A eleição visível: a Rede Globo descobre a política em 2002
Segunda-feira, 28 de outubro de 2002. Um retirante nordestino, pequeno
engraxate na cidade grande, depois operário metalúrgico e sindicalista, ocupa
os estúdios do mais importante telejornal brasileiro. Durante 1h15min, ele
senta-se ao lado do âncora, acompanha as notícias, responde a uma e outra
pergunta ' e até dá o ''boa noite'' final, no lugar do apresentador. Luiz
Inácio Lula da Silva, naquele momento, já se fizera presente nos mais distantes
lugares do país, como líder popular, chefe de seu partido, quatro vezes
candidato à Presidência. Há pouco mais de 24 horas, tornara-se presidente
eleito, com cerca de 51 milhões de votos. Ainda assim, causava estranhamento
sua presença, marcada por inúmeras homenagens, em pleno Jornal Nacional da Rede
Globo.
Um Rip Van Vinkle caboclo que tivesse dormido em 1989 e só acordasse treze anos
depois dificilmente acreditaria em seus olhos. Na primeira eleição direta para
a Presidência do Brasil após o final da ditadura, a Rede Globo alinhou-se de
forma clara com os adversários de Lula e, com o material apresentado em
telejornais e mesmo novelas, contribuiu para sua derrota. Em 2002, porém, o
clima entre o líder do Partido dos Trabalhadores e a maior emissora de
televisão do país não era apenas cordial, era festivo. Mas não seria preciso
recuar tanto tempo. Mesmo quem assistisse ao Jornal Nacional de 28 de outubro
tendo em mente as circunstâncias da eleição anterior, ocorrida em 1998, teria
motivos para espanto. A presença do presidente eleito nos estúdios do
telejornal foi a culminância da ''maior cobertura eleitoral'' da história,
conforme a própria Globo não se cansou de anunciar. Quatro anos antes, pelo
contrário, as eleições foram praticamente banidas do noticiário.
Essa nova ''descoberta da política'' pelo maior conglomerado brasileiro de
comunicações ' e, em sua esteira, pelo restante da mídia no país ' foi, em si
mesma, um dos fenômenos mais importantes do processo eleitoral de 2002. A
vitória de um candidato de esquerda inaugura um período de possíveis mudanças
no relacionamento entre as empresas de comunicação e o poder político no
Brasil1. O ''oba-oba'' em torno do presidente eleito parece maior do que o
ocorrido nas eleições anteriores, mas não se deve a supostas características
messiânicas de Lula, como quiseram alguns, nem é inédito. Em 1985, a vitória de
Tancredo Neves no Colégio Eleitoral foi cercada de um clima similar, em grande
medida alimentado pela televisão (e que se prolongaria até sua morte, pouco
mais de um mês depois da data da posse). Não por acaso, são dois momentos de
grande expectativa por mudanças: antes, o retorno dos civis ao poder; agora, o
triunfo das esquerdas. Sob o primeiro governo civil, a Rede Globo viveu o ápice
de sua influência política; sua posição no governo Lula ainda é uma incógnita.
A GLOBO E AS ELEIÇÕES
Nascida durante o regime militar, a Rede Globo de Televisão cresceu e tornou-se
hegemônica graças a uma relação simbiótica com os detentores do poder2. A
partir do final dos anos 70, a abertura política ''lenta e gradual'' foi
impondo novos desafios à emissora. Em 1982, com o retorno da disputa para os
governos estaduais, a Globo defrontou-se com as primeiras eleições
relativamente livres de sua história. A experiência foi desastrosa. Envolvida
com o pleito no Estado do Rio de Janeiro, onde fica a sede da empresa,
participou, ao lado de serviços de informação da ditadura, de um complô para
fraudar os resultados, em uma tentativa de evitar a vitória do líder populista
de esquerda Leonel Brizola ' o chamado ''escândalo Proconsult'', em referência
à empresa responsável pela totalização dos votos. Graças à apuração paralela da
Rádio Jornal do Brasil, descobriu-se a fraude, e Brizola foi proclamado
vencedor.
Assim, a emissora aprofundava sua opção pela manipulação política descarada,
que já ficara patente na cobertura das greves operárias do ABC paulista em 1977
e 1978 ' quando imagens antigas dos pátios das montadoras, repletos de
veículos, eram apresentadas como novas, para demonstrar que a produção
prosseguia a pleno vapor. Mas o abrandamento da censura estatal, ocorrido com a
abertura, ampliava a responsabilidade da Globo por suas próprias escolhas
editoriais. O viés manipulativo fez-se presente também em 1983 e 1984, no
início da campanha por eleições diretas para presidente. Grandes manifestações
populares eram ignoradas pelos telenoticiários ou, então, apresentadas como
festividades desprovidas de conteúdo político. O que marcou a história das
relações entre mídia e política no Brasil, porém, foi a cobertura das eleições
presidenciais diretas em 1989.
Graças a uma bem-sucedida ofensiva de mídia, incluindo capas de revistas de
circulação nacional, programas de televisão e o uso de horários partidários
gratuitos, o governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello, viabilizou-se
como a opção das elites para impedir a vitória de um dos candidatos da esquerda
(Brizola e Lula) na disputa pela Presidência. O apoio da Globo à sua
candidatura ficou evidenciado desde o início, mas manifestou-se com clareza
ímpar na famosa edição do último debate do segundo turno, na véspera da
eleição, levada ao ar no Jornal Nacional. Os melhores momentos de Collor foram
unidos aos piores de Lula, em uma manipulação grosseira, cuja lembrança volta a
cada eleição como um fantasma a assombrar os jornalistas da emissora.
Da fraude na contagem dos votos à mera adulteração das informações de campanha
houve um passo significativo na direção de um comportamento mais civilizado '
ao menos ostensivamente ' no processo eleitoral. Outros passos foram dados nas
eleições posteriores. Em 1994, conforme o então ministro Rubens Ricúpero
declarou em suas famosas confissões, o apoio à candidatura de Fernando Henrique
Cardoso era dado de forma indireta, por meio da promoção do novo pacote
antiinflacionário do governo, o Plano Real. E em 1998 a Rede Globo colaborou
para a reeleição de FHC, eliminando a campanha de seus noticiários ' em
especial do Jornal Nacional, o mais importante deles ', o que ia ao encontro da
estratégia oficial de esvaziamento do debate público, de negação da existência
de alternativas e de transformação do pleito em um simples ritual de recondução
do presidente ao cargo.
O cenário das eleições de 2002, por sua vez, não permitia sequer que se
sonhasse com a reprodução de tal estratégia. Em primeiro lugar, Fernando
Henrique era legalmente impedido de tentar uma nova reeleição. Na ausência de
seu candidato natural ' o próprio presidente ', a coalizão governista envolveu-
se em uma violenta disputa interna que terminou por fraturá-la. O PFL afastou-
se, após as denúncias de corrupção que destruíram as pretensões presidenciais
da então governadora do Maranhão, Roseana Sarney. E o próprio PSDB ficou
cindido, uma vez que o postulante preterido (o governador do Ceará, Tasso
Jereissati) negou apoio ao escolhido, o ministro José Serra.
Além disso, o segundo mandato de Fernando Henrique foi marcado pela baixa
popularidade. O controle inflacionário, principal conquista que tinha a
apresentar, perdera boa parte de seu charme eleitoral; mazelas como baixo
crescimento econômico e alto índice de desemprego ganhavam visibilidade
crescente. A oposição, por sua vez, apresentou três candidatos com viabilidade
eleitoral. O ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes, do PPS, considerado bom
comunicador, aliou-se ao PTB (que deixou, assim, a base do governo) e ao PDT, o
que lhe garantiu alguma estrutura partidária e mais tempo de propaganda no
rádio e na TV, e, mais importante ainda, obteve o apoio informal da maior parte
do PFL. Já Anthony Garotinho, do PSB, possuía uma sólida base eleitoral no Rio
de Janeiro, onde era governador, e penetração na população evangélica, um
importante contingente de votos. Os lances políticos mais ousados, porém,
vieram do PT. Principal partido da esquerda brasileira, lançou pela quarta vez
a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, tendo
adotado uma política de alianças de extremo pragmatismo. Afora o PC do B, PCB e
PMN, aliados tradicionais, coligou-se com um partido de direita que também
fazia oposição ao governo de Fernando Henrique, o Partido Liberal. Igualmente,
consolidou o apoio de fatias importantes do PMDB e do PFL, em especial da ala
comandada pelo ex-presidente José Sarney.
O candidato a vice-presidente não foi, como das vezes anteriores, um veterano
militante da esquerda brasileira, mas um grande capitalista, o senador mineiro
José Alencar, proprietário da maior indústria têxtil do Brasil, que se filiou
ao PL especialmente para permitir a composição da chapa. A dobradinha Lula/José
Alencar foi montada com o incentivo do marqueteiro Duda Mendonça: simbolizaria
a união entre capital e trabalho, ao mesmo tempo que juntaria dois
''vencedores'', homens de origem humilde que triunfaram por seus próprios
méritos, um como político, outro como empresário. A própria presença de
Mendonça sinalizava as mudanças na candidatura petista. O marqueteiro tinha seu
nome associado ao do líder da direita paulista Paulo Maluf, cuja ressurreição
política, nos anos 90, foi seu maior triunfo profissional. A repulsa a Maluf,
um homem associado à ditadura e alvo de persistentes denúncias de improbidade,
foi durante muito tempo uma das poucas coisas que uniam o centro e as esquerdas
no Brasil. Por isso, parte da cúpula e muito da base do PT hostilizaram, de
início, a participação de Mendonça na campanha3.
Os movimentos do PT em busca de alianças foram dificultados pela principal
mudança no quadro institucional da eleição de 2002: a polêmica decisão do TSE
que impunha a ''verticalização'' das coligações, isto é, a obrigatoriedade de
as alianças partidárias nos estados acompanharem os acordos nacionais. Como em
muitos estados os petistas eram adversários históricos de seus novos
companheiros na eleição presidencial, houve certa tensão. A coligação com o PL
só pôde concretizar-se graças às muitas lacunas que a decisão do TSE deixou
abertas4.
A ''MAIOR COBERTURA DA HISTÓRIA''
A comparação com as eleições de 1998 deixa patente a completa transformação da
postura da Rede Globo, ocorrida em 2002. Conforme argumentei em pesquisa
anterior, em 1998 a emissora optou por esvaziar a disputa eleitoral, que foi
praticamente ignorada por seus noticiários, em especial pelo mais importante
deles, o Jornal Nacional (Miguel, 1999; 2002). Naquele ano, para a Presidência,
houve apenas um turno. No período mais ''quente'' da campanha ' as doze semanas
entre a final da Copa do Mundo e a data da votação ', o Jornal Nacional dedicou
ao todo 1h16min34s à cobertura das eleições, ou 4,6% do seu tempo total5. Em
2002, foram quatorze semanas entre o término da Copa e o primeiro turno; as
eleições presidenciais ocuparam 12h55min50s do noticiário, isto é, 29,4% do
tempo total do jornal; as eleições nos estados consumiram mais 46min11s. Ao
todo, portanto, o processo eleitoral ficou com 31,2% do tempo do noticiário.
Não foi só o Jornal Nacional. Entrevistas ao vivo com os candidatos, extensas
para os padrões usuais do telejornalismo, foram realizadas nos vários
noticiários da emissora. Ocorreu um debate com os quatro principais candidatos
logo antes do primeiro turno e outro com os dois finalistas, às vésperas do
segundo, ao passo que, em 1998, não foi realizado nenhum debate televisionado
com os postulantes à Presidência da República, por nenhuma das emissoras.
O Gráfico_1 ilustra outra diferença significativa. Em 1998, a escassa cobertura
das eleições foi concentrada na última quinzena de campanha ' na verdade, mais
da metade do tempo corresponde às quatro últimas edições do Jornal Nacional. Em
2002, há uma atenção permanente ao processo eleitoral e um crescimento
constante do tempo dedicado à cobertura do mesmo, que alcança quase 60% do
noticiário na última quinzena. Trata-se de uma mudança com repercussão
potencial importante. Em 1998, quando o Jornal Nacional finalmente se volta
para o pleito, não há mais tempo, ou há muito pouco tempo, para que o debate
tome conta da sociedade e os votantes refaçam suas opções.
A rubrica ''cobertura eleitoral'' engloba vários tipos de reportagem. Em 1998,
o Jornal Nacional dedicou, nas semanas estudadas, mais de meia hora para a
divulgação de resultados de sondagens de intenção de voto e tempo similar para
matérias de variedades (a eleitora mais velha, a eleitora mais jovem) ou de
serviços (ensinando como operar a urna eletrônica, por exemplo). Para o debate
eleitoral propriamente dito ' declarações dos candidatos, alianças, comícios '
sobraram apenas 10min24s. Em 2002, não faltaram divulgação de resultados de
pesquisas e reportagens sobre serviços/variedades. Mas a presença do debate
eleitoral foi elevada ao longo de todo o tempo. Outrossim, houve uma nova
categoria de reportagens: séries sobre problemas brasileiros apresentadas
explicitamente com o objetivo de incluí-los na agenda da campanha e extrair
compromissos dos candidatos.
Não foram apenas as reportagens voltadas a pautar os candidatos: de forma
geral, a Globo atribuiu a si própria a posição de ''regente das eleições'', o
que ficou claro nas entrevistas em estúdio e, sobretudo, nos debates. O
cumprimento das regras estritas determinadas pela produção era severamente
garantido pelo mediador William Bonner, em nome da manutenção de um ''alto
nível'' do qual ele era o juiz ' e que exilava boa parte da discussão
política6. Desejosos de evitar uma contenda com a emissora, os candidatos
submeteram-se às imposições.
Como o Quadro_1 indica, a cobertura eleitoral em 2002 ' ao contrário do que
ocorreu em 1998 ' privilegiou um enfoque efetivamente político, mostrando a
movimentação dos partidos, eventos de campanha e as idéias dos candidatos. A
categoria ''debate eleitoral'' ocupou quase 65% do tempo destinado às eleições,
o que se refletiu também no espaço dado à fala dos principais postulantes à
Presidência da República. Em 1998, a ausência da eleição no noticiário
silenciou os candidatos. Nas doze semanas estudadas do Jornal Nacional daquele
ano, Fernando Henrique Cardoso teve direito a sete sound bites (trechos de
discursos ou entrevistas), como candidato ou como presidente, totalizando
3min3s de fala. Seus adversários apareceram ainda menos: Lula ficou com seis
sound bites (total de 2min40s) e Ciro Gomes com três, todos na última semana,
somando 1min54s.
Já nas quatorze semanas sob análise em 2002, os candidatos estiveram muito mais
presentes. Ocorreram dois ciclos de grandes entrevistas ao vivo no estúdio da
emissora, um em julho e o outro em setembro; cada um dos quatro principais
candidatos foi entrevistado, a cada vez, por cerca de 10min (gerando algo em
torno de 7min ''líquidos'' de discurso não-editado). Ao todo, incluindo as
entrevistas, José Serra falou 37min5s; Lula, 36min16s; Ciro Gomes, 36min15s;
Anthony Garotinho, 34min19s. Mesmo os dois candidatos ''nanicos'' da extrema-
esquerda ganharam seus sound bites, é verdade que apenas episodicamente ' nove
inserções cada um, totalizando 1min23s para José Maria de Almeida (PSTU) e
1min32s para Rui Costa Pimenta (PCO)7.
Nas 84 edições do telejornal em foco, Lula e Ciro Gomes apareceram falando em
69, Serra em 70 e Garotinho em 72. A voz dos principais candidatos foi,
portanto, uma presença contínua para os espectadores do Jornal Nacional.
Os números apresentados no Quadro_2 indicam, com clareza, as transformações
sofridas no padrão de cobertura da Rede Globo para as duas eleições. A campanha
pela Presidência em 2002 parece ganhar centralidade ainda maior nos noticiários
do segundo turno, mas trata-se sobretudo de um efeito do caráter
''concentrado'', em poucas semanas, da disputa final. A rigor, as porcentagens
são até inferiores àquelas relativas às últimas semanas antes da votação do
primeiro turno. O relevante, portanto, é o contraste com o pleito de 1998. A
eleição passa da quase invisibilidade para a visibilidade quase absoluta.
Como também indica o Quadro_2, a maior visibilidade das eleições presidenciais
não foi um fenômeno isolado. Em 2002, no período sob análise, o telejornal
dedicou 46min11s às eleições nos estados, o que corresponde a 1,8% do tempo
total ' é bem verdade que quase sempre se limitando à divulgação de pesquisas
de intenção de voto. E 1h48min48s (4,1% do total) foi destinada a outros temas
de política brasileira, incluindo movimentação no Congresso, conflitos de terra
e denúncias de corrupção. Nas doze semanas estudadas em 1998, as eleições
estaduais estiveram ausentes quase que por completo, e a política brasileira
foi uma categoria residual ' juntas, não somaram mais do que 23min49s (1,4% do
total).
Embora não haja parâmetro de comparação com 1998, quando a disputa se definiu
na primeira votação, cumpre observar que a cobertura do segundo turno de 2002
também ganhou enorme destaque no Jornal Nacional. Nas dezoito edições do
noticiário entre 7 e 26 de outubro, a eleição presidencial recebeu cobertura
por 2h58min2s, o equivalente a 36% do tempo do jornal. As eleições estaduais
ficaram com 7,3% do telejornal, e outros temas de política brasileira, com mais
2,2%. Sound bites de José Serra apareceram em todas as edições; os de Lula, em
dezesseis delas. Ao todo, cada candidato falou pouco mais de 18min.
É possível observar de outro ângulo a mudança no perfil do Jornal Nacional,
apontando, nas coberturas de 1998 e de 2002, o peso relativo de quatro grandes
categorias de reportagens: ''esfera pública'' engloba eleições, política e
economia brasileiras; ''internacional'', política internacional ou interna de
outros países e economia mundial ou de outros países; ''outras questões de
interesse público'', matérias sobre saúde pública, educação, direitos do
consumidor, meio ambiente, segurança pública, trânsito e assemelhadas, além da
previsão do tempo; e ''variedades'' inclui o fait-divers, isto é, notícias que
se referem ao show-business, curiosidades, esportes, crimes, desastres etc. (e
também anúncios de outras atrações da emissora).
Conforme se pode verificar no Gráfico_2, em relação a 1998, os telejornais de
2002 apresentam um incremento notável no espaço concedido à categoria ''esfera
pública'', que se tornou a mais presente no noticiário, ocupando 44,9% do tempo
total (contra 12,9% nas eleições anteriores); há um crescimento do noticiário
internacional (de 5,9% para 10,8%), que no entanto continua em posição
secundária em relação aos outros temas, o que parece ser um traço
característico do jornalismo brasileiro; e uma notável redução da presença do
fait-divers (de 56,5% para 31,2%)8.
Vale observar dois aspectos dessa presença majoritária de temas da esfera
pública. Em primeiro lugar, ela foi puxada pela própria centralidade das
eleições no telenoticiário. Ao analisar o Jornal Nacional em 1998, era possível
dizer que muitos assuntos tinham obtido um destaque maior do que a disputa
eleitoral propriamente dita: a luta contra os remédios falsificados; a
perseguição ao motoboy assassino; o drama do ator de televisão baleado em um
assalto; e até mesmo o nascimento da filha de uma apresentadora de programas
infantis. Em 2002, o quadro é diferente. O destaque absoluto foi a própria
eleição presidencial. Dentre os outros assuntos que receberam atenção
significativa e foram acompanhados durante várias edições do telejornal, o
único que pertenceu à categoria ''variedades'' foi a perseguição aos assassinos
do jornalista Tim Lopes, da própria Rede Globo. Ainda assim, a cobertura
oscilava entre a mera reportagem policial (isto é, o puro fait-divers) e a
abordagem voltada para as políticas públicas de segurança (portanto, matérias
classificadas como ''questões de interesse público''). Outros temas de relevo,
muito presentes no noticiário, incluíam tensões na economia doméstica e
mundial, o conflito árabe-israelense e a investigação sobre corrupção na
prefeitura de Santo André (SP).
Em segundo lugar, as reportagens catalogadas como ''esfera pública'' foram
contempladas com uma fatia generosa do noticiário em todo o período analisado
(Gráfico_3). Em todas as semanas, foi a categoria que recebeu mais tempo no
Jornal Nacional' exceto a primeira, quando as reportagens de ''variedades''
estiveram infladas pela vitória do Brasil na Copa do Mundo, retorno da seleção
ao país e festejos ocorridos em diversas cidades.
A ampliação do espaço concedido às notícias sobre a ''esfera pública'' foi, na
verdade, maior do que a simples confrontação de porcentagens de tempo deixa
entrever. Afinal, o Jornal Nacional, que se mostrou mais generoso com a
cobertura das questões de política e economia, foi também um telenoticiário
mais encorpado. As edições estudadas em 1998 tinham um tempo médio de 23min15s;
no período do primeiro turno de 2002, esta média subiu para 31min14s, ou seja,
teve um acréscimo superior a um terço.
Além do tempo facultado à campanha eleitoral, outra característica marcante da
cobertura desta no Jornal Nacional foi a busca quase obsessiva pela
''imparcialidade'', demonstrada sobretudo no equilíbrio no número de aparições
e no espaço destinado a cada um dos principais candidatos. Com o objetivo
expresso de evitar qualquer possibilidade de polêmica, a emissora optou por não
apresentar versões editadas dos debates, nem mesmo daqueles realizados por ela
(tanto no primeiro quanto no segundo turno).
Essa busca da imparcialidade foi de certa forma surpreendente. Nos meses
anteriores à campanha eleitoral, a Rede Globo mostrou-se estritamente alinhada
com o governo federal. Em meados de 2001, quando o presidente Fernando Henrique
Cardoso rompeu com o senador Antônio Carlos Magalhães, a emissora não titubeou
em abandonar um poderoso aliado de muitos anos, dono de sua repetidora na
Bahia, colaborando ativamente na produção do clima de opinião que o levou à
renúncia do mandato de senador (Almeida, 2002). No começo de 2002, a Rede Globo
teve importante papel na implosão da candidatura presidencial da governadora
Roseana Sarney, atingida por indícios de corrupção, em uma manobra que, tudo
indica, partiu do candidato governista José Serra. O alinhamento com o governo
parecia explicado, quando foi noticiada uma operação milionária do BNDES para
salvar a Globocabo, a deficitária empresa de TV por assinatura das Organizações
Globo. Mas aí a emissora decidiu fazer sua opção preferencial pela
''imparcialidade'', a tal ponto que, segundo alguns observadores, fez questão
de marcar seu distanciamento tratando Serra, em alguns momentos, com mais rigor
do que o fazia com seus adversários (Sá, 2002).
Os limites da imparcialidade do noticiário ficavam claros quando se olhava para
além da agenda da emissora ' e da grande imprensa em geral. Eventualmente,
Serra podia ser tratado com certa dureza, mas denúncias graves contra o governo
federal, em especial as que envolviam o ex-tesoureiro de suas campanhas,
Ricardo Sérgio, sumiram da pauta. O caso Ricardo Sérgio apareceu apenas duas
vezes ao longo das 84 edições analisadas, enquanto a investigação sobre
denúncias de corrupção na prefeitura de Santo André, muito menos grave ou
abrangente, mas que atingia o PT, mereceu onze reportagens. Ainda assim, não
parece correto afirmar que houve um viés antipetista exacerbado e permanente '
como escreveu, por exemplo, pouco antes da votação do primeiro turno, o
jornalista Bob Fernandes (2002). Em comparação com as eleições anteriores, o
noticiário da Rede Globo, de fato, avançou na direção de um tratamento mais
equânime dos diversos candidatos.
Só se pode especular sobre os motivos de tal démarche ' por exemplo, a
necessidade de aumentar a credibilidade para sustentar a posição dominante no
mercado ' no momento em que, após uma alteração na Constituição, ele se abre
para parcerias com conglomerados de mídia estrangeiros. Cabe ressaltar que as
Organizações Globo se encontram em situação financeira difícil (Dias, 2002), o
que torna, para elas, extremamente importante não só encontrar novos parceiros
como também manter um relacionamento amigável com o governo, seja qual for,
fonte provável de socorro nos momentos de aperto.
Foi nesse contexto, com uma Globo enfraquecida, embora longe de destroçada, que
ocorreram contatos entre a cúpula petista e a direção da emissora, um pouco nos
moldes daqueles que os trabalhistas britânicos estabeleceram com os tablóides
conservadores, nos anos 90, visando pacificar uma imprensa hostil (Mungham,
1996)9. A história dessa aproximação ainda há de ser contada; sua principal
faceta pública, até o momento, foi a intervenção do então presidente do PT,
deputado José Dirceu, desautorizando qualquer ação contra a Medida Provisória
publicada pouco antes do segundo turno, que regulamentou a entrada do capital
estrangeiro na mídia (e também, sem muita divulgação, eliminou entraves à
concentração da propriedade no setor).
O FECHAMENTO DO CAMPO DISCURSIVO
Mais espaço para a cobertura da campanha eleitoral não é necessariamente
garantia de prover a cidadania com informação de melhor qualidade (Rubim, 2002)
' e tratamento equânime para os candidatos não significa neutralidade. A
''imparcialidade'' no noticiário sobre as eleições de 2002, no Brasil, permite
observar outro ' e crucial ' aspecto da influência dos meios de comunicação no
jogo político.
Sintetizando algumas das observações de Pierre Bourdieu sobre o funcionamento
do campo político, é possível dizer que um dos papéis que ele cumpre é o de
fixar o espaço do ''politicamente aceitável''. A exigência de comportamento
''responsável'' e ''confiável'' contribui para fechar o campo político,
excluindo os grupos que não se conformam com os papéis que lhes cabem e buscam
redefinir as fronteiras da própria política (Bourdieu, 1989:172). Aliás, uma
das funções do intelectual crítico, na visão do sociólogo francês, é intervir
de maneira ''subversiva'' no debate político, colocando-se contra a maré,
forçando a ampliação do espaço do politicamente ''dizível'', questionando os
consensos estabelecidos (Bourdieu, 1992: post-scriptum).
É claro que a determinação de tal espaço é fruto de lutas no interior do
próprio campo político (e, nesse sentido, é possível interpretar a visão de
Bourdieu como uma versão mais fraca da concepção gramsciana de hegemonia). Suas
fronteiras variam de acordo com mudanças no jogo de forças. Para ilustrar,
basta lembrar de como, no Brasil, a partir da fase final da ditadura militar,
foi banido qualquer discurso que não aceitasse as instituições da democracia
representativa; e como um novo fechamento é imposto paulatinamente, desde o
governo Collor, circunscrevendo o espaço do dizível à aceitação de determinadas
''regras'' da economia de mercado.
A mídia cumpre um papel importante nesse processo, na medida em que enaltece
antigos desviantes que se adaptam ao novo consenso ' sinal de seu
''amadurecimento'' ' e relega os renitentes ao ostracismo, ignorando suas
posições ou, então, folclorizando-as. Não se trata de um processo determinado
conscientemente, nem que esteja isento de contradições; mas as linhas gerais
são bem perceptíveis. Um estudo do tratamento dado às tendências internas do
próprio PT seria significativo. Os grupos mais à esquerda foram, desde cedo,
estigmatizados como ''xiitas'', termo com uma carga pejorativa inescapável (ao
contrário de sua contrapartida, o ''light'' que adjetiva os petistas mais
moderados). Suas posições foram, cada vez mais, julgadas irrelevantes para o
debate político, em um processo que se realimentava: a menor visibilidade
pública, isto é, na mídia, limitava as chances eleitorais da esquerda
partidária; o baixo rendimento eleitoral minava suas posições na estrutura
partidária; a menor quantidade de cargos eletivos e partidários controlados por
ela justificava a ausência na mídia10.
Assim, a mídia reforça o trabalho do campo político no sentido de
''domesticar'' esse tipo de força, premiando as demonstrações de ''moderação'',
''responsabilidade'' e ''respeitabilidade'', o que contribuiu para alterar a
composição de forças dentro do próprio partido. Independente do mérito das
posições políticas mais extremadas, que aqui não me cabe julgar, isso concorre
para estreitar o espaço do debate, isto é, para rebaixar a esfera pública.
Nas eleições de 2002, o principal instrumento de fechamento do campo discursivo
' e ''enquadramento'' dos candidatos em um figurino estrito ' foi o agravamento
da crise econômica. Ao longo das duas gestões de FHC na Presidência, o país
tornou-se altamente vulnerável aos movimentos do capital financeiro
internacional. Com a turbulência na economia mundial provocada pelos atentados
ao World Trade Center e ao Pentágono, em setembro de 2001, e em seguida pela
crise de confiança na bolsa estadunidense, suscitada por sucessivos escândalos
contábeis envolvendo grandes corporações, tudo isso aliado à quebra da
Argentina e do Uruguai, parceiros do Mercosul, a posição do Brasil apenas
piorou.
Nesse cenário, passou a ser destacada a necessidade de gerar ''confiança'' nos
operadores do mercado financeiro. A oscilação do câmbio dominou o noticiário
desde o final da Copa do Mundo até a eleição; a expressão ''risco-país'',
medida da confiabilidade diante dos credores externos, tornou-se corrente na
mídia de massa. Em especial, os principais candidatos à Presidência foram
levados a manifestar seu compromisso com a continuidade de alguns dos pilares
do modelo econômico vigente ' e mesmo a apoiar, em uníssono, o novo acordo com
o FMI, fechado no início de agosto. Tratava-se de minorar a ''incerteza'' que
as eleições provocavam no funcionamento da economia; ou, dito de outra forma,
de procurar restringir brutalmente a margem de manobra do novo governo em
relação à política econômica.
Os dois inexpressivos representantes da extrema-esquerda continuaram afirmando
sua oposição, mas possuíam peso eleitoral tão ínfimo que não constituíam
ameaça. Foram alijados do debate, com o aval do TSE, que decidiu que as regras
de tratamento equânime só valiam para os candidatos das coligações que
contassem com presença no Congresso Nacional. Assim, José Maria de Almeida
(PSTU) e Rui Costa Pimenta (PCO) puderam ser ignorados pelo noticiário e não
foram convidados para os debates na televisão11.
Duas estratégias principais de fechamento do campo discursivo podem ser
identificadas12. A mais evidente consistia na obtenção de promessas por parte
dos candidatos. Nas entrevistas e nos debates, o âncora do Jornal Nacional,
William Bonner, cobrava de todos (em especial dos três oposicionistas) a
''manutenção dos contratos'', o pagamento das dívidas externa e interna e o
compromisso com o ajuste fiscal. Da forma como o diálogo era posto (e uma vez
que nenhum candidato se dispunha a contestá-lo), parecia que Bonner exigia algo
tão evidente quanto a honestidade no trato com o dinheiro público, isto é, algo
que não permitisse discordâncias no campo da política e que marcasse o
desviante como portador de um déficit moral.
A outra estratégia se dava no agendamento e no enquadramento dos temas. De um
lado, pelo silenciamento sobre certas questões. A negociação com os Estados
Unidos para a formação da ALCA, considerada crucial pela totalidade da elite
política e econômica brasileira, pouco apareceu nos noticiários; quando surgia,
era completamente dissociada das eleições ' o que contou com a colaboração dos
quatro principais candidatos, que preferiam não tocar em assunto tão espinhoso,
tanto pela dificuldade de compreensão pelo eleitor comum quanto pelos
interesses que afeta. Os candidatos da extrema-esquerda apresentavam a ALCA
como parte de uma estratégia imperialista, porém, mais uma vez, não tiveram
força para incluir a questão na agenda.
De outro lado, algumas questões mostravam alta visibilidade. Em 2002, a
economia brasileira ocupou 9,4% do Jornal Nacional ' um aumento perceptível em
relação aos 6,9% de 1998. Mais importante do que o tempo, contudo, era a
atenção permanente às ''sensibilidades'' do mercado. A oscilação da bolsa e do
câmbio era acompanhada mais detalhadamente do que o habitual, mas a novidade
era a inclusão constante do ''risco-país'' e seus assemelhados (índices de
diversas consultorias financeiras estrangeiras, notas concedidas a papéis
brasileiros etc.)13.
A centralidade absoluta dessas questões ficava ainda mais evidente na mídia
impressa, destinada a um público mais sofisticado. À guisa de ilustração, o
Quadro_3 mostra a distribuição por temas da principal manchete diária do jornal
Folha de S. Paulo, nos meses de julho a outubro, em 2000 (ano de eleições
municipais), 2001 (ano não eleitoral) e 2002 (ano de eleições gerais); qualquer
outro grande jornal apresentaria números similares. É notório o crescimento da
importância concedida ao noticiário econômico e o esvaziamento da política em
sentido estrito. Isso fica ainda mais claro quando se acrescenta que, dentre as
24 manchetes principais de 2002 que tratavam de política, 22 focavam o
resultado de pesquisas pré-eleitorais (ou os resultados do primeiro turno).
Por outro lado, a cotação do dólar diante do real foi assunto da principal
manchete da Folha de S. Paulo por 27 vezes nos quatro meses analisados em 2002.
Em 2001, o câmbio mereceu quatro manchetes principais e em 2000, apenas uma.
Finalmente, em 2002, por 39 vezes a Folhadestacou em sua capa ' em manchete ou
não ' o impacto que a escolha de tal ou qual candidato tinha naqueles
indicadores econômicos que ela privilegiava (câmbio, bolsa, ''risco-país''). O
risco de Ciro Gomes ultrapassar José Serra alarmava o ''mercado'' (6/7, 18/7),
a reação de Serra o acalmava (17/8, 14/9), a hipótese da vitória de Lula no
primeiro turno voltava a assustá-lo (17/9, 19/9, 20/9, 24/9, 28/9, 29/9), mas a
''moderação'' do candidato do PT enfim o apaziguava (25/10, 26/10).
Não se trata de negar a gravidade da crise econômica que se ''impunha'' como
tema dominante. No entanto, uma vez que se reconhece que o jornalismo não é
mero reflexo da realidade, mas também um de seus elementos constitutivos, fica
claro que o recorte que se fazia do momento, iluminando certos aspectos em
detrimento de outros, beneficiava uma interpretação do mundo social e de suas
alternativas. Em 2002, a oposição ' em especial seu candidato mais importante,
Lula ' optou por não remar contra a maré, adaptando-se ao modelo discursivo
dominante.
CONCLUSÕES
Parece claro que a mídia cumpriu um papel saliente no processo de fechamento do
espaço do dizível. Ao contrário de algumas análises feitas no momento, creio
que, independente das intenções de seus emissores, a vinculação estrita que a
imprensa fez entre a eleição e a crise econômica, com a subida dos candidatos
de oposição nas pesquisas correspondendo à desvalorização do real e à queda nas
bolsas, contribuiu menos para alavancar o candidato do governo, José Serra, e
mais para extrair dos candidatos da oposição compromissos cada vez mais
abrangentes com a continuidade da política econômica liberal. À incerteza,
própria do jogo eleitoral e mesmo da democracia (Przeworski, 1984), opôs-se,
com êxito, a necessidade de ''segurança'' para os investidores externos.
A Rede Globo de Televisão deu, em 2002, um passo significativo na transformação
de seu comportamento em períodos eleitorais. É possível apenas especular se as
razões para tanto são de natureza jornalística, empresarial ou política ' ou,
provavelmente, uma combinação das três. Não se pode negar que ocorreram avanços
importantes na direção da imparcialidade em relação aos candidatos relevantes e
uma notável ampliação da massa de informações colocada à disposição do público.
Sem pretender reduzir o alcance de tais acontecimentos, cumpre observar que a
abertura da Globo à disputa eleitoral foi concomitante à diminuição do espectro
de alternativas efetivamente apresentadas ao eleitorado.
Além disso, a campanha de 2002 revelou com clareza que a opção por um candidato
é apenas a forma mais grosseira que os meios de comunicação possuem para
influenciar o processo eleitoral. Na medida em que toda notícia pressupõe uma
seleção e uma hierarquização da informação, os veículos da mídia nunca podem
atingir a neutralidade que por vezes postulam e, necessariamente, contribuem
para a construção de uma determinada representação do mundo social. A que a
Rede Globo privilegiou vetava, de antemão, qualquer discussão sobre a alteração
do modelo macroeconômico.
Como o breve excurso sobre a Folha de S. Paulo sinalizou, essa não foi uma
característica exclusiva da Globo, mas algo comum a toda a grande imprensa. O
público viu-se, portanto, diante de uma leitura uniforme da realidade, fruto do
baixo pluralismo vigente na mídia brasileira. E os candidatos competitivos,
conscientes do poder dos meios de comunicação, adaptaram-se a essa leitura,
estreitando o espaço do debate político.