A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático
contemporâneo
A
concepção corrente de "democracia", tanto no senso comum como no
ambiente acadêmico, está cindida em dois. De um lado, a idéia de "governo
do povo", que corresponde a seu significado etimológico; é a herança dos
gregos, que nos deram a palavra e parte do imaginário associado à democracia.
De outro, a democracia está ligada ao processo eleitoral como forma de escolha
dos governantes. O principal traço comum aos regimes que são considerados
democráticos é a realização de eleições periódicas e livres para o governo '
"livres" significando, em geral, a ausência de violência física e de
restrições legais à apresentação de candidaturas. Outras interferências sobre o
pleito, como o uso do poder econômico e o partidarismo da mídia, podem ser
vistas como prejudiciais, mas não a ponto de deslegitimar o processo.
O problema é que as duas faces do conceito de democracia se mostram, em alguma
medida, incompatíveis entre si. Em primeiro lugar, a própria instituição da
eleição era vista, da Antiguidade ao século XVIII, como oposta ao ordenamento
democrático, que pressupunha a igualdade entre os cidadãos e, portanto, devia
utilizar o sorteio como forma de escolha dos governantes (Manin, 1997; Miguel,
2000). Mais importante, porém, é o fato de que, em nenhum dos regimes hoje
considerados democráticos, o povo realmente governa. As decisões políticas são
tomadas por uma minoria, via de regra mais rica e mais instruída do que os
cidadãos comuns, e com forte tendência à hereditariedade.
Tudo isso está longe da concepção normativa que a palavra
"democracia" continua a carregar: uma forma de organização política
baseada na igualdade potencial de influência de todos os cidadãos, que concede
às pessoas comuns a capacidade de decidir coletivamente seu destino. Está
longe, também, da experiência clássica. Sobre a Atenas dos séculos V e IV a.C.,
é possível dizer que, em alguma medida, o povo governava ' se entendemos por
"povo" o conjunto dos cidadãos, isto é, com a exclusão da maior parte
da população (mulheres, escravos e metecos). As principais decisões políticas
eram tomadas pela assembléia popular, que era soberana. Não se está querendo
dizer que o modelo grego seja aplicável nas condições contemporâneas, ou que as
limitações no acesso à cidadania não tivessem importância política. Pelo
contrário, a exigência de inclusão, com a ampliação do conflito latente de
interesses no seio do demos, talvez coloque obstáculos ainda maiores à
replicação da experiência ateniense do que os decorrentes da expansão do
território e da população.
Também não se quer afirmar que na Ática não houvesse uma liderança com
influência desproporcional na condução dos negócios públicos. Apenas que,
naquele contexto, a palavra "democracia" designava um conjunto
específico de instituições voltadas, muitas delas, para permitir a participação
efetiva dos cidadãos na tomada das decisões políticas. Instituições como a
assembléia popular e o preenchimento de cargos por sorteio permitiam uma
presença muito maior do homem comum no processo decisório e obrigavam os
próprios candidatos à liderança a uma supervisão muito mais estrita dos
populares. Em especial, ninguém estava condenado a ser liderado, já que o
instituto da isegoria garantia a todos direito igual à fala no espaço
decisório, isto é, na ágora. Mais do que uma forma de liberdade de expressão,
tal como a entendemos hoje, a isegoria representava o direito de ser escutado
durante o processo de tomada de decisão1.
Já na democracia contemporânea, o povo é condenado à quase passividade. Exerce
sua "soberania" de tempos em tempos, no momento da eleição. Ainda
assim, limita-se a escolher entre as opções que lhe são apresentadas por grupos
organizados, já que o próprio sentido da representação política foi alterado,
destinando ao eleitor um papel reativo (ver Bourdieu, 1990:188). Parte dessa
distância entre as duas faces da democracia, a clássica (ou etimológica) e a
atual, pode ser creditada ao fato de os regimes democráticos contemporâneos
serem entendidos e vividos a partir de pressupostos ' sobre a natureza humana e
sobre a organização das sociedades ' emprestados de uma corrente teórica que
nasceu para afirmar a impossibilidade das democracias: a chamada "teoria
das elites".
Os fundadores dessa corrente, Mosca, Pareto e Michels, não escondiam sua
oposição aos movimentos democráticos e socialistas presentes na virada do
século XIX para o XX. Suas obras revelam a apreensão com a atuação desses
movimentos e buscam demonstrar que seus objetivos igualitários eram ilusórios.
Segundo eles, sempre vai haver desigualdade na sociedade, em especial a
desigualdade política. Isto é, sempre existirá uma minoria dirigente e uma
maioria condenada a ser dirigida, o que significa dizer que a democracia,
enquanto "governo do povo", é uma fantasia inatingível. Pois é
exatamente esta visão que, sobretudo a partir da teoria de Schumpeter,
publicada nos anos 1940, se torna a base da tendência dominante da teoria
democrática ' e penetra profundamente na concepção corrente sobre a democracia.
A ASCENSÃO DAS "MASSAS"
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, constituíram-se poderosas correntes de
pensamento político que afirmavam a possibilidade e a necessidade de maior
igualdade entre os homens ' pensadores como Rousseau, Fourier, Proudhon ou
Marx, que, de diferentes maneiras, propugnavam uma sociedade eqüitativa. Mas o
fantasma da igualdade não estava encarnado apenas em teorias. Na Europa,
começava a haver, de fato, uma democratização da vida social, sobretudo a
partir do momento em que a classe operária irrompeu com face própria na cena
política, com a Revolução de Fevereiro de 1848, na França. Antigos privilégios
foram questionados e perderam sustentação legal. O direito ao voto foi
paulatinamente estendido, até alcançar o sufrágio masculino. No campo das
mentalidades, os plebeus passavam a se considerar iguais aos nobres, a
deferência do povo em relação às classes altas diminuía. Em suma, as estruturas
aristocráticas foram sendo corroídas.
Uma das análises mais perspicazes do processo foi feita por Alexis de
Tocqueville, no clássico A Democracia na América, cujos dois volumes foram
publicados originalmente em 1835 e 1840. Tocqueville não era um simpatizante da
igualdade. Pelo contrário, como integrante da nobreza francesa e discípulo de
Montesquieu, valorizava o papel "equilibrador" que a aristocracia
desempenharia na sociedade. Mas ele via como inevitável o progresso da
igualdade, que parecia, segundo sua expressão famosa, comandado pela própria
Providência Divina. O avanço da igualdade era um fato durável, universal, imune
à interferência humana. Mesmo medidas voltadas para contê-lo terminavam por
auxiliá-lo (Tocqueville, 1992:6). Percorrer os Estados Unidos (a América do
título), o país onde a igualdade estava mais desenvolvida, era conhecer o
futuro da Europa.
Para Tocqueville, "igualdade" e "democracia" eram quase
sinônimos. Não é possível haver democracia sem igualdade; e a igualdade leva
necessariamente à democracia. Sem ser democrata, Tocqueville julgava ser
necessário aprender a conviver com a democracia, que seria o regime político do
futuro. Não interessa, aqui, discutir a acurácia da descrição que o nobre
francês faz dos Estados Unidos do século XIX ' um país bem menos igualitário do
que ele afirma, a começar pela presença da escravidão, instituição sobre a qual
discorre, mas que parece julgar que está "à parte" na sociedade
estadunidense. O importante é que A Democracia na América apreendeu o movimento
de democratização existente no seu tempo e projetou sua irresistível vitória
final, em um quadro apavorante para aristocratas mais inquietos do que seu
autor.
É nesse momento, quando a desigualdade é questionada, que se reerguem as vozes
dos que afiançam que ela é "natural" e "eterna" ' o que
talvez seja a definição mais simples do elitismo. No seu sentido corrente, o
elitismo pode ser descrito como a crença de que a igualdade social é
impossível, de que sempre haverá um grupo naturalmente mais capacitado que
deterá os cargos de poder. Não se trata de idéia nova: o sonho de Platão na
República, com a divisão de castas (de acordo com a capacidade de cada um),
reflete essa visão, bem como a crença de Aristóteles na existência de
"escravos por natureza". A palavra "natureza" é crucial:
para o elitismo, a desigualdade é um fato natural. Isto está na raiz da atração
que o pensamento elitista tem sobre aqueles que ocupam posições de elite. Em
vez de estarem nessas posições como fruto do acaso, de contingências ligadas à
estrutura da sociedade, seriam recompensados por seus méritos intrínsecos.
Se uma pessoa pensa que tem acesso a determinados bens materiais ou culturais,
inatingíveis para boa parte da população, como uma recompensa por suas
qualidades intrínsecas, isto lhe dá um reconfortante sentimento de
superioridade, acompanhado do desprezo pelos que não são tão bons. Ela poderia
pensar diferente; que estar na universidade, por exemplo, em um país de
analfabetos, significa que foi privilegiada por uma série de circunstâncias ' e
então, em vez da sensação de superioridade, poderia vir um sentimento de
responsabilidade social. Mas é muito mais gratificante, para o indivíduo que
pertence à elite, olhar para o balconista da loja, para o operário, para o
engraxate, e pensar "puxa, como eu sou superior" do que refletir que
um pequeno acidente de percurso poderia inverter as posições.
A fruição estética é extremamente importante para gerar esse sentimento de
superioridade: o intelectual que lê Proust e ouve Bach menospreza a massa que
consome programas de auditório e livros de auto-ajuda. Isso seria fruto de uma
sensibilidade mais apurada, inata. Daí provém o fascínio que muitos artistas e
escritores sentiram pelo elitismo, inclusive em sua versão mais extrema,
fascista. Pound, Eliot, Yeats, Dalí, Céline, Knut Hamsun são apenas alguns
nomes de uma longa lista. Há um poema de D. H. Lawrence que reflete bem essa
postura; um dos versos afirma: "A vida é mais vívida em mim do que no
mexicano que conduz minha carroça". Não é (como poderia ser) uma discussão
sobre a desigualdade social, sobre os bens materiais e culturais a que Lawrence
tinha acesso, e que enriqueciam sua vida, e o carroceiro não. É uma exaltação
da própria superioridade intrínseca, como o início do poema deixa claro,
comparando a "vividez" da vida em diversas espécies animais e
vegetais. A diferença entre o poeta e o trabalhador mexicano, portanto, seria
tão natural quanto a que separa o dente-de-leão da samambaia ou a serpente da
borboleta2. No entanto, a sensibilidade estética também não é um dom
"natural", mas algo fabricado; mais ainda, a diferença de
sensibilidade estética é socialmente usada como forma de construir as
distinções sociais (Bourdieu, 1979).
Lawrence escrevia no começo do século XX. O final do século XIX e o início do
seguinte foram momentos em que o elitismo de boa parte dos intelectuais se
mostrou mais evidente. Não por acaso, é o período em que a ameaça de uma
vitória política das classes trabalhadoras é maior (entre, digamos, a Comuna de
Paris, em 1871, e a acomodação social-democrata com o capitalismo, nas décadas
que se seguiram à Primeira Guerra Mundial). Mais do que a simples afirmação da
desigualdade, os escritos da época revelam ódio contra a "plebe
ignara" e um marcado sentimento de distância, como se pertencessem a outra
espécie.
À parte os teóricos políticos das elites, que serão analisados na próxima
seção, dois pensadores canalizaram e expressaram com especial nitidez essa
apreensão das classes altas: o alemão Friedrich Nietzsche e o espanhol José
Ortega y Gasset. Um autor simpático a Nietzsche definiu seu pensamento político
como sendo uma "justificação complexa e incomum" da exploração, da
dominação e da escravidão (Ansell-Pearson, 1997:19); para John Rawls (1997:
359), ele é um exemplo da vinculação ao "princípio da perfeição",
isto é, a idéia de que a sociedade deve se organizar de forma a permitir que os
"grandes homens" realizem obras excepcionais. Já Ortega y Gasset
(1987) vê a civilização ocidental ameaçada pelo nivelamento social, a
"rebelião das massas", como diz o título de seu livro mais famoso.
O primeiro ponto relevante da filosofia de Nietzsche é seu irracionalismo. Por
que valorizamos a verdade?, ele pergunta. Por que a inverdade ou a incerteza
não são melhores? (Nietzsche, 1992:9) É a reação contra o Iluminismo; os homens
do final do século XIX começavam a perceber que o império da razão não era
libertador, como acreditavam os filósofos iluministas; que muitas injustiças
podiam ser desculpadas com argumentos racionais. O estilo de Nietzsche é
coerente com sua recusa da razão. Ele é obscuro, metafórico, ambíguo porque
busca atingir não (ou não prioritariamente) a razão dos leitores, mas seus
instintos e intuições. No lugar da razão, Nietzsche vai colocar, como
fundamento que deve guiar as ações humanas, a vontade: a vontade de poder (ou
vontade de potência, de acordo com a tradução). É o princípio afirmativo da
vida, o desejo que todos têm de se impor diante do meio (necessariamente
hostil). Para o filósofo alemão, o objetivo que guia a ação dos organismos
vivos ' ou das sociedades ' não é a mera autoconservação, como muitos pensaram,
mas a busca da própria superação, o "tornar-se mais" (Nietzsche,
1918, vol. 2:121-136). Em seu sistema moral, esta vontade não é apenas o
princípio da vida, mas a qualidade que concede o direito à própria vida.
Contentar-se com a permanência é trair esse impulso vital básico.
Ocorre que alguns homens teriam mais vontade de poder e, portanto, deveriam
governar. A maioria, menos dotada dessa qualidade, seria medrosa e não
conseguiria impor sua vontade. Só lhe restaria obedecer. Assim, para Nietzsche
(1992:103), a sociedade é naturalmente dividida em vencedores e perdedores, e a
democracia é uma aberração, uma "decadência ou diminuição" do homem.
Ela significa que a maioria fraca e covarde vai impor sua vontadezinha medíocre
sobre os grandes homens, cuja poderosa vontade deveria triunfar. É
"imoral", ele diz, julgar que todos são iguais, que as mesmas regras
valem para todos: a hierarquia precisa ser respeitada. Além de uma aberração, a
democracia é um contra-senso, pois os fortes de vontade de poder jamais se
submeteriam à maioria medrosa. Apavorado com a ameaça de nivelamento social,
Nietzsche parece não perceber que, de acordo com seu raciocínio, ela é
impossível, sob qualquer aspecto.
Uma solução parcial para essa impossibilidade está no fato de que, junto com o
avanço da democracia, vem a disseminação da moralidade ' que ele define como
sendo "o instinto de rebanho no indivíduo" (Nietzsche, 2001:142). Os
fortes não podem se guiar por regras morais de bondade ou altruísmo, já que
devem estar comprometidos apenas com a própria vontade do poder. Sua
característica distintiva é a capacidade de "deixar sofrer"
(Nietzsche, 1992:102). Nesse sentido, estão "além do bem e do mal"3.
A imposição da moral convencional, necessária apenas "para o
rebanho", sobre o puro egoísmo dos superiores mina sua vontade de poder,
portanto destrói as bases de sua superioridade e da hierarquia social.
No entanto, a exigência da universalização da moral convencional mostra que os
fracos não estão mais tão submissos quanto deveriam, e desejam impor condições
a seus superiores. É aquilo que Nietzsche chamou de "revolta dos
escravos", e que ele indicava como o grande problema da época. Os fortes
precisavam mostrar que sua vontade de poder não havia fraquejado e esmagar essa
revolta.
É evidente que Nietzsche não era nazista, até porque seria um anacronismo. Mas
não é possível negar que seu pensamento foi apropriado pelos nazistas por ser,
em grande medida, compatível com o hitlerismo. A idéia da "vontade de
poder" inspirou a geopolítica de Ratzel e Kjellen, que viam o Estado como
um organismo vivo e, portanto, querendo "tornar-se mais". Isto, por
sua vez, inspirou a doutrina nazista do Lebensraum, o "espaço vital",
sustentação ideológica do expansionismo alemão. A divisão entre a minoria
poderosa com vontade de poder e a maioria fraca e covarde ganhou uma roupagem
racista mais explícita, mas continuou essencialmente a mesma. O próprio
Nietzsche (1998:28), aliás, relacionava a "revolta dos escravos" a
uma "revolta judia", que procurava impor aos senhores a moralidade
judaico-cristã. A busca do Übermensch (o "Além-do-Homem" ou
"Super-Homem", segundo as traduções), o ser humano superior que
abandonou toda a moral (Nietzsche, 1977), ganhou contornos pseudocientíficos
com a introdução da eugenia4. Sobretudo, Nietzsche e o fascismo, como os
pensadores elitistas em geral, compartilham uma visão profundamente
antidemocrática; exaltavam e naturalizavam as desigualdades e viam como
perniciosa a participação popular na política. Por isso, Nietzsche pôde ser
apropriado pelo nazismo; por isso, Mosca, Pareto e Michels, os teóricos
elitistas políticos clássicos, simpatizavam com o fascismo (e foram usados para
legitimá-lo).
José Ortega y Gasset parece um Nietzsche moderado. A Rebelião das Massas reúne
artigos escritos entre 1920 e a metade dos anos 1930; na época, chegou a ser
considerado equivalente (em importância) ao Contrato Social ou O Capital, mas
hoje é bem menos respeitado. Trata-se de uma obra importante historicamente,
por exprimir uma certa posição política e uma certa sensibilidade intelectual,
mas sem brilho teórico significativo.
Ortega y Gasset (1987:37) parte da observação de um fenômeno cotidiano: a
presença física do povo em locais antes reservados às elites. Trens, concertos,
museus, tudo parecia estar lotado, como conseqüência do rompimento de certas
barreiras que separavam a massa dos "superiores". Na verdade, por
trás da teorização do pensador espanhol está um agastamento simples, egoísta: o
de quem sai para jantar e encontra o restaurante lotado.
Foi visto, acima, como a diferença de sensibilidade estética era importante
para que as elites afirmassem sua própria superioridade. Por isso, o fato de a
massa buscar acesso à fruição artística era uma das principais causas da
irritação de Ortega, que enfatizava que a grande obra de arte deveria ser
acessível apenas a poucos (Ortega y Gasset, 1942). A posição oposta,
democrática, é expressa na mesma época por Maiakóvski (1984:183-184), que
manifesta seu maravilhamento quando, na Rússia revolucionária, a poesia chega
ao povo e ele vê "dois mujiques grandes como elefantes" discutindo
versinhos5.
Para Ortega, a massa define-se por uma característica psicológica. Pertence a
ela quem não se incomoda em ser igual aos outros. Percebe-se aí a típica
perspectiva aristocrática, que vê na desigualdade um bem em si mesmo. À massa
opõem-se os "seletos", aqueles que exigem mais de si próprios e cujas
características seriam individuais e inatas; nada têm a ver com a situação
social ou econômica, nem podem ser alteradas pela educação, que serve para
fornecer conhecimentos, mas não cria o espírito (Ortega y Gasset, 1987:38-39 e
70). Dessa forma, as hierarquias sociais são naturalizadas e, portanto,
legitimadas.
Tudo estava bem enquanto as massas eram "disciplinadas" e "se
satisfaziam com seu papel". A rebelião atual tem a ver com o fato de elas
"não conhecerem mais seu lugar". Segundo Ortega y Gasset (idem:128),
o destino da massa é ser comandada, mas hoje ela se revolta contra o destino.
Dois são os pontos fundamentais: as massas perderam a noção da existência de
superiores e perderam a ciência de que há atividades especiais (como a
política) que exigem dons específicos e onde, portanto, ela não deve
interferir6. O perigo que surge daí é a "hiperdemocracia", em que os
inferiores desbancam os superiores. Ele vai aproximar esse processo da política
totalitária ' o homem-massa identifica-se com o Estado e quer dele fazer tudo
(idem:131-132). Aqui, ele avança uma tese que será comum às teorias elitistas
da democracia, a de que o excesso de presença popular na cena política é um
passo certo para o totalitarismo.
Com base na crença da desigualdade natural, o que Ortega y Gasset propõe é uma
limitação da democracia. Uma vez que as diferenças são inatas, elas devem ser
institucionalizadas. Em seu livro, há uma reveladora defesa dos privilégios,
direitos "privados" conquistados pelos superiores e mantidos por seu
esforço, em contraposição aos direitos humanos universais, que são concedidos
sem que nada seja exigido em troca (idem:81). As massas rebeladas desejam
eliminar todos os privilégios. Por isso, precisam ser contidas.
A TRINDADE DO ELITISMO "CLÁSSICO"
Pensadores como Nietzsche e Ortega y Gasset formularam os princípios
filosóficos do elitismo, com a afirmação da desigualdade natural e a crença de
que sua contestação era o principal sinal da crise do mundo contemporâneo. Mais
ou menos na mesma época, surgia a teoria política das elites, que procurava
demonstrar, com pretensa base científica, que a dominação das minorias era
inevitável e a democracia, impossível. Seus fundadores foram o engenheiro,
economista e sociólogo franco-italiano Vilfredo Pareto e o jurista e sociólogo
italiano Gaetano Mosca, que disputaram entre si o título de pioneiro da
corrente; um pouco mais tarde, viria a contribuição do sociólogo Robert
Michels, alemão de nascimento e italiano por adoção.
A principal obra sociológica de Pareto é o Tratado de Sociologia Geral (1935
[1916]). Sua ambição é criar uma ciência perfeitamente neutra e experimental,
tendo a química como modelo. Por isso, empreende a tarefa de buscar os
"átomos" e "moléculas" da ação em sociedade ' e encontra-os
na psique humana. A sociologia de Pareto é, na verdade, uma psicologia
política. Um dos pressupostos básicos é que as ações humanas têm, quase todas,
caráter irracional, sendo guiadas por partículas eternas e imutáveis da
personalidade (os "átomos" que procurava), às quais dá o nome de
"resíduos". As razões para a ação, longe de serem sua causa, são
apenas justificativas a posteriori, que Pareto chama de "derivações".
Ele identifica 52 tipos de resíduos, que cada indivíduo possuiria em
combinações variáveis (idem, vol. 2:516-519). É importante sublinhar que Pareto
não os vê como constructos teóricos, mas como elementos naturais que ele apenas
detecta. Em uma manobra típica do pensamento paretiano, a classificação dos
resíduos passa do complexo para o esquemático. Primeiro, os 52 tipos são
transformados em seis classes, das quais quatro são desprezadas. Restam os
resíduos da classe I ("instintos de combinações") e da classe II
("permanência dos agregados"). Depois, de forma quase imperceptível,
eles deixam de ser átomos de comportamento para se tornarem traços definidores
de personalidade. Há pessoas classe I e pessoas classe II; as primeiras são
conciliadoras e astutas, as segundas, intransigentes e violentas. Assim, o
modelo "científico" de Pareto reduz-se ao velho tropo das raposas e
dos leões, presente no pensamento clássico e retomado na Renascença, entre
outros por Maquiavel.
Aqui, é possível inserir o conceito de elite. Pareto afirma que elite é o nome
dado ao grupo de indivíduos que demonstram possuir o grau máximo de capacidade,
cada qual em seu ramo de atividade. Cada um desses ramos possui algumas pessoas
que são as mais bem-sucedidas e a reunião delas forma a elite (idem, vol. 3:
1421-1423). Ele acredita que seu conceito é neutro e não-valorativo. O grande
cirurgião e o grande financista fariam parte da elite em seus respectivos
setores, da mesma maneira que o ladrão mais habilidoso ou o pistoleiro de
melhor pontaria. Pelo conceito paretiano, a elite define-se através das
qualidades intrínsecas de seus integrantes ' ao contrário do emprego corrente
do termo, que incorpora a capacidade de influência. De acordo com este uso, um
gênio isolado, que nunca publicou nada, não poderia estar na elite intelectual,
já que possui influência reduzida ou nula. Na visão de Pareto, ele pertenceria
objetivamente a essa elite, mesmo que não fosse reconhecido como tal. Suas
elites, a princípio, não precisam ter qualquer repercussão na sociedade.
A existência das elites revelaria a desigualdade ' natural ' entre os homens,
da qual a desigualdade social seria um mero efeito. Pareto insiste que, mesmo
em um sistema de castas fechado, como o indiano, há brechas para que os
melhores das classes inferiores subam; ainda mais em uma sociedade como a
ocidental, onde ele vê uma mobilidade excessivamente rápida entre as classes.
Esta é a questão central da teoria elitista no debate contra os igualitaristas.
Já que a desigualdade é natural, fruto dos diferentes talentos, seria
impossível eliminá-la, para não dizer injusto. Além disso, Pareto aplaina
diferenças fundamentais, presentes na sociedade, ao tratar as muitas elites
como se fossem idênticas. Segundo ele, o mendigo que faz ponto na frente da
igreja matriz, e portanto é o mais bem-sucedido na sua atividade, é tão
"de elite" quanto o bilionário que ganha rios de dinheiro com a
especulação financeira.
Entretanto, Pareto introduz uma distinção essencial no seio da elite: a que
separa a elite governante, que exerce o poder político, de todo o resto,
chamado de elite não-governante. A existência de um grupo minoritário que
monopoliza o governo é, para ele, uma constante universal das sociedades
humanas. Outra constante é a rotação entre os integrantes desse grupo. É a
teoria da "circulação das elites", provavelmente, a principal
contribuição de Pareto à sociologia política.
Para o bom andamento do governo, haveria necessidade tanto da astúcia quanto da
disposição para o uso da força, isto é, a elite governante deve possuir tanto
indivíduos da classe I quanto da classe II, raposas e leões. Para se perpetuar,
esse governo deve cooptar os indivíduos talentosos que existam dentro da
sociedade. Ora, os leões, justamente por serem leões, não são dados a
compromissos, e não aceitarão a cooptação, que ocorre em geral para postos (a
princípio) subalternos. Só as raposas ascenderão ao poder, causando um
desequilíbrio. Em primeiro lugar, haverá um governo formado total ou
majoritariamente por indivíduos da classe I, que preferem usar apenas a astúcia
e vacilam em empregar a força. A segunda conseqüência é um acúmulo de leões
privados de poder, mas desejosos de alcançá-lo, formando uma "contra-
elite". Chega um momento em que a pressão é grande demais, os indivíduos
da classe II promovem uma revolução e instauram um governo leonino (idem, vol.
3:1431)7. E o processo se reinicia.
Assim, existem duas circulações de elites. A primeira, paulatina, é a cooptação
dos "melhores" de baixo (e, imagina-se, a excreção dos
"piores" de cima). Mas ela tende a falhar, privilegiando a classe I,
e isso faz ocorrer a circulação de segundo tipo, revolucionária. Como
resultados dessa visão da história, é importante citar:
i) uma perspectiva essencialista, isto é, há uma essência imutável das relações
humanas e do processo histórico. A afirmação da impossibilidade de uma
organização social em que não haja uma minoria dominante é o traço definidor
das teorias das elites. No momento em que Pareto escrevia, isto era uma
tentativa de contradição "científica" às promessas, que também se
queriam "científicas", do movimento democrático e socialista;
ii) a idéia de que todas as mudanças políticas são, por trás das aparências,
repetições do mesmo processo, a luta dos leões contra as raposas. Assim,
discutir as transformações nas estruturas sociais, a economia ou a ideologia é
inútil. Seja a Revolução Francesa, a Revolução Russa, a subida de Mussolini ao
poder ou o que for, trata-se apenas de mais um capítulo da luta entre pessoas
da classe I e da classe II;
iii) os únicos agentes políticos relevantes são a elite e a contra-elite. A
massa é incapaz de intervir no processo histórico. Se parece que o faz, é
porque está sendo manobrada por outro grupo;
iv) uma vez que nenhum governo persiste sem sua quota de leões, o uso da força
deve ser aceito como inevitável na sociedade (ibidem). Há aqui uma polêmica
contra aqueles que se escandalizavam com o uso da repressão, pelo Estado,
contra seus adversários (isto é, contra o movimento operário). Fiel à visão
essencialista da história, Pareto afirma que, como sempre se usou a violência,
ela deve continuar sendo usada da mesma maneira. Da teoria se passa à
naturalização, quer dizer, à legitimação da repressão.
O que se deseja, aqui, não é refutar as idéias de Pareto. Caso fosse este o
objetivo, seria necessário observar que seu uso das fontes históricas é
enviesado, que sua concepção da sociedade e do ser humano é simplificadora ou,
ainda, que, ao tratar de temas como o uso da violência, ele aplaina diferenças
significativas para daí extrair a "essência transhistórica" que seu
argumento requer. Para os objetivos deste artigo, o que interessa é perceber
que todo o esforço intelectual de Pareto está voltado à demonstração de que
qualquer ordenamento democrático é ilusório. Portanto, é no mínimo bizarro que
uma visão de mundo próxima à sua sirva de base para uma tentativa de
reconstruir ' e não de demolir ' a teoria democrática.
A obra de Mosca leva a conclusões semelhantes, embora de forma mais sutil e
matizada. Ele também julga inevitável a existência de uma classe dirigente,
expressão que usa em lugar de elite. Para ele, o domínio da minoria sobre a
maioria é uma constante universal (Mosca, 1939:50). A chave, para entender esse
fenômeno, é que a minoria é organizada, enquanto a maioria, justamente por ser
tão numerosa, está fadada à desorganização. Se quiser se organizar, precisará
constituir uma minoria dirigente dentro de si. O fato de ser organizada torna,
segundo Mosca, a minoria mais numerosa do que a maioria (idem:53). Ou seja, o
membro da maioria que se insurgir estará sempre isolado contra a classe
dirigente, que age em bloco.
Portanto, ao contrário de Pareto, Mosca não está preocupado em determinar quais
são os mais habilidosos ou qualificados. Ele despreza as explicações
psicológicas, vinculando o domínio da minoria a uma questão organizativa. O
passo seguinte, em sua teoria, é a discussão da legitimação: a minoria se faz
passar, diante da maioria, como dotada de certa qualidade superior (ibidem).
Assim, o exercício do poder é justificado em nome de princípios morais
universais. Tais princípios mudam historicamente, de acordo com a transformação
material na sociedade. Era a valentia, nas sociedades inseguras do passado,
quando o gozo da vida e dos bens dependia de força militar própria e os
guerreiros governavam. Em seguida, com o aumento da produtividade da terra e a
redução da insegurança, a base do poder passa a ser a propriedade rural, e
assim por diante. Trata-se de uma perspectiva materialista, que, em vez da luta
entre "resíduos", apresenta o conflito contínuo entre antigas fontes
de poder, que querem se manter, e novas fontes de poder, que desejam emergir.
Como a de seu rival, a teoria de Mosca também investe contra as
"ilusões" do movimento operário, que se propunha reunir a maioria da
população e levá-la ao poder. Impossível, segundo ele, já que a maioria nunca
governa, no máximo pode entronizar outra minoria. Portanto, é uma teoria
conservadora, partilhando daquilo que Hirschman (1992:43-72) chamou de
"tese da futilidade": não adianta tentar mudar o mundo, já que, em
sua essência, ele permanece sempre o mesmo. E antidemocrática, na medida em que
condena como impossível qualquer forma de governo do povo.
Ao contrário dos outros dois, o terceiro teórico clássico das elites, Michels,
tinha simpatia pelo socialismo e pelo movimento operário. Por isso, foi estudar
a social-democracia alemã (SPD). Aliás, antes de estudá-la, ingressou no
partido, militou, participou de vários de seus congressos. Seu livro mais
importante, Sociologia dos Partidos Políticos (1982 [1911]), já mostra o
desencanto com o socialismo. Mais tarde, Michels aderiu ao fascismo.
Enquanto Pareto e Mosca não se detinham em casos concretos (faziam grandes
teorizações e depois pinçavam na história os exemplos que julgavam adequados),
Michels adotava o percurso inverso. A partir de um único estudo de caso, o SPD,
ele fez uma grande generalização. O núcleo de sua tese é que qualquer tipo de
organização caminha para a burocratização. Aqui, ele fica com Mosca: a massa, o
grande número, é incapaz de se organizar. Quando resolve fazê-lo, deve
fatalmente constituir um pequeno comitê para dirigi-la. Isto é a
burocratização: não há mais um movimento espontâneo de massa, e sim algo com
uma hierarquia, com regras, com disciplina.
A burocratização assume uma característica especial, que é a oligarquização.
Para que a organização aja com eficiência, é necessária a criação de um quadro
de funcionários que se dediquem em tempo integral a ela. Ora, essa nova posição
funcional gera novos interesses, ligados a ela e diferentes daqueles que a base
da organização possui. O operário que se torna um quadro profissional do
partido não é mais um operário: é um burocrata ou um líder político. Para os
militantes da base, a organização é um meio para alcançar um determinado fim,
que, no caso, era a revolução socialista. Para o funcionário, a organização
torna-se um fim em si mesma, já que seu ganha-pão está no partido (Michels,
1982:223).
Segundo Michels, isto levaria inexoravelmente ao abandono dos ideais
revolucionários. Primeiro, porque seus líderes já alcançaram uma posição
privilegiada dentro da sociedade; depois, porque uma tentativa revolucionária
poderia causar a dissolução do partido (e a perda do ganha-pão). O poder, diz
Michels (idem:219), é sempre conservador. A essa construção teórica, ele deu o
nome de "lei de ferro da oligarquia". Segundo ela, toda organização
gera uma minoria dirigente, com interesses divergentes dos de sua base. Embora
os caminhos traçados sejam diferentes, a conclusão é idêntica à de Mosca: só a
minoria pode governar.
Michels tocou em um ponto crucial para a implementação da democracia, que é a
relação entre representantes e representados. Sua teoria é útil para analisar o
desgaste atual dos partidos políticos, que pode ser creditado aos vícios que
ele descreveu. Experiências organizativas que procuram contornar esses
problemas, como a busca da rotatividade e da participação direta pelos Verdes
alemães (Poguntke, 1992), parecem comprovar Michels: menor oligarquia gera,
também, menor eficiência. Alguns sugerem que os partidos cederiam lugar a novos
movimentos sociais, mais ágeis e representativos. Mas, pela lei de ferro, os
movimentos sociais, à medida que ganham peso, oligarquizam-se da mesma forma.
A tese de Michels possui pontos de contato com o pensamento de Weber, que, no
entanto, é mais complexo. Weber (1993 [1918]:113) afirmava a
"inevitabilidade" do político profissional, que é produto da
racionalização e da especialização do trabalho político no campo das eleições
de massa. Portanto, ele também coloca a impossibilidade de formas de
"governo pela base" e de democracia direta, julgando insuperável a
divisão entre governantes e governados. Mas, embora tenha influenciado Michels,
não aceitava a "lei de ferro da oligarquia", que julgava demasiado
simplista. Na verdade, existem dois mecanismos diferentes em funcionamento: do
lado de Michels, o egoísmo dos dirigentes (uma visão um tanto simplista e
limitada da natureza humana); do lado de Weber, as exigências impessoais da
racionalização e da eficiência.
Weber faz também uma distinção entre o funcionário (mesmo partidário) e o líder
político. É a célebre diferença entre o burocrata, dono de saber e técnica, mas
que não assume a responsabilidade, e o político, que se caracteriza justamente
por ser diretamente responsável por seus atos (Weber, 1985 [1919]:79). Weber
observa a "infiltração" de funcionários dos partidos nas chapas de
candidatos ao Parlamento (e lamenta o fato), mas em seu esquema a capacidade de
liderança política, diferente da burocracia, permanece essencial. Para Michels,
ao contrário, não há distinção entre líder político e burocratas, todos sendo
igualmente pessoas que se beneficiam da estrutura partidária e, portanto,
oligarcas.
A CONTRADIÇÃO EM TERMOS: A DEMOCRACIA ELITISTA
Para os fins que nos interessam, é possível traçar um quadro condensado da
discussão sobre a igualdade entre os seres humanos: a ordem estamental medieval
afirmava a desigualdade entre os indivíduos. Contra ela, o liberalismo vai
propugnar que todos são iguais. Os socialistas, então, denunciam que a
igualdade formal, apreciada pelos liberais, é inócua diante da permanência de
profunda desigualdade material. Em oposição ao socialismo, a teoria elitista
vai dizer que a igualdade é impossível. Há uma concordância quanto ao
diagnóstico sobre as sociedades contemporâneas, com a constatação de que a
igualdade dos liberais é a mera fachada da desigualdade efetiva; mas a ênfase é
dada à polêmica contra a bandeira socialista de uma nova forma de organização,
material e politicamente igualitária, que a teoria das elites apresenta como
ilusória.
Os elitistas miraram no socialismo, mas acabaram acertando também a democracia,
denunciando como fantasista qualquer idéia de governo da maioria. Porém, numa
reviravolta notável, uma importante corrente da teoria democrática vai aceitar
o argumento elitista como pressuposto. É a tese da "democracia
concorrencial", cujo pai é o economista austríaco Joseph Schumpeter. Não
se trata apenas de uma tendência, entre outras, da teoria democrática. É a
corrente amplamente dominante, que se enraizou no senso comum; é um divisor de
águas, já que, a partir dela, qualquer estudioso da democracia tem que se
colocar, em primeiro lugar, contra ou a favor das teses schumpeterianas. Entre
aqueles que foram influenciados por elas, de diferentes maneiras, estão nomes
do peso de Giovanni Sartori, Robert Dahl e Anthony Downs.
Vários fatores contribuíram para o sucesso de Schumpeter. Em primeiro lugar,
uma nova visão da relação entre democracia e participação política popular. Ele
publicou o livro em que apresenta sua teoria democrática, Capitalismo,
Socialismo e Democracia, em 1942. Nove anos antes, Hitler havia chegado ao
poder. Para alguns analistas, o mal da República de Weimar, que havia permitido
o avanço do nazismo, foi o "excesso de participação". Por outro lado,
os regimes totalitários da Alemanha e da União Soviética promoviam a
mobilização das massas (embora não sua participação efetiva). A presença
popular na política passou a ser associada mais com o totalitarismo do que com
a democracia.
Em 1945, ocorreu a derrota dos países do Eixo e, logo em seguida, o início da
Guerra Fria. Os Aliados haviam lutado em nome da "democracia",
palavra que foi reivindicada tanto pelo bloco soviético quanto pelo bloco
estadunidense. Em vez de "ditadura do proletariado", como afirmava o
leninismo ortodoxo, os regimes do Leste Europeu autoclassificavam-se como
democracias populares. No Ocidente, o problema era demonstrar que existia uma
verdadeira democracia, apesar da evidente ausência do governo do povo. Ao
redefinir a democracia de forma a excluir o que antes era seu principal
critério, a teoria de Schumpeter se prestava bem a este fim. Assim, embora
Schumpeter e os schumpeterianos gostem de se apresentar como neutros e
descritivos, em contraste com a visão "ideológica" dos críticos dos
regimes políticos ocidentais, sua empreitada intelectual possuiu um
significativo caráter justificador do status quo.
Capitalismo, Socialismo e Democracia é a única obra sociológica de Schumpeter.
A reformulação da teoria democrática está restrita a três capítulos (do XXI ao
XXIII), sem dúvida os mais lidos do livro. Ele começa demolindo o que chama de
"doutrina clássica da democracia", na verdade um mix não muito
equilibrado de autores clássicos e senso comum, que une Rousseau ao
utilitarismo. Já foi demonstrado que a doutrina clássica é um mito, que
Schumpeter reuniu e distorceu autores incompatíveis entre si para gerar um
espectro contra o qual lutar (Pateman, 1992:9-34). Seja como for, em linhas
gerais, a "doutrina clássica" é a seguinte: a democracia é o método
para promover o bem comum através da tomada de decisões pelo próprio povo, com
a intermediação de seus representantes (Schumpeter, 1984:313). Um primeiro
ponto a ser criticado nesta definição é a própria noção de bem comum.
Schumpeter observa que, para cada indivíduo, o bem comum poderá significar uma
coisa diferente. Sua perspectiva, portanto, é a da sociedade como um composto
de indivíduos atomizados, sem a possibilidade de construção de vontades
coletivas.
A rigor, a impugnação da idéia de bem comum não invalida a doutrina clássica,
já que em seu lugar é possível colocar a "vontade da maioria",
expressa na votação. Mas há aí uma premissa oculta, própria da filosofia
utilitarista: a de que cada um é o melhor juiz de seu próprio bem. Por isso, o
processo democrático seria indicado, em vez de, por exemplo, um déspota
esclarecido e bondoso. O ponto crucial da crítica schumpeteriana está aqui: as
pessoas não sabem determinar o que é melhor para elas, quando estão em jogo
questões públicas. Não há uma vontade do cidadão, só impulsos vagos,
equivocados, desinformados (idem:317). Segundo o economista austríaco, o
indivíduo médio desce para um patamar mais baixo de racionalidade quando entra
no campo da política. Em suma, mesmo que possa cuidar bem dos seus negócios
pessoais, não sabe tratar de assuntos públicos8.
A aparente comprovação empírica para as afirmações de Schumpeter apareceria, na
mesma época, através da obra de outro austríaco imigrado para os Estados
Unidos, o sociólogo e estatístico Paul Lazarsfeld. Em um estudo de campo sobre
a campanha para as eleições presidenciais de 1940 (nas quais Franklin Roosevelt
conquistou seu terceiro mandato), realizado, em conjunto com Bernard Berelson e
Hazel Gaudet, em uma pequena cidade do Estado de Ohio, ele mostrou que, mesmo
em período eleitoral, as pessoas não são ativas, participantes, interessadas ou
informadas. Elas decidem seu voto de forma irracional, seguindo padrões
tradicionais ou por motivos afetivos. Um estudo similar, realizado oito anos
mais tarde, em outra cidade estadunidense, chegou à mesma conclusão (Lazarsfeld
et alii, 1969 [1944]; Berelson et alii, 1954). Ou seja, a democracia
representativa não encontra eleitores como seu modelo ideal esperaria. Os
cidadãos não sabem decidir, não estão dispostos a se informar e não se
preocupam em avaliar as conseqüências de seus atos.
Uma diferença importante entre as duas abordagens é que Lazarsfeld busca
demonstrar que a influência dos meios de comunicação de massa sobre o eleitor
era praticamente nula, já que o voto refletia predisposições anteriores.
Schumpeter, pelo contrário, julga que a massa é sempre manipulada pela
propaganda política. Embora não haja referência direta, essa postura refletia o
sucesso da máquina publicitária nazista, que muitos intelectuais da época viam
como paradigma da nova forma de fazer política. Um exemplo é o livro do
psicólogo russo Serge Tchakhotine, publicado poucos anos antes da obra de
Schumpeter, cujo enfoque está claro a partir do título: O Estupro das Massas
pela Propaganda Política (Tchakhotine, 1952 [1939]).
Para Schumpeter, a propaganda política possui uma diferença crucial em relação
à comercial: a impossibilidade de ser testada.
"O retrato da mulher mais bonita do mundo mostrar-se-á, no longo
prazo, incapaz de sustentar as vendas de um cigarro ruim. Mas não há
qualquer salvaguarda igualmente efetiva no caso das decisões
políticas. Muitas decisões de importância fatal são de natureza a
tornar impossível para o público experimentá-las à vontade e a custos
moderados" (Schumpeter, 1984:329).
Ou seja, o eleitorado estaria incapacitado de aprender com os próprios erros,
uma vez que as conjunturas políticas são mutáveis, e estaria condenado a sempre
ser presa das campanhas demagógicas.
As conclusões a que Schumpeter chega são baseadas em uma visão de natureza
humana. As pessoas são egoístas, incapazes de se preocuparem com os interesses
coletivos (mesmo quando estes as afetam). Ou seja, não adianta mudar as
instituições, já que a causa da apatia e da desinformação não está nelas, mas
nos próprios indivíduos. Mas se o indivíduo é ruim, a massa ' aqui Schumpeter
se baseia nos trabalhos, hoje desacreditados, de Gustave Le Bon ' é pior, cega,
age irracionalmente, levada por seus preconceitos. E não é por estar disperso
pelos vários locais de votação que o eleitorado deixa de ser uma massa.
Mais tarde, Mancur Olson (1971:11) vai argumentar que a incompetência do
cidadão comum para a tomada de decisões políticas decorre não de sua
irracionalidade, como julga Schumpeter, mas de sua racionalidade. Para ele, o
indivíduo racional é aquele que faz o cálculo de custo-benefício em suas ações.
Como o peso do voto individual em uma eleição é ínfimo, simplesmente não vale a
pena cobrir os custos (em termos de esforço, tempo e mesmo dinheiro) de obter
informações. De uma forma ou de outra, ambos chegam à mesma conclusão: o povo
não sabe tomar decisões políticas.
Enterrada, como crê Schumpeter, a "doutrina clássica", surge a
necessidade de uma nova teoria da democracia. Em seu núcleo, não está mais o
governo do povo, mas a competição entre elites. Em uma passagem famosa, que
sintetiza seu esforço conceitual, ele define que "o método democrático é
aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os
indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos
votos da população" (Schumpeter, 1984:336). O que ocorre, portanto, é a
aceitação do dogma essencial dos elitistas ' a maioria é incapaz de governar '
e a produção de um conceito de democracia que se adapte a ele. A democracia
fica resumida ao processo eleitoral, que Schumpeter julga compatível com
quaisquer formas de restrição do direito de voto (um ponto que os
schumpeterianos posteriores modificarão). Ele enfatiza a importância da
liberdade para a apresentação de candidaturas, mas, em uma nota de rodapé
cínica, explica que usa a expressão "no sentido de que qualquer pessoa é
livre para instalar uma fábrica têxtil" (idem:339). Ou seja, trata-se de
uma liberdade formal, cuja efetivação só é viável para aqueles que possuem
determinados recursos (tanto econômicos quanto culturais).
O modelo desenhado por Schumpeter é um retrato bastante fiel dos regimes
políticos ocidentais, que permite que eles se apresentem como verdadeiras
democracias. Mas é, de fato, um rebaixamento do ideal democrático. Significa a
negação da possibilidade de qualquer forma substantiva de soberania popular. A
participação do cidadão comum é reduzida ao mínimo, ao ato de votar. Schumpeter
condena qualquer outra manifestação popular, até mesmo o simples envio de
cartas aos representantes, como sendo uma intromissão indevida dos governados
nas ações dos governantes. Ao mesmo tempo, o momento central da democracia
concorrencial, a eleição, é desprovido de qualquer conteúdo, pois não indica a
vontade do povo, nem mesmo a da maioria.
Até a salvaguarda dos direitos individuais, função que os "democratas
protetores" do século XVIII atribuíam ao direito de voto9, é desprezada.
Para Schumpeter, o método eleitoral parece ter, sobretudo, um caráter
legitimador, importante a partir do momento em que outros modelos de dominação
política, em especial as monarquias hereditárias, perdiam legitimidade. Ao
votar, o povo não decide nada, mas pensa que está decidindo ' e, por isso,
dispõe-se a obedecer aos governantes. É importante assinalar que a legitimidade
do modelo depende basicamente de sua vinculação com o significado etimológico
da democracia. A ressemantização promovida com a virada schumpeteriana permite
colher certos frutos simbólicos da democracia-enquanto-governo-do-povo, sem que
se busquem arranjos institucionais voltados para realizá-la.
Um ponto crucial do legado de Schumpeter é a transformação na compreensão do
processo eleitoral, que deixa de ser um meio para a realização da democracia (o
governo do povo), para ser a democracia em si. O outro ponto é a exaltação da
apatia política, tema que será desenvolvido por autores posteriores. Para
Seymour Lipset, a baixa participação política demonstra que o regime
democrático vai bem, possui alto grau de aprovação. Ele chega a afirmar que, em
sistemas de voto facultativo, quanto maior a taxa de abstenção eleitoral, mais
firme está a democracia (Lipset, 1963:227)10. Samuel Huntington (1975) é mais
sutil: não é a apatia que é um bem, mas a participação que é um mal. O excesso
de participação aumenta os conflitos sociais, põe em risco a continuidade do
sistema, gera um excesso de demandas que o Estado é incapaz de processar. No
famoso relatório à Comissão Trilateral, Huntington (1975a) chegou à conclusão
de que, justamente por causa disso, as democracias são
"ingovernáveis": cada vez que o Estado atende a uma demanda popular,
incentiva a apresentação de novas e mais extravagantes exigências.
"Ingovernável", mas indispensável como fator de legitimação, a
democracia estava em uma encruzilhada. O neoliberalismo foi a solução
encontrada, fazendo o Estado, regulador ostensivo e suscetível a
reivindicações, recuar diante do mercado, regulador oculto e impermeável ao
controle democrático (Gorz, 1996:25)11.
Em suma, para essa corrente, a apatia demonstra a satisfação com o sistema
político, impede o acirramento das diferenças dentro da sociedade e diminui as
pressões sobre o Estado. O resultado é maior estabilidade (ou
"governabilidade", para usar o jargão da ciência política). De forma
quase imperceptível, promove-se um deslocamento de valores, com a estabilidade
sendo erigida em meta da organização política, no lugar do ideal democrático de
autonomia.
DEMOCRACIA SEM POVO
O livro de Schumpeter é um marco da teoria democrática. Muitos foram seus
herdeiros e continuadores, entre eles alguns dos mais influentes cientistas
políticos contemporâneos. Anthony Downs "dourou a pílula" de
Schumpeter, buscando mostrar que, graças à vontade de permanecer no poder (e à
necessidade do voto popular para que isto ocorra), os governantes se tornariam
os mais fiéis servidores do povo, promovendo melhorias incessantes em suas
condições de vida (Downs, 1957). Apesar de estar baseada em uma visão limitada
das motivações dos políticos, dos processos cognitivos dos eleitores e da
eleição como um todo (ignorando, por exemplo, o papel da mídia ou dos
financiadores de campanha), a tese de Downs tornou-se extremamente influente
(Wattenberg, 1991:17-20). A presença de Schumpeter também é clara na teoria
mais sofisticada de Robert Dahl (1989; 1971), em que uma multiplicidade de
"centros de poder" complementa a existência das minorias
concorrentes12, na obra de Lipset (1963), de Giovanni Sartori (1994) e de
muitos outros. A chamada "teoria da escolha social" buscou
demonstrar, através de modelos matemáticos, a impossibilidade de as eleições
revelarem uma vontade popular (Riker, 1982).
Samuel Huntington, que afirma sem rodeios que eleições são "a essência da
democracia", sumariza da seguinte forma as discussões sobre teoria
democrática do último meio século:
"Por algum tempo depois da Segunda Guerra Mundial, travou-se um
debate entre aqueles que, na linha clássica, definiam democracia
segundo fonte [das decisões] ou propósito e o crescente número de
teóricos que aderiam ao conceito processual de democracia, à maneira
schumpeteriana. Nos anos 70, o debate tinha terminado e Schumpeter
vencera" (Huntington, 1994:16).
É possível contestar uma afirmação tão taxativa. Na realidade, as últimas duas
décadas, pelo menos, presenciaram esforços notáveis de construção de novos
modelos de democracia, republicanos e deliberativos, que põem em xeque a
redução schumpeteriana. Mas não é menos verdade que ela ocupa um lugar central
nas discussões sobre a questão. Mesmo os que defendem uma democracia mais
autêntica e participativa têm que se ver, em primeiro lugar, com o legado de
Schumpeter (ver, p. ex., Pateman, 1992). Por vezes, seus esforços são
desdenhados como "prescritivos", enquanto a verdadeira ciência, aí
incluída a "ciência política", deve ser descritiva e isenta de
valores (Sartori, 1994; Huntington, 1994:16). Sem discutir a possibilidade de
tal isenção no discurso científico em geral (e nas ciências sociais em
particular), cabe notar que a distinção é enviesada. A corrente inaugurada por
Schumpeter está tão carregada de valores quanto seus adversários. Ao aplicar o
rótulo, politicamente prestigioso, de "democracia" aos regimes
eleitorais do Ocidente, ao virar do avesso o conceito de democracia para
adequá-lo a tais regimes e ao negar a possibilidade de qualquer avanço em
direção a um regime mais participativo, ela cumpre um relevante papel
legitimador. Isto é, possui um inocultável caráter político conservador.
O significativo é que essa teoria da democracia, hoje predominante, adotou os
pressupostos de uma corrente de pensamento destinada precisamente a combater a
democracia: o elitismo. O principal ideal da democracia, a autonomia popular,
entendida no sentido preciso da palavra, a produção das próprias regras, foi
descartado como quimérico. No lugar da idéia de poder do povo, colocou-se o
dogma elitista de que o governo é uma atividade de minorias. A descrença na
igualdade entre os seres humanos ' igualdade que, tradicionalmente, era vista
como um quase-sinônimo da democracia ' levou, como corolário natural, ao fim do
preceito do rodízio entre governantes e governados.
Não se trata de negar os elementos positivos presentes nos regimes eleitorais,
em geral herdeiros do liberalismo. Ainda que as condições necessárias para seu
pleno usufruto estejam muitas vezes ausentes, as liberdades e os direitos
individuais (de consciência, expressão, imprensa, associação, manifestação,
movimento etc.) não podem ser desdenhados como apenas "formais". Eles
criam um ambiente político incomparavelmente melhor do que o de regimes em que
estão ausentes. E, como Guillermo O'Donnell (1999:582-588) procurou mostrar,
mesmo a concepção mínima de democracia, em Schumpeter, acaba por exigir tais
liberdades e direitos, como conseqüência lógica de sua postulação. Mas continua
faltando muito, quase tudo, para se chegar perto daquilo que, até o século XIX,
era entendido por democracia, tanto por seus partidários quanto por seus muitos
adversários: um regime em que o poder político está, de alguma maneira, nas
mãos do povo comum13.
Ao dar fundamento teórico aos regimes eleitorais que chamam a si mesmos de
democracia, Schumpeter e seus seguidores buscam neutralizar aqueles que
reivindicam um regime mais participativo e igualitário. Mas a idéia de
"governo do povo" ' no sentido da igualdade efetiva na tomada das
decisões públicas ' insiste em permanecer à tona, quando menos como um
parâmetro normativo que revela quão pouco os regimes ocidentais realizaram as
promessas do rótulo que carregam. Por trás das "democracias realmente
existentes" de hoje, domesticadas, que aceitam todas as desigualdades
sociais e se contentam com um papel secundário diante do ordenamento
capitalista da sociedade, o ideal democrático continua exibindo seu caráter
subversivo.
NOTAS
1. Sobre a democracia grega, ver Finley (1988; 1983), Vidal-Naquet (2002), Ober
(1989), Castoriadis (1987), entre tantos outros.
2. Os versos de Lawrence são citados em Carey (1993:18). O livro de Carey é uma
excelente discussão sobre o elitismo dos intelectuais. Para o caso brasileiro,
ver Dalcastagnè (2000; 2002).
3. Uma notável antecipação do argumento de Nietzsche (e, sob outro aspecto, de
Ortega y Gasset) está na divisão da humanidade proposta por Raskólnikov, entre
"extraordinários" e "ordinários", os primeiros tendo
direito ao crime, os últimos condenados à obediência da lei. O fato de um dos
eixos de Crime e Castigo ser precisamente evidenciar o absurdo dessa doutrina
mostra como tais idéias já se encontravam disseminadas décadas antes da
formulação de Nietzsche (ver Dostoiévski, 2001:268-274 e passim).
4. Como observou Gramsci, a idéia do indivíduo sobre-humano que, por isso
mesmo, transcendia a moral convencional, era corrente na cultura popular da
época e, em especial, na literatura de folhetim; assim, "muito da suposta
super-humanidade' nietzschiana tem como origem e modelo doutrinário não
Zaratustra, mas O Conde de Monte Cristo, de A. Dumas" (Gramsci, 2001:56).
5. Uma terceira posição, a da Escola de Frankfurt, julga que a massificação
rebaixa a obra de arte, em uma crítica da indústria cultural que não está
isenta de elitismo.
6. Uma terceira questão está ligada à inconsciência, por parte das massas, de
que são devedoras da minoria seleta, na medida em que seu bem-estar material
dependeria do gênio de uns poucos homens superiores. Visão similar,
incorporando a perspectiva de uma "espiral das expectativas
ascendentes", é encontrada em Hayek (1990:44).
7. Um excelente resumo crítico da teoria paretiana da circulação das elites
está em Bottomore (1974, cap. III).
8. As classes dominantes escapam a este problema, já que os negócios públicos
são de seu interesse particular (ver Bourdieu, 1979:518).
9. A expressão "democracia protetora", para designar a concepção de
Bentham e Mill, é de Macpherson (1978).
10. É claro que é muito mais plausível a interpretação oposta: a diminuição da
presença nas eleições é um sintoma de alienação em relação ao sistema político,
reflexo do sentimento de impotência por parte dos cidadãos comuns.
11. Convém observar que o recuo do Estado diante do mercado, como forma de
reduzir a ativação popular, estava previsto nas discussões da Trilateral, nos
anos 1970, e pode ser detectado nos escritos dos "papas" do
neoliberalismo ' basta lembrar, por exemplo, da posição de Milton Friedman
quanto aos sindicatos (Friedman, 1984; Friedman e Friedman, 1979). É possível
dizer, portanto, que a desmobilização foi um resultado intencionalmente
perseguido pelos governos neoliberais. A idéia de que o mercado impõe limites à
democracia, por sua vez, já está expressa em Hayek (1990:83). Sobre a questão,
remeto novamente a Gorz (1996) e também a Anderson (1995) e Borón (1994).
12. Embora a obra mais recente de Dahl revele uma posição bem mais crítica
sobre os regimes democráticos concorrenciais (Dahl, 1990; 1989a).
13. Até a segunda metade do século XIX, o discurso predominante era
antidemocrático; por exemplo, Disraeli, quando primeiro-ministro britânico,
justificava um projeto de ampliação do direito de voto afirmando que se tratava
de um "bastião contra a democracia" (apud Hirschman, 1992:81). Não é
difícil perceber que o consenso favorável à democracia cresce conforme seu
conteúdo se dilui e ' ao contrário do que esperava Marx e temiam os políticos
da burguesia ' fica evidenciada a compatibilidade entre o sufrágio universal e
a dominação de classe.