. Por outro lado, abria-se espaço para a
industrialização e uma certa migração, cada vez mais acentuada, do campo para a
cidade. O baixo custo da força de trabalho podia ser garantido, contudo, pelas
limitações da fronteira agrícola1 e pelo controle político que se exercia sobre
a classe trabalhadora, mormente sobre o sindicalismo, o que se deu no Brasil
com recurso ao corporativismo estatal, de inspiração fascista. De modo geral,
pode-se dizer que a modernidade era paulatinamente implantada entre nós de modo
a impedir que um de seus elementos fundamentais, a liberdade, ganhasse muito
espaço. Era sobretudo fundamental minimizar os processos de
"desencaixe" que operavam nos planos individual e coletivo, liberando
a força de trabalho, conferindo cidadania, desvinculando os sujeitos da
subordinação e da vida presa a contextos específicos e fixos, reconfigurando o
espaço-tempo social que agora se tornava mais amplo, nacional, e agudamente
orientado para o futuro ' a modernização ', e prenhe, por conseguinte, de
possibilidades de mudança de vida (ver Domingues, 2002, esp. caps. 2 e 4). Se
imperava o que se chamou de "cidadania regulada" nesse período
(Santos, 1979), por outro lado, uma "tradição republicana", que
buscava mediar a incorporação progressiva das massas que emergiam para a vida
livre e para a política, foi um dos elementos que se destacaram nesse processo
(Werneck Vianna, 1991). Especialmente esta última não compôs um projeto claro e
articulado, levado a cabo por uma "subjetividade coletiva"
organizada, com identidade distinta e com forte intencionalidade, mas emergiu
sim como resultado de respostas que, a partir de tradições políticas herdadas
(ponto que elaborarei abaixo), vários agentes buscavam ante a modernização
marcada por extrema exclusão que esteve em curso ao longo do século passado.
Entretanto, uma dialética virtuosa forçou seu caminho no curso da modernização
conservadora. A incansável modernização do país, sobretudo ao longo do século
XX, implicou transformações de largo alcance. Em particular aqueles processos
de desencaixe alcançaram proporções radicais em solo brasileiro, ensejando mais
liberdade e autonomia para os indivíduos e coletividades que jamais
anteriormente. O sucesso do programa de modernização conservadoramente dirigido
minou as próprias bases do conservadorismo à medida que emergia um país cada
vez mais moderno, com indivíduos e subjetividades coletivas mais livres, menos
propensos a ser manipulados. As duas ditaduras que marcaram o século XX
brasileiro foram expressão das dificuldades dos núcleos dirigentes da
modernização conservadora em controlar esse processo. Durante a segunda delas,
que abarca o período de 1964 a 1986, este parece se ter, todavia, esgotado. A
modernização havia ido tão longe que não era mais possível manter o controle
sobre as novas subjetividades coletivas modernas e "desencaixadas"
que se consolidaram durante a vigência da ditadura militar. Um estudioso do
país refletiu desta forma a respeito do esgotamento do processo, do ponto de
vista dos interesses e das instituições políticas2:
"Em outras palavras, a essência da crise institucional
contemporânea define-se pelo fato de que o processo político real
deixou para trás, e muito longe, as instituições criadas há cinqüenta
anos. O corporativismo subdesenvolvido está em crise porque não
consegue conter mais encapsulado o processo nominal de competição
entre os diversos segmentos sociais. Ao mesmo tempo, ainda não se
desenham com clareza os marcos institucionais que irão balizar a
evolução histórica futura" (Santos, 1993:37).
O mesmo poderia ser dito sobre o que se passa no plano das escolhas pessoais,
do que se poderia chamar de "política da vida", das opções sexuais,
religiosas, da situação da mulher e dos jovens etc. Mesmo que em meio a
profundas desigualdades sociais, o grau de liberdade nessas áreas aumentou de
maneira exponencial e a pluralidade das formas de vida que caracteriza a
modernidade brasileira contemporânea é extremamente ampla (ver Domingues,
1999a, cap. 1; 1999b, caps. 5 e 7). Um relevante pluralismo societário foi
paulatinamente se aprofundando.
No que concerne à própria tese da modernização conservadora, há uma série de
dados que podem ajudar a visualizar melhor a monta das transformações pelas
quais o país passou ao longo do século XX. A mais óbvia é a que se refere à
distribuição da população, com uma importância acentuada das grandes cidades e
uma urbanização em todo caso avassaladora. Segundo Garcia e Palmeira (2001:41,
64 e ss.), baseados em dados do IBGE, a população urbana teria passado de 70%
em 1980 para 78% em 2000, culminando o que caracterizou aquele século
brasileiro como um generalizado processo de "desruralização" (termo
que colhem em Sachs). Não se trata de supor que a população rural desaparecerá;
isto é, não é o caso de aceitar simplesmente que a ruralidade estaria destinada
à erradicação. Na verdade, essa questão não está sequer em pauta aqui. Mas até
mesmo aqueles que, como Veiga, se opõem a essa tese e afirmam a continuada
importância do Brasil rural, admitem que, segundo dados do censo de 2000 do
IBGE interpretados de modo muito e espantosamente diferente do que aquele dos
autores citados acima, cerca de 60% da população do país viveria em cidades.
Isto precisaria, segundo esse autor, ser qualificado pela constatação de que,
dos municípios considerados, aqueles "indiscutivelmente urbanos"
tiveram seu peso populacional relativo acrescido, entre os censos de 1991 e
2000, de 54,6% para 56,8%, ao passo que o peso dos municípios
"essencialmente rurais" caiu de 32,5% para 30,4%, com aqueles
"relativamente rurais" mantendo seu peso estável, próximo a 13%. Nos
"municípios mais atraentes do Brasil rural", a população teria
aumentado mais de 30%, enquanto crescia 20% no Brasil urbano, e 15% no conjunto
do país (Veiga, 2001:101). Embora Veiga argumente contra a idéia de um
"êxodo" rural, que só se teria mantido no "âmbito dos três
estados sulinos" (idem:102), seu uso dos dados do IBGE, de todo modo,
indica claramente que aumentou o grau de urbanização do país e que boa parte da
população rural deixou de habitar o campo propriamente dito, mesmo se ainda
vive em suas cercanias urbanizadas. Se isto não significa abandono das
atividades agrícolas ' embora mesmo isso deva ser qualificado por elementos que
serão introduzidos abaixo, referentes ao tipo de ocupação não-agropecuária
dessa população rural-urbana ', não haveria como deixar de reconhecer que
relações de subordinação pessoal e o controle dos trabalhadores pelos grandes
proprietários de terra, na verdade, não têm como se reproduzir nessas novas
condições3.
Extraídos diretamente da página do IBGE na internet, os dados abaixo atestam
que, quaisquer que sejam as variações possíveis na interpretação do fenômeno, e
sem entrar em detalhes acerca da diferenciação entre diversos tipos de
município tal qual proposta por Veiga, ou pretender contestá-la, é altíssimo o
nível de urbanização do país ' com todas as conseqüências sociais e políticas
que se pode disso deduzir. Deve-se notar que, mesmo em um espaço de vinte anos
apenas, e no curso de duas décadas de difícil e parco desenvolvimento
econômico, há um acréscimo de quase 14% da população urbana, que em 2000
totalizava 81,25%.
Ainda segundo dados do IBGE, a população ocupada, em termos de distribuição nos
diversos ramos de atividade, inclui menos de um quarto dos trabalhadores no
setor agrícola, como se vê no Gráfico_2. É complicado desagregar esses números,
sendo preciso considerá-los de acordo com sua diferenciação interna, buscando
especificar em que medida a rubrica serviços não inclui trabalho relacionado ao
setor agrícola, e até que ponto a rubrica trabalho agrícola não inclui serviços
de fato não diretamente relacionados a tarefas típicas do campo. Argumentos que
caminham nessa direção logo serão apresentados a partir da leitura de
especialistas no tema. Grosso modo, contudo, esses dados apontam também para a
perda de influência dos setores agrários, econômica e socialmente.
As próprias características e o sucesso de uma iniciativa como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra ' MST falam a favor da tese do fim da
modernização conservadora no que tange a seus elementos centrais: ele
caracteriza-se como um movimento que congrega proletários, bóias-frias, em
suma, "[...] milhares de famílias rurais pobres que vagam pelos campos
brasileiros, à procura de ocupação e renda e, também parte dos assalariados
rurais [...]"; em outras palavras, compõe-se dos rebentos do novo padrão
de relações sociais que vige na agricultura brasileira hoje, ainda que
incorpore também pequenos proprietários, posseiros e arrendatários (Navarro,
2002a:195). A isso se soma, por um lado, o fechamento da fronteira agrícola e
de terras "livres" ' desde sempre, aliás, como observado acima,
problemáticas na história brasileira ' e a redução das formas de ocupação
agrícola, em virtude dos impasses e saturação, ao menos no curto prazo, da
produção agrícola, o que gera uma larga "população sobrante" que se
agrega ao MST. De certa forma, não é absurdo propor a tese de que o MST somente
tem a força e desfruta de extrema mobilidade espacial hoje porque os
trabalhadores rurais ' ora sem terra ' não se encontram submetidos ao arbítrio
pessoal e às formas tradicionais de mandonismo dos grandes proprietários
agrários. Os dados do Censo Agrário do IBGE, de 1996, indicam, em particular,
um reduzido número de arrendatários, parceiros e ocupantes no Brasil de hoje:
268.294 arrendatários, ocupando 8.649.002 hectares; 277.518 parceiros, ocupando
3.174.527 hectares; 709.710 ocupantes, totalizando 10.132.826 hectares; contra
3.604.343 proprietários, que ocupam um total de 331.654.891 hectares4.
Por outro lado, constata-se igualmente que grande número de atividades não
agrícolas determina, crescentemente, a "dinâmica das ocupações nas áreas
rurais do país", com as atividades agrícolas (amiúde de baixa
qualificação) respondendo cada vez menos, inclusive, pelo sustento de famílias
de pequenos proprietários: a agropecuária é fonte de apenas 32% da renda de
famílias rurais de assalariados e de 45% da de famílias rurais formadas por
pessoas que trabalham por conta própria ou de quem é empregador (Graziano da
Silva, 2001:39-43; Veiga, 2001:102; Navarro, 2002b:273). Isso contrasta com o
declínio acentuado do poder e da influência dos grandes proprietários, que
empobreceram e perderam também sua força política, o que se expressa, por
exemplo, em sua incapacidade de garantir políticas públicas e esquemas de
financiamento favoráveis, bem como no virtual desaparecimento da União
Democrática Ruralista ' UDR, sem prejuízo da manutenção em larga escala da
concentração fundiária no país, mas com forte inclinação outrossim favorável ao
agrobusiness "globalizado" (Navarro, 2002b:272; Delgado, 2001).
Assim, as relações de subordinação pessoal e de controle da força de trabalho
que imperavam no período anterior se desfizeram e um vasto processo de
"desencaixe" teve lugar, com um "reencaixe" coletivo desses
trabalhadores constituindo novas subjetividades coletivas, como cidadãos e
proletários, acompanhando a dissolução daquela situação anterior. Isso não quer
dizer que não haja sobrevivências no imaginário popular de um tipo de
cristianismo messiânico para o qual a posse da terra continuaria a ser
fundamental. Tampouco se deveria supor que os grandes proprietários de terra
não teriam logrado sobreviver, quando, na verdade, muitos conseguiram uma
conversão a um capitalismo modernizado no campo e, por vezes mesmo, à
agroindústria, perpetuando certa influência política que deriva de seu poder
tradicional, de sua riqueza e de seu peso social (Garcia e Palmeira, 2001). Em
suma, tanto do ponto de vista econômico quanto do político, o que se poderia
chamar de "revolução passiva" (que não é o mesmo que a
"modernização conservadora", conquanto se possa dizer que esta foi
uma forma de aquela se realizar durante longo período) se mantém vigente, com
adaptações "transformistas" dos velhos agentes à nova ordem. Isto é
verdadeiro quanto a esse ponto específico como ainda no que se refere aos
processos mais amplos de modernização do Estado e de sua direção, com, enfim, a
paulatina assunção de hegemonia e domínio por "elites" com origem em
São Paulo e nível variado de vínculo com a burguesia paulista, que cumpriu um
papel relativamente subordinado nas coalizões que se efetivaram no pós-1930.
Esses personagens assumem a linha de frente e a direção dos processos de
modernização ora em curso sem que tenha havido, entretanto, uma ruptura do
processo político e a perda do controle por parte do bloco dominante, ainda que
este se tenha reconfigurado em larga medida (ver Werneck Vianna, 1996). Uma
breve consulta às candidaturas e coalizões, no período que se seguiu ao fim do
regime militar e à redemocratização, clara e progressivamente demonstraria essa
mudança de padrão, seja com relação ao Partido dos Trabalhadores ' PT, seja no
que se refere ao Partido da Social-Democracia Brasileira ' PSDB e, de modo
geral, às forças que sustentam as principais candidaturas nos sucessivos
pleitos desde 1989. Isto não obstante a vitória de Collor naquele fatídico ano
' devendo-se notar, em contrapartida, que seu governo redundou em rematado
fracasso e no impeachment.
Se esses dados por si sós não dizem do quanto se tem, de fato, uma libertação
da população do controle exercido pelos "coronéis" e pelas
oligarquias locais (no modelo classicamente desenhado por Leal, 1976), convém
sublinhar que as teorias da sociologia política sugerem que mudanças políticas
associadas à urbanização e a transformações das estruturas socioeconômicas dos
municípios devem estar em curso nesse sentido (Soares, 2001), estando ligadas à
industrialização ou, amiúde neste caso, à agroindústria e à expansão do setor
urbano de serviços que gravita em torno às áreas predominantemente rurais.
Segundo mapas geoeleitorais (ver Romero et alii, 2000), que confrontam níveis
de desenvolvimento econômico e social, e de urbanização, com dados das eleições
majoritárias, de 1989, 1994 e 1998, é exatamente nas regiões mais atrasadas,
mais rurais, onde grassa o analfabetismo e se encontram baixos níveis de
"IDH" (o Índice de Desenvolvimento Humano, da Organização das Nações
Unidas), que os partidos conservadores se alicerçam. Mas esses mesmos mapas
teriam revelado um ' a meu ver falso ' "paradoxo", pois Fernando
Henrique Cardoso obteve expressivas votações em São Paulo, o estado mais
desenvolvido da federação, exatamente de acordo com os critérios utilizados por
aqueles estudos. Ora, trata-se exatamente do peso do PSDB, de suas máquinas
locais e de uma forma mais moderna de fazer política, ainda que incorpore
fortemente perspectivas e aliados conservadores tradicionais. Incluindo,
sobretudo, o Partido da Frente Liberal ' PFL e o Partido Progressista
Brasileiro ' PPB, além do Partido Trabalhista Brasileiro ' PTB, os partidos
conservadores são marcados por baixos níveis de disciplina partidária,
personalismo e clientelismo; a distorção do sistema representativo, no que
tange à federação, permite que estejam sobre-representados na Câmara dos
Deputados. Embora algumas mudanças nesse quadro possam estar em curso, esses
partidos, definidos como conservadores por suas perspectivas ideológicas
(principalmente por sua concepção autoritária de mundo e pelo neoliberalismo) e
estilo político, claramente concentram-se nas regiões mais subdesenvolvidas,
principalmente no Nordeste, e nos pequenos e mais pobres municípios; ademais,
capturam um eleitorado mais velho, mais pobre e com nível de escolaridade mais
baixo (Mainwaring et alii, 2000:13-14 e 58 e ss.). Ainda assim, nas eleições
presidenciais atuais, de 2002, o próprio candidato do PT, Luiz Inácio Lula da
Silva, teria, em princípio, conseguido penetrar inclusive nos pequenos
municípios, os chamados "grotões" (municípios com menos de 20.000
habitantes, nos quais obteria, em sondagens de junho de 2002, 36% dos votos),
onde até há pouco o controle do voto se mostrava infenso à penetração de
partidos de esquerda5, embora, é claro, convenha aguardar o resultado do pleito
para que se possa fazer ilações mais fortes nesse sentido.
Tudo indica que nos deparamos crescentemente com dois fatores cruciais, para
além tanto do controle do voto quanto da expressão individualizada de notáveis,
os quais, sem esquemas burocráticos fortes, operavam de cima os partidos (como
o Movimento Democrático Brasileiro ' MDB, no período de oposição à ditadura
militar): por um lado, com a independência do eleitorado e, por outro, com a
importância, através do país como um todo, da implantação das máquinas
partidárias. Estas funcionam nos moldes classicamente descritos por Weber
(1988:324 e ss.) ' isto é, como associações livres, burocratizadas e que buscam
recursos financeiros para tomar parte em "batalhas" eleitorais mais
ou menos livres também, sempre procurando recompensas pelos esforços nesta
direção envidados ', o que não implica, ele frisa, falta de crença e de
compromisso ideológico de seus quadros. No Brasil, hoje, isso se mostra, como
de resto Weber já observara no que tange à social-democracia alemã do começo do
século passado, de forma mais acentuada exatamente nos partidos mais à esquerda
e mais democráticos. E tem lugar, em geral, com alcance "oligopólico"
em termos da colonização do espaço político formal, possivelmente gerando os
impasses que esse tipo de institucionalização implica no mundo contemporâneo
(Santos, 1988, cap. 4). Isso não quer dizer que não seja possível o surgimento
de "lideranças" que não se assentem sobre o sistema constituído de
partidos, nem que o caráter altamente diferenciado do país não gere
incongruências e fragilidades no que tange aos partidos. A despeito disso, e
não obstante alguns lastimarem o que seria o baixo grau de institucionalização
do sistema partidário brasileiro (Mainwaring, 2001), bem como independentemente
de seu peculiar e elevado nível de fragmentação (Nicolau, 1996), creio ser
evidente que, tudo somado, uma modernização acentuada da política patentemente
encontra-se em curso, com suas vantagens e problemas, em estágio relativamente
avançado e sem prejuízo de suas peculiaridades.
QUAL MODERNIDADE?
Isto posto, é possível então dizer que o Brasil adentrou a modernidade de forma
definitiva. Ainda que a concentração da propriedade agrária permaneça em grande
medida, as instituições brasileiras são muito semelhantes às dos países do
centro do sistema global, com os quais compartilha a civilização moderna. Sua
dinâmica é em muitos aspectos aproximada à deles, seja em termos de processos
econômicos, tendências à juridificação, limites burocráticos do sistema
político, mudança, na direção de um distanciamento, das identidades coletivas
calcadas na pertença à classe operária, e daí por diante. Com isso, um autor
chegou mesmo a sugerir que este "[...] novo contexto permite pensar a
realidade brasileira como uma forma tão particular e específica como qualquer
outra de enfrentar os problemas de integração social e os dilemas da construção
democrática em sociedades capitalistas com economias cada vez mais
globalizadas" (Sorj, 2000:123). Esta afirmação captura de modo acurado um
aspecto crucial da evolução da sociedade brasileira nas últimas décadas, embora
seu próprio autor se distancie de uma perspectiva que vê na globalização uma
chave explicativa para toda e qualquer coisa. Evidentemente, contudo, o Brasil
continua sendo um país específico e não haveria sentido em pensar a
modernidade, mesmo em um país tão "ocidentalizado" como este, como se
meramente estivesse em curso aqui uma repetição da modernidade européia ou
norte-americana, como se, ainda que por caminhos tortos, chegássemos todos, no
fim das contas, ao mesmo destino. Fernando Henrique Cardoso (2002:8), com
indisfarçável referência aos processos políticos dos quais tem sido ele mesmo
um dos principais protagonistas, pergunta-nos, ao rever a obra de Sérgio
Buarque de Holanda, se não estaríamos assistindo à vitória de seus ideais, com
o declínio das oligarquias, do caudilhismo personalista, do irracionalismo
emocional do "homem cordial", com uma rejeição decidida do
"passado agrarista e iberista". Talvez isso seja mesmo verdade, mas,
mais uma vez, é bom qualificar essa afirmação, de modo a não sermos vítimas das
armadilhas, hoje mais disfarçadas embora decerto ainda menos sofisticadas, de
um tipo qualquer de teoria da modernização.
É sempre um pouco mais complicado pensar a modernidade entre nós, uma vez que
nascemos com o próprio Ocidente e temos estado estreitamente vinculados à sua
dinâmica, de forma dependente sem, entretanto, sermos de fato ocidentais (ver
Domingues, 1992). A influência do Ocidente (se bem que compreendido de forma
mais ampla que de costume, como logo veremos) é avassaladora, mas não há por
que imaginar que nossas instituições e universo hermenêutico (cognitivo,
normativo, expressivo e télico) são exatamente os mesmos que se encontram
naquelas regiões. Um exemplo específico pode ajudar a situar melhor a questão.
Em uma análise já clássica, Santos propôs, há alguns anos, a tese de que
encontramos no Brasil uma "dicotomia", um "híbrido
institucional". Um dos elementos cruciais deste híbrido seriam as
instituições da "poliarquia" (no sentido de Robert Dahl), que
implicam "elevado grau de institucionalização da competição pelo poder
(existência de regras claras, públicas e obedecidas) associado à extensa
participação política, só limitada por requisito de idade", ao que
subjazem os direitos clássicos democrático-liberais, a igualdade perante a lei
e o controle da agenda pública (Santos, 1993:81). Ao lado dessas instituições
poliárquicas, encontramos, todavia, um "hobbesianismo social
poliforme", ensejando, na prática e em alto grau, a "recusa" às
instituições poliárquicas, que não chegam, inclusive, a "alcançar extensão
considerável do universo social brasileiro", em termos de segurança,
proteção e previsibilidade (idem:89 e 93). Em lugar de retomar as análises de
Santos no que toca ao sistema político, gostaria de sugerir uma outra via, a
partir da qual creio ser possível avançar na direção de situar melhor a questão
da modernidade brasileira.
Nas ciências sociais, assume-se, com freqüência e muito facilmente, que o
mercado é, em tudo, semelhante ao que os autores da economia neoclássica supõem
que ele seja. Isto é verdade inclusive no campo marxista, que apenas introduz
como elementos adicionais em sua análise da questão a força de trabalho e a
mais-valia, uma mercadoria preeminente e um tema politicamente explosivo. Em
Habermas (1988:229 e ss., vol. 2), por exemplo, e aliás de forma condizente com
sua inclinação em direção a uma teoria da modernização bastante tradicional, é
precisamente essa a visão que encontramos: o que importa considerar é apenas a
troca pontual entre agentes econômicos (sempre tomados como indivíduos, mesmo
quando estes são empresas ou corporações), a partir de interesses discretos,
que, por outro lado, proporcionam a "estabilização" de expectativas
(isto é, equilíbrio na contingência) em uma economia funcionalmente
diferenciada e balizada por ações instrumentais (ou, mais precisamente,
"com propósito"). Com efeito, ele admite uma definição de normas que
fornecem parâmetros ao mercado (ver, também, Habermas, 1968), mas deste está
excluído absolutamente qualquer vestígio de "ação comunicativa". Com
isso, formas específicas de organização da economia, inclusive capitalista,
como as "redes" e, em especial, as hierarquias, bem como elementos
cruciais, como a "confiança", são de todo excluídos de sua abordagem.
Entretanto, é a eles que a sociologia econômica a partir dos anos 1990 vem
dando grande atenção, o que leva a uma reavaliação bastante abrangente do que
significa mercado, e pode e deve proporcionar uma visão muito mais sofisticada
e particularizada de suas operações (ver Domingues, 1999a, cap. 6). Afinal, o
mundo como um todo não pode ser reduzido aos padrões da economia neoclássica '
aliás, nenhuma área dele pode, como os desastres recentes da "corporate
America" vêm sobejamente evidenciando.
A economia capitalista possui instituições e configurações institucionais
diversas, dependendo do país e/ou região onde se desenvolve. As regras que a
regem, sua interpenetração com o Estado, as classes específicas em que se
calca, as relações entre capital e trabalho, os padrões culturais com que se
entrelaça, as motivações particulares que movem nela os diversos agentes, a
escala das firmas (subjetividades coletivas) e a estrutura interna de cada uma
delas, são elementos que devem ser sempre levados em conta ao analisarmos a
economia ou o "mercado" em cada coordenada específica. Como entender,
por exemplo, o capitalismo japonês sem atentar para a estrutura de clãs de sua
economia? Ou a Rússia, cujos mercados são dominados por diversas
"máfias"? Ou o Brasil, país onde as empresas familiares são ainda
hegemônicas? Sobretudo, para voltarmos ao "híbrido" institucional
brasileiro, como compreender o funcionamento de seu mercado, as regras que o
regem, as motivações das pessoas, se em grande medida aquelas regulações
decorrentes da poliarquia parecem não ser operativas em vastos setores do
tecido social?
Naquele mesmo texto, Santos (1993:113-114) faz referência a pesquisas que
indicam que a sociedade brasileira prima pela falta de confiança dos agentes
uns nos outros, cristalizando-se, assim, uma "cultura cívica
predatória". Em grande medida, esse parece ser o modelo de economia de
mercado brasileira, no qual vigem a malfadada "lei de Gérson" e o que
se costumava chamar de "capitalismo selvagem", termo que saiu de
moda, mas não, infelizmente, da prática social. Ou seja, temos, em larga escala
e em muitos âmbitos, uma economia capitalista não poliárquica, baseada em um
individualismo que percebe o sujeito como exterior às normas e tende a operar à
sua revelia. Isso resulta em uma competição mortífera e predatória, sem regras
e, a rigor, de metas duvidosas, pois que tendem ao curto prazo. Isso implica,
de resto, o que Machado de Assis há muito já assinalara como uma das
características da concepção da competição entre nós, consubstanciada no
sistema do "humanitismo", de Quincas Borba; nele, tamanha a predação
mútua, sobrava ao vencedor nada mais que as batatas.
Mas isso seria tão-somente uma caracterização negativa, a qual a adição do
conceito de "economia social hobbesiana" talvez não fosse capaz de
por si superar. Na verdade, trata-se antes de perseguir projetos de pesquisa
que nos dêem uma visão um pouco mais precisa do que se encontra em curso
socialmente na economia brasileira ' tema raramente abordado por nossa
sociologia, porém extremamente em voga na sociologia sueca ou norte-americana
ou mesmo francesa, como o patenteia o trabalho de Boltanski e Chiapello (1999).
Afinal, que tipo de rede encontramos hoje no Brasil apropriada à
complexificação do capitalismo contemporâneo que inclui, com certeza,
interseções dos mundos poliárquico e não poliárquico? Isso no que se refere à
dimensão cognitivo-analítica. Se nos voltarmos para a dimensão normativa, a
questão da especificidade repõe-se. Poder-se-ia supor que meramente abraçar
instituições poliárquicas resolveria o problema ' que se trata, por exemplo,
apenas de expandir os poderes e competências da justiça, como muitos parecem
inclinados a crer? Ou não se trataria, ao contrário, de apostar no
desenvolvimento de instituições societárias ou, talvez, sobretudo daquelas em
que se encontrassem Estado e sociedade e se realizasse a mediação de conflitos,
com o que um modelo mais específico de poliarquia poderia emergir?
Seria interessante considerar, nesse passo, mais uma vez a questão da passagem
a uma ordem poliárquica no Brasil. Na verdade, mais que uma dinâmica social
hobbesiana desbragada, o que possivelmente se divisa na sociedade brasileira
hoje é a evolução unilateral da herança ibérica, tão importante na formação
nacional. Antes de nos determos nela, quero, contudo, sublinhar que não se
trata em absoluto de uma herança exclusiva e única, tampouco unívoca. Muitos
outros elementos se misturaram na formação e ao longo da história do Brasil,
oriundos de muitas fontes. Traços comunitários e expressivos, conformando
diversos espaços de solidariedade e integração popular, foram incorporados e
emergiram no curso desse processo. Lutas populares, defensivas, visando à
preservação de espaços e modos de vida, por direitos ou por interesses
instrumentais, têm contribuído para a manutenção ou o surgimento de
"tradições" nacionais, cujas memórias são criativamente atualizadas
no cotidiano de largas camadas da população, gerando e reproduzindo laços de
solidariedade. A própria expansão colonial e a dinâmica do país após a
Independência fizeram outras possibilidades irromperem. Doutrinas, formas de
consciência e modos de comportamento são importados do Ocidente também desde há
muito e acabaram por deitar raízes e conformar memórias que, ademais, evoluem
ao longo dos séculos. Ainda assim, creio ser válido destacar essa herança
ibérica dos inícios da modernidade européia e de nosso processo de colonização,
cujas bases são neotomistas, as quais, ao vincularem-se à governação colonial
da expansão portuguesa na América, impregnaram a formação nacional, com pesos
variados de acordo com as diversas regiões do território, e coloriram inclusive
as outras tradições que para aqui vêm confluindo.
Assim é que, originalmente, durante a colonização, um Estado integrativo e
visto como responsável pelo bem comum se sobrepunha a um individualismo
particular. Diferentemente daquele tipo de individualismo oriundo do
protestantismo, que introjetava na consciência individual as normas sociais e
tornava o sujeito responsável por elas, esse individualismo de fermentação
ibérica percebia os sujeitos como livres perante as sociedades e suas normas,
as quais, logo, não introjetavam, o mesmo ocorrendo com o sentido de
responsabilidade moral, que se descarregava sobre o Estado, o qual, ele sim,
fornecia parâmetros normativos aos indivíduos, que lidavam com eles de forma
meramente cognitiva e, sobretudo, instrumental. A ordem, portanto, não é
considerada como dependente de cada um, mas sim daquela subjetividade coletiva
abrangente ' o Estado. Os sujeitos individuais introjetam com certa leveza as
sanções morais negativas, logo se comportam com facilidade ao arrepio da lei e
inclusive de certos preceitos sociais básicos, cabendo ao Estado, como agente
externo, operar nessa direção6.
O Império e a República, inclusive a referida tradição republicana,
incorporaram essa herança, não obstante a articulação conceitual do problema se
ter obscurecido ao desaparecerem os pilares explicitamente neotomistas em que
esta se assentava no momento de sua gestação (Morse, 1982; Domingues, 1995a;
1997; Barboza Filho, 2000, esp. cap. 6:440-443). A "modernização
conservadora" manteve-a em grande medida em seu horizonte, combinando-
a com um tipo de patrimonialismo societário e esquemas de controle e
subordinação pessoal baseados no "favor" (Franco, 1983), aliás,
novamente tão bem retratados por Machado de Assis em várias ocasiões. A
conjugação desses elementos permitia o controle das grandes massas rurais e das
populações urbanas a princípio pouco numerosas e autônomas. À medida que a
sociedade se complexificou, as crises sociais e políticas estalaram, com o
corporativismo apresentando-se como mediação entre Estado e sociedade, tanto
quanto forma de controle das cada vez mais numerosas massas urbanas, sobretudo
daquelas incorporadas ao mercado formal de trabalho, ao passo que enormes
parcelas dos "pobres" urbanos, marginalizados, eram de fato deixadas
ao deus-dará.
Com essa crescente complexificação e o avanço dos processos de desencaixe, não
só os mecanismos tradicionais de controle se mostraram incapazes de cumprir
suas tarefas, mas também o projeto e as estratégias de incorporação ao estilo
ibérico, pelo alto, se esgotaram. Tampouco esquemas baseados no
"favor" puderam reproduzir-se. As massas tornaram-se, aos poucos,
protagonistas crescentemente presentes da história do Brasil. O mesmo, contudo,
não poderia ser dito da perspectiva individualista anômica, que era a outra
face do binômio ibérico ' esta longe de se esgotar7. Assim, é provavelmente de
um híbrido semi-institucional que deveríamos em parte falar. Isso se desenha à
medida que as instituições poliárquicas avançam, seguindo uma trajetória
peculiar entre nós, como de resto por toda parte, sem que, em contrapartida,
aquele tipo de individualismo encontre âncoras institucionais. Se o Estado era,
enquanto entidade exterior aos indivíduos, e nesse sentido a qualquer noção de
cidadania, o responsável único e exclusivo pela integração e pela solidariedade
social, que instituições hoje poderiam cumprir esse papel, sem se restringir a
promover interesses e solidariedades particularistas, porém sem se remeter
direta e forçosamente ao Estado? Como tecer laços entre indivíduos que mantêm
uma relação ambivalente com as instituições, aceitando-as como universais ao
serem impostas de cima ou ao corresponderem a seus interesses particulares e
circunstanciais, estando sempre prontos, contudo, a transgredir as regras
sociais, se de seu interesse, e se não sofrerem sanções por parte dos poderes
externos que garantem a ordem coletiva? Diagnósticos e soluções são sempre
difíceis, arriscados e duvidosos. Mas aí me parece de fato radicar um problema
crucial para o futuro da história do Brasil.
PALAVRAS FINAIS
Não deveria soar estranha a hipótese de que, na verdade, o Brasil é um país com
certa dificuldade para criar instituições que favoreçam a solidariedade social.
É evidente que o individualismo predatório engendra padrões regularizados de
comportamento, calcados na falta de confiança e na imprevisibilidade das
relações sociais. Nesse sentido, tem-se claramente um desenho institucional, o
qual, aliás, se casa bem com a tendência à fragmentação social e a decadência
de concepções de responsabilidade individual e estatal, pelo menos na Europa e
nas Américas em geral. Instituições que substituam as ordens senhoriais e
comunitárias populares "tradicionais", assim como a cidadania
"regulada" da modernização conservadora, e proporcionem um mais alto
grau de integração social e solidariedade têm sido de surgimento mais raro,
principalmente no que concerne à espontaneidade da vida social sem
interferência direta do Estado. Quando este é o caso e uma criatividade social
voltada para a solidariedade e para a responsabilidade tem lugar, não devemos
de modo algum desprezá-la como momento fundamental e instituinte inclusive da
própria cidadania, desde que não se coagule em perspectivas exclusivistas e
particularistas. A solidariedade e a integração social dependem de modo direto
de muitas dessas instituições. Embora uma ação estatal mais sensível ao
contexto e à dinâmica social também deva ser contemplada, essa valorização da
capacidade criativa social mais ampla ajudaria provavelmente a superar a
situação recorrente em que o Estado tanto se esforça por regular a vida social,
tendo, contudo, que se contentar com resultados de baixa eficácia, porquanto
suas regulamentações, amiúde, não corresponderem a uma dinâmica social mais
consistente com suas pretensões normativas e legislativas (Santos, 1993:104). A
solidariedade e a integração social não podem senão sofrer por conta disso.
Ora, enquanto imperou a modernização conservadora, isso não foi um grande
problema. Por cima, a nova ordem, apesar dos arrivismos e malandragens, podia
contar com uma dinâmica ainda em grande medida baseada no conhecimento direto,
pois relativamente pouco diferenciada, sendo que os laços de família nela eram
(como ainda em parte o são) preponderantes, inclusive talvez no que concerne a
transações de maior monta. Por baixo, a exclusão para as margens dos grandes
centros garantia certo controle dos setores populares e total indiferença em
relação à dinâmica interna de seu mundo ' no qual instituições específicas de
regulamentação e controle ajudavam a fornecer parâmetros para a vida social
(ver Sousa Santos (1995) para a legitimação da propriedade da terra nas áreas
de favela). O mundo agrário tradicional respondia, por outro lado, pela
sociabilidade e pelas regras que ordenavam as práticas de um vastíssimo
contingente da população. Todavia, esse arranjo não tem mais como funcionar. O
que, diga-se de passagem, o aumento da violência e da criminalidade parece
atestar amplamente. Não quero dizer que não tem havido, ao longo da história
republicana do Brasil, a criação de organizações de tipo variado ' de
interesses, como sindicatos e associações patronais, de voluntariado e opinião,
ou de base popular comunitária. Tampouco se deve desconhecer o autoritarismo,
amiúde brutal, do Estado durante a maior parte desse período. Porém,
dificuldades e limites devem ser reconhecidos, sobretudo hoje, quando processos
profundos de mudança social demandam novas identidades e novas formas de
organização para que se logre um grau razoável de solidariedade e integração
social.
Os processos de desencaixe e a profunda complexificação social do país,
inclusive, mas não apenas, do ponto de vista econômico, com a diversificação e
pluralização dos agentes, nem de longe admitem respostas tão simplistas e
baseadas em instituições modernas "tradicionais" de cunho ocidental,
isto é, aquelas que emergiram e tiveram vigência durante a maior parte do
período moderno (sem prejuízo de uma possível refuncionalização, atual ou
prospectiva, de algumas delas, que não dão conta da dinâmica social inclusive
no solo social mesmo onde originalmente irromperam). Novas instituições são
necessárias e devem, acredito, florescer no solo social, contando ou não com a
mediação do Estado. De certa forma, mas com muitas especificidades, como as
sugeridas acima, compartilhamos essa dinâmica e necessidade de criatividade
social com os países do centro do sistema global moderno hoje. A radicalização
da modernidade, em geral, vem criando problemas e demandando respostas
inevitáveis e até certo ponto inadiáveis sobre aquilo que deveríamos chamar,
creio, de terceira fase, de "articulação mista" da modernidade
(Domingues, 2002, esp. caps. 9-11). Como cada país do sistema global lidará com
a complexidade social que se aprofunda é algo que necessariamente variará, sem
que se possa evitá-lo, entretanto. Se desconhecer a modernidade do Brasil
contemporâneo e o sucesso que coletivamente logramos em nossos projetos
conflituosos de modernização seria um grande erro, a adesão às noções
implícitas nas teorias tradicionais da modernização ' que proporcionam uma
imagem chapada do desenvolvimento histórico, que teria apenas uma via, direção
e ponto de chegada, estejam agentes incluídos (de maneira subordinada) ou não
nessa pintura ' pouco nos ajuda a resolver a questão. Decerto, as variações do
desenvolvimento histórico dependem das "rotas dependentes" que
derivam das "escolhas" que indivíduos e coletividades têm de fazer,
estejam ou não cientes disso. Heranças e memórias condicionam, contudo, como
isso ocorre e que respostas são vislumbradas perante cada encruzilhada do
cotidiano e da história.
Mais imaginação institucional será requerida tanto do Estado quanto da
sociedade brasileira no futuro próximo, uma vez que continuamos a sofrer dos
problemas da falta de modernização em certos campos, mas também daqueles que
derivam da própria modernidade, a qual se instalou definitivamente entre nós.
Como compatibilizar a liberdade com a igualdade e, sobretudo, com a
solidariedade e a responsabilidade em uma sociedade complexa, de instituições
deficitárias ' e muita desigualdade social ', põe-se como um dos grandes
desafios que o Brasil encontrará em sua história futura imediata. Que projetos,
conflitos e lutas sociais poderão levar nessa direção é algo ainda em aberto, e
que pode assumir múltiplas e variadas formas e perspectivas.
Pós-Escrito
Este artigo foi redigido entre julho e agosto de 2002, antes, portanto, do
primeiro turno das eleições deste ano. Os resultados destas confirmam, a meu
ver, plenamente as principais teses nele expostas. Quaisquer que sejam os
problemas e rumos do país daqui para a frente, parece agora definitivamente
claro que iniciamos uma nova fase da história do Brasil.
NOTAS
1. Ver Velho (1975), que discute exatamente o fechamento e o controle da
fronteira, e põe o caso brasileiro em uma perspectiva comparada.
2. Ao longo deste texto, de acordo com a tradição sociológica, irei referir-me
a instituições como modos regulares de interação social, os quais podem
assumir, ou não, feição formal (ver Domingues, 1995b:143).
3. Não quero aqui, de qualquer forma, entrar no debate acerca da viabilidade ou
não de modelos futuros de agricultura familiar no Brasil, uma vez que não se
relaciona diretamente com o tema deste ensaio.
4. Fonte: Brasil em Síntese, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
Censo Agropecuário (1995/1996). Levantamento Sistemático da Produção Agrícola.
Pesquisa Pecuária Municipal (www.ibge.gov.br). Devo assinalar, contudo, que
arrisco aqui a apresentação desses dados, extraindo-os diretamente das
informações resumidas do IBGE, porque os especialistas no assunto infelizmente
não apresentam, no curso de suas discussões e polêmicas, dados sintéticos e
amplos que pesquisadores que não trabalham diretamente nesse campo de estudos
possam utilizar com confiança e certeza de sua validade.
5. Segundo dados da pesquisa IBOPE/CNI de 12/6/2002 a 16/6/2002 (Fonte: O
Globo, 1/6/2002).
6. Do ponto de vista de uma sociologia weberiana das formas de consciência,
poder-se-ia sugerir que ao Estado ficava reservado um ativismo zeloso da
integração social; no caso do indivíduo, perante a sociedade como um todo, era
meramente a acomodação que se demandava e ele mesmo aceitava e visava como
norma de comportamento, ao passo que, no que tange à sua vida pessoal, um
ativismo forte, porém não ascético, voltado para o avanço de seus próprios
fins, organizava as perspectivas de vida e ação. A República em particular, mas
em parte já o Império, introduziram o "progresso" como o horizonte ao
qual deveria ser dirigido o ativismo do Estado. Várias concepções de mundo e
formas de luta populares transplantaram o ativismo, contudo, da esfera do
Estado para outras subjetividades coletivas, como sindicatos e associações de
cunho variado, o mesmo acontecendo por vezes com projetos e entidades burguesas
e de classe média. Para a formulação geral do "ativismo" e da
"acomodação", ver Weber (1920).
7. Outras formas de individualismo, inseridas no que, em linguagem
habermasiana, se poderia designar como outros "mundos da vida", como
as que se encontram em certas vertentes das religiões afro-brasileiras, parecem
adotar perspectiva semelhante no que tange à organização da vida social
poliárquica. Por outro lado, a vida comunitária evangélica parece responder por
sentimentos de comunidade e de solidariedade também fortemente presentes em
vastos setores da população, em formas modernizadas e não incompatíveis com
valores individualistas e voltados para a promoção da autonomia do sujeito, já
para não falar do aumento do pluralismo e da escolha religiosa como
representando mais liberdade, que advém exatamente dos referidos processos de
desencaixe.