Contribuição a uma tipologia das formas de desrespeito: para além do modelo
hegeliano-republicano
Este artigo é uma contribuição crítica para um dos debates mais candentes no
pensamento político contemporâneo: a questão do reconhecimento. O intento aqui
não é somente mostrar os problemas embutidos no tratamento atual mais
sistemático dessa questão, elaborado pelo filósofo alemão Axel Honneth, mas
também propor um modelo analítico de identificação da falta de reconhecimento
(desrespeito) no uso comum da linguagem1. Como pretendemos demonstrar, nosso
modelo permite uma análise mais ampla da questão e, ao mesmo tempo, mais
adequada à condição de heteronomia vigente no mundo de hoje. Ademais, ele evita
certos vícios perpetuados pela abordagem hegeliano-republicana de Honneth.
Na primeira parte do artigo, expomos a tipologia das formas de desrespeito
elaborada por Honneth e, logo em seguida, levantamos uma série de problemas
nela contidos. A partir dessa crítica, e com a ajuda da teoria semântica dos
pares de contraconceitos assimétricos de Reinhart Koselleck, propomos na seção
seguinte uma nova tipologia das formas de desrespeito. A construção dessa
tipologia envolve um trabalho de reforma e alteração razoavelmente extenso da
teoria koselleckiana. Finalmente, concluímos apontando para as vantagens
comparativas que o nosso modelo apresenta em relação à concepção de Honneth.
I
O reconhecimento é hoje um dos tópicos mais debatidos no meio acadêmico dos
países chamados "desenvolvidos". Não raro, o problema é colocado em
termos da coexistência entre uma sociedade multicultural e um regime político
democrático liberal. Ao discutir a relação entre reconhecimento e
multiculturalismo, Charles Taylor, um dos intelectuais mais ativos nesse
debate, declara: "Falta de reconhecimento [nonrecognition ou
misrecognition] pode ser prejudicial, pois é uma forma de opressão que
aprisiona o indivíduo em um modo-de-ser tolhido, falso e distorcido"
(Taylor e Gutmann, 1994:25)2.
Axel Honneth aborda a questão de maneira similar:
"O uso de conceitos negativos desse tipo [desrespeito] deve ser
considerado uma injustiça não apenas porque ele priva pessoas de sua
liberdade de ação ou lhes é insultante, mas também porque ele
interfere negativamente na compreensão que as pessoas têm de si
próprias ' uma compreensão que é adquirida através de meios
intersubjetivos" (1992:189).
Devemos deixar claro de antemão que tanto Taylor como Honneth trabalham da
perspectiva do pragmatismo lingüístico, ou seja, com a idéia de que o
significado das formas lingüísticas é determinado pelo seu uso3. Dado que o uso
da linguagem sempre se dá dentro de uma comunidade lingüística, o significado é
gerado no entendimento intersubjetivo. Nesse contexto, o reconhecimento deve
ser compreendido não como fenômeno psicológico pré ou extralingüístico, mas
como um problema constituído no uso eminentemente intersubjetivo da linguagem
corrente.
Honneth dispensa à questão do reconhecimento um tratamento muito mais
sistemático que Taylor4. Em "Integrity and Disrespect", esse autor
propõe uma tipologia das formas de reconhecimento baseada nas idéias de Ernst
Bloch. Para Bloch, a dignidade humana é uma questão de teoria moral que deve
ser estudada não a partir de alguma noção metafísica positiva de respeito, mas
a partir de condições concretas de desrespeito e injúria. Honneth discorda
dessa idéia, e defende a possibilidade de uma teoria positiva do
reconhecimento.
"Se para o conceito de dignidade, a integridade completa do
homem só pode ser aproximada através da determinação de formas de
insulto e desrespeito da pessoa, então devemos concluir que a
constituição da integridade humana depende da experiência do
reconhecimento intersubjetivo" (Honneth, 1992:188).
Antes, porém, como trabalho preliminar de elaboração de uma teoria positiva do
reconhecimento, Honneth propõe uma tipologia tripartite das formas de
desrespeito. O primeiro caso são os mau-tratos físicos, que ocorrem quando a
pessoa é alienada do controle sobre seu próprio corpo. A tortura e o estupro
são os exemplos clássicos desse insulto. Para Honneth, o maior dano causado por
essa forma de desrespeito não é a dor física, mas a humilhação da perda da
autonomia corporal, que, mais tarde, se converte em perda de autoconfiança,
estranhamento em relação ao mundo e insegurança no contato com outras pessoas.
Em suma, a pessoa é ferida em sua auto-imagem. Honneth denomina essa forma de
desrespeito de "morte psicológica". O segundo tipo de desrespeito
corresponde à negação de direitos a uma pessoa. Segundo Honneth, enquanto
membro de uma sociedade, a pessoa se entende possuidora de uma série de
direitos que espera ver respeitados pelos outros membros. Uma vez que qualquer
desses direitos lhe é repetidamente negado, a pessoa sente-se rebaixada a uma
posição de inferioridade moral, pois o que pressupõe a igualdade de direitos é
a capacidade que cada um tem de formular julgamentos morais. Tal insulto
deprime a auto-estima da pessoa no tocante à capacidade que ela tem de se
relacionar com os outros de igual para igual. Honneth designa essa forma de
desrespeito de "morte social". A terceira forma consiste na
depreciação do estilo de vida individual ou grupal.
"A 'honra', a 'dignidade', ou, para usarmos uma palavra moderna,
o 'status' de uma pessoa, corresponde ao grau de aceitação social,
dentro do horizonte de tradições culturais de uma dada sociedade, dos
métodos de auto-realização escolhidos pela pessoa. Caso a hierarquia
de valores sociais seja estruturada de modo a imprimir um rótulo de
inferioridade e deficiência sobre suas convicções e estilos de vida,
essa pessoa é impedida de atribuir valor social às suas
habilidades" (idem:191).
Nesse caso, o desrespeito, segundo Honneth, deprime a auto-estima da pessoa, na
medida em que ela não consegue identificar seus projetos de auto-realização
como algo de valor para a comunidade onde está inserida.
Baseado nessa tipologia das formas de desrespeito, Honneth constrói uma
tipologia positiva das formas de reconhecimento. O autor argumenta que se a
falta de reconhecimento fere a auto-estima individual (ou grupal), o
reconhecimento mútuo é a maneira pela qual o sujeito é capaz de construir uma
imagem positiva de si mesmo, adquirindo, assim, positividade moral e capacidade
de ação.
A primeira forma de reconhecimento ' a que se refere ao respeito à integridade
corporal da pessoa ' corresponde à afeição e ao encorajamento que ela recebe
daqueles que lhe são próximos. Honneth informa-nos que o jovem Hegel, durante a
sua fase romântica em Jena, chamou-a simplesmente de "amor". O senso
de segurança corporal e autoconfiança afetiva criado pelo reconhecimento dos
sentimentos e necessidades da pessoa é, conforme Honneth, um pré-requisito
psicológico para o desenvolvimento de outras atitudes de respeito próprio.
Contudo, dado que esse reconhecimento advém daqueles que nos são próximos,
membros da família, amigos e parceiros amorosos, aqueles que Taylor chama de
"significant others", ele só pode gerar uma moral particular, ou
melhor, restrita ao círculo fechado daqueles que compartilham essa afeição.
A segunda forma equivale ao reconhecimento do cidadão, por parte dos outros
cidadãos, como membro pleno daquela comunidade e, portanto, como possuidor dos
mesmos direitos e deveres que cabem a qualquer outro cidadão. Segundo Honneth,
essa relação de reconhecimento é investida de um caráter cognitivo ausente na
forma anterior, pois através dela os sujeitos apreendem a lei em seus dois
sentidos, como conjunto de normas específicas da sociedade à qual pertencem e
como princípio universalizante de regulação das relações humanas.
A terceira e última forma de reconhecimento corresponde ao respeito e estima
pelo estilo de vida que constitui parte fundamental da biografia de cada
indivíduo. Do ponto de vista da pessoa, isso corresponde à percepção de que
suas escolhas individuais, qualidades e habilidades são valorizadas pela
sociedade como sua contribuição autêntica. Para Honneth, essa forma de
reconhecimento pressupõe a anterior, ou seja, o reconhecimento universal dos
direitos e deveres. Ao mesmo tempo, ele adiciona ao mero aspecto cognitivo
desse reconhecimento um elemento emocional na forma da solidariedade e da
simpatia. Honneth defende que esse tipo de reconhecimento funciona através do
princípio de diferenças igualitárias, ou seja, da idéia de que as pessoas são
diferentes, mas não desiguais. Honneth conclui que a moralidade, se entendida
como uma instituição que visa à proteção da dignidade humana, deve defender a
"reciprocidade do amor, o universalismo dos direitos e a igualdade da
solidariedade contra os ataques da força e da repressão" (idem:196).
O subtítulo de "Integrity and Disrespect", de Honneth, pode ser
traduzido por "princípios de uma concepção moral baseada na teoria do
reconhecimento". Como o nome indica, por via desse artigo, o autor embarca
no empreendimento ambicioso de propor uma concepção moral inovadora e
sistemática. Contudo, pensamos que é exatamente a partir de seu propósito mais
geral que o esforço de Honneth deve começar a ser criticado, pois a proposta
peca pela falta de inovação e, conseqüentemente, pela incompletude do sistema.
Por que "falta de inovação"? Porque o problema da moral, da razão
prática, deve ser colocado sempre no presente, e, portanto, não pode prescindir
de uma leitura crítica desse presente. Ora, vejamos, para Hegel, a idéia de
Sittlichkeit tem como pressuposto necessário a autonomia política, entendida
como a capacidade de um povo para viver de acordo com seus costumes e elaborar
suas próprias leis ' pressuposto este fundamental à teoria republicana, de
Aristóteles a Carl Schmitt. Mesmo considerando o estado fragmentário dos
principados alemães à época de Hegel, é compreensível que ele tenha, sob a
influência dos ideais revolucionários franceses e do romantismo nacionalista
alemão, desenhado uma teoria política em que o Estado-nação fosse o horizonte
ético da condição humana (individual e coletiva): "a marcha de Deus na
terra" (Hegel, Knox et alii, 1955, § 258). Porém, após dois séculos e três
guerras mundiais5, a decadência do imperialismo europeu e a ascensão do império
americano, nós, seres no presente, não podemos compartilhar de uma visão tão
ingênua6. Qual Estado-nação no mundo de hoje tem autonomia suficiente para que
a idéia hegeliana de Sittlichkeit ainda faça sentido? Os EUA são, de longe, o
mais forte candidato. Os países ditos desenvolvidos da Organização de
Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos ' OCDE, de onde provém grande parte
dos teóricos do reconhecimento, gostariam muito de ser "reconhecidos"
como tal. Devemos notar, porém, que a autonomia política (e portanto ética)
desses países perante os EUA, depois da Segunda Guerra Mundial, ficou muito
reduzida. Isto é particularmente ' e também ironicamente ' verdadeiro para a
Alemanha de Honneth.
Nosso intuito aqui, porém, não é destruir totalmente essa teoria do
reconhecimento, mas apenas desconstruí-la até um ponto a partir do qual ela
possa ser radicalmente reconstruída. Proponho, portanto, que deixemos de lado,
por enquanto, os países desenvolvidos ancilares e seus porta-vozes com seus
sonhos de glória, e dediquemo-nos a pensar o problema do reconhecimento no
contexto da nossa condição de brasileiros, não no que ela tem de mais
particular, mas apenas levando em conta seu alto grau de heteronomia ' uma
característica compartilhada em maior ou menor grau pela maioria da população
do planeta. O caso da nossa vizinha Argentina, onde o presidente ameaçou
renunciar caso o Congresso não aprovasse medidas propostas pelo FMI e depois, a
mando do próprio FMI, tentou forçar o Senado a anular uma lei que pune a evasão
de riquezas do país, é apenas um exemplo mais recente do tipo da heteronomia a
que me refiro. Sem precisar citar os golpes militares de um passado não tão
distante, podemos juntar a esse exemplo recente de heteronomia a tentativa de
golpe na Venezuela, a ascensão da Aliança do Norte no Afeganistão e a condição
a que está submetido o povo palestino.
Precisamos, porém, fazer aqui uma ressalva. Não pretendemos sugerir que nossa
condição é exclusivamente heterônoma, ou seja, que não há espaço algum para um
debate ético-político no Brasil. Só queremos frisar que o forte componente de
heteronomia de nossa condição faz com que não possamos aceitar o modelo de
reconhecimento proposto por Honneth sem antes submetê-lo a uma profunda revisão
crítica. O propósito principal deste artigo é, sem abandonar o problema do
reconhecimento, propor um outro modelo teórico que dê conta da heteronomia de
nossa condição, ao mesmo tempo que possa também ser usado no contexto do debate
"republicano" originalmente elaborado pelos teóricos das
"democracias do Atlântico Norte".
II
Na atualidade, as críticas mais duras à filosofia de Hegel e de seus seguidores
provêm do campo identificado, muitas vezes pejorativamente, como pós-moderno:
nietzschianos de várias cores, autores que estudam o colonialismo e a condição
pós-colonial, feministas, teóricos das questões de gênero, estruturalistas,
pós-estruturalistas etc. Contudo, o autor que utilizaremos (de maneira
assumidamente instrumental, mas não abusiva) como alavanca para organizarmos
nosso modelo alternativo é estranho ao campo pós-moderno. Trata-se de Reinhart
Koselleck, que junto com Otto Bruner e Werner Conze editou a coleção alemã
História dos Conceitos Básicos (Geschichtliche Grundbegriffe), o trabalho mais
detalhado e extenso de história conceitual de que se tem notícia7. A formação
filosófica e historiográfica de Koselleck deu-se em Heidelberg sob a influência
de Hans Georg Gadamer, Martin Heidegger, Karl Löwith e Carl Schmitt8. Sua obra
compõe-se principalmente de ensaios sobre a história de conceitos específicos,
muitos deles verbetes da Geschichtliche Grundbegriffe, e artigos sobre
metodologia e filosofia da história. A este último grupo de trabalhos pertence
o texto "A Semântica Histórico-Política dos Contraconceitos
Assimétricos", a fonte principal de material para o trabalho de
(re)construção que propomos aqui.
Nesse texto, Koselleck elabora um estudo histórico e teórico de formações
conceituais que foram usadas por grupos de pessoas como forma de identificação
mútua e, portanto, de exclusão dos outros. Para Koselleck, o uso desse tipo de
conceito é uma forma de ação política.
"No sentido que damos aqui, um conceito não denota simplesmente
a ação, ele marca e cria sua unidade. O conceito não é somente um
sinal indicativo da ação, mas também um fator dessa ação em
agrupamentos políticos e sociais" (Koselleck, 1985:160).
A adesão de Koselleck ao pragmatismo lingüístico é clara na passagem acima.
Segundo Koselleck, essas formações geralmente ocorrem na forma de "pares
de contraconceitos assimétricos". Cada par é composto por um conceito
positivo e um negativo, sendo este definido em mera oposição ao elemento
positivo. O adjetivo "assimétrico" provém do fato de a relação de
definição não ser mútua: enquanto o Eu define o Outro como pura negação de sua
auto-imagem, o Outro não se reconhece naquela definição. Aí reside um problema
capital de reconhecimento, pois o Outro toma a definição que lhe é impingida
como ofensa, insulto e/ou privação. Estamos, portanto, em um terreno muito
familiar, pois Koselleck, assim como Honneth, está interessado em examinar o
desrespeito como fenômeno lingüístico.
O primeiro par histórico de contraconceitos estudado por Koselleck é hellenos/
barbaros na Grécia clássica.
"Os bárbaros não eram simplesmente considerados não-gregos ou
estrangeiros, mas, enquanto estrangeiros, eram de fato definidos
negativamente como: covardes, grosseiros, glutões, brutos etc. O nome
de um povo ' hellenos ' torna-se o contraconceito para todos os
outros, que são agrupados sob um nome coletivo que significa somente
o contrário de hellenos'. Assimetria é, portanto, semanticamente,
baseada no contraste consciente de um nome específico com uma
classificação genérica" (idem:166).
Koselleck emprega a noção de horizonte de expectativas para denotar os efeitos
cognitivos abertos pelo uso desses conceitos9. Para ele, o caráter negativo do
campo semântico que define o Outro predispõe o Eu a interpretar evidências
empíricas como sinais que confirmam seus "preconceitos". No caso da
Grécia clássica, "contato com comerciantes estrangeiros, a massa de
escravos, a devastação dos campos gregos promovida pelos invasores persas e
experiências similares podiam ser generalizados de maneira acrítica"
(ibidem).
Do ponto de vista político, o horizonte de expectativas gerado pela semântica
do par hellenos/barbaros permitia aos gregos justificar a escravização daqueles
vistos como bárbaros e/ou a submissão de comunidades bárbaras ao governo de
déspotas gregos (Aristotle, 1958)10. Ao argumentar que o bárbaro é um
"escravo por natureza", Aristóteles nos dá uma amostra clara das
expectativas limitadas abertas aos bárbaros na sociedade grega. Devemos
salientar que, nesse contexto semântico, a condição inferior do bárbaro não
estava sujeita a modificações introduzidas pela passagem do tempo. Ou seja, não
havia uma expectativa de transformação futura dos bárbaros em pessoas
civilizadas.
O advento do cristianismo criou novas formas de distinção que ultrapassavam os
limites semânticos do par hellenos/barbaros. A principal forma de oposição do
mundo cristão cristalizou-se em torno do par contraconceitual cristão/pagão. No
evangelho, São Paulo deixa claro que só há duas formas de conduta humana:
aceitar a doutrina cristã e viver de acordo com a escritura, ou rejeitá-la
completamente. O caráter assimétrico dessa concepção é explícito, pois o pagão
é definido apenas por aquilo que ele não é: cristão. Assim como barbaros, o
contraconceito "pagão" está associado no pensamento cristão a
conteúdos semânticos que expressam a falta ou imperfeição de costumes, hábitos
e tradições que definem o cristianismo. Porém, o horizonte de expectativas aqui
assume um caráter fortemente temporal, pois, na doutrina cristã, a
possibilidade da conversão futura do pagão ao cristianismo sempre está aberta.
Ou seja, o cristão crê na possibilidade de um mundo futuro inteiramente
cristão, onde a abominação que é a vida pagã deixe de existir. Essa expectativa
foi usada para justificar a ação dos cristãos contra pagãos. Santo Agostinho
conclui que, enquanto a perseguição de cristãos por parte dos pagãos é injusta,
o contrário é justificável. Em nome do triunfo cristão, europeus do medievo
empreenderam conversões forçadas, saques, invasões e massacres. Na prática, a
eliminação do estilo de vida do pagão muitas vezes redundou na eliminação
física dos próprios pagãos.
Koselleck chama a atenção para o fato de que o surgimento da oposição cristão/
pagão não significou o desaparecimento da oposição que lhe precedeu, hellenos/
barbaros. Pelo contrário, os dois tipos de oposição foram articulados,
alargando assim o arsenal semântico disponível para se representar o Outro. Os
modos de se menosprezar o estilo de vida dos bárbaros podiam sempre ser
adaptados para se referir aos pagãos. O termo bárbaro converte-se em um
adjetivo usado para se atribuir uma generalidade negativa ao nome de povos
pagãos: sarracenos, ávaros, húngaros, eslavos ou turcos.
Por fim, Koselleck analisa as oposições homem/desumano (Mensch/Unmensche) e
super-homem/subhomem (Ubermensch/Untermensch), ambas geradas a partir do campo
semântico da noção iluminista de humanidade. Aqui, a narrativa koselleckiana
volta-se para os detalhes da história desses conceitos na Alemanha, no período
que vai do final do século XVII à Segunda Guerra Mundial. Por razões de
concisão e clareza, vamos expor somente a parte dessa discussão que diz
respeito ao par ariano/não-ariano ' uma versão da oposição Ubermensch/
Untermensch que ganhou força política durante o Terceiro Reich. Segundo
Koselleck,
"O não-ariano é meramente uma negação de uma determinada posição
e nada mais. A aplicação do conceito de ariano não está contida no
conceito de ariano. O mesmo pode se dizer de não-ariano'. Essa
situação define uma forma de negação elástica que fica à disposição
daqueles que têm o poder de regular os conteúdos lingüísticos e
preencher conceitos vazios [...]. Pela primeira vez, o par
lingüístico foi usado de maneira instrumental por aqueles com poder
de regular a língua" (Koselleck, 1985:196).
O autor admite que essa oposição produz a expectativa da eliminação do não-
ariano no futuro. Contudo, a exploração que Koselleck faz da semântica do par
ariano/não-ariano é por demais superficial e, portanto, imprópria para ser
assimilada à nossa tipologia das formas de desrespeito sem antes ser
reinterpretada e modificada.
Por fim, Koselleck observa que pares contraconceituais têm um caráter duplo de
particularidade histórica e estrutura modelar. Se, por um lado, cada par é
produto de um contexto histórico específico, suas estruturas semânticas são
transmitidas e assimiladas pelos novos pares que o sucederam. Nessa concepção,
a história dos conceitos deve ser compreendida como um adensamento semântico e
onomasiológico, em que formas de experiência do passado são transmitidas às
gerações futuras através do meio lingüístico (idem). Essa acumulação permite a
ocorrência da contemporaneidade do não contemporâneo, um termo que Koselleck
cunhou para se referir à coexistência no "presente" de formas
lingüísticas (e, portanto, espaços de experiência) produzidas em momentos
históricos distintos.
III
Apesar de sua riqueza e sofisticação, a teoria de Koselleck não pode ser
integrada como um todo ao nosso projeto de construção de uma tipologia do
desrespeito. Para darmos continuidade a este trabalho, devemos suspender o
caráter histórico da narrativa koselleckiana e retrabalhar os atributos
modelares de suas oposições contraconceituais. Por que o caráter histórico deve
ser suspenso? Ora, o texto de Koselleck tem como pano de fundo uma
macronarrativa da história do Ocidente que começa na Grécia antiga e termina na
Alemanha do Terceiro Reich e de Carl Schmitt. Se nosso modelo das formas de
desrespeito pretende superar as limitações republicanas do modelo de Honneth,
não podemos atribuir um caráter universal à macronarrativa que Koselleck nos
oferece, pois ela é, de fato, baseada na posição nacional alemã. Ademais, a
nosso ver, Koselleck explora de maneira um tanto ligeira as implicações
semânticas e modelares de cada oposição contraconceitual, particularmente nos
casos cristão/pagão e ariano/não-ariano.
Seguindo nosso plano de ação, de cada par de contraconceitos identificados pelo
autor, destilaremos um tipo básico de oposição assimétrica que corresponde à
sua característica modelar mais original. Oposição assimétrica nada mais é do
que uma das formas semânticas que o desrespeito pode assumir quando articulado
através da linguagem. Portanto, nossa tipologia das formas de desrespeito será
também uma tipologia de formas de oposição assimétrica. Do par hellenos/
barbaros deduzimos a oposição assimétrica cultural, ou seja, a forma de
desrespeito que corresponde à descrição do Outro em termos de costumes e
práticas que são meramente a reflexão negativa de uma auto-imagem.
Para Koselleck, a oposição hellenos/barbaros é definida exclusivamente em
termos culturais (modos de vida, hábitos e costumes). Apesar de o sentido geral
dessa interpretação nos parecer correto, pois a evidência textual aponta
realmente para a dominância da oposição cultural, há na concepção grega alguns
traços do que chamaríamos hoje de oposição racial, ou seja, da atribuição de
aspectos culturais negativos a características físicas e fisionômicas. Ao
apresentar a teoria da escravidão natural na Política, Aristóteles discute a
possível correlação entre barbarismo e características físicas inferiores
(Aristotle, 1958:1254b). Apesar de Aristóteles, por fim, rejeitar tal
inferência, o fato de ele ter articulado esse problema naquele contexto
histórico-lingüístico sugere a possibilidade de que tal raciocínio tenha
existido na Grécia antiga. Contudo, este é de fato um problema menor na
interpretação koselleckiana. Ademais, da maneira como a propomos, a oposição
assimétrica cultural pode ser generalizada como forma de desrespeito
independentemente da pertinência da interpretação histórica do caso grego.
A oposição assimétrica cultural pode ser encontrada, por exemplo, em uma das
definições do termo "Latin" apresentadas pelo Oxford English
Dictionary: "proud, passionate, impetuous, showy in appearance[ ],
sometimes somewhat dismissive(Simpson e Profitt, 1997)"11. O sentido
negativo desses termos é óbvio. O orgulho aqui significa uma forma exagerada de
auto-estima. O caráter passional é claramente uma alusão à irracionalidade
daqueles que são dominados pelas paixões. Impetuosidade é a característica
irracional daquele que age por impulso. A pessoa que se preocupa com as
aparências é vã e fútil. O sujeito arisco é aquele em quem não se pode confiar.
Ademais, esses insultos correspondem à negação exata de uma auto-imagem anglo-
saxã de racionalidade, disciplina, correção e caráter.
Chamamos a segunda forma de desrespeito de oposição assimétrica temporal. Ela é
relacionada ao par contraconceitual cristão/pagão, mas de maneira indireta e
incompleta. Koselleck limita sua análise a autores do cristianismo primitivo e
medieval que permaneceram fiéis a uma noção temporal dominada pela eminência
escatológica e, por conseguinte, deixa de notar que o desenvolvimento mais
profícuo da noção temporal cristã se dá quando de sua secularização a partir do
começo da Idade Moderna. Os pioneiros desse movimento de secularização foram os
tomistas espanhóis Bartolomeu de las Casas e José de Acosta ' autores que se
engajaram na exploração etnológica dos povos do Novo Mundo12. Para determinar o
"lugar" desses novos povos no mundo, eles criaram um sistema de
classificação comparada de todas as sociedades de que os europeus tinham
notícia, incluindo povos e civilizações já extintos. Nesse sistema, a
cristandade católica européia ocupa o ápice de uma escala de desenvolvimento e
é, ao mesmo tempo, a medida pela qual outros povos são classificados. Culturas
extra-européias são, dessa maneira, identificadas com povos europeus do
passado, criando a possibilidade de se pensar diferença cultural em termos de
primitivismo, atraso ou retardamento, isto é, em termos de diferença
temporal13. Essa possibilidade, aberta pelas etnologias de Las Casas e Acosta,
se consolidou com o advento de teorias históricas seculares do progresso
contínuo na França iluminista14. Nelas, a escatologia cristã foi finalmente
abandonada, enquanto a noção eurocêntrica de progresso moral e material se
tornou o principal instrumento etnológico de classificação do Outro.
Vale ressaltar que cada um desses movimentos de secularização da concepção
histórico-etnológica (tomismo espanhol e iluminismo) coincidiu com uma onda de
expansão mundial do colonialismo europeu. Essa coincidência não é aleatória,
pois, nos dois casos, as novas etnologias serviram para justificar a submissão
de povos definidos como "atrasados" ou "imaturos" aos
próprios europeus. O paternalismo da retórica colonial, da mission
civilisatrice, só pôde ser articulado tomando como base tais etnologias.
Como já declaramos, o ponto de partida de nosso esforço de construir uma
tipologia das formas do desrespeito é o presente. E neste presente, a forma de
desrespeito que se articula como oposição temporal assimétrica é expressa
majoritariamente através de etnologias do desenvolvimento material e moral, e
não da expectativa cristã primitiva de uma solução escatológica para o problema
do Outro. Essa é uma forma de desrespeito das mais sérias, pois transforma o
Outro (o atrasado) em objeto da ação do Eu (desenvolvido). A teoria da
modernização desenvolvida na academia americana durante as décadas de 1950 e
1960 é inteiramente baseada na oposição temporal assimétrica de um Eu
ocidental, americano, capitalista-protestante, que é desenvolvido, a um Outro
tradicional, que é simplesmente definido pela falta desses atributos. Essa
teoria serviu de base para uma série de políticas externas americanas, da
Aliança para o Progresso à remoção forçada de centenas de milhares de
camponeses vietnamitas de suas moradias na zona rural para grandes cidades15.
A terceira forma de desrespeito, oposição racial assimétrica, é derivada das
idéias de Koselleck de maneira ainda mais indireta do que a anterior. Koselleck
não compara a semântica do par ariano/não-ariano aos pares que o precederam.
Façamos o serviço em seu lugar. Assim como "bárbaro", o conceito de
não-ariano foi usado para se referir genericamente ao Outro, de maneira a
apresentá-lo como moralmente inferior. Assim como no par cristão/pagão, a
oposição ariano/não-ariano gerava a expectativa de solução para o problema do
Outro no futuro, que, nesse caso, correspondia à purificação do Lebensraum
alemão de elementos não-arianos e à submissão do resto do mundo ao domínio
geopolítico alemão. No entanto, o campo semântico desse par contém elementos
estranhos aos dois outros que o precederam (hellenos/barbaros e pagão/cristão).
Essa "novidade" corresponde à articulação da diferença em termos de
raça.
Durante o século XIX, o conceito de "raça" assumiu uma importância
político-ideológica sem precedentes para as ideologias nacionalistas que
sustentaram a consolidação dos Estados-nação europeus, principalmente na
Alemanha, França e Inglaterra. Segundo Hannaford (1996), naquele período, o
conceito de raça era usado para exprimir de maneira sintética diferenças que
podiam ser biológicas, lingüísticas e/ou culturais. Todavia, o autor deixa de
notar que esses componentes da noção de raça não são eqüipotentes. Isto é
particularmente verdadeiro para a maneira como o termo é empregado nos dias de
hoje. Tanto em português com em inglês, o termo "raça" (race) não é
totalmente destituído de referências culturais, ou seja, no uso comum dessas
línguas, culturas específicas são identificadas com determinadas raças. O que
parece escapar a Hannaford, e também a Koselleck, é que o componente biológico,
expresso através de referências a aspectos físicos, fisionômicos e
psicológicos, é, no presente, o elemento determinante da noção de raça.
Parece-nos correto afirmar que "raça" é uma construção sociocultural.
Ao mesmo tempo, porém, não podemos deixar de notar que o termo é usado para
significar algo que está além (ou aquém) da cultura (aspectos físicos,
fisionômicos e psicológicos). A percepção da diferença racial como oposição
assimétrica cria um universo de expectativas próprio, em que o problema do
Outro não pode ser "resolvido" pela assimilação cultural ' solução
que sempre esteve no horizonte dos projetos colonialistas. Dado seu caráter
biologizante, a oposição racial assimétrica aponta para a solução desse
problema na forma do controle radical do corpo do Outro. Os exemplos práticos
desse tipo de desrespeito são a solução final nazista, os guetos étnicos das
grandes cidades americanas, o regime sul-africano do apartheid etc.
Um exemplo claro de articulação retórica dessa forma de desrespeito é dado pelo
discurso proferido no Congresso americano pelo deputado do Estado de Nova
Iorque Washington Hunt quando da discussão sobre a anexação de partes do
território mexicano durante a guerra americano-mexicana (1846-1848):
"Pensem no tipo de população que a anexação desses territórios
trará para nossa confederação. Devemos preparar-nos para receber uma
massa incongruente de espanhóis, índios e mexicanos mestiços ' uma
mistura de raças que não vai poder usufruir ou administrar nossas
instituições livres. Homens de sangue diferente e língua diferente,
que não devem se misturar com o nosso povo em pé de igualdade
política e social" (Schoultz, 1998:32).
A assimetria da comparação é patente: de um lado, americanos brancos anglo-
saxões, de outro, um coletivo de gente escura (não-brancos). Ao final, os
territórios mexicanos foram anexados à Federação americana, mas a maioria
daquelas populações "indesejáveis" foi exterminada no processo de
apropriação, seja pelo exército americano, seja pelos colonos. A expectativa
criada por essa percepção racial altamente assimétrica, da qual Hunt era
somente um porta-voz, moldou o futuro.
Através da noção da contemporaneidade do não contemporâneo, Koselleck
identifica o sintoma da sobreposição cumulativa dos campos semânticos de pares
de contraconceitos: o cristão pôde usar o arsenal pejorativo que os gregos
criaram para se referir aos bárbaros e combiná-lo com sua noção de
temporalidade; os racistas podem se servir dos dois para somar à distinção
biológica aspectos culturais e temporais (ex: raças mais primitivas têm
culturas menos evoluídas). A idéia da contemporaneidade do não contemporâneo,
de fato, parece uma hipótese interessante, porém, ao suspendermos a
macronarrativa histórica que orienta o texto de Koselleck, acabamos por
descartar o padrão de acumulação semântica específico que ela identifica (dos
gregos aos alemães, passando pelos cristãos). Resta-nos substituí-la por uma
nova categoria: a "tradutibilidade das formas de oposição
assimétrica", definida como propriedade pela qual certas expressões
lingüísticas são capazes de denotar mais de uma forma de desrespeito. Ou seja,
vocabulários usados na descrição de uma determinada forma de oposição
assimétrica, não raro, podem sugerir outras. Por exemplo, a palavra
temperamento tem matizes culturais e raciais; categorias sociocientíficas como
"patriarcalismo" e "feudalismo" têm nuanças culturais e
temporais.
A existência de possibilidades de tradução depende não somente do significado
intersubjetivo de cada um dos conceitos utilizados, mas também da articulação
retórica empregada no material a ser examinado. Termos que usualmente não são
associados a uma determinada forma de desrespeito podem ser semanticamente
contaminados pela proximidade de outros termos geralmente associados àquela
forma. Em suma, diferentemente da "contemporaneidade do não
contemporâneo", que é definida como característica intrínseca e inelutável
do processo histórico, a "tradutibilidade das formas de oposição
assimétrica" é uma propriedade hipotética que só pode ser confirmada
através da análise de cada caso, prescindindo, assim, de qualquer entendimento
prévio sobre os rumos da "história universal".
IV
Nossa tipologia das formas de desrespeito não é incompatível com a tipologia
negativa de Honneth. De certa maneira, as oposições assimétricas cultural e
temporal podem ser vistas como casos particulares da terceira forma de
desrespeito identificada pelo autor ' aquela que degrada o estilo de vida da
pessoa. Porém, ao empreender uma análise detalhada das articulações
lingüísticas (ou retóricas) do desrespeito, nosso modelo é capaz de revelar
aspectos que a teoria de Honneth sequer vislumbra. Na verdade, as três formas
de desrespeito identificadas por nós podem ser usadas (e foram usadas),
individualmente ou em conjunto, para justificar todas as três formas de Honneth
(abuso físico, negação de direitos e degradação do estilo de vida). Por meio da
noção da tradutibilidade das formas de desrespeito, podemos examinar as várias
combinações dessas formas e, portanto, compreender melhor o poder que esses
usos lingüísticos têm de rebaixar o Outro a uma condição de inferioridade
submissa.
Essa solução também nos parece vantajosa quando comparada à concepção do
problema do reconhecimento segundo o cânone do republicanismo hegeliano.
Primeiro, ela nos permite identificar o desrespeito, expresso no uso
lingüístico corrente de oposições assimétricas, em situações inacessíveis à
concepção republicana, como, por exemplo, quando o desrespeito ocorre em
comunidades lingüísticas nas quais o Outro não é parte significativa. Essa
função nos ajuda a desvendar conexões entre nossa condição de heteronomia e o
desrespeito em um contexto internacional altamente assimétrico. Se a
identificação desse desrespeito não nos permite de pronto alterar a situação de
heteronomia, ela pelo menos nos ensina a assumir uma postura crítica em relação
a discursos que reproduzem as mesmas formas de desrespeito.
Segundo, nossa tipologia das formas de desrespeito pode também ser aplicada ao
contexto limitado do Estado-nação democrático liberal, servindo a todos aqueles
que se sentem vítimas de desrespeito como ferramenta de resistência e
desconstrução de discursos que lhes parecem insultantes. Como contribuição ao
embate ideológico e político, nossa proposta nos parece superior à oferecida
pelo republicanismo hegeliano (seja de Taylor ou Honneth), pois permite que a
identificação do desrespeito se torne independente da afirmação de uma
identidade autêntica. Através desse instrumental analítico, a pessoa, ou grupo
de pessoas, pode localizar e rejeitar formas lingüísticas que lhe atribuam um
caráter de imaturidade, primitivismo ou inferioridade, sem ter que assumir
publicamente qualquer identidade específica. Ademais, as pessoas ou grupos que
desejam afirmar publicamente uma identidade podem utilizar-se dessa tipologia
da mesma maneira. Em suma, nossa tipologia pretende servir de ferramenta
político-ideológica na luta pela realização, na prática, da igualdade da
cidadania liberal expressa formalmente na letra da lei16.
O caráter eminentemente negativo de nossa tipologia é particularmente
apropriado ao contexto brasileiro onde, para o bem ou para o mal, os rótulos
raciais e étnicos definidos no Primeiro Mundo não se reproduzem de maneira tão
nítida ou similar. Ademais, a idéia de autenticidade que anima a teoria
multicultural republicana produz efeitos perversos também no contexto dos
países "desenvolvidos". Por exemplo, nos EUA, programas como
affirmative action e outros benefícios proporcionam incentivos àqueles que se
identificam como minorias. Contudo, ao se identificar publicamente dessa
maneira, a pessoa está explicitamente assumindo o caráter subalterno de sua
posição. Isto leva a uma contradição prática na qual, para se tornar igual, a
pessoa deve apresentar-se como inferior. Resta-nos saber se esse tipo de
programa é capaz de superar essa contradição.
Por fim, nosso modelo evita a conclusão hegeliano-republicana, clara em
Honneth, de que o reconhecimento depende da formação de uma autoconsciência
saudável. Honneth acredita que essa concepção positiva sirva de base para que
todos possam lutar politicamente pelas condições que lhes proporcionem uma vida
familiar e afetiva sadia, direitos negativos iguais e reconhecimento cultural
(ver Honneth, 1992). No entanto, tal conclusão parece depender de um padrão de
normalidade que, imediatamente, se constitui como critério de exclusão das
pessoas que, de alguma maneira, falharam na formação "correta" de sua
autoconsciência. Em outras palavras, a tipologia positiva de Honneth pode
constituir-se, na prática, em instrumento de promoção de mais desrespeito.
O reconhecimento, como forma positiva, deve ser um produto do engajamento
concreto das pessoas na política, e não um valor a ser fixado através da
especulação teórica. O esforço em determiná-lo teoricamente é contraditório
porque nega os princípios de liberdade e igualdade democrática sobre os quais o
próprio reconhecimento se assenta. Conseqüentemente, a teoria deve ser usada
para ajudar-nos a resistir às formas de desrespeito, criando ferramentas úteis
ao debate político, tenha esse como objeto a comunidade nacional ou os
discursos que legitimam poderes imperiais e transnacionais.
NOTAS
1. Por falta de melhor termo, usarei aqui "desrespeito" ou
"falta de reconhecimento" como antônimo de
"reconhecimento". Em inglês criou-se o neologismo
"misrecognition" para denotar a falta de reconhecimento
(recognition). O termo usado por Honneth no original alemão é
"Anerkennung", que significa não somente reconhecimento puro e
simples, mas também a atribuição de qualidades positivas através desse ato.
Assim como o português, o alemão também não tem um antônimo perfeitamente
simétrico para o termo. Honneth usa "Mißachtung", que se traduz por
desrespeito, mas que pode também carregar significados mais negativos como
insulto, humilhação, degradação, privação de liberdade e mesmo agressão física.
Ver "Translator's Note", em The Struggle for Recognition: The Moral
Grammar of Social Conflicts (Honneth, 1995).
2. Todas as traduções de citações extraídas de originais em inglês são de minha
autoria.
3. O pragmatismo lingüístico, às vezes referido como linguistic turn, é hoje em
dia uma posição epistemológica de grande força nos meios acadêmicos da Europa
continental e de países anglófonos. O livro Philosophical Investigations, de
Wittgenstein (1953), é geralmente identificado como a obra fundadora dessa
abordagem.
4. Em The Struggle for Recognition, Honneth expõe claramente as raízes
hegelianas de sua tipologia do reconhecimento, que é, de fato, inspirada na
obra produzida pelo jovem Hegel em Jena, quando ainda sob a influência do pós-
kantismo romântico de Schelling e Hölderling e da filosofia neokantiana de
Fichte (ver Pinkard, 2000). Honneth usa como fonte da filosofia do jovem Hegel
o conjunto de obras que precederam a publicação da Fenomenologia do Espírito.
São elas: O Sistema da Eticidade (System der Sittlichkeit, 1802/03), Primeira
Filosofia do Espírito (System der spekulativen Philosophie, 1803/04), e Jenaer
Realphilosophie (1805/06).
5. Tomo aqui a liberdade de contar a Guerra Fria como a Terceira Guerra
Mundial, pois essa se estendeu verdadeiramente por todo o planeta.
Infelizmente, ainda não contamos com estatísticas confiáveis quanto ao número
de mortos produzidos por esse conflito.
6. A diferença entre imperialismo e império feita aqui não corresponde à
distinção original elaborada por Hardt e Negri (2000). Para estes autores, os
imperialismos europeus assentavam-se em bases nacionais, enquanto o império do
presente é o único verdadeiramente global. Coerentemente, para Negri e Hardt, a
expressão "império americano" não é verdadeira, afirmação com a qual,
obviamente, discordamos, pois os mecanismos políticos de tomada de decisão no
contexto imperial atual são altamente dependentes da dinâmica política
doméstica americana. O governo Bush tem dado mostras abundantes dessa triste
realidade.
7. A Geschichtliche Grundbegriffe (Koselleck et alii, 1972/1997) é uma obra de
aproximadamente nove mil páginas, dividida em nove volumes, com um total de 115
verbetes dedicados a conceitos específicos (Richter, 1995).
8. Uma introdução curta mas informativa à biografia intelectual de Koselleck
foi escrita pelo tradutor Keith Tribe em Futures Past (Koselleck, 1985). Para
um exame mais detalhado do projeto da Geschichtliche Grundbegriffe, ver Richter
(1995).
9. A noção de horizontes de expectativas advém da teoria hermenêutica de
Gadamer (1995). Um outro exemplo claro e brilhante do uso dessa noção pode ser
encontrado em Ricoeur (1981).
10. Melvin Richter (1990) explora com detalhe as conexões entre os conceitos
gregos de despotismo, escravidão e barbarismo.
11. Tradução aproximada: orgulhoso, passional, impetuoso, exibido e, algumas
vezes, um pouco arisco. A citação foi mantida na língua original com o intuito
de preservar o conteúdo semântico dos adjetivos, que é invariavelmente alterado
em qualquer tradução.
12. Para uma análise mais pormenorizada das contribuições de Las Casas e
Acosta, ver Pagden (1982).
13. O antropólogo Johannes Fabian (1983) cunhou o termo "não-
concomitância" para descrever a percepção de que pessoas, na qualidade de
membros de uma determinada comunidade, possam existir no presente e, ao mesmo
tempo, no passado. Para uma genealogia detalhada da noção de "não-
concomitância", ver Feres Jr. (2002).
14. O exemplo mais acabado desse tipo de concepção histórica se encontra em
Condorcet (1988). Para uma discussão panorâmica do desenvolvimento de teorias
históricas do progresso contínuo a partir da escatologia cristã, ver Löwith
(1949).
15. Noam Chomsky (1968) descreve em detalhe a participação de "grandes
nomes" das ciências sociais americana, como W. W. Rostow e Samuel
Huntington, na concepção e implementação de políticas de urbanização forçada no
Vietnã. Baseado na premissa de que o comunismo vietnamita era um sintoma da
falta de desenvolvimento, Huntington conclui que uma "modernização"
acelerada dos camponeses vietnamitas (urbanização forçada) roubaria aos
vietcongs sua base de sustenção.
16. Por ser eminentemente negativa, nossa proposta é de pouca valia para as
minorias que desejam reclamar direitos especiais para a preservação de sua
autenticidade.