Sistemas nacionais de inteligência: origens, lógica de expansão e configuração
atual
INTRODUÇÃO
Sistemas governamentais de inteligência consistem em organizações permanentes e
atividades especializadas na coleta, análise e disseminação de informações
sobre problemas e alvos relevantes para a política externa, a defesa nacional e
a garantia da ordem pública de um país. Serviços de inteligência são órgãos do
Poder Executivo que trabalham prioritariamente para os chefes de Estado e de
governo e, dependendo de cada ordenamento constitucional, para outras
autoridades da administração pública e mesmo do Parlamento. São organizações
que desempenham atividades ofensivas e defensivas na área de informações, em
contextos adversariais em que um ator tenta compelir o outro à sua vontade.
Nesse sentido, pode-se dizer que essas organizações de inteligência formam,
juntamente com as Forças Armadas e as polícias, o núcleo coercitivo do Estado
contemporâneo1.
Serviços de inteligência não são meros instrumentos passivos dos governantes,
agentes perfeitos da vontade de seus dirigentes ou mesmo materializações de um
tipo ideal de burocracia racional-legal weberiana. Antes de tudo, porque sua
atuação impacta as instituições e o processo político de muitas formas e porque
essas organizações têm seus próprios interesses e opiniões acerca de sua
missão. Embora o tema da intervenção dos serviços de inteligência e de
segurança na vida política mais geral seja de grande interesse, tratar os
serviços de inteligência como variáveis independentes que influenciam as
instituições políticas tende a ser um esforço frustrante quando se sabe tão
pouco sobre a origem e o desenvolvimento desses serviços2. Por isso, no texto
que segue os serviços de inteligência serão considerados como variáveis
dependentes. Como não existem ainda estudos sistemáticos sobre o processo
através do qual os serviços de inteligência chegaram ou poderiam chegar a
tornar-se organizações dotadas de "valor e estabilidade", ou seja,
instituições, o procedimento expositivo adotado procurará responder
sistematicamente à pergunta sobre a origem, o desenvolvimento e a atual
configuração organizacional dos sistemas nacionais de inteligência, mas sem
deixar de explicitar as lacunas existentes no conhecimento a respeito3.
O ESTADO MODERNO E A FUNÇÃO DE INTELIGÊNCIA
As primeiras organizações permanentes e profissionais de inteligência e de
segurança surgiram na Europa moderna a partir do século XVI, no contexto de
afirmação dos Estados nacionais como forma predominante de estruturação da
autoridade política moderna4.
Como se sabe, o processo de afirmação dos Estados nacionais europeus foi
marcado por importantes conflitos sociais, descontinuidades históricas e uma
intensa competição entre os Estados nacionais e destes Estados com outros tipos
de unidades políticas, particularmente os impérios, as cidades-estado e as
ligas de cidades. A melhor explicação disponível sobre essa dinâmica é
fornecida por Charles Tilly, em seu livro Coerção, Capital e Estados Europeus
(1996)5.
O argumento de Tilly pode ser assim resumido: a posse concentrada de meios de
coerção foi utilizada por grupos sociais previamente dominantes na ordem
feudal, em alguns casos aliados à burguesia ascendente nas cidades, para
aumentar a população e o território sobre os quais pretendiam exercer poder. A
gênese desse processo está relacionada a pressões impostas pelos califados
árabes e pelas movimentações de povos na estepe oriental da Europa, que
forçaram os governantes europeus a redefinirem competitivamente suas bases de
dominação política e sua infra-estrutura econômica. Quando uma coalizão que
tentava expandir sua base de recursos encontrou grupos com meios de força
comparáveis e que tornavam muito elevados os custos da dominação, a guerra foi
o mecanismo de resolução do impasse.
Conquistadores transformaram-se em governantes quando tentaram exercer um
controle estável sobre as populações e territórios cada vez mais extensos,
única forma de garantir o acesso regular aos bens e serviços ali produzidos.
Nas diversas regiões da Europa e depois do mundo, os governantes mais poderosos
fixaram os termos da guerra, e coube aos governantes menos poderosos escolher
entre a acomodação e o esforço extenuante de preparação para a mesma.
Para todos os governantes, a guerra e a preparação para a guerra dependiam da
extração de recursos essenciais (dinheiro, soldados, provisões, armas etc.) que
suas populações não estavam dispostas a entregar sem compensações ou, no
mínimo, o fariam a um elevado custo político. Assim, além dos limites
estabelecidos pela dinâmica conflitiva entre as diversas unidades políticas
mais ou menos similares, a forma de organização política interna de cada Estado
foi condicionada pela estruturação das principais classes sociais e,
principalmente, pelos conflitos entre os grupos sociais e de alguns daqueles
grupos sociais (especialmente proprietários e trabalhadores) com as elites
políticas governantes. Na medida em que os custos da guerra aumentaram e os
conflitos sociais intensificaram-se com a industrialização, os construtores de
Estados (state-builders) foram compelidos a barganhar direitos políticos e
favores econômicos por recursos, que variaram de impostos à prestação de
serviço militar. Essa barganha foi em grande medida tornada irreversível por
sua fixação legal e transformação em costume quase-legal e esteve na gênese do
que hoje se chama cidadania.
No entanto, o tipo de Estado que predominou em cada período e região dependeu
da combinação entre diferentes taxas de acumulação e concentração de meios de
coerção (controlados pelos governantes) e taxas igualmente variáveis de
acumulação e concentração de capital (controlado por agentes privados). Em
distintas regiões da Europa, os governantes utilizaram estratégias extrativas e
de dominação que podem ser caracterizadas como de intensa aplicação de coerção
(áreas de poucas cidades e predominância agrícola) ou como de intensa inversão
de capital (áreas de muitas cidades e predominância comercial, com produção
voltada para o mercado). As variadas estratégias de intensa coerção e de
"coerção capitalizada" poderiam ajudar a entender, ainda que remotamente, as
dessemelhanças doutrinárias e organizacionais entre os primeiros serviços de
inteligência e segurança surgidos, por exemplo, na Rússia e na Inglaterra no
século XVI.
A variação na escala da guerra, bem como a formação, a partir do século XVII,
de um sistema europeu de Estados soberanos foram dois fatores determinantes
para a vantagem comparativa daqueles Estados que apresentaram trajetórias de
"coerção capitalizada". Segundo Tilly (1996:45-88), esse tipo de percurso
ocorreu quando coalizões de burocratas, capitalistas e estadistas foram mais
eficientes na gestão da guerra, beneficiaram-se de instituições jurídicas e
administrativas mais fortemente racionalizadas, mantiveram-se mais estavelmente
associados às classes sociais através da constitucionalização do exercício do
poder e estiveram mais intensamente envolvidos na construção de infra-estrutura
econômico-social, provimento de serviços e adjudicação de conflitos.
Ao cabo desse processo, já bem avançado o século XIX, os diversos tipos de
Estados começaram a convergir para o que passou então a ser reconhecido como o
modelo de Estado nacional soberano, caracterizado pela autoridade exclusiva e
constitucionalmente delimitada sobre um território e uma população, bem como
pelo monopólio do uso legítimo da força. Eventualmente, a resultante dessas
várias interações levou à prolongada hegemonia dos Estados capitalistas com
sistemas políticos democráticos no sistema internacional, primeiro com a
Inglaterra, depois com os Estados Unidos6.
Este é um tipo de narrativa sobre o surgimento e a mudança institucional que
combina uma dinâmica evolutiva (a guerra como mecanismo de seleção) com uma
forte ênfase intencional (interação entre grupos sociais delimitados produzindo
conseqüências mais ou menos desejáveis sobre normas e organizações
adaptativas). Como lembra Robert Goodin (1996:24-37), é inegável que o acaso e
os acidentes também jogam um papel no desenho institucional de políticas,
mecanismos sociais e sistemas. Porém, mesmo nos casos em que esse papel é mais
evidente, é difícil isolar o puro acaso daquilo que são as conseqüências não
intencionais de ações perfeitamente racionais, ou daquilo que são resultados
agregados de interações entre diversos atores, resultados estes que diferem das
intenções iniciais de qualquer ator em particular. É extremamente difícil
precisar a exata combinação entre acaso, evolução e intencionalidade no desenho
inicial e na trajetória de qualquer organização ou procedimento, seja ele o
Estado moderno ou os serviços de inteligência7.
Feita a ressalva, assumo provisoriamente que o surgimento dos serviços de
inteligência modernos foi predominantemente um fenômeno causado por atos
intencionais. Os reis e ministros dos Estados europeus modernos, em seu
processo de competição com outros governantes e no esforço de implementar sua
dominação sobre territórios e populações cada vez mais amplos, mobilizaram
recursos e fundaram organizações especializadas na obtenção de informações. A
criação de serviços secretos (mais tarde conhecidos como serviços de
inteligência) foi uma das respostas às necessidades mais gerais dos governantes
em termos de redução dos custos de transação associados à obtenção de
informações.
Do ponto de vista das explicações disponíveis sobre por que organizações e
instituições surgem, a constituição de serviços de inteligência pode ser
interpretada, em parte, como um resultado direto do puro cálculo estratégico de
governantes perseguindo fins previamente dados (vencer a guerra e ampliar sua
dominação) e, em parte, como uma resultante mais ou menos imprevisível do
esforço desses mesmos governantes para adequarem seus fins a um contexto
situacional que precisava ser mais bem compreendido e no qual seu próprio papel
enquanto sujeitos políticos interessados era pouco claro8. Em um ambiente
internacional altamente competitivo, incerto e marcado por altos custos de
obtenção de informações necessárias à compreensão das intenções e capacidades
de outros atores relevantes, os governantes modernos lançaram mão de vários
instrumentos que pudessem reduzir tais custos, desde casamentos e outras formas
de alianças dinásticas até o uso de serviços secretos.
Dada a trajetória de afirmação do Estado moderno descrita por Charles Tilly,
proposições adicionais sobre a natureza das novas organizações de inteligência
deveriam considerar não apenas sua função primária (prover informações), mas
também as funções secundárias associadas ao uso dessas informações para a
dominação e a maximização de poder em diferentes períodos e contextos
nacionais. Nesse sentido, os serviços de inteligência modernos teriam surgido
com uma dupla face, informacional e coercitiva a um só tempo. Essa dupla
natureza caracteriza ainda hoje os sistemas nacionais de inteligência
existentes. É preciso reconhecer, porém, que há pouca evidência histórica
disponível para ilustrar essa suposição, especialmente no período que vai do
século XVI ao final do século XVIII. Mesmo do ponto de vista teórico, os dois
autores contemporâneos mais importantes que mencionam algo a respeito tendem a
enfatizar características e funções opostas.
Por um lado, Anthony Giddens discute, em seu livro The National-State and
Violence (1987), como o controle governamental de informações relevantes sobre
a população e os recursos de cada país foi crucial para a gênese e a
consolidação da autoridade soberana do Estado nacional, tanto no plano interno
como no plano internacional ou sistêmico. Por outro lado, Tilly menciona o
papel dos serviços de inteligência enquanto um meio direto de coerção:
"Governantes [...] enfrentaram alguns problemas comuns, mas o fizeram
de modo diferente. Forçosamente, distribuíram os meios de coerção de
forma desigual por todos os territórios que tentaram controlar. Na
maioria das vezes, concentraram a força no centro e nas fronteiras,
tentando manter a sua autoridade entre um e outro por meio de grupos
coercivos secundários, leais aplicadores locais de coerção, patrulhas
volantes, e pela disseminação de órgãos de inteligência" (1996:72).
Note-se que Tilly enfatiza a função coercitiva em detrimento do papel
informacional dos órgãos de inteligência, enquanto Giddens fala da importância
dos sistemas de informação indiferenciadamente, sem atentar para o que há de
específico no caso dos serviços de inteligência9. Como o foco de ambos é o
Estado moderno e não os serviços de inteligência, é compreensível que tenham
destacado apenas a faceta do fenômeno que servia mais imediatamente a seus
propósitos.
No caso do comentário de Tilly, entretanto, há dois riscos mais sérios. Em
primeiro lugar, tratar os serviços de inteligência genericamente como
organizações repressivas impede que se compreendam suas especificidades (o
papel central do segredo e do conhecimento) em relação às principais
organizações de força do Estado, tais como as Forças Armadas e as polícias. Em
segundo lugar, há o risco de se tratar os serviços de inteligência
contemporâneos como se fossem mera continuidade das primeiras organizações
modernas, que teriam surgido totalmente prontas e imutáveis como resultado da
vontade de poder de déspotas iluminados10.
Na verdade, a trajetória moderna dos serviços de inteligência é marcada por
grandes descontinuidades entre os primeiros serviços secretos surgidos no
contexto do absolutismo e as inúmeras organizações que configuram atualmente os
sistemas nacionais de inteligência e segurança. É justamente essa diversidade
de funções e perfis organizacionais que torna equivocado caracterizar os
serviços de inteligência exclusivamente como organizações de força do Estado.
Como parte do núcleo coercitivo do Estado contemporâneo, os serviços de
inteligência desempenham um papel predominantemente informacional, com algumas
funções explicitamente coercitivas sendo desempenhadas por unidades específicas
do sistema.
Além da descontinuidade histórica e da diversidade de funções exercidas por
diferentes componentes dos sistemas nacionais, um outro problema na
caracterização dos modernos serviços de inteligência é que as macrofunções
desempenhadas por eles são apenas uma parte da explicação sobre por que eles
surgiram e qual é o seu perfil organizacional atual. A outra parte da
explicação é política, não funcional. Para Amy Zegart (1999:42), o desenho
inicial e o desenvolvimento posterior de organizações na área de segurança
nacional seriam fortemente condicionados por três fatores, em ordem decrescente
de importância: a) as escolhas estruturais feitas quando do surgimento da
agência; b) os interesses e preferências cambiantes dos atores relevantes; c)
os eventos externos que, dependendo da intensidade e do timing, podem forçar
uma mudança organizacional.
A formação dos sistemas nacionais de inteligência acompanhou as linhas mais
gerais da delimitação de identidades nacionais, construção do Estado (state-
building), institucionalização democrática, utilização de sistemas de
informação e usos de meios de força na era moderna. Mas, para ir além da
contextualização proporcionada pelo livro de Charles Tilly, é necessário
conhecer não apenas os resultados contingentes de inúmeros conflitos político-
burocráticos no momento do surgimento de cada organização, mas também como os
atores relevantes modificaram seus interesses, preferências e cálculos de custo
e benefício diante dos eventos decisivos que marcaram a trajetória de cada
organização. É preciso, também, ser capaz de reconhecer os diferentes ritmos da
formação de sistemas nacionais e, dentro de cada país, como o "crescimento
institucional" variou para cada tipo de organização11.
Lamentavelmente, isso está muito além do que o estágio atual da pesquisa nessa
área permite. É possível, no entanto, dar um passo adiante e especificar melhor
as matrizes organizacionais dos atuais serviços de inteligência. Para tanto, na
próxima seção, serão utilizados dados referentes a diferentes países e a
distintos momentos históricos para a composição de um primeiro esboço
interpretativo.
ORIGENS: DIPLOMACIA, GUERRA E POLICIAMENTO
O surgimento dos sistemas nacionais de inteligência está associado, segundo
Michael Herman (1996:2-35), ao lento processo de especialização e diferenciação
organizacional das funções informacionais e coercitivas que faziam parte,
integralmente, da diplomacia, do fazer a guerra, da manutenção da ordem interna
e, mais tarde, também do policiamento na ordem moderna. Embora as primeiras
organizações surgidas em cada uma dessas matrizes tenham desaparecido e as
organizações atuais possuam uma escala de operações muito maior e mais complexa
do que seus precedentes históricos, pode-se obter uma visão mais concreta da
dupla natureza dos serviços de inteligência analisando-se cada uma dessas três
matrizes organizacionais separadamente12.
Diplomacia e Inteligência Externa
As relações diplomáticas permanentes que se tornaram comuns na Europa entre os
séculos XVI e XVII, seguindo os passos da diplomacia renascentista, serviam
tanto para a representação e a negociação dos interesses coletivos das unidades
políticas quanto para a obtenção e comunicação de informações13. Aliás, foi
somente em meados do século XVII que as três grandes potências européias da
época (Inglaterra, França e Espanha) passaram a contar com arquivos
diplomáticos organizados e utilizáveis para a recuperação de informações. As
chancelarias também começaram a coletar novas informações, tanto ostensivamente
como por meios encobertos.
No caso da Inglaterra, desde que Francis Walsingham tornou-se secretário de
Estado de Elizabeth I em 1573, uma das funções mais importantes da Secretaria
passou a ser o controle do que era chamado então de "the intelligence". O termo
não significava apenas a provisão de informações extraordinárias sobre
potências inimigas (especialmente sobre a frota espanhola antes de 1587) ou
conspiradores internos (como os jesuítas e outros perseguidos com base no
Treason Act de 1351), mas incluía também um suprimento regular de notícias
internacionais e informações sobre o mundo14.
A maior parte dessas notícias era relativamente rotineira e não provinha de
fontes secretas, embora isto deva ser relativizado, porque a própria distinção
moderna entre domínio público e secreto não era clara naquele período. Até o
surgimento dos jornais privados e o advento da liberdade de imprensa, os
governos tendiam a ver toda informação sobre a população, a administração e os
recursos do país como propriedade do rei, portanto secreta em alguma
extensão15. Assim, os governos consideravam aceitável que seus embaixadores
residentes em outros países tentassem obter aquelas informações por todos os
meios disponíveis, inclusive recrutando espiões e interceptando
clandestinamente mensagens de terceiros. Isso não foi alterado substancialmente
sequer pelas novas práticas introduzidas depois da Paz de Westfália (1648). Na
Inglaterra, as redes de agentes controladas quase pessoalmente pelo secretário
de Estado continuaram a existir muito depois da morte de Sir Walsingham em
1590, tanto sob Cromwell como depois da restauração e da Revolução Gloriosa
(1688), indicando que as atividades de inteligência eram tidas como necessárias
à afirmação da autoridade do Estado nacional emergente e não meramente um
capricho dos diferentes regimes políticos.
O aumento do tráfego diplomático, juntamente com o surgimento de serviços de
correio na Europa moderna, demandaram um uso regular de cifras e códigos
secretos de escrita (criptografia) para proteger as comunicações entre as
chancelarias e suas embaixadas. Com isso, surgiram as primeiras organizações
especializadas na interceptação clandestina e decodificação (criptologia) de
mensagens, as chamadas "câmaras negras" (black chambers)16. Não obstante a
notável continuidade histórica do cabinet noir francês, instituído por Henrique
IV em 1590 e famoso sob a direção do cardeal Richelieu no século seguinte, o
exemplo inglês é mais típico inclusive pela descontinuidade entre as primeiras
organizações e os serviços de inteligência atuais.
Em 1782, a separação das funções do secretário de Estado em dois escritórios
distintos, o Foreign Office para os assuntos exteriores e o Home Office para os
assuntos internos da Inglaterra, refletiu-se na divisão da atividade de
inteligência ao longo das mesmas linhas interna e externa. Além disso, a
própria coleta de informações sobre o exterior foi repartida em duas atividades
distintas, a espionagem e a criptologia, sendo que o escritório secreto de
criptologia foi transferido para o serviço postal inglês, onde os despachos
diplomáticos e a correspondência considerada sensível continuaram regularmente
sendo interceptados, copiados, reenviados e, quando necessário e possível,
decodificados até 1844. No final do século XVIII, o Parlamento britânico passou
a votar uma verba secreta anual para financiar as operações de inteligência do
Foreign Office e do Secret Office and Deciphering Branch (criptologia),
dinheiro empregado também para comprar apoios políticos e militares no
Continente (ver Kennedy, 1989, cap. 3). Aquele Secret Service Fund foi
administrado pelo War Office até o começo do século XX, quando se formaram as
atuais agências britânicas de inteligência.
Desdobramentos organizacionais desse tipo continuaram a ocorrer mais tarde e,
de modo geral, as funções secretas de negociação, conspiração, inteligência e
espionagem exercidas desde a época elizabethana pela diplomacia britânica,
assim como pela francesa, austríaca, piemontesa, prussiana ou russa, estão na
origem dos serviços especializados formados entre a segunda metade do século
XIX e os anos iniciais da Guerra Fria.
Há, no entanto, diferenças cruciais na escala das atividades e na dimensão das
organizações. Enquanto a agência central de criptologia do governo britânico
nos dias de hoje, o Government Communications Headquarters - GCHQ, empregava
6.076 funcionários e tinha um orçamento de centenas de milhões de libras
esterlinas em 1995, no seu auge, no século XVIII, o Secret Office and
Deciphering Branch possuía um total de nove empregados e só passou a ter um
modesto orçamento regular a partir de 1782. Além da escala comparativamente
diminuta das operações de coleta, a análise e validação das informações obtidas
eram feitas de forma completamente ad hoc. Não havia staffs separados e
especializados de analistas, pois a própria atividade de inteligência não se
separava da formulação e implementação de políticas e linhas de ação. Para
acompanhar a formulação sintética de Michael Herman (1996:13), pode-se dizer
que para os reis e seus ministros a atividade de inteligência era parte das
funções regulares do estadista, sendo inseparável do exercício do poder.
A separação progressiva entre as funções de inteligência e de formulação e
implementação de políticas (policymaking) foi tão lenta quanto a separação
entre as atividades diplomáticas legítimas e as operações secretas de
influência e espionagem. Em 1939, por exemplo, o embaixador francês em Berlim
ainda dispunha de fundos secretos destinados à compra de informações (Young,
1984). Em tese, porém, hoje em dia, trata-se de dois ramos separados e
especializados da ação estatal no plano internacional. Dado que a maioria dos
alvos dos serviços de inteligência são externos, deriva daí uma acentuada
disputa burocrática pelo controle dos fluxos de informação do exterior para os
governantes. É bem conhecida a rivalidade existente entre a Central
Intelligence Agency - CIA e o State Department nos Estados Unidos, o que também
ocorre entre o Secret Intelligence Service - SIS e o Foreign and Commonwealth
Office - FCO na Grã-Bretanha17.
Atualmente, muitos países mantêm organizações de inteligência subordinadas aos
seus Ministérios de Relações Exteriores para apoiar especificamente o
acompanhamento de crises, negociações de acordos, tratados internacionais etc.
Esse é o caso do Bureau of Intelligence and Research - INR do Departamento de
Estado norte-americano, que faz parte do sistema de órgãos de inteligência do
governo dos Estados Unidos, embora não realize operações próprias de coleta de
informações (a não ser aquelas ostensivamente disponíveis ao público nos países
com representação diplomática dos Estados Unidos). O INR recebe informações
coletadas por outras agências e as analisa para o secretário de Estado. Na
Inglaterra, o Departamento de Análise e Pesquisa do FCO cumpre funções
semelhantes, embora não seja membro formal do sistema nacional de inteligência
daquele país.
Além de ter gerado suas próprias organizações específicas de inteligência, a
diplomacia moderna também esteve na origem remota de muitas das chamadas
agências nacionais de coleta de inteligência externa (foreign intelligence).
Nacional, nesse contexto, indica apenas que se trata de organizações que
respondem diretamente ao primeiro-ministro, presidente ou secretário-geral, e
que prestam serviço para o governo como um todo e não somente para um
ministério específico. São exemplos desse tipo de organização a CIA norte-
americana e o SIS britânico, citados anteriormente, bem como a Direction
Générale de la Sécurité Extérieure - DGSE francesa, o Ha-Mossad le Modiin ule-
Tafkidim Meyuhadim - MOSSAD israelense, o atual Sluzhba Vnezhney Rasvedki - SVR
russo, o Servizio perle Informazioni Generali e Sicurezza - SISDE italiano e,
ainda, o Bundesnachrichtendienst- BND alemão. Muitos outros serviços de
inteligência poderiam ser citados, mas bastam alguns exemplos de organizações
mais conhecidas e até hoje atuantes18.
Os serviços de inteligência exterior são "clássicos", pois têm como
característica comum o fato de serem os principais responsáveis pela espionagem
propriamente dita e também pela coleta de informações a partir de fontes
ostensivas fora do território nacional. Eles diferem bastante de um país para
outro em termos organizacionais, na escala de operações e na composição
predominantemente civil ou militar de seus oficiais de inteligência. Mas isso
não impede que cada um desses serviços veja a si próprio como primus inter
pares dentro do sistema de inteligência de seus respectivos países. Por outro
lado, a despeito de suas raízes na diplomacia secreta presente na trajetória de
qualquer Estado antigo ou moderno, há uma grande descontinuidade histórico-
organizacional entre as primeiras redes modernas de agentes à maneira da
Inglaterra elizabethana e os atuais serviços de inteligência exterior, que
surgiram e se desenvolveram somente no século XX.
Nesse sentido, embora a primeira imagem quando se fala de serviços de
inteligência remeta às organizações responsáveis por humint, tais como o SIS e
o MOSSAD, na maioria dos países esse componente dos sistemas nacionais de
inteligência não é o maior, o mais antigo ou o que produz maior volume de
informações de valor crítico. Por exemplo, as organizações militares de
inteligência surgiram já na segunda metade do século XIX, tendo se tornado
muito maiores e mais numerosas do que os serviços de inteligência exterior.
Essa segunda matriz de origem dos atuais serviços de inteligência será
considerada a seguir.
Guerra e Inteligência de Defesa
No caso da guerra, o registro da presença de atividades de inteligência é muito
mais antigo. Relatos sobre o uso de espiões militares remontam ao Velho
Testamento da Bíblia19, assim como figuram prescritivamente no manual de Sun
Tzu sobre a arte da guerra20, o Ping-fa, escrito na China no começo do século
IV a. C. Na verdade, o reconhecimento do campo de batalha e do inimigo sempre
foi considerado um elemento essencial da capacidade de comando do general.
Entretanto, desde a época dos speculatores utilizados pelas legiões romanas de
César até os corpos de guias usados pelos franceses e britânicos durante as
guerras napoleônicas, a inteligência militar foi exercitada em um contexto
institucional que Martin Van Creveld (1985:17-57) chamou de a "idade da pedra
do comando".
Foi somente com as transformações radicais introduzidas na área militar durante
o período da Revolução Francesa e de Napoleão que começou a modificar o
significado da inteligência para o comando21. O quartel-general móvel de
Napoleão, pelo menos desde 1805, consistia de três elementos principais e
independentes entre si: a Maison privada do próprio imperador, o État Majeur de
l'Armée e o quartel-general administrativo. Paradoxalmente, o órgão mais
importante para o comando do Grand Armée era a Maison, à qual estava
subordinado um bureau de estatística encarregado da inteligência estratégica
sobre os inimigos, bem como um bureau topográfico incumbido de recolher as
informações das várias fontes e prepará-las, inclusive cartograficamente, para
que Napoleão as estudasse diariamente. As fontes de informação eram diversas,
desde mapas, jornais e livros, passando por informantes e espiões plantados em
cada cidade importante, até correspondências interceptadas e decodificadas pelo
cabinet noir (criado em 1590). A inteligência operacional durante as campanhas
era obtida também pelas patrulhas de cavalaria das unidades e passada para o
bureau topográfico através do estado-maior, que incluía em sua organização uma
seção para interrogar prisioneiros, camponeses e desertores. O próprio
imperador tinha uma rede pessoal de fontes de inteligência, seus officiers
d'ordonnance e generais ajudantes que ele enviava em missões especiais.
Entretanto, embora organizada em uma escala massiva como nunca antes havia
existido, os métodos e as tecnologias de inteligência disponíveis para Napoleão
permaneciam em grande medida os mesmos da Antiguidade.
Além de imperador e comandante militar, Napoleão era seu próprio oficial de
inteligência. Como destaca Creveld (idem:68), essa capacidade de Napoleão para
analisar e processar informações pessoalmente, eliminando muitos passos e
camadas organizacionais intermediárias, ajuda a explicar a velocidade e a
decisão da forma napoleônica de fazer a guerra e comandar o Grand Armée. Por
outro lado, alerta Creveld, isso também poderia induzir a tomadas de decisão
repentinas baseadas em desejos mais do que em análises, em segundos pensamentos
ou mesmo na falta de um pensamento adequado.
Apesar desses problemas, a mudança na utilização da inteligência foi parte
integrante da revolução nas estruturas de comando iniciada pelas guerras
napoleônicas e que duraria praticamente até o final da I Guerra Mundial. Ao
longo do século XIX, a mobilização de exércitos com milhões de soldados e a
construção de grandes marinhas, as novas tecnologias de armamentos e de
propulsão, o uso de ferrovias e telégrafos (mais tarde rádios), enfim, a nova
escala e a complexidade da gestão do fenômeno bélico modificaram profundamente
as estruturas de comando, controle, comunicações e inteligência - C3I das
Forças Armadas (cf. Coakley, 1991)22.
O modelo mais influente de estruturação do comando foi o do estado-maior geral
prussiano, que começou a afirmar-se a partir de 1815 e alcançou grande
prestígio internacional após as vitórias da Prússia sobre a Áustria (1866) e a
França (1870). Como lembra Martin Van Creveld: "Foi somente na metade do século
XIX que o tradicional coup d'oeil, com suas implicações em termos de imediata
observação pessoal, deu lugar à chamada 'estimativa da situação', derivada das
práticas alemãs, implicando o estudo de mapas e a produção de relatórios
escritos" (1985:57).
A inteligência militar no século XX reteve algo dessa nova exigência de
cientificidade e abrangência destacada por Van Creveld. Em comparação com a
linha evolutiva derivada da diplomacia secreta dos séculos XVI a XVIII, pode-se
dizer que a inteligência militar acrescenta à conspiração e espionagem uma nova
dimensão, a da coleta sistemática de informações básicas e menos perecíveis,
seguida pela análise dos fatos e idéias novas tendo como pano de fundo aqueles
acervos informacionais, redundando na apresentação de relatórios de
inteligência orientados para tornar mais racionais e "informadas" as decisões
de comando23.
No começo do século XX, a maioria dos países europeus havia adotado alguma
versão de estado-maior geral que incluía esferas de responsabilidade
formalmente separadas em seções (operações, planejamento, inteligência,
logística, comunicações etc.). Cabe notar, entretanto, a observação de Creveld
de que, mesmo no caso prussiano, na prática ainda não havia uma especialização
completa de funções divididas entre as seções de operações, doutrina e
inteligência. Isso teria implicado, pelo menos até a I Guerra Mundial,
significativa superposição de atribuições dessas seções no estado-maior geral
alemão. De modo geral, a experiência da I Guerra Mundial forçou uma maior
especialização, principalmente quando às funções de inteligência exercidas
pelos bureaus militares de estatística e de topografia desde a primeira metade
do século XIX se somaram as novas seções de "exércitos estrangeiros" (foreign
armies), responsáveis pelo estudo das Forças Armadas dos inimigos potenciais ou
efetivos.
O relativo atraso da Inglaterra e dos Estados Unidos na adoção do modelo de
estados-maiores gerais refletia diferenças constitucionais e políticas, mas
também o tamanho bem menor de suas Forças Armadas até meados do século XIX.
Isso implicou em demora na montagem de staffs e unidades militares de
inteligência. No caso inglês, por exemplo, somente depois da Guerra da Criméia
(1853-1856) foram enviados adidos militares permanentes para outros países para
observar as Forças Armadas. Ao mesmo tempo, foi criado um Topographical and
Statistical Department subordinado diretamente ao War Office. Em 1873, aquele
departamento foi renomeado como Intelligence Branch, seguido do estabelecimento
de um departamento separado de inteligência para o subcontinente indiano em
1878. Por sua vez, o almirantado (Admiralty) criou um comitê de inteligência em
1882, no mesmo ano em que a Marinha dos Estados Unidos fundava a mais antiga
organização de inteligência ainda em atividade naquele país, o Office of Naval
Intelligence - ONI. No caso britânico, em 1887 foram nomeados pela primeira vez
diretores de inteligência no War Office e no Admiralty. O advento de um estado-
maior geral após a Guerra dos Bôeres (1899-1902) amalgamou o cargo de diretor
de inteligência militar - DMI com o de diretor de operações militares - DMO, em
um movimento pendular que reflete a instabilidade da nova função de
inteligência destacada por Creveld, um indicador de que a institucionalização
dos serviços de inteligência ainda estava distante. A posição autônoma do
diretor de inteligência no War Office britânico só voltou a ser restaurada em
1915 (cf. Herman, 1996:16-19). Mesmo então a separação não era completa e a
inteligência de sinais (sigint) derivada da interceptação e decodificação de
mensagens permaneceu insulada em relação a outras fontes de informação até bem
depois da Batalha da Jutlândia24. As disputas pelo controle dos fluxos
informacionais e a precária especialização e coordenação das equipes de
analistas foram um problema para a inteligência militar até pelo menos a II
Guerra Mundial, como atesta o exemplo norte-americano em Pearl Harbor25.
Mesmo levando em conta essa separação lenta entre inteligência e as funções de
planejamento e operações, as organizações permanentes e especializadas de
inteligência militar tornaram-se parte estável das estruturas de comando,
controle e comunicações das Forças Armadas bem antes de surgirem as
organizações nacionais de inteligência externa.
Depois da II Guerra Mundial, além do staff da seção de inteligência do estado-
maior geral, em cada força singular foram sendo criadas unidades especializadas
ou staffs de inteligência para os níveis inferiores de comando da força. Além
disso, muitos países que possuem ministérios da defesa e uma maior integração
das forças armadas criaram também agências de inteligência de defesa (defense
intelligence) para apoiar os estados-maiores integrados (joint) e os
ministros26. São exemplos atuais dessa nova "camada" organizacional o Glavnoye
Razvedyvatelonoye Upravlenie - GRU russo, a Defense Intelligence Agency - DIA
norte-americana, o Servizio perle Informazioni e la Sicurezza Militare - SISMI
italiano, o Agaf Modiin - AMAN israelense e o Defence Intelligence Staff - DIS
britânico.
À exceção do GRU, instituído entre 1918 e 1924, as demais organizações
mencionadas datam do segundo pós-guerra. Cada uma dessas organizações centrais
de inteligência de defesa apresenta uma escala e abrangência de capacidades
operacionais nas áreas de coleta e análise de informações no exterior que é
comparável com a dos serviços nacionais de inteligência exterior de seus
países. Em função disso, é conhecida a rivalidade entre a DIA e a CIA, no caso
dos Estados Unidos, ou entre o AMAN e o MOSSAD, no caso de Israel, para citar
apenas dois exemplos. Quando se somam a essas organizações centrais de
inteligência de defesa os recursos e agências de inteligência das Marinhas,
Exércitos, Forças Aéreas e outras forças singulares e comandos integrados
(joint commands), fica evidente que o componente militar dos sistemas nacionais
de inteligência é, de longe, o maior e mais complexo do ponto de vista
organizacional, correspondendo a algo entre 50% e 80% de todos os recursos de
inteligência de qualquer país27.
Uma descrição satisfatória das relações entre esses órgãos centrais de
inteligência militar e as demais organizações, centros e unidades de cada força
singular em vários países exigiria um livro inteiro28. Sobre o significado da
formação de subsistemas de inteligência militar para a configuração final dos
sistemas nacionais e a agilidade no ciclo das atividades de inteligência, serão
feitas algumas considerações adicionais na próxima seção. Antes, porém, é
preciso destacar ainda uma outra matriz organizacional dos serviços de
inteligência contemporâneos.
Policiamento e Inteligência de Segurança
A terceira matriz histórica dos serviços de inteligência contemporâneos
distingue-se das duas anteriores por sua ênfase nas chamadas ameaças internas à
ordem existente. Trata-se da inteligência de segurança (security intelligence),
conhecida também como inteligência interna ou doméstica. As origens das atuais
organizações de inteligência de segurança remontam ao policiamento político
desenvolvido na Europa na primeira metade do século XIX, decorrente da
percepção de ameaça representada por movimentos inspirados na Revolução
Francesa e pelo nascente movimento operário anarquista e socialista.
As forças especializadas em manutenção da ordem interna desenvolveram técnicas
e recursos de vigilância, infiltração, recrutamento de informantes e
interceptação de mensagens para a repressão política dos grupos considerados
subversivos. Embora o temor da revolução popular tenha diminuído um pouco
depois de 1848, o processo mais geral de profissionalização das polícias e a
emergência de unidades de investigação criminal continuaram ampliando as
capacidades de detecção, captura, interrogação, periciamento técnico,
vigilância e armazenamento de informações sobre novas áreas criminais e
segmentos populacionais (Dandeker, 1990:119-133; Goldstein, 1983). A
"cientificização" do combate ao crime a partir do século XIX estendeu-se ao
policiamento político e à repressão contra a "subversão".
Conforme Jeffrey Richelson (1986:1-4), a primeira organização permanente
voltada para a obtenção de inteligência sobre os "inimigos internos" visando à
sua repressão foi a "Terceira Seção" do departamento de segurança do Estado,
instituída na Rússia imperial em 1826. Os dois precedentes mais importantes da
Terceira Seção foram a Oprichnina (1565-1572), a cavalaria negra instituída
pelo primeiro czar de todas as Rússias, Ivan, o Terrível, bem como a
organização Preobazhensky (1697-1729), criada por Pedro I para investigar,
prender, interrogar sob tortura e aplicar penas contra traidores e outros
suspeitos de crimes contra o czar e o Estado. Embora a repressão mais ou menos
sistemática dos dissidentes e críticos seja um traço característico de todos os
Estados, o policiamento político organizado foi uma especialidade russa na era
moderna. Na segunda metade do século XIX, a dinastia Romanov contratou o
prussiano Wilhelm Stieber para reorganizar a polícia política. Depois do
atentado à bomba que matou o czar Alexandre II, em 1881, a Okhrannoye
Otdyelyenye (conhecida como Okhrana) consolidou-se como uma força policial
"especializada", independente tanto dos ministérios do interior e do exterior
quanto dos incipientes recursos de inteligência das Forças Armadas. Considerada
mais cruel do que eficiente inclusive por seus adversários bolcheviques, de
qualquer modo a polícia secreta do czar tornou-se o símbolo de toda uma era. A
experiência russa da Okhrana também nos ajuda a entender a persistente
associação entre inteligência e repressão política ao longo do século XX.
Embora organizações como a Okhrana russa ou a Sûreté Générale francesa
(instaurada ainda sob Napoleão Bonaparte29) inicialmente não conduzissem
operações de espionagem e obtenção de inteligência contra alvos estrangeiros, a
busca de informações e a perseguição a adversários do regime no exílio
rapidamente estenderam o policiamento político ao exterior. Em 1870, a Sûreté
tinha mais de sessenta agentes operando em estações em Viena, Amsterdã,
Hamburgo e outras cidades européias. A primeira base permanente da Okhrana no
exterior data de 1882, menos de um ano após sua reorganização (cf. Andrew,
1984; Fischer, 1997). Além de caçar revolucionários russos exilados, a Okhrana
também passou a tentar monitorar as atividades de órgãos de segurança e
inteligência estrangeiros, tais como a própria Sûreté, atuando em território
russo.
Como resultado dessa dinâmica, no começo do século XX já havia considerável
superposição de missões e alvos entre as polícias políticas e as organizações
de inteligência voltadas para o exterior, que naquela época ainda eram
principalmente militares. As polícias políticas controlavam redes próprias de
agentes recrutados nas embaixadas estrangeiras situadas nas capitais de seus
países, interceptavam comunicações dos grupos dissidentes e das embaixadas
estrangeiras, além de tentarem estabelecer redes de agentes e informantes em
outros países30.
Principalmente depois da I Guerra Mundial e da Revolução Russa, as polícias
políticas e serviços secretos de cada país passaram a vigiar regularmente as
atividades dos serviços de inteligência estrangeiros dentro do território
nacional. Com isso, além da inteligência de segurança (security intelligence)
propriamente dita, essas organizações se especializaram também em contra-
espionagem e contra-inteligência (counterintelligence). Com o processo de
descolonização durante a Guerra Fria e com o terrorismo nos anos 70, certas
operações de suporte à contra-insurgência, contramedidas defensivas e
antiterrorismo foram acrescentadas ao leque de missões desse tipo de
organização. Nas últimas duas décadas, o crime organizado, o tráfico de drogas
e crimes eletrônicos (incluindo fraude financeira e lavagem de dinheiro)
adquiriram tal importância na agenda de segurança de alguns países que a busca
por informações extrapolou os limites da rotina da investigação criminal31.
Essa expansão das missões ocorreu de forma mais ou menos concomitante à
transformação dos antigos serviços secretos e polícias políticas em serviços de
inteligência de segurança (security intelligence), principalmente nos países
democráticos. Não há, entretanto, nada parecido com um modelo organizacional
internacionalizado nessa área.
Em alguns países, as agências de security intelligence são separadas
organizacionalmente das polícias e da inteligência externa. Atualmente,
serviços como o Canadian Security Intelligence Service - CSIS, a Direction de
la Surveillance du Territoire - DST francesa, o Bundesamt für Verfassungsschutz
- BfV alemão e o Sherut ha'Bitachon ha'Klali - Shin Bet israelense exemplificam
essa separação32. Já em outros países, a inteligência interna ou de segurança é
um departamento especializado das próprias forças policiais. Este é o caso dos
Estados Unidos com a divisão de segurança nacional (inteligência) do
Federal Bureau of Investigation
- FBI33.
Na prática, porém, pode-se dizer que em todos os países as missões de
inteligência de segurança, contra-inteligência e inteligência policial
dificilmente estão subordinadas a uma única agência. No Japão, por exemplo,
essas atividades são compartilhadas de forma tensa pela Agência de Investigação
e Segurança Pública (Koan Chosa Cho) e a unidade de combate à subversão da
Agência Nacional de Polícia (Keisatsu Cho)34. Em alguns outros países ainda, a
inteligência interna ou de segurança chegou mesmo a se desdobrar diretamente
das Forças Armadas35.
Esse é precisamente o caso da Inglaterra. Como se sabe, a criação da polícia
metropolitana de Londres, em 1829, foi o primeiro passo na lenta consolidação
de uma estrutura de forças locais ao longo do século XIX na Inglaterra, onde as
polícias tiveram pouca influência direta na formação do serviço de inteligência
de segurança36. Segundo Michael D. Lyman (1999:63-98), embora fossem recrutados
alguns informantes e a correspondência pessoal de suspeitos de subversão fosse
interceptada, algum policiamento especializado contra ameaças internas só teria
começado em 1883, com a criação de uma seção especial na polícia metropolitana
de Londres para colher informações e reprimir os fenianos irlandeses.
Em 1909, com a criação do Secret Service Bureau subordinado ao War Office, a
inteligência de segurança e a contra-espionagem passaram para a esfera da seção
doméstica do bureau militar (conhecida como MI-5, ou quinta seção da
inteligência militar). Em 1931, a seção de inteligência exterior (MI-6) e a
seção de inteligência doméstica (MI-5) do War Office foram separadas
definitivamente em duas agências independentes, respectivamente, o Secret
Intelligence Service - SIS e o Security Service (que permaneceu sendo conhecido
como MI-5)37. Após diversas batalhas burocráticas com a polícia metropolitana,
as funções de inteligência de segurança foram inteiramente transferidas para o
Security Service depois da II Guerra Mundial. Uma exceção importante foi a
jurisdição sobre o combate ao Irish Republican Army - IRA, que permaneceu
separada em vários ramos do governo britânico. Somente em 1992 o Security
Service (MI-5) passou a centralizar as operações de inteligência e repressão
contra o IRA, mas mesmo assim só no restante do território britânico, pois na
Irlanda do Norte o papel do MI-5 continuou secundário em relação ao do special
branch do Royal Ulster Constabulary - RUC (ver, p. ex., Gill, 1994).
Refletindo o processo de expansão das missões dos serviços de inteligência
interna mencionado anteriormente, em 1999, as áreas de trabalho do Security
Service britânico dividiam-se oficialmente em: terrorismo relacionado com a
Irlanda do Norte (30,5%), terrorismo internacional (22,5%), contra-espionagem
(20,5%), segurança (11,5%), crimes graves (7%), proliferação de armas (3,5%) e
assistência a outras agências (4,5%)38. Em comparação com anos anteriores, em
que três quartos dos recursos do MI-5 eram dedicados ao contraterrorismo e ao
IRA, a atual distribuição de prioridades enfatiza a contra-inteligência e o
combate ao crime organizado. Isto resulta em parte da diminuição relativa da
escala de conflitos na Irlanda do Norte e também da percepção britânica de que
o país segue sendo alvo de operações de espionagem internacional.
O caso inglês apresenta, pois, diferenças de desenho organizacional e de timing
em relação aos casos francês e russo, em que os serviços de inteligência de
segurança surgiram das polícias secretas atuantes já na primeira metade do
século XIX, mas também é diferente do caso norte-americano, em que a própria
polícia federal (FBI) é a principal agência de inteligência de segurança, ou
ainda em relação ao caso canadense, em que um serviço de inteligência de
segurança (CSIS) foi criado apenas em 1984 como resposta às investigações
parlamentares sobre violações de direitos humanos cometidas pela divisão de
segurança da
Royal Canadian Mounted Police
- RCMP39.
Talvez mais importante do que a especificidade do caso inglês seja o que ele
tem em comum com os demais países em qualquer uma das três matrizes: a
dificuldade de estabelecer fronteiras organizacionais bem definidas nas
diferentes áreas e missões de inteligência. Na próxima seção, poder-se-á ver
como isso está relacionado com a própria lógica de expansão recente dos
serviços de inteligência e seus reflexos na configuração de diferentes tipos de
sistemas nacionais.
LÓGICA DE EXPANSÃO DOS SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA
Três tipos diferentes de organizações especializadas foram destacados na seção
anterior: inteligência externa (foreign intelligence), inteligência militar
(military intelligence) e inteligência interna. Além desses componentes
organizacionais principais, presentes na maioria dos Estados, a formação de
sistemas nacionais de inteligência está associada a dois movimentos adicionais
de expansão organizacional e especialização funcional que vêm ocorrendo nas
últimas décadas: um movimento de expansão vertical envolvendo a formação de
subsistemas de inteligência policial e de inteligência militar; um movimento de
expansão horizontal, com o surgimento de novas agências especializadas em
diferentes disciplinas de coleta e análise ao longo do continuum operacional
que caracteriza o ciclo da inteligência.
A expansão das missões dos serviços de inteligência interna, inicialmente
restritas ao policiamento político de dissidentes e mais tarde abarcando a
contra-inteligência, o contraterrorismo e inteligência sobre o crime
organizado, acabou por aproximar esses serviços das unidades investigativas das
polícias encarregadas de dinâmicas criminais mais complexas, tais como o
narcotráfico, fraudes financeiras, lavagem de dinheiro e outros crimes
eletrônicos (cybercrimes). Em muitas polícias existem agora unidades
especializadas em inteligência sobre crime, utilizando informações coletadas de
fontes diversas (inclusive imint e sigint) e métodos analíticos mais
sofisticados (principalmente nas áreas de georreferenciamento de dinâmicas
criminosas e de visualização de relacionamentos entre criminosos). Essa
expansão vertical do uso de métodos e técnicas de inteligência para a base dos
sistemas policiais, em combinação com uma maior integração e busca de sinergia
entre as unidades de inteligência policial e as agências nacionais de
inteligência de segurança, pode ser apontada como uma tendência na direção da
formação de subsistemas de inteligência de segurança.
Um fenômeno semelhante de verticalização de capacidades nacionais ocorre na
área de inteligência militar. Como foi mencionado na seção anterior, nos países
onde foram criados comandos integrados (joint commands) e estruturas mais
desenvolvidas de suporte nos ministérios de defesa, isso tendeu a ser
acompanhado da criação de agências centrais de inteligência de defesa. Em
alguns casos, a instituição dessas agências não significou que o Exército, a
Marinha e a Aeronáutica abrissem mão de suas próprias organizações
centralizadas responsáveis pela produção de inteligência para o estado-maior e
o comandante de cada força. Além das organizações centrais de inteligência em
cada força, compõem ainda o subsistema de inteligência militar as unidades
militares especializadas, desde seções menores até batalhões ou mesmo brigadas
no caso da força terrestre, esquadrões e alas no caso da Força Aérea, que
atendem às necessidades de inteligência dos níveis inferiores de comando.
Além das três matrizes históricas e da formação de subsistemas de inteligência
policial e militar, os sistemas nacionais de inteligência atualmente existentes
resultam também de uma expansão "horizontal", decorrente de especializações
funcionais crescentes e, no limite, da separação organizacional ao longo do
continuum coleta-análise de informações.
A especialização principal se deu nas técnicas e tecnologias adequadas às
diversas fontes de informação. Novos métodos de coleta e processamento, novas
plataformas e sistemas modificaram as estruturas de custos e a composição da
força de trabalho envolvida na atividade de inteligência. No que hoje se
denomina coleta de informações de fontes singulares (single-source collection),
por exemplo, existem atualmente órgãos ou unidades especializadas em obter
informações a partir de fontes humanas (humint), da interceptação e
decodificação de comunicações e sinais eletromagnéticos (sigint), da produção e
processamento de imagens fotográficas ou multiespectrais (imint), da mensuração
de assinaturas e outras características técnicas (masint), bem como da coleta
de fontes ostensivas como jornais, televisão, internet e livros (osint). No
subsistema de inteligência de segurança mencionado anteriormente, há
organizações especializadas em contra-inteligência, em medidas defensivas de
segurança, em inteligência interna e inteligência policial. Finalmente, uma vez
traçada a linha burocrática, orçamentária e legal que estabelece quais órgãos
governamentais fazem parte oficialmente dos sistemas nacionais de inteligência,
é preciso levar em conta também as agências situadas na periferia dos
subsistemas de inteligência e segurança militar e policial, ou mesmo os
recursos temporariamente alocados sob controle operacional das agências, por
exemplo, adidos militares, laboratórios de análise, contatos diplomáticos,
aviões e navios em missões de coleta de informações etc.
Em razão do grande volume de informações coletadas por plataformas tecnológicas
e organizações diversas, a produção de inteligência "finalizada" sobre um alvo
ou tema passou a ser um problema crescente e levou à criação, em alguns países,
de organizações dedicadas apenas à análise e avaliação (all-sources analysis
and assessments) das informações obtidas de fontes diversas por organizações
especializadas em cada tipo de fonte ou "disciplina" da área de coleta.
O duplo movimento de expansão vertical e horizontal dos serviços de
inteligência gerou demandas gerenciais e de coordenação impensáveis mesmo
durante a II Guerra Mundial e boa parte do período da Guerra Fria. Obviamente,
o grau de complexidade organizacional de cada sistema nacional de inteligência
varia muito, indo desde sistemas com dezenas de agências, como os Estados
Unidos e a Rússia, até países como Canadá e Itália, que têm apenas duas
agências principais de inteligência e segurança. Entretanto, a própria idéia de
que os recursos e capacidades de inteligência de um país formem "sistemas"
implica a suposição de que são gerenciados de forma mais ou menos integrada.
Uma camada organizacional bastante recente no processo de "crescimento
institucional" dos sistemas de inteligência são as instâncias de coordenação,
gestão de recursos e supervisão das políticas nacionais para o setor. A
justificativa principal para incluir essas instâncias de coordenação em um tipo
ideal de sistema nacional de inteligência não é simplesmente o fato de elas
existirem em Londres ou Washington, mas sim a percepção de que tendem a exercer
um papel crescente também em outros países40.
Até aqui, tratou-se de descrever a lógica de expansão da atividade moderna de
inteligência desde suas matrizes na diplomacia, no fazer a guerra e no
policiamento até a formação de sistemas nacionais de inteligência mais ou menos
complexos. No restante desta seção, serão apresentadas duas direções possíveis
para uma futura explicação mais completa das causas dessa expansão.
A primeira abordagem relaciona o desenvolvimento das organizações de
inteligência com o fortalecimento mais geral das capacidades institucionais do
Estado, sustentando basicamente que uma "oferta" maior de serviços de
inteligência depende basicamente da maior ou menor disponibilidade de recursos
em cada país. A segunda abordagem vincula o surgimento e o desenvolvimento das
organizações de inteligência com os atributos específicos das organizações de
segurança nacional em regimes democráticos, que seriam bastante diferentes das
demais burocracias governamentais voltadas para assuntos internos dos países.
Bem mais sofisticada que a afirmação grosseira do parágrafo anterior, a tese de
David Bayley (1975:349-351) sobre a formação dos sistemas nacionais de polícia
exemplifica bem esse tipo de abordagem. Por sistemas nacionais de polícia, o
autor entende diferentes arranjos institucionais para o provimento de ordem
pública, a garantia da observância às leis e a proteção da vida e do patrimônio
da população. Assumindo como premissa que cada caso nacional é único, Bayley
analisa através de estudo histórico-comparativo quais seriam as variáveis mais
importantes na explicação dos atributos de cada sistema policial e também na
explicação de por que as características atuais (em 1975) mais importantes dos
sistemas nacionais de polícia emergiram em determinados períodos históricos
relativamente bem determinados na Inglaterra (1829-1889), França (1667-1700),
Alemanha (1742-1871) e Itália (1815-1870)41.
As sete variáveis independentes analisadas por Bayley foram o papel do
crescimento populacional, sua distribuição ao longo do continuum rural-urbano,
a extensão da criminalidade e da insegurança entre a população, a revolução
industrial e/ou outras transformações sociais ou econômicas desse porte, a
ocorrência de revoluções e/ou outras transformações políticas desse porte, a
presença de ameaças externas ou a ocorrência de guerras e mobilizações
militares e, finalmente, o impacto de uma ideologia qualquer (absolutismo,
liberalismo, nacionalismo, socialismo etc.).
Segundo esse autor, as características bastante diferenciadas dos sistemas
policiais na Inglaterra, França, Alemanha e Itália não foram determinadas pelo
crescimento populacional, grau de urbanização, taxas agregadas de
criminalidade, ritmos de industrialização ou por alguma ideologia específica.
As variáveis mais importantes teriam sido institucionais e políticas, desde a
erosão das bases comunitárias da autoridade até as preferências dos atores mais
poderosos em relação às demandas por lei e ordem, passando pela maior ou menor
resistência popular ao envolvimento do governo e pela transformação interna na
organização do Estado. De todas essas, a associação mais clara é aquela
existente entre a expansão da capacidade do Estado e a emergência de sistemas
nacionais de polícia. As mudanças do Estado a que Bayley se refere estão
relacionadas com a diminuição dos custos de extração de recursos da sociedade e
com o aumento geral dos níveis de produção administrativa (outputs) e
consolidação da autoridade política, o que teria permitido um aumento no nível
de "oferta" de serviços policiais e o amadurecimento, entre 1660 e 1890, de
sistemas nacionais de polícia na Europa42.
A ênfase excessiva nos recursos disponíveis e na evolução funcional dos
sistemas policiais deixa muitas variáveis relevantes de lado (as preferências
dos atores e as diferenças de desempenho institucional, por exemplo), mas a
partir desse tipo de ênfase pode-se dizer, no mínimo, que a formação recente de
complexos (e caros) sistemas nacionais de inteligência também correspondeu a um
período de expansão geral das capacidades estatais nas últimas décadas.
Um indicador grosseiro dessa expansão é o crescimento do gasto público como
parcela do Produto Interno Bruto - PIB, seja do gasto público total ou, o que
no caso é mais significativo, do gasto dos governos centrais. Segundo o World
Development Reportpublicado pelo Banco Mundial em 1997, no período entre 1960 e
1995, o gasto governamental total nos países da Organização de Cooperação e de
Desenvolvimento Econômicos - OCDE subiu, em média, de um patamar inferior a 20%
para quase 50% do PIB. Em 1994, somente o gasto dos governos centrais
representava, em média, mais de 35% do PIB nos países da OCDE. No caso dos
Estados Unidos, até a década de 1930, o gasto federal manteve-se em um patamar
de aproximadamente 4% do Produto Nacional Bruto - PNB, enquanto em 1995 ele já
representava 22,1% deste. Em 1997, para um PIB de US$ 8,11 trilhões, foram
realizados naquele país gastos federais de US$ 1,60 trilhão em valores
correntes. Mais de 55% desses gastos foram feitos com serviços sociais
(previdência, saúde, educação, habitação, serviços comunitários e bem-estar
social), enquanto os gastos militares representaram cerca de 17% dos gastos
federais totais (ou US$ 258,3 bilhões). A curva de gastos sociais ultrapassou a
curva de gastos militares nos Estados Unidos somente no final da década de
1960, e o crescimento médio dos gastos militares entre 1960 e 2000, já ajustada
a inflação, manteve-se positivo apesar do declínio relativo após o fim da
Guerra Fria43.
Por sua vez, a curva de gastos com inteligência acompanhou a evolução dos
orçamentos militares depois da II Guerra Mundial. Não há relação direta
conhecida entre o PIB de um país e seus gastos com inteligência, mas parece
haver alguma razão entre gastos com defesa e gastos com inteligência, embora
essa proporção também varie significativamente. Como não há dados confiáveis
sobre orçamentos de inteligência em nenhum país do mundo - antes de tudo porque
esses gastos são secretos e mesmo nos casos em que o volume total de gastos é
conhecido -, as proporções alocadas para cada tipo de atividade e de
organização são apenas estimadas por observadores externos aos governos.
No caso dos Estados Unidos e da União Soviética/Rússia, os gastos com
inteligência chegaram a cerca de 10% dos gastos totais com defesa na década de
80, recuando um pouco ao longo dos anos 90. Michael Herman (1996:37) estima que
os gastos com inteligência nos países da Europa Ocidental oscilem entre 3% e 5%
do total de gastos militares. Simplesmente, não existem tais estimativas sobre
os gastos consolidados com inteligência nos países mais industrializados do
Terceiro Mundo ou da Europa Oriental. Com todas essas restrições, assume-se
aqui, em caráter provisório, um gasto nacional médio com atividades de
inteligência em torno de 5% dos gastos nacionais com defesa. A diferença dos
Estados Unidos e da Rússia em relação a todos os demais países deve-se à sua
condição de superpotências durante a Guerra Fria e ao custo de desenvolvimento
e manutenção de suas frotas de satélites espiões.
Como regra geral, pode-se concordar com Michael Herman (idem:38-40) quando ele
diz que a maior parte dos investimentos e do custeio na área de inteligência
vai para as agências de coleta, enquanto análise e disseminação tendem a ser
itens de despesa relativamente menores. Nos anos 90, a diminuição dos
orçamentos de inteligência foi significativamente menor do que a diminuição dos
orçamentos de defesa, tanto nos países da Organização do Tratado do Atlântico
Norte - OTAN como nos antigos membros do Pacto de Varsóvia. Tampouco há
indicações de que os gastos com inteligência tenham diminuído em qualquer país
importante da Ásia, América Latina ou da vasta região que vai do norte da
África até a Ásia Central.
A segunda abordagem relevante para explicar a formação dos sistemas nacionais
de inteligência é uma versão modificada do novo institucionalismo, desenvolvida
por Amy Zegart (1999) ao analisar o surgimento e a evolução de três agências de
segurança nacional dos Estados Unidos: o National Security Council - NSC, o
Joint Chiefs of Staff - JCS e a Central Intelligence Agency - CIA. Segundo
Zegart, o mesmo conjunto de premissas neo-institucionalistas sobre a
importância das regras do jogo, da racionalidade e dilemas de ação coletiva,
dos custos de transação e da natureza dos atores conduz a conclusões diferentes
quando se trata de analisar agências de segurança nacional em contextos
democráticos44.
Para diferenciar as agências governamentais internas (de regulação e/ou
prestação de serviços) das agências de segurança nacional, a autora considera
quatro variáveis fundamentais: 1) densidade do ambiente formado pelos grupos de
interesse na área de atuação de cada agência; 2) disponibilidade de informações
sobre as atividades de cada agência; 3) autoridade do Legislativo ou do
Executivo para o estabelecimento de diretrizes; 4) grau de interdependência
burocrática e clareza jurisdicional. Com base em evidências empíricas e em um
exercício taxonômico competente, Zegart estabelece uma dicotomia baseada em
dois tipos opostos de agências governamentais45.
Em um extremo estariam as agências governamentais que atuam em áreas de
políticas públicas regulatórias e distributivas. O meio ambiente social dessas
áreas de políticas públicas é caracterizado por um grande número de grupos de
interesse, poderosos e consolidados, os quais se encarregam de fornecer
incentivos e sanções aos parlamentares para que eles se envolvam nas disputas
sobre a estrutura e a atuação das agências de um dado setor. A disponibilidade
de informações sobre as atividades da agência é alta e os obstáculos para a
obtenção dessas informações são de tipo administrativo. Para a terceira
variável, Zegart destaca então o papel central do Congresso nas decisões sobre
a criação, o desenho organizacional e o volume de serviços (outputs) das
agências governamentais domésticas. A quarta variável é a mais problemática.
Segundo a autora, agências governamentais voltadas para o público nacional
apresentam uma clara delimitação de funções (saúde, educação, transportes etc.)
e têm grande independência operacional umas das outras.
No outro extremo estariam as agências de segurança nacional, caracterizadas em
primeiro lugar pela fraca presença de grupos de interesse em seu ambiente de
atuação. Mesmo nas áreas em que existem tais grupos (lobby de fabricantes
privados de armamentos ou grupos de imigrantes, por exemplo), eles são
relativamente menos numerosos, menos poderosos, estando orientados para
resultados políticos específicos (e.g., obter um dado contrato para desenvolver
um novo sistema de armas) e não para influenciar o desenho organizacional de
uma agência ou o nível geral de gastos orçamentários de um setor46. Como muitas
das atividades das agências de segurança nacional são conduzidas em segredo,
existem barreiras legais e procedimentais para o acesso público às informações
relevantes. Com custos de obtenção de informações mais altos e um ambiente
rarefeito de grupos de interesse, há poucos incentivos positivos para os
parlamentares participarem ativamente das disputas sobre a organização ou as
ênfases operacionais das agências de segurança nacional. Finalmente, em relação
ao grau de interdependência burocrática, ele seria bem maior na área de
segurança nacional por causa da justaposição de temas e funções que impedem uma
clara delimitação jurisdicional entre as diferentes agências do setor.
A partir desta descrição de características específicas das agências de
segurança nacional, Amy Zegart faz três proposições que poderiam ser testadas
mediante pesquisas adicionais: 1) ao contrário do que ocorre com outros setores
governamentais, cuja criação é fortemente influenciada pelos grupos de
interesse e pelo Congresso, no caso das de segurança nacional, a decisão de
criar uma nova agência, assim como as escolhas de seu desenho organizacional e
de suas regras de funcionamento, é fortemente concentrada no Poder Executivo;
2) em conseqüência do elevado grau de interdependência burocrática e da
precária delimitação de jurisdições, as agências de segurança nacional que já
existem lutam entre si e com as equipes de assessores presidenciais para
influenciar a definição presidencial sobre as missões, recursos e o desenho
organizacional do novo órgão. A configuração final das novas organizações que
estão sendo criadas depende dos resultados desses embates; 3) além de se
envolver pouco nas disputas em torno da fundação de novas agências de segurança
nacional, os parlamentares e o Congresso também procuram evitar o envolvimento
em atividades de supervisão sobre as atividades dessas organizações, pois lhes
faltam os instrumentos e os incentivos para isso.
Deixando de lado, por enquanto, as implicações dessa terceira proposição para a
discussão sobre os mecanismos de controle externo de agências de segurança
nacional e sobre os impactos da instituição do segredo governamental no
desenvolvimento dos serviços de inteligência, note-se que até aqui Zegart fala
de agências de segurança nacional sem levar em conta as dessemelhanças entre as
próprias organizações desse tipo. Ao estudar os diferentes padrões de evolução
das três agências na segunda metade do século XX (NSC para policymaking, JCS
para comando das forças armadas e CIA para inteligência externa), Zegart
conclui que três fatores, em ordem decrescente de importância, determinariam o
desenho inicial e o desenvolvimento posterior de organizações na área de
segurança nacional: 1) as escolhas sobre desenho organizacional e regras de
funcionamento feitas na época de criação da agência; 2) os interesses, opiniões
e linhas de ação dos atores relevantes, que mudam ao longo do tempo através das
próprias interações; 3) os eventos externos que, dependendo da intensidade e do
timing, podem forçar a mudança organizacional sem que os atores tenham controle
sobre as variáveis ambientais47.
Quando contrastado com a abordagem histórico-estrutural de Bayley, o modelo
institucional das "Agências de Segurança Nacional" de Zegart adiciona à
explicação sobre a expansão dos sistemas de inteligência as escolhas dos atores
relevantes (grupos de interesse, legisladores, burocracias e governantes) e as
condições de incerteza em que essas escolhas são feitas, que forçam cada ator a
adaptar suas preferências aos constrangimentos impostos pelos demais atores e
pelo ambiente. No caso dos serviços de inteligência e de segurança, seria
preciso incorporar ao modelo as próprias dinâmicas operacionais que
caracterizam a atividade de inteligência, tais como coleta, análise,
disseminação e contra-inteligência. Como se trata da componente informacional
de um conflito em que um ator tenta dobrar a vontade de outro, o surgimento e o
padrão evolutivo de sistemas de inteligência também refletem essas interações
adversariais com as organizações similares de outros governos ou mesmo de
atores não-estatais.
Em síntese, os serviços de inteligência e de segurança foram criados e se
desenvolveram porque os governantes pretendiam resolver certos problemas
informacionais associados ao provimento de defesa nacional e ordem pública, mas
em cada país e em cada área de especialização funcional a disponibilidade de
recursos variou, a competição interburocrática por jurisdição foi mais ou menos
aguda e a capacidade de um serviço de inteligência impor parâmetros às
dinâmicas conflitivas entre organizações similares subordinadas a diferentes
governos foi decisiva para a configuração final de cada sistema nacional.
Para um exemplo das possíveis configurações organizacionais dos sistemas
nacionais de inteligência, na próxima seção serão mencionadas muito brevemente
as principais agências norte-americanas e britânicas de inteligência.
ORGANIZAÇÃO DOS SISTEMAS NACIONAIS DE INTELIGÊNCIA
Nas últimas três ou quatro décadas, formaram-se sistemas governamentais de
inteligência nos países mais importantes do mundo. Dotados de maior ou menor
complexidade estrutural quando considerados de forma concreta, o desenho
organizacional ideal-típico de tais sistemas envolve os seguintes componentes:
alguma instância central de coordenação, uma ou mais agências principais de
coleta de informações (normalmente imagens e sinais estão separados de humint e
fontes ostensivas), alguma instância central de análise, unidades
departamentais de análise com laços mais ou menos definidos com as organizações
centrais de coleta de inteligência, poderosos subsistemas de inteligência de
defesa e de segurança, algum órgão de formação e treinamento e, mais
recentemente, órgãos mais ou menos colegiados para coordenação e instâncias de
supervisão externa, seja no próprio Poder Executivo, no Legislativo ou, mais
raramente, no Judiciário.
Utilizando algumas variáveis muito genéricas, tais como o grau de centralização
da autoridade sobre as unidades do sistema, o grau de integração analítica da
inteligência disseminada para os usuários, a maior ou menor separação entre as
funções de inteligência e de policymaking, além da efetividade dos mecanismos
de accountability no Poder Executivo e no Legislativo, seria o caso de fazer
comparações internacionais mais amplas para se tentar obter uma posição
relativa dos casos analisados entre si e em relação ao desenho organizacional
ideal-típico. Infelizmente, esse é um desafio que está além dos limites deste
trabalho48.
Apenas como indicação polêmica para tratamento posterior, parece-me que há pelo
menos três tipos básicos de sistemas nacionais de inteligência:
1) um modelo "anglo-saxão" caracterizado por alta centralização da autoridade
sobre as unidades do sistema, alto grau de integração analítica, média
separação entre inteligência e política, além de média efetividade dos
mecanismos de accountability e supervisão. Nesse modelo poderiam ser incluídos
os sistemas nacionais de inteligência e segurança de países como Estados
Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e, com reservas, Índia e
África do Sul;
2) um modelo "europeu continental" caracterizado por média centralização da
autoridade sobre as unidades do sistema, média integração analítica dos
produtos de intel, alto envolvimento da atividade de inteligência com as
instâncias de policymakinge, finalmente, uma baixa efetividade dos mecanismos
de accountability e supervisão (oversight). Nesse modelo poderiam ser incluídos
os sistemas nacionais de inteligência e segurança de países como França,
Alemanha, Rússia, Polônia, Itália e, com reservas, Brasil e Argentina;
3) um modelo "asiático" caracterizado por baixa centralização da autoridade
sobre as unidades do sistema, alta integração analítica dos produtos de intel,
médio envolvimento da atividade de inteligência com as instâncias de
policymaking e, de forma ainda mais pronunciada do que no tipo "europeu
continental", uma baixa efetividade dos mecanismos de accountability e
supervisão. Nesse modelo poderiam ser incluídos os sistemas nacionais de
inteligência e segurança de países como China, Japão, Coréia do Sul, Taiwan,
Coréia do Norte e, com reservas, Indonésia e Vietnã.
Obviamente, há uma grande dose de arbitrariedade e impropriedade nessa
caracterização grosseira. Repito aqui as ressalvas que fiz em nota à introdução
deste artigo: a forma mais corriqueira de classificação encontrada na
literatura ainda consiste na dicotomia entre um modelo descentralizado com
supervisão congressual (Estados Unidos) e um modelo centralizado sem controles
públicos (União Soviética). Dada a evidente função ideológica dessa dicotomia,
a classificação aqui proposta parece-me claramente superior. Uma taxonomia mais
refinada foi utilizada por Michael Herman (1996:4), na qual o autor inglês
elabora um tipo ideal a partir da abstração de traços organizacionais e
operacionais observados na experiência anglo-saxã, para em seguida analisar
como as regularidades se aplicam aos diversos sistemas nacionais a partir de
círculos concêntricos: mais intensamente no núcleo anglo-saxão, medianamente no
caso da Europa Ocidental e Israel e de forma bastante fraca no caso dos países
comunistas e ex-comunistas. Embora o trabalho de Herman tenha o mérito de ser a
melhor obra disponível sobre problemas teóricos na área de inteligência, seu
teste dos "círculos concêntricos" não chega a ser realizado. Tampouco há aqui
qualquer teste efetivo da classificação triádica (anglo-saxão, europeu
continental e asiático), mas prefiro esta pois a formulação de Herman parece
ser um refinamento que não rompe no essencial com a dicotomia liberal da Guerra
Fria.
Particularmente problemático na classificação aqui proposta é sua dificuldade
em livrar-se da referência geográfica que tende a ser bastante enganadora: o
Paquistão e a Índia ficam na Ásia, mas seus aparatos de inteligência são
bastante diferentes entre si. Além disso, o Paquistão é o principal aliado dos
Estados Unidos na Ásia Central e no subcontinente indiano, mas é a Índia que
adota mais claramente o modelo anglo-saxão em seu sistema de inteligência. O
caso de Israel, caracterizado por baixa centralização da autoridade sobre as
unidades do sistema, baixa integração analítica dos produtos de inteligência
das várias agências, baixo envolvimento da atividade de intel com as instâncias
de policymaking, alta responsividade das unidades do sistema aos governantes e
média efetividade dos mecanismos de accountability e controle externo, é
inclassificável nos três modelos disponíveis. Da mesma forma, uma virtual
categoria de "outros" incluiria dezenas de países do Magrebe, do Oriente Médio,
latino-americanos, africanos, asiáticos e da Europa Oriental. Enfim, há uma
enorme tarefa de pesquisa pela frente nessa área para quem puder realizar
estudos comparativos adicionais.
Mesmo com essas evidentes dificuldades, adoto provisoriamente a classificação
triádica a partir da constatação preliminar de que a estrutura organizacional e
os procedimentos operacionais dos serviços de inteligência japoneses e chineses
se parecem mais entre si do que o sistema japonês se parece com o anglo-
americano ou que o sistema chinês se parece com o soviético-russo. De todo
modo, tanto em termos de capacidades militares quanto em relação aos recursos
de inteligência há que se observar a enorme disparidade entre os casos norte-
americano e russo e todos os demais sistemas nacionais de inteligência49.
A AGILIDADE COMO DILEMA
Em muitos países democráticos, os gastos públicos com os serviços de
inteligência atualmente superam os gastos com representação diplomática. Por
outro lado, os gastos com policiamento, defesa nacional ou ajuda internacional
são bastante superiores aos gastos com inteligência. Isso indica que a
inteligência segue sendo uma atividade "subsidiária". Ainda assim, o peso
institucional desses sistemas nos arranjos de política externa, defesa nacional
e provimento de ordem pública não pode mais ser ignorado (Herman, 1996:341-
361).
Como foi discutido aqui, as características organizacionais dos sistemas de
inteligência resultam de processos específicos de construção de soluções para
os desafios da área de segurança nacional. As políticas públicas nesse domínio
têm caráter menos distributivo do que em outras esferas de atuação de
burocracias governamentais, e os issues principais dizem respeito, em tese, a
bens públicos. Os grupos de interesse na sociedade são mais recentes e
relativamente mais fracos do que em outros setores (como negócios ou habitação,
por exemplo). A informação sobre a atuação das agências governamentais de
segurança nacional é menos disseminada em função das restrições de segurança e
segredo. Além disso, trata-se de um setor em que historicamente predomina o
Poder Executivo, com um envolvimento mais baixo e menos ativista do Poder
Legislativo. Finalmente, as áreas de jurisdição e os temas de segurança
nacional são inter-relacionados e as burocracias envolvidas (e.g. Forças
Armadas, diplomacia, polícias e órgãos de inteligência) são mutuamente
dependentes, muito mais do que aquelas voltadas para temas domésticos, em que
há menos justaposição de funções e atribuições. Todos esses fatores se conjugam
para diminuir os incentivos que os parlamentares teriam para envolver-se no
desenho e na supervisão das agências de segurança nacional.
Dadas essas especificidades das agências de segurança nacional, Amy Zegart
(1999) propõe duas teses úteis para o estudo dos processos de
institucionalização de serviços de inteligência. Por sua própria natureza, as
burocracias da área de segurança nacional tenderiam a ser criadas por
iniciativa do Poder Executivo (com um papel secundário e sempre relutante do
Parlamento), seu desenho institucional refletiria as disputas entre as
burocracias de segurança nacional e os interesses da equipe presidencial, com o
Congresso exercendo um tipo de supervisão pouco sistemático e efetivo. Mas, se
o Poder Executivo tem papel predominante na decisão de criar organizações de
inteligência e se estas respondem primordialmente aos governantes e não ao
público ou seus representantes parlamentares, por que o desenho organizacional
e o padrão evolutivo dos sistemas de inteligência dificultam uma resposta ágil
às necessidades dos governantes, policymakers e comandantes militares?
A segunda tese proposta por Zegart fornece uma primeira explicação para esse
aparente paradoxo: as escolhas estruturais feitas no nascimento de um órgão de
segurança nacional tenderiam a durar no tempo, e só muito lentamente essas
estruturas seriam alteradas pela mudança nos interesses correntes dos
principais atores (stakeholders) e por eventos externos. O argumento da autora,
resumidamente, descreve um clássico problema de relacionamento entre principal
e agent: governantes eleitos (principals ou "mandantes") sofrem severos
constrangimentos de tempo, conhecimento e controle sobre suas agendas
políticas, e precisam realizar seus objetivos políticos contando com maiorias
congressuais e apoio da opinião pública que são difíceis de ser adquiridos e
que não podem ser desperdiçados com disputas sobre coisas como o melhor desenho
organizacional para uma agência burocrática qualquer. Agências de segurança
nacional (agents ou "agentes") têm conhecimento especializado sobre áreas de
"vida e morte" para o país, têm agendas mais delimitadas do que as dos
governantes e têm fortes incentivos para participar ativamente do desenho
organizacional e da definição das missões prioritárias dessas agências do
setor.
Em sistemas altamente complexos e com cadeias de comando cruzadas como a área
de inteligência, isso impõe problemas de coordenação que limitam severamente a
agilidade das respostas aos requerimentos de diferentes usuários (principals),
desde os chefes de Estado e de governo até os policymakers e comandantes
militares. Como o grau de interdependência burocrática na área de segurança
nacional é maior, segundo Zegart, as disputas sobre jurisdição acrescentam mais
uma dificuldade.
Para James Q. Wilson (1989:179-195), a busca por autonomia (entendida mais como
jurisdição não disputada sobre missões específicas e menos como liberdade para
agir sem controles externos) é vital para qualquer organização governamental.
Isso ocorre porque ganhos de autonomia diminuem os custos da manutenção
organizacional na medida em que minimizam o número de atores externos
interessados e os rivais burocráticos e, também, uma vez que isso maximiza as
chances de a organização desenvolver um senso de missão mais coeso. Nesse
sentido, a busca por autonomia tende a ser um objetivo tão ou mais importante
para os dirigentes burocráticos que a absorção de novas tarefas ou a obtenção
de maiores orçamentos, justamente porque a autonomia define os custos da
aquisição e de uso dos recursos50.
No caso das Forças Armadas, corpos diplomáticos, agências policiais e serviços
de inteligência, é justamente a semelhança entre muitas de suas tarefas
informacionais e coercitivas que tende a tornar os conflitos por autonomia
particularmente agudos e persistentes ao longo do processo de
institucionalização, impondo sérios custos de coordenação que limitam a
capacidade de qualquer serviço de inteligência ser ágil51.
Diferentes sistemas nacionais de inteligência são mais ou menos
institucionalizados, mais ou menos adaptáveis, complexos, autônomos e
coerentes. Em síntese, mais ou menos ágeis. Como seus desempenhos diferenciados
têm conseqüências para a segurança nacional, seria preciso discutir ainda a
questão dos possíveis efeitos de uma precária supervisão congressual sobre o
desempenho dos serviços de inteligência e, de modo geral, sobre o segundo
desafio associado à institucionalização: o da compatibilização desses sistemas
nacionais de inteligência com o princípio da transparência, mas isso será feito
em outro trabalho específico sobre o tema dos controles externos.