A experiência eleitoral em Campos dos Goytacazes (1870-1889): freqüência
eleitoral e perfil da população votante
APRESENTAÇÃO
Dotado de um dos mais expressivos eleitorados do mundo1, o Brasil possui uma
rica história eleitoral, cuja trajetória foi marcada por avanços e retrocessos
no que se refere à representatividade social da população legalmente habilitada
ao voto. As primeiras eleições gerais do país ocorreram quando da escolha dos
representantes brasileiros às Cortes de Lisboa (1821). Posteriormente, a
Constituição de 1824 e uma série de leis subseqüentes deram forma ao sistema
eleitoral que vigorou no Império, cuja arquitetura previa eleições em dois
níveis: votavam em primeira instância (eleições primárias) aqueles que
escolhiam os eleitores responsáveis pelas eleições secundárias2. Pela
legislação, ficavam excluídos do processo eleitoral as mulheres, os escravos,
os menores de 25 anos (com algumas exceções), os praças de pré do Exército, da
Armada e da força policial paga, assim como os marinheiros dos navios de
guerra. A adoção do voto censitário exigia, ainda, um patamar mínimo de renda
anual para que um cidadão pudesse qualificar-se como votante: 100 mil réis a
princípio e 200 mil réis a partir de 18463.
De maneira geral, no século XIX, os padrões eleitorais internacionalmente
praticados eram elitistas e excluíam parte significativa da população que
estava na base da pirâmide socioeconômica. Nesse ambiente, o Brasil não é uma
exceção à regra. Entretanto, um olhar anacrônico sobre a realidade do voto no
Império brasileiro pode sugerir uma visão distorcida sobre a representatividade
social da prática eleitoral do período. Isto porque, avaliados a partir de
critérios atuais, os limites então adotados parecem por demais rigorosos,
quando, na verdade, estavam de acordo com o seu tempo e com o pensamento
político da época.
A eleição censitária foi talvez o elemento que mais contribuiu para
interpretações precipitadas sobre a representatividade do voto no país. Por
muito tempo, as análises sobre a realidade eleitoral no Império brasileiro (ver
Alencar, 1997; Souza, 1979; Holanda, 1972; Faoro, 1998; Leal, 1986) priorizaram
questões, tais como as imperfeições da legislação, o caráter fraudulento da
prática eleitoral (associado ao clientelismo e ao uso autoritário do poder) e a
circunstância de as eleições não representarem um canal de fato para mudanças
no status quo do poder político, estando a serviço da produção continuada de
''câmaras unânimes e governistas'' e da alternância artificial dos partidos no
poder. Tais análises deram lugar a interpretações pouco precisas sobre a
representatividade do voto no Império. Assim, por exemplo, muitos dos livros-
textos de história, ainda hoje adotados no ensino médio, reafirmam a visão de
que o processo eleitoral do período, por ser censitário, implicava eleições
pouco freqüentes e carentes de ampla participação popular4. No entanto, já há
algum tempo, trabalhos sobre o tema têm procurado relativizar os efeitos da
exigência da renda mínima sobre a limitação do voto, buscando dimensionar o
real significado dos 200 mil réis para o padrão de riqueza da época (Buesco,
1981:183; Linhares, 1979:141). Ademais, novas pesquisas vêm produzindo uma
literatura que sublinha o fato de que o percentual de votantes no Brasil
imperial se traduzia em um índice de inclusão política que não ficava nada a
dever aos então observados nos países da Europa Ocidental5.
O alto grau de inclusão eleitoral observado no Brasil imperial é compreensível
se considerarmos que as instituições do regime monárquico que se seguiu à
emancipação política do país (1822) foram modeladas tendo como referência as
experiências políticas mais avançadas da Europa Ocidental. De fato, essa
circunstância implicou a adoção do sistema representativoe de uma monarquia
dotada de elementos constitucionais, tais como divisão de poderes, partidos
políticos e eleições.
Vale lembrar ainda que análises baseadas em Listas de Qualificação de Votantes
têm revelado surpreendentes resultados no que diz respeito aos índices de
participação eleitoral em diversas regiões do país, como Curitiba (Cardoso,
1974), Campinas (Magalhães, 1992), São Paulo (Klein, 1995) e Município da Corte
(Linhares, 1979), e permitido, simultaneamente, desenhar um perfil mais
realista do eleitorado brasileiro no terceiro quarto do século XIX.
O presente trabalho tem por objetivo retomar a questão da participação
eleitoral e do perfil dos votantes (idade, instrução, renda e ocupação
profissional), tendo como referência as listas de qualificação de votantes6 de
Campos dos Goytacazes (RJ). Com base no caso deste município, discute ainda a
freqüência de eleições no período focalizado (1870-1889). Embora induzido pela
disponibilidade de dados primários (as listas de qualificação franqueadas), o
corte temporal utilizado atravessa três momentos particulares da vida eleitoral
brasileira. No primeiro deles (1870-1875), está em vigor a Segunda Lei do
Círculo; o segundo (1875-1881) corresponde a uma conjuntura na qual a Lei do
Terço organiza o processo eleitoral brasileiro; o terceiro (1881-1889) equivale
a um período sob regulação da Lei Saraiva.
É importante registrar que o Município de Campos ocupou durante todo o Império
uma posição relevante no cenário eleitoral da província, mantendo sempre a
condição de ''cabeça de distrito''. Em 1866, os maiores colégios eleitorais da
Província do Rio de Janeiro eram: Campos (100 eleitores), Niterói (88), Piraí
(73), Itaguaí (68), Barra Mansa e Angra dos Reis (65 cada). Em 1881, Niterói,
com 1.131 eleitores, e Campos, com 1.108, permaneciam como os principais
colégios eleitorais provinciais, seguidos por Valença (602), São Fidélis (588)
e Rezende (514)7.
QUANTO SE VOTA NO IMPÉRIO: A FREQÜÊNCIA DE EVENTOS ELEITORAIS EM CAMPOS DOS
GOYTACAZES
Um inventário dos pleitos eleitorais ocorridos em Campos dos Goytacazes no
período 1870-1889 revela que se votava muito no Império. À exceção de três
anos, 1871,1879 e 1888, há no município registro de pelo menos um evento
eleitoral por ano (ver Quadros_1 e 2). O quadro encontrado para a região pode,
muito provavelmente, ser estendido para a província e para o país.
O grande número de eleições explica-se por numerosos fatores. Havia casos em
que em um mesmo município ou distrito eleitoral se realizavam duas eleições por
ano. Como o Senado era uma Câmara vitalícia, as votações só aconteciam quando
um de seus membros morria. Surgida a vaga, logo eram convocados os eleitores
para a escolha do novo senador, e, por conseguinte, a ocorrência de mais de um
pleito por ano não era incomum. Isto aconteceu em 1872, quando faleceram o
visconde de Itaboray e o senador Cândido Borges Monteiro, e também em 1887, com
os óbitos do conde de Baependy e do senador Antônio Chichorro. A Câmara
Municipal8, Assembléia Geral e Assembléia Provincial poderiam passar por
situação semelhante, porque, não havendo a figura do suplente, sempre que
desocupava um cargo de vereador, deputado provincial ou deputado geral, o que
acontecia por motivos diversos (transferências de cargo, morte etc.), uma
eleição especial era convocada para o preenchimento da vaga correspondente.
As eleições para a Assembléia Geral, Câmara Municipal e para Juízes de Paz
ocorriam de quatro em quatro anos, tempo de duração dos mandatos, enquanto para
as Assembléias Provinciais, seguindo a legislação, realizavam-se a cada dois
anos. Além disso, pleitos extraordinários para a Assembléia Geral eram
freqüentes, em função de atos de dissolução da Câmara previstos pela legislação
e operacionalizados pelos mecanismos inerentes ao sistema parlamentar em vigor.
Com a Reforma de 1881, a adoção do coeficiente eleitoral9 nas eleições de
vereadores e deputados provinciais e do sistema de maioria absoluta nas
eleições para a Assembléia Geral criou o segundo escrutínio, provocando, muitas
vezes, uma duplicação de eleições. Os candidatos que não atingissem o
coeficiente previsto ou a maioria absoluta dos votos, mesmo que fossem os mais
votados, teriam que disputar as vagas em uma segunda eleição. Se levarmos em
consideração o processo de
qualificação de votantes
10, podemos concluir que os eventos eleitorais foram uma constante na vida do
cidadão brasileiro durante o Império, o que transparece com clareza na
afirmação de um articulista da época: ''Não há no mundo país, onde se fale
tanto de política como no Brasil. Política, não digo bem, mas por eleições
nenhum povo tem mais paixão do que o brasileiro''11.
CAMPOS DOS GOYTACAZES: AS LISTAS DE QUALIFICAÇÃO
A chamada Lei do Terço (1875), responsável pela criação dos títulos de
qualificação de votantes, introduziu uma importante inovação ao exigir a
ampliação das informações contidas nas listas preparadas durante o processo de
alistamento. A partir de então, as listas de qualificação de votantes
(organizadas por distritos e quarteirões) passaram a registrar os nomes dos
qualificados inscritos por ordem alfabética e uma série de informações
adicionais, visto que, conforme previa a legislação, ''em frente do nome de
cada um destes se mencionarão a idade, a profissão, a circunstância de saber
ler ou não ler e escrever, a filiação, o domicílio e a renda conhecida provada
ou presumida'' (art. 27)12. Assim, o processo de qualificação acabou produzindo
um importante documento, com dados suficientes para permitir estudos mais
sólidos acerca do perfil socioprofissional do eleitorado das diversas paróquias
e municípios do país.
A análise apresentada na próxima seção deste trabalho tem como base três listas
de qualificação, referentes ao Município de Campos, encontradas em trabalho de
pesquisa em arquivos públicos do município. Uma delas refere-se à paróquia de
São Salvador (1876), outra à paróquia de São Gonçalo (1878) e a terceira à
freguesia de Nossa Senhora da Natividade do Carangola (1878). A paróquia de São
Salvador era, já nesse período, uma freguesia urbana e a mais importante do
município. A de São Gonçalo, próxima à sede do município (hoje integra a região
metropolitana da cidade), embora rural, possuía um grau de urbanização mais
elevado que a de Natividade, esta sim uma paróquia tipicamente rural. O
reduzido número de documentos encontrados não permitiu a organização de uma
série temporal que possibilitasse identificar tendências e transformações do
perfil dos votantes ao longo do tempo; fornecem, entretanto, um retrato bem
definido da população qualificada das paróquias de referência e representam uma
amostra bastante significativa do eleitorado total do município (ver Tabelas_1
e 2). As três paróquias analisadas englobavam 41% da população ou dos eleitores
do município.
As informações consignadas nas listas de qualificação apresentam alguns
problemas, em parte resultantes das mazelas do processo de qualificação. Assim,
por exemplo, na lista referente a São Salvador, 99% dos votantes estão
registrados com renda presumida (e não renda comprovada) e, na paróquia de
Natividade, há uma enorme concentração dos votantes na faixa de renda entre 200
mil réis e 400 mil réis. Estes fatos são indicativos de que os processos de
qualificação padeciam de pouco rigor. Mas, a despeito de suas limitações, os
documentos analisados contêm dados importantes sobre a sociedade da época e,
como sabido, têm sido utilizados como base empírica para trabalhos de pesquisa
que focalizam o processo eleitoral em várias regiões do país.
CAMPOS DOS GOYTACAZES: A INCLUSÃO ELEITORAL
A partir do número de votantes registrados nas listas de qualificação
encontradas, foi possível calcular os indicadores de inclusão eleitoral com
relação à população de homens livres, à população livre (homens e mulheres) e à
população total (livres e escravos) (Tabela_3). O resultado13 mostrou que, para
a média das três paróquias, os votantes representavam 23,0% dos homens livres,
11,4% da população livre e 6,9% da população total (Tabela_4). Este último
valor é bem inferior ao estimado por Carvalho (1988) para o Brasil da década de
1870: 10,8% de votantes da população total. A menor taxa de inclusão verificada
para a média das paróquias focalizadas explica-se, muito provavelmente, pelo
maior peso da população escrava na região, relativamente ao quadro encontrado
no país14. Mesmo assim, a taxa de inclusão da média das paróquias está em um
patamar próximo ou superior ao verificado para alguns países da Europa
Ocidental no mesmo período (ver nota 5).
Vale registrar que, na região, independentemente da referência considerada
(homens livres, população livre ou população total), a taxa de inclusão tende a
ser maior nas paróquias menos urbanizadas. Assim, a participação dos votantes
na população total de São Salvador estava em 6,1%, enquanto em São Gonçalo e em
Natividade atingia a ordem de 6,5% e 10,7%, respectivamente.
Por fim, é importante registrar que o número de votantes elegíveis como parcela
da população total estava em 3,9% em São Salvador, 1,6% em São Gonçalo, 2,5% em
Natividade e em 3,0% para a média das três paróquias. Estes valores,
significativamente inferiores às taxas de inclusão antes comentadas, estão em
consonância com a legislação eleitoral do período, mais severa no que se refere
ao direito de ser eleito do que em relação ao direito de voto.
CAMPOS DOS GOYTACAZES: O PERFIL DA POPULAÇÃO QUALIFICADA
O exame das três listas de qualificação referentes às paróquias de São Salvador
(1876), São Gonçalo (1878) e Natividade (1878), quando a eleição ainda seguia o
sistema de eleições indiretas, permite traçar um perfil do universo de votantes
do município (idade, renda, instrução e atividade profissional), caracterizar
diferenças e semelhanças entre as áreas rurais e urbana e comparar o perfil
encontrado com o dos eleitores de São Paulo desenhado em estudo sobre o tema
(Klein, 1995). Este é o objetivo das considerações que se seguem. Vale
sublinhar que este artigo lida apenas com o universo dos votantes (elegíveis e
não elegíveis), constituído basicamente por homens livres, maiores de 25 anos15
e com alguma renda. Como se sabe, afora algumas restrições previstas em lei, a
renda e a idade constituíam os grandes obstáculos ao direito de voto dos homens
livres, enquanto mulheres e escravos estavam por princípio excluídos.
a) Idade ' A análise das diversas faixas etárias dos qualificados da paróquia
urbana e das duas rurais do Município de Campos dos Goytacazes evidencia que a
pirâmide por faixa de idade dos eleitores segue, provavelmente, a pirâmide de
idade dos habitantes (homens livres)16. Isto confirmaria a hipótese de Klein
(1995:531) de que ''os eleitores não eram uma oligarquia limitada pela idade,
mas espelhavam perfeitamente a estrutura de idade da população a que
pertenciam''. No caso de Campos, há uma faixa fora da tendência anterior: os
qualificados entre 25 e 29 anos nas paróquias rurais aparecem como porcentagem
muito menor se comparados aos de 30-34 (Gráfico_1). Uma explicação para este
fato está no pressuposto de que na zona rural os homens mais jovens demoravam
mais a constituir-se como uma unidade de renda autônoma, o que atrasava sua
entrada no universo dos votantes. Outra hipótese seria a ocorrência no período
de uma migração campo-cidade da população masculina, concentrada na faixa de 25
a 29 anos. A idade média dos homens urbanos (São Salvador) qualificados para
votar era de 41 anos e a dos rurais, de 42 anos (43 em Natividade e 41 em São
Gonçalo). Estes números estão muito próximos dos encontrados por Klein para São
Paulo, onde este autor obteve uma idade média de 40 anos para áreas urbanas e
rurais.
b) Idade e Renda ' Quando se relaciona idade e renda anual, percebe-se que os
pobres representavam uma expressiva parcela do total dos votantes, mesmo nas
faixas de idade mais altas. Entretanto, no universo dos votantes, há uma
correlação significativa entre idade e renda, isto é, nas faixas mais altas de
idade a participação de pobres tende a diminuir. A Tabela_5 ilustra bem este
ponto ao revelar a participação dos qualificados mais ricos e mais pobres17
discriminada por faixas de idade.
As informações da Tabela_5 permitem concluir que a inserção de pobres nos
qualificados decresce com a idade, permanecendo, contudo, muito expressiva em
todas as faixas etárias. No pior dos casos (60 anos ou mais), essa participação
fica em torno de dois terços dos qualificados, circunstância indicativa de que
homens livres e pobres tomavam parte significativa no processo eleitoral.
Se combinarmos os dados do Gráfico_1 com aqueles da Tabela_5, podemos ter como
explicação, para a menor participação de pobres nas faixas etárias mais altas
da população qualificada, a hipótese de que a expectativa de vida dos mais
pobres era, no período, menor que a dos mais ricos. Haveria, relativamente,
menos pobres nos qualificados de mais idade porque haveria proporcionalmente
menos pobres na população mais longeva18.
c) Distribuição da Renda ' A análise das informações sobre renda indica que os
cidadãos qualificados da zona urbana eram, em média, mais ricos do que os da
área rural. A renda média dos qualificados na paróquia de São Salvador, situada
na sede do município, estava em 1.011 mil réis anuais, bem mais elevada do que
a dos votantes de Natividade (247 mil réis anuais) e a dos de São Gonçalo (657
mil réis anuais). O exame comparativo da distribuição de renda da população
votante das três paróquias foi realizado utilizando-se o índice de Gini19,
instrumento adequado para avaliar diferenças de concentração de renda intra-
regionais. É importante lembrar que esse exercício engloba aqui apenas o
universo dos qualificados.O resultado encontrado foi o seguinte: a população
votante da paróquia de São Salvador possui um Gini de 0,5410, a de São Gonçalo
de 0,6173 e a de Natividade de 0,1442. São Gonçalo, que constitui uma freguesia
rural, com sede situada mais próxima da cidade, revela a pior distribuição de
renda da população qualificada, um resultado que a aproxima da freguesia de São
Salvador, genuinamente urbana. Natividade, a menos urbanizada, é a que
apresenta melhor distribuição de renda no grupo dos votantes. Sua população
qualificada, mais pobre e com melhor distribuição de renda vive uma espécie de
igualdade na pobreza20. É interessante registrar que os índices de São Salvador
e de São Gonçalo são próximos aos encontrados por Klein para a São Paulo urbana
e o de Natividade para a São Paulo rural.
A Tabela_6 mostra a renda acumulada da população votante nas três freguesias e
sua leitura permite identificar, por outra via, que o grupo de qualificados de
Natividade era o que possuía a melhor distribuição de renda. Os seus 10% mais
pobres detinham 8,1% da renda, enquanto os de São Gonçalo se apropriavam de
3,0% e os de São Salvador de 2,0%. Lendo ao inverso, em Natividade, os 10%
votantes mais ricos respondiam por 16,2% da renda total dos votantes, proporção
que atinge a ordem de 66,6% em São Gonçalo e de 42,4% em São Salvador.
Uma outra forma de abordar a concentração de renda na população votante das
três freguesias está descrita na Tabela_7. Pela leitura de seus números, pode-
se constatar que a maior parte dos eleitores das duas paróquias rurais recebe
renda mínima, ou seja, até 200 mil réis (em torno de 76% em Natividade e em São
Gonçalo); em São Salvador, essa porcentagem é de 12,7%. A melhor distribuição
de renda verificada para o grupo de votantes de Natividade é revelada, ainda,
pelo fato de seus qualificados de renda mínima (76,3% do total) apropriarem-se
de 61,7% da renda anual do total dos qualificados da paróquia. Em São Gonçalo e
em São Salvador, essa relação é de 75,7% para 22,4% e de 12,7% para 2,5%,
respectivamente.
Utilizando o corte de 600 mil réis para caracterizar o segmento mais rico e o
mais pobre da população qualificada para votar21, os números da Tabela_7
revelam ainda que, em São Gonçalo, os mais pobres eram 82,0% dos qualificados,
que se apropriavam de 26,3% da renda anual do total de qualificados da
paróquia; os mais ricos, por seu lado, representavam 18,0% dos qualificados,
que se apropriavam de 73,7% da renda. Em São Salvador, os mais pobres
representavam 61,8% dos qualificados, que se apossavam de 20,5% da renda global
dos qualificados da paróquia, enquanto os mais ricos perfaziam 38,2% dos
qualificados, que detinham 79,5% da renda. Pelo critério utilizado, não havia
ricos em Natividade.
As considerações anteriores, salientando o peso dos mais pobres no grupo de
votantes e a distribuição de renda neste grupo nas três paróquias, evidenciam
uma participação não desprezível de pobres no universo dos qualificados. Vale
lembrar que, uma vez que o corte de renda era um dos critérios utilizados para
definir o universo de votantes, é de se esperar que os pobres estejam sub-
representados ali, isto é, que sua participação neste conjunto seja menor que
na população total. Contudo, isto não invalida a constatação de que a população
mais pobre estava presente na composição do universo de votantes em uma medida
relevante. Representava 61,8% dos votantes de São Salvador, 100,0% dos votantes
de Natividade e 82,0% dos de São Gonçalo.
A verificação de uma alta concentração de renda no universo dos qualificados
parece indicar que as sociedades das paróquias analisadas conviviam com altos
índices de concentração de renda. Entretanto, o grupo de votantes não pode ser
interpretado como uma amostra representativa da população total, dados os
critérios de sua definição (cortes por renda, gênero e idade). Discutir em que
medida a distribuição de renda entre os qualificados refletia a distribuição de
renda da população total demandaria exercícios e testes estatísticos não
realizados em função da inexistência de dados suficientes para fundamentá-los.
d) Renda e Escolaridade ' Uma questão interessante tem a ver com a avaliação do
peso da presença dos analfabetos entre os qualificados, grupo marcado por alto
grau de concentração de renda. A Tabela_8 mostra que os analfabetos
representavam parcela importante dos votantes não elegíveis (37% no total das
três paróquias) e uma pequena proporção dos votantes elegíveis (4% no total das
três paróquias).
Nas paróquias rurais, a participação dos analfabetos entre os votantes era
expressiva. Em Natividade, representavam 21% dos qualificados, proporção que
aumenta para 46% se considerarmos como analfabetos os qualificados a respeito
dos quais não há informação sobre escolaridade22. Em São Gonçalo, representavam
48% dos qualificados; já em São Salvador, formavam a menor parcela dos
qualificados (9%). Estes números indicam que a participação dos analfabetos no
grupo de votantes tendia a ser mais expressiva nas paróquias rurais. De fato,
os dados do Município Neutro (a Corte) apontam nessa direção. Por exemplo, a
paróquia da Candelária não possuía nenhum analfabeto alistado em 1876, a da
Glória tinha 19,1%, enquanto nas freguesias rurais de Santa Cruz, Guaratiba e
Jacarepaguá os percentuais eram bastante altos: 57,3%, 52,3% e 48,35%,
respectivamente (Nicolau, 2002).
Comparando-se a média das três paróquias de Campos (23%) com as calculadas por
Klein para São Paulo (39%) e por Cardoso para Curitiba (46%), verifica-se que
os analfabetos constituíam uma proporção maior dos votantes nestas duas últimas
regiões. Os dados apresentados pelas listas de qualificação do Município de
Campos confirmam as evidências encontradas por Klein para São Paulo: a presença
de um contingente importante de analfabetos entre os votantes e a tendência de
o seu peso ser maior nas paróquias rurais (Natividade e São Gonçalo) do que na
urbana (São Salvador).
A análise das listas de qualificação permite estabelecer ainda uma relação
clara entre o grau de instrução e a renda dos qualificados. Quanto mais pobre o
votante, maior a chance de ele ser analfabeto. A Tabela_9 revela que, em todas
as paróquias, a renda média dos analfabetos votantes era menor que a dos
alfabetizados. Klein obtém para São Paulo um resultado adicional: os
analfabetos votantes eram mais pobres que os alfabetizados, porém essa
diferença era mais acentuada nas paróquias urbanas. No caso de Campos, se
considerarmos São Gonçalo uma freguesia rural, tal não se verifica, visto que a
diferença encontrada para esta paróquia é maior que aquela constatada na
paróquia urbana de São Salvador. Em Natividade, a evidência observada por Klein
confirma-se: menor diferencial de renda entre alfabetizados votantes e
analfabetos votantes nas paróquias rurais.
Outra maneira de examinar a relação entre escolaridade e renda é calculando a
participação dos analfabetos entre os qualificados mais ricos e entre os
qualificados mais pobres. Considerando as três paróquias em conjunto, entre os
qualificados mais pobres, 28,8% eram analfabetos; já no grupo dos qualificados
mais ricos, os analfabetos representavam apenas 2,1% (ver Tabela_10).
A relação positiva entre renda e alfabetização encontrada no grupo dos votantes
das paróquias analisadas revela que a pequena participação de analfabetos no
subgrupo dos votantes elegíveis (Tabela_8) se explica pelo corte de renda que
define quem pode ser eleito.
Uma vez que a legislação eleitoral excluía escravos, mulheres e homens livres
com renda inferior a 200 mil réis, é esperado que a população analfabeta
estivesse sub-representada no universo de votantes, isto é, constituísse uma
parcela relativa dos votantes menor que a proporção de analfabetos na população
total. Isto porque a taxa de alfabetização dos escravos era próxima a zero23, a
das mulheres livres menor que a dos homens livres24 e a taxa de alfabetização
neste último grupo tendia a ser maior nos estratos superiores de renda. De
fato, segundo os dados do Censo de 1872, a taxa de analfabetismo da população
total do Município de Campos dos Goytacazes era de 88,5%. Este número,
comparado à taxa média de analfabetismo da população votante das três paróquias
(cerca de 23,0% ' Tabela_8), confirma a tendência esperada, qual seja, a de
sub-representação de analfabetos no universo de votantes.
e) Ocupação Profissional' Como sabido, as listas de qualificação de votantes
registram a profissão dos qualificados, o que torna possível conhecer a
estrutura ocupacional do universo de votantes. Para realizar este exercício,
foi necessário agrupar as diversas profissões em algumas categorias, o que
constituiu um trabalho bastante complexo, tendo em vista as informações
limitadas sobre a natureza de cada uma delas. As reflexões contidas no trabalho
de Maria Yedda Linhares (1979), a observação dos livros de posse dos cargos da
Câmara Municipal e de documentos de época serviram para orientar a
classificação realizada neste trabalho. As diversas ocupações contidas nas
listas foram então reunidas em conjuntos profissionais descritos na Tabela_11,
que registra a distribuição da população qualificada por grupo ocupacional.
Como se pode observar, nas paróquias rurais, cerca de 75% dos qualificados
estão ocupados na agricultura, pecuária, atividades extrativas ou são
lavradores. Na paróquia urbana, a maior concentração está no agrupamento dos
artesãos/ofícios urbanos e no de comércio e serviços que, em conjunto, abrigam
53% do total dos qualificados. Vale sublinhar que entre os votantes da paróquia
urbana está presente um grupo expressivo de rentistas (proprietários
imobiliários urbanos e detentores de capital dinheiro), que representam 11,5%
dos qualificados.
f) Ocupação Profissional e Renda' A Tabela_12 registra a renda anual média dos
diversos grupos ocupacionais que compõem o universo de votantes. Dentre estes,
o dos trabalhadores ligados à agricultura, pecuária e atividades extrativas
aparece como o mais pobre. Sua renda média anual (249 mil réis) é menor que a
renda média de todos os demais agrupamentos, e somente 6,6% de seus
trabalhadores registravam renda anual igual ou superior a 600 mil réis. Em uma
escala de pobreza, segue-se ao grupo dos lavradores aquele dos artesãos e
ofícios urbanos e o de trabalhadores ligados ao comércio e aos serviços.
O grupo de votantes mais rico é o dos fazendeiros, seguido do dos profissionais
liberais. Estão, também, nos estratos superiores de renda o grupo dos demais
proprietários, cuja renda anual média atingia 1.808 mil réis e 96,2% de seus
componentes registravam renda anual igual ou superior a 600 mil réis, e os
trabalhadores do setor público (renda média anual de 1.470 mil réis e 60,7% de
seus componentes com renda igual ou superior a 600 mil réis).
A Tabela_13 discrimina os qualificados das três paróquias analisadas segundo os
grupos profissionais e as faixas de renda estabelecidas pela legislação
eleitoral do período: 200 mil réis para ser apenas votante (não elegível); 400
mil réis para ser eleitor, juiz de paz e vereador; 800 mil réis para ser
deputado; 1.600 mil réis para ser senador. A leitura de seus números revela
alguns fatos interessantes, dentre os quais vale destacar:
a) como esperado, o grupo das profissões relacionadas à agricultura, pecuária e
atividades extrativas tem maior peso entre os votantes nas paróquias rurais. De
fato, quando somados aos lavradores, respondem por 80,1% dos qualificados de
Natividade, por 71,5% dos de São Gonçalo e por 17,6 % dos de São Salvador;
b) em São Salvador, os artesãos/ofícios urbanos e os empregados no comércio e
serviços são os grupos profissionais de maior peso no total de votantes. Em
conjunto representam 52,3% dos qualificados desta paróquia contra 18,7% em São
Gonçalo e 12,9% em Natividade;
c) no universo de votantes, os grupos profissionais de trabalhadores da
agricultura, pecuária e atividades extrativas, de artesãos/ofícios urbanos e de
lavradores são os que apresentam renda média anual inferior a 600 mil réis (os
qualificados mais pobres) e, também, os que representam a maior parcela dos
qualificados mais pobres (Tabela_12). Estes grupos estão presentes no universo
de votantes de todas as paróquias. Contudo, nas paróquias rurais (São Gonçalo e
Natividade), os votantes que são lavradores, trabalhadores agrícolas, da
pecuária e das atividades extrativas têm, em conjunto, maior peso no total dos
qualificados de menor renda. Dentre os qualificados mais pobres da paróquia
urbana (São Salvador), os mais numerosos são os trabalhadores do comércio e
serviços;
d) considerando-se a totalidade dos qualificados das três paróquias,
trabalhadores dos grupos profissionais de menor renda média (lavradores;
trabalhadores agrícolas, da pecuária e de atividades extrativas; artesãos/
ofícios urbanos; comércio e serviços) representam uma parcela muito expressiva
do total dos qualificados: 81,1%;
e) os profissionais liberais qualificados, que podem ser classificados como um
grupo de renda alta (renda média anual de 2.617 mil réis e cerca de 80% com
renda anual igual ou superior a 600 mil réis), estão concentrados na paróquia
urbana de São Salvador. Sua participação entre os qualificados nas paróquias
rurais (São Gonçalo e Natividade) é muito modesta. Entre os votantes do grupo
de profissionais liberais das três paróquias, as categorias com maior peso eram
os advogados (30% desses profissionais) e os médicos (34%);
f) os profissionais ligados ao setor público representavam 3,4% do total dos
qualificados das três paróquias. Sua participação entre os qualificados da
paróquia urbana era, entretanto, mais significativa (5,2%) do que nas paróquias
rurais: Natividade (1,7%) e São Gonçalo (1,4%).
Em conclusão, pode-se afirmar que os trabalhadores ocupados em profissões de
menor renda média anual (calculada para o grupo dos qualificados) são uma
parcela significativa no universo de votantes. A classificação profissional dos
votantes discriminada pelas faixas de renda (Tabela_13) permite avaliar, como
visto, quem pode votar e quem pode ser eleito para os diversos cargos, segundo
suas ocupações. Assim, os profissionais dos grupos de menor renda média são
qualificados, mas em sua grande maioria não podem ser eleitos. Como
conseqüência, a representação política estava restrita à elite local composta,
primordialmente, por proprietários e profissionais liberais, seguidos por
aqueles que se dedicavam ao comércio/serviços e pelos que trabalhavam no setor
público.
A Tabela_14 apresenta um resumo da distribuição dos qualificados discriminada
segundo as faixas de renda definidas pela legislação eleitoral. Mostra que, no
total dos qualificados, o peso dos eleitores de menor renda é expressivo, fato
que, por definição, não se traduz na possibilidade de acesso a cargos de
representação política. Dessa forma, dentre os qualificados da paróquia de
Natividade nenhum deles poderia eleger-se deputado ou senador, visto que
ninguém possuía a renda exigida pela lei. Para apenas 23,4% de seus cidadãos
qualificados, estava aberta a possibilidade de serem eleitores, juízes de paz
ou vereadores. A freguesia de São Gonçalo concentrava, também, a maior parcela
dos seus qualificados na condição de votantes não elegíveis (75,7%), embora
10,3% de seus qualificados pudessem candidatar-se a deputado e 7,3% a senador.
Já na paróquia de São Salvador, havia uma maior parcela de qualificados com
acesso potencial aos cargos de deputado (32,2%) e de senador (19,3%).
Considerando as três paróquias em conjunto, é possível verificar que 57,1% dos
qualificados possuíam uma renda entre 200 mil réis e 400 mil réis, o que lhes
subtraía a possibilidade de ocupar cargos eletivos. Em contrapartida, 43%
reuniam as condições necessárias para se tornarem eleitores, juízes de paz ou
vereadores, 18,2% poderiam se candidatar a deputado e apenas 11,2% estavam
aptos a disputar uma vaga no Senado (Tabela_14).
Sendo assim, pode-se afirmar que a análise das listas eleitorais, aqui
realizada, reforça a tese de que durante o Império a participação de homens
livres pobres no processo eleitoral era ampla, o que é atestado pela expressiva
incidência de cidadãos de baixa renda em todas as faixas etárias dos
qualificados e também pela presença de um número não desprezível de analfabetos
nas listas de qualificação. Entretanto, os qualificados não devem ser vistos
como um bloco único de cidadãos, com direitos políticos idênticos, dada a
existência de uma parcela importante que vota sem, contudo, poder ser votada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Levando-se em conta os critérios de inclusão eleitoral, que por construção
legal deixavam de fora a população escrava, as mulheres livres e os homens
livres com renda menor que 200 mil réis e/ou menores de 25 anos, é trivial
concluir que a legislação eleitoral do período estudado era discriminatória e
excludente. Do mesmo modo, não seria possível caracterizá-la como inclusiva, se
inclusão eleitoral significar composição do universo de votantes homóloga à
composição da população total (população livre/escrava, mulheres/homens,
pobres/ricos, alfabetizados/analfabetos, estrutura ocupacional etc.). A
natureza da legislação e os requisitos exigidos para a qualificação são, em si
mesmos, indutores de sub-representação de diversos grupos sociais na população
votante.
Dadas as ressalvas anteriores, alguns resultados encontrados merecem ser
destacados. Em primeiro lugar, nas paróquias focalizadas, a taxa de inclusão
eleitoral (votantes sobre população total) é menor que a obtida para
estimativas da média brasileira do período, fato que, muito provavelmente,
reflete o maior peso da população escrava na região. Ainda assim, é similar ou
superior às taxas de inclusão avaliadas para alguns países da Europa Ocidental,
onde, vale lembrar, não havia escravos na população. Por seu turno, a
comparação intraparóquias indicou que as taxas de inclusão tendiam a ser
inversamente relacionadas ao grau de urbanização das mesmas. Em outras
palavras, paróquias menos urbanizadas apresentavam taxas de inclusão
relativamente maiores.
Em segundo lugar, o perfil da população com direito a voto em Campos, analisado
a partir das listas de qualificação de votantes, confirma o padrão encontrado
para outros municípios como Curitiba (Cardoso, 1974), São Paulo (Klein, 1995) e
Campinas (Magalhães, 1992). Até 1881, quando o direito político de expressiva
parcela da população foi severamente restringido pela Lei Saraiva, os
documentos atestam a presença de um amplo contingente de pobres entre os
qualificados para votar, podendo-se mesmo afirmar que, até aquela data, a maior
parte dos votantes era composta por cidadãos pobres27. Embora o índice de
analfabetismo entre os votantes do Município de Campos fosse, como visto, menor
que o encontrado para São Paulo, a participação dos analfabetos mostrou-se
também relevante.
A grande freqüência de eventos eleitorais, as taxas de inclusão similares ou
superiores às verificadas para alguns países da Europa Ocidental, o expressivo
peso de homens pobres (na sua maior parte trabalhadores ligados à agricultura,
à pecuária e ao extrativismo; lavradores; artesãos urbanos) no universo de
votantes, assim como a presença de um contingente não desprezível de
analfabetos, sugerem uma realidade eleitoral inclusiva, se avaliada pelos
critérios de seu tempo. A função que essa circunstância desempenhava para a
afirmação de práticas e instrumentos de dominação política, como, por exemplo,
o clientelismo, parece ter sido importante, porém constitui tema que está fora
do escopo deste trabalho.
Vale, por fim, sublinhar que não decorre das constatações anteriores a
conclusão de que o Brasil imperial experimentava uma realidade política
inclusiva e democrática. Como sabido, tratava-se de uma sociedade marcada pela
escravidão, pela exclusão social e pela pobreza. Instituições modeladas a
partir das experiências dos países mais desenvolvidos e indicadores de uma
realidade eleitoral que não vedava a presença de pobres e analfabetos entre
votantes conviviam, lado a lado, com exclusão econômica e concentração do poder
político.