A identidade nacional portuguesa: conteúdo e relevância
A questão das identidades ' pessoais ou coletivas, sociais, locais ou nacionais
' é sem dúvida das mais controversas, levantando problemas filosóficos e
epistemológicos demasiadamente mal resolvidos até hoje, na minha opinião, por
resvalarem com excessiva freqüência para o essencialismo identitário. Foi por
isso, creio eu, que a historiografia convencional se manteve cética e mesmo
distante perante a questão das identidades.
Só há cerca de um quarto de século, com a erosão paulatina do paradigma da
história estrutural da primeira Ecole des Annales, correlativa por seu turno à
erosão das clivagens políticas tradicionais subjacentes à formação da maioria
dos atuais regimes representativos1, é que a questão da identidade nacional
começou a adquirir, sob a influência crescente da antropologia e da sociologia
pós-modernistas2, um papel cada vez mais importante na pesquisa e interpretação
historiográficas.
Permanece irresolvida, contudo, no estudo das identidades nacionais modernas a
controvérsia acerca do primado da Nação sobre o Estado ou deste sobre aquela. E
mais complexo ainda é, seguramente, o estatuto das identidades antigas, isto é,
anteriores à Revolução Americana, à ativação política explícita do patriotismo
pela Revolução Francesa e, posteriormente, pela eclosão de movimentos de
independência nacional desde o século XIX até ao período da chamada
Descolonização.
INSTRUMENTALISTAS, PRIMORDIALISTAS E CONCILIADORES
Com efeito, parecem-me incontornáveis alguns dos argumentos ' que não todos '
dos autores que, como Ernest Gellner (1993), conferem ao Estado uma espécie de
primado empírico sobre a Nação e a correlativa identidade, que surgiria então
como o resultado ' por assim dizer, compensatório ' de processos de aculturação
individualizantes e desenraizadores como a urbanização, a industrialização e a
própria alfabetização, em suma, aquilo a que, na sociologia histórica, se dá
vulgarmente o nome de modernização.
Para Gellner, como é sabido, o primado do Estado sobre a Nação, que de algum
modo reduz as chamadas identidades nacionais a uma dimensão virtualmente
instrumental, pode ser resumido em mensagens de cariz algo provocatório como:
"Dêem-me um Estado e eu vos darei uma Nação" ou "As etnias de hoje são nações
mal sucedidas; as nações de hoje mais não são do que etnias bem-sucedidas!"
(idem).
Do mesmo modo, porém, são dificilmente refutáveis alguns dos argumentos ' que
não todos, também ' daqueles que, como Anthony Smith (1986), defendem que
nenhuma elite guerreira, cultural e/ou econômica seria suscetível de fundar um
Estado se as "massas" que essa elite pretende representar e dirigir não
possuíssem, à partida, uma qualquer identidade coletiva referida ao território
objeto desse Estado. Resta saber se esta última corresponde, efetivamente,
àquilo que os defensores do nacionalismo cultural e político designam como
identidade nacional.
Uma versão extrema dessa corrente essencialista ' mais adequadamente designada,
porventura, como primordialista, conforme sugere Paul Brass (1994) ' pode
encontrar-se, por exemplo, em um livro do antropólogo de origem catalã Josep
Llobera, com a sua introdução da noção de "potencial étnico" contra qualquer
idéia de "invenção da tradição". Com efeito, logo de início, Llobera introduz
essa "idéia de um potencial etnonacional como um conceito fundamental" da sua
teoria, acrescentando imediatamente que: "O potencial etnonacional aparece no
período moderno como um dom: uma região tem esse potencial ou não o tem"
(Llobera, 1996:13, ênfases minhas).
E para que não subsistam dúvidas quanto à natureza primordialista dessa noção,
já antes o autor havia escrito: "Nas suas origens e na sua essência, a
identidade nacional é uma tentativa de preservaros 'costumes' dos nossos
antepassados [...] O nacionalismo põe em destaque a necessidade das raízes e da
tradição na vida de qualquer comunidade; evoca a 'posse comum de uma rica
herança de recordações' (Renan)" (idem:11, ênfases minhas). "Preservar" e
"necessidade" são, por assim dizer, as palavras-chave dessa concepção
primordialista da identidade.
Atribuindo à Nação "o carácter sagrado que herdou da religião", Llobera
conclui, em oposição radical às teses do primado empírico do Estado sobre
qualquer identidade nacional, que "o grau de êxito das políticas de construção
da nação projetadas pelo Estado está em relação direta com o maior grau de
homogeneidade nacional étnica que existe em um país" (idem:289-290).
Paradoxalmente, no mesmo livro onde o caso da Catalunha é abundantemente
abordado no contexto ibérico, o autor considera que "o fato de Portugal se ter
convertido em um estado independente e de ter permanecido como tal foi, em
grande medida, o resultado de um acidente histórico" (idem:111-112).
É possível que assim tenha acontecido, mas essa conclusão não se limita a ferir
as convicções dos nacionalistas portugueses, em contraste com a firme convicção
do autor a respeito do "potencial etnonacional" da Catalunha, apesar de esta
não ter logrado transformar esse "potencial" em Estado, nem na mesma altura em
que o Estado português conseguiu recuperar sua autonomia em relação ao rei de
Espanha no século XVII nem mais tarde. Estranhamente, o autor não utiliza uma
única referência portuguesa clássica acerca da formação do Estado e da Nação
portugueses, nem muito menos qualquer referência atualizada, como seria o caso
de José Mattoso e António Hespanha (ver adiante).
Na realidade, a visão que Llobera apresenta do caso português não só inverte
radicalmente tudo quanto ele próprio afirmara acerca do papel subordinado do
Estado na construção da Nação, como mostra que toda e qualquer concepção
primordialista da identidade nacional entra, rapidamente, em flagrantes
contradições sempre que muda de nação de referência: o que serve de
"identidade" a umas nações parece já não servir a outras, pois, no caso
português, o êxito do Estado nacional já não serviria como comprovação do
potencial étnico, para usar as expressões do próprio Llobera. Não é por acaso
que Renan, há pouco invocado por Llobera, confessava no próprio livro onde
perguntava Qu'est-ce qu'une nation (1882): "O esquecimento e mesmo o erro
histórico são factores essenciais na formação de uma nação, e é por isso que o
progresso dos estudos históricos constitui um verdadeiro perigo para a
nacionalidade" (Renan apud Guiomar, 1974:5).
Com efeito, já um autor como Paul Brass, embora reconhecendo "haver alguns
aspectos da formulação primordialista com os quais não é difícil concordar",
insistira simultaneamente em que
"[...] o estudo da etnicidade e da nacionalidade é, em larga medida,
o estudo de mudanças culturais politicamente induzidas. Mais
precisamente, é o estudo do processo através do qual as elites e
contra-elites internas aos grupos étnicos selecionam determinados
aspectos da cultura do grupo, atribuindo-lhes novo valor e
significado, e usando-os como símbolos para mobilizar o grupo,
defender os seus interesses e competir com outros grupos" (Brass,
1994:83-87).
Trata-se, em suma, de uma concepção bastante próxima à de Gellner, ao conceder
ampla margem às contingências históricas e até geográficas na construção das
identidades etnoculturais.
A verdade, porém, é que também não se pode dizer que a conhecida tese de
Benedict Anderson (1993) sobre as "comunidades imaginárias"3 ' onde o autor
procura de algum modo conciliar as concepções primordialistas com as concepções
instrumentais da identidade nacional ' tenha logrado superar de forma
conclusiva a controvérsia sobre a primazia da Nação ou do Estado nos processos
identitários mediante a tentativa de deslocar a ênfase do debate para as
interações simbólicas e materiais entre comunidade e Estado na construção das
identidades nacionais hodiernas.
Algo de semelhante acontece, também, com a idéia da "invenção da tradição"
proposta por Hobsbawm (1985), em que o autor propõe uma tese igualmente
conciliatória sobre o papel do Estado na "atualização normativa" dos
sentimentos nacionais, inclusive no âmbito das tradições lingüísticas e
religiosas, habitualmente inscritas nas alegadas matrizes identitárias. No caso
português, investigações recentes têm mostrado, efetivamente, que a difusão e
padronização da língua portuguesa estão longe de ter precedido a constituição
do Estado, havendo pelo contrário exigido freqüentes intervenções estatais no
sentido de estabelecer normativamente a tradição, pelo menos desde o reinado de
D. Dinis na viragem do século XIII para o século XIV (Marquilhas, 2000).
E não é necessário recordar que também a unidade religiosa da atual nação
portuguesa não se fez sem a repressão promovida, recorrentemente, pela aliança
entre o Estado e a Igreja católica, não só contra muçulmanos e judeus, mas
também contra todas as manifestações da Reforma em Portugal; inversamente, só a
apropriação do aparelho de Estado pela contra-elite liberal permitiu consagrar
' e apenas de forma temporária e precária ' a separação entre Igreja e Estado;
nas antigas possessões ultramarinas portuguesas onde não houve colonização
propriamente dita, ou seja, povoamento português, a influência cultural
nacional ainda hoje observável se deve, freqüentemente, mais ao papel da Igreja
do que ao do Estado e das instituições da sociedade civil.
Contas feitas, no presente estado da questão, sou tentado a ver em abordagens
conciliadoras, como as de Anderson e Hobsbawm, as soluções disponíveis mais
adequadas para o estudo sincrônico das identidades empíricas, desde que
aceitemos abandonar ao indecidível histórico a sua dimensão diacrônica e, por
maioria de razão, as suas origens fundacionais. Esse meio-caminho entre as
concepções instrumental e primordial da identidade nacional é também retomado,
além de Paul Brass, citado há pouco, por autores associados aos chamados
estudos pós-coloniais, como Homi Bhabha (1990). Em contrapartida, que os
defensores mais acérrimos do primado ontológico da Nação, no sentido de unidade
etnocultural que atribuem ao termo, como Smith e Llobera, desqualificam as
teses conciliatórias por cederem, em última instância, à primazia empírica do
Estado na construção contingente das chamadas identidades nacionais.
GENEALOGIAS DA IDENTIDADE NACIONAL PORTUGUESA
Para o caso da identidade nacional portuguesa, é basicamente uma abordagem
conciliatória a adotada, por exemplo, por José Mattoso nos seus estudos sobre a
identidade portuguesa. O autor não só resiste ao essencialismo identitário como
chega a dar formalmente a primazia ao Estado no processo de construção da
Nação, nomeadamente no seu recente livro sobre A Identidade Nacional: "O que
cria e sustenta a identidade portuguesa é, de facto, o Estado" (Mattoso, 1998:
82-83). Todavia, o autor também não deixa de interrogar-se, naquele e em outros
trabalhos como medievalista especializado no período da formação do Estado
português ao longo da primeira metade do século XII, sobre algo que se poderia
designar, na linha do "potencial etnonacional" de Llobera, como a "existência
de Portugal antes de Portugal", perguntando-se às vezes "se não seriam já
'portugueses' os habitantes do futuro Portugal"? (Mattoso, 1991; 1992).
Desde logo, porém, tais "portugueses" nunca seriam, do ponto de vista empírico
e de acordo com o próprio Mattoso, mais do que os habitantes de uma estreita
faixa territorial do Norte do país entre o rio Minho e o rio Douro, quando
muito entre os rios Minho e Mondego, mas não incluiriam nem os habitantes de
Lisboa nem, decididamente, os de todo esse vasto "Portugal mediterrânico"
situado nas margens e a sul do rio Tejo (Silbert, 1966). Um argumento
suplementar contra a concepção da nação como etnia residiria, apesar da
naturalização da "nação portuguesa" decorrente da longa duração e da
continuidade do Estado nacional, no fato de a sociedade portuguesa não
constituir, manifestamente, do ponto de vista das tradições culturais, uma
"etnia", mas sim várias, pelo menos duas, conforme se pode ainda ver, hoje em
dia, através, por exemplo, dos mapas do comportamento eleitoral, maxime nas
eleições presidenciais de 1986 e de 1996.
Com efeito, por força da drástica redução imposta pelo mecanismo da eleição
presidencial em dois turnos, aí continuam a espelhar-se os dois grandes espaços
culturais que estão na origem do território nacional, bem como as tradicionais
clivagens a eles associadas, basicamente: Norte/Sul e campo/cidade, dobradas
pelas diferenças induzidas pela evolução histórica da implantação do
catolicismo e também pelas clivagens centro/periferia e proprietários/
assalariados (Cabral, 1992). Aliás, do ponto de vista etnológico, nomeadamente
da cultura material, esses "espaços" não seriam apenas dois, mas sim três de
acordo com os estudos de Jorge Dias (1982) e de Orlando Ribeiro (1998). Porém,
do ponto de vista sociocultural e, em particular, do ponto de vista político,
são as "tensões entre um Norte tradicionalista e conservador e um Sul
progressista e inovador" que sobressaem (Mattoso, 1998:79-81, maxime80;
1991,II:215 e ss.). Com conotações ideológicas opostas, já Basílio Teles (1901)
havia codificado no final do século XIX essa profunda clivagem política.
Por outras palavras, mesmo que fosse possível reconduzir ao Noroeste atlântico
do Portugal atual um "potencial etnonacional" qualquer, todo o resto do
território português ' metade ou mais dele, incluindo a futura capital do reino
' teria sido, por assim dizer, anexado e nacionalizado a partir de cima, do
duplo ponto de vista territorial e simbólico, isto é, pela elite nortenha '
guerreira e católica ' capitaneada por Afonso Henriques e os seus sucessores
próximos na chefia do Estado português recém-fundado.
Alternativamente, a par dessa tese de "segundo grau" sobre a construção da
nacionalidade portuguesa, ainda se poderiam invocar os "fatores democráticos"
na formação de Portugal outrora defendidos, embora talvez sem suficiente base
empírica, por Jaime Cortesão ' a saber, a "identidade marítima" das populações
costeiras, piscatórias e embarcadiças, vivendo já então de costas mais ou menos
viradas para o maciço continental ibérico: "A actividade marítima está não só
nas raízes da nacionalidade, donde sobe como a seiva para o tronco, mas é como
a linha medular que dá vigor e unidade a toda a sua história" (Cortesão, 1930:
93).
Nessa mesma linha da argumentação "marítima e democrática", entroncaria, por
exemplo, a conquista da Lisboa multiétnica e multicultural, para não dizer
cosmopolita, e o papel da capital ' no mínimo, coagulante primeiro, e liderante
depois ' na construção do Estado e, conseqüentemente, na nacionalização do
território e das suas variegadas "etnias", para não falar do futuro papel de
Lisboa como plataforma da expansão ultramarina (Mattoso, 1991, II:187-190).
Em suma, não creio que o debate geo-historiográfico acerca das origens da
nacionalidade portuguesa permita decidir quanto a elas com qualquer segurança
(ver por todos Ribeiro, 1987). O mesmo pode dizer-se dos fatores determinantes
da prematura consolidação do Estado medieval português, a não ser que se trate
do processo de "dupla contingência" a que está sujeita qualquer evolução
societal, processo este que Luhmann (1994:103-136) entende como uma sucessão de
opções contingentes ' isto é, adotadas fora de qualquer determinismo, fosse ele
o da "identidade nacional" dos atores relevantes ' que não deixam, no entanto,
de condicionar parcialmente o campo das opções futuras, abrindo uma e fechando
outras simultaneamente.
No caso, isso significaria apenas que o êxito da formação do Estado português,
mesmo que só em muito remota medida motivado pela eventual "existência de
portugueses antes de Portugal", não poderia, quando consumado, deixar de fechar
parcialmente o campo dos possíveis a opções futuras que excluíssem do seu
horizonte a existência desse mesmo Estado e da correlativa formação de
identidades sociais e pessoais em torno dele. Por outras palavras, independente
do maior ou menor fundamento etno-cultural da identidade portuguesa, a mera
existência do Estado nacional inviabiliza, por definição, quaisquer estratégias
ou simples discursos negadores de uma identidade fundacional legitimadora de
existência desse mesmo Estado. Assim, um mero "acidente histórico", como
Llobera lhe chama, e talvez tenha sido, ter-se-á constituído em uma espécie de
"necessidade de segundo grau".
UMA "IDÉIA" DE PORTUGAL
Em contrapartida, a prova dessa "necessidade" ' por assim dizer, superveniente,
ou seja, que só começa a ser sentida depois de o fator de satisfação ter sido
criado ' reside no avançado grau de elaboração já manifestado pelo sentimento
de identidade nacional portuguesa por altura da crise sucessória de 1580, para
não recuar às crônicas da crise similar do final do século XIV (Fernão Lopes,
circa 1430). Com efeito, ao contrário do que crê Llobera, basta pensar em Os
Lusíadas (1572) ' até por comparação com outras epopéias estrangeiras suas
contemporâneas ' para nos darmos conta desse elevado grau de elaboração da
ideologia nacional, que se apresenta já com contornos muito próximos da forma
definitivamente codificada no século XIX, com recurso aliás à própria
celebração de Camões iniciada com Garrett e consumada pelo nacionalismo
republicano4.
Embora restrita aos reduzidos círculos letrados da sociedade de então, o que
não constitui de resto nada de anômalo, como Gellner demonstrou, a elaboração
da identidade portuguesa não se limitava já às manifestações literárias,
ganhando a sua reprodução particular alento com a "perda da independência
nacional" para o rei de Espanha, Filipe II. A "idéia de Portugal" que é então
elaborada, por exemplo, por um autor importante mas sem o relevo de Camões,
como Fernando Oliveira, nos seus manuscritos inéditos do Livro da Antiguidade,
Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal e da História de Portugal,
datados de 1579-1580, é um indício seguro da maturação, no seio da camada
letrada da época, de uma consciência nacional cujas semelhanças com aquilo que
hoje tomamos como a "identidade portuguesa" são flagrantes, tanto no plano da
simbologia como no da argumentação política propriamente dita (Franco, 1999).
Naturalmente, desde a invocação da "antiguidade" à "imunidade" de Portugal, a
retórica identitária de Fernando Oliveira visa, antes de mais, à construção de
uma etnogenealogia, para usar a expressão de João Leal, destinada a combater o
argumento do pretendente à Coroa de Portugal, Felipe II de Espanha, segundo o
qual a "diferença entre Portugueses e Castelhanos não tem mais ser que um nome
vão e falso, pois os espanhóis são uns como os outros e diferem tão pouco na
língua, no trato e nos costumes" (idem, I:300 e ss.)5.
Ao mesmo tempo que faz recuar a existência de portugueses a "tempos
imemoriais", o historiador quinhentista dessa comunidade imaginária não hesita
em afirmar que, na sua História de Portugal: "A terra de Portugal digo que é
livre, e é do povo natural dela, e os reis não são senhores dela, nem a podem
vender, nem trocar, nem obrigar sem vontade do povo" (Oliveira apudFranco,
1999). Assim, a reivindicação de um "rei natural da terra" ultrapassa, com
Fernando Oliveira, a questão dinástica para fazer depender a "eleição do rei"
da pertença deste à alegada cultura dos habitantes do território nacional e à
defesa dos seus interesses. Segundo Oliveira, já D. Afonso Henriques não teria
assumido o trono português em virtude de uma "herança obrigatória", enquanto
filho primogênito do conde portucalense D. Henrique, "senão por eleição do povo
livre", isto é, pelos portugueses que, "vendo o muito detrimento que padeciam
em companhia dos Castelhanos, determinaram apartar-se deles" (Oliveira apud
Franco, 1999, I:355, passim). Franco parece, pois, ter alguns bons motivos para
escrever: "Se, como refere Eduardo Lourenço, 'a auto-consciência nacional surge
em João de Barros e é elevada à sua potência última por Camões' (Labirinto da
Saudade), não será demasiado afirmarmos que ela transborda em Fernando Oliveira
[...] que anuncia uma 'idéia' religiosamente devota da nação portuguesa"
(Franco, 1999, I:311).
Bastante mais sóbria é, em contrapartida, a visão que fornecem Ana Cristina
Nogueira da Silva e António Manuel Hespanha no balanço que fazem da identidade
portuguesa na época da Restauração, em meados do século XVII: "Tudo isto faz
com que os discursos seiscentistas sobre a identidade portuguesa apenas
indiciem imaginários sectoriais, não permitindo globalizações válidas para toda
a sociedade, nomeadamente a de um difuso sentimento patriótico, que explicaria,
por exemplo, a Restauração [de 1640]". Segundo os autores, predominaria então
"um imaginário social e político que realçava a multiplicidade e autonomia das
distintas formas de solidariedade social e que distinguia cuidadosamente os
correspondentes sentimentos de identidade": no topo, uma identidade da
republica uchristiana; depois, "ainda acima da identidade nacional ou
reinícola", existia a identidade "europeia" e, "muito mais forte", a
"identidade hispânica" (Silva e Hespanha, 1993:19-37).
Por outro lado,
"[...] se por cima a identidade portuguesa tinha de conviver e que se
cruzar com outras instâncias 'superiores' de classificação, o mesmo
acontecia por baixo[, com] as identidades particulares [dos]
parentes, patrícios e pares[; finalmente,] para além de uma
identidade 'local' e 'regional' mais ou menos vincada, os Portugueses
acumulavam depois, como é natural numa sociedade de estados, uma
fortíssima identidade estatutária" (idem:20-29).
Quanto à "identidade reinícola", funcionava também ' segundo os autores ' "o
sentimento de uma identidade política", cuja "manifestação mais directa e
precoce é constituída, negativamente, pelo anti-castelhanismo", sendo citado
para o efeito Duarte Gomes de Solís em 1621 (idem:29), mas já vimos que essa
"identidade anti-castelhana" recuava, pelo menos, à crise sucessória de 1580.
Já no século XVIII, com o advento do universalismo iluminista, ao mesmo tempo
que a identidade portuguesa começa a ser objeto de um primeiro processo de
desnaturalização, o problema desdobra-se, por assim dizer, sob efeito do choque
entre castiços e estrangeirados.É bom não esquecer, contudo, que, segundo os
autores que vimos acompanhando, "pelo menos até finais do século XVIII, a
esmagadora maioria dos Portugueses não conhec[ia] uma representação gráfica do
território do Reino" (idem:20).
Seja como for, enquanto os castiços crêem em uma identidade tradicional
legítima e pugnam por um "constante esforço de repristinação de uma identidade
primeva" (idem:19), os estrangeiradosprolongam "uma linha de reflexão de origem
humanista sobre os vícios dos Portugueses", cujo "resultado é uma consciência
da identidade marcada pelo desencanto", o qual está, por seu turno, "na origem
do decadentismo que caracteriza as correntes dominantes da cultura portuguesa
durante os séculos XIX e XX" (idem:32-33)6. Em suma, um conflito identitário '
por assim dizer, insuperável ' que começou por ser protagonizado por castiçose
estrangeirados no século XVIII e que ainda hoje tem ecos poderosos na sociedade
portuguesa, com as respectivas bases regionais de apoio social e político,
conforme referido há pouco a propósito das eleições presidenciais de 1986 e
1996.
O CARÁTER NACIONAL PORTUGUÊS
Em todo o caso, não será certamente a busca de qualquer "essência nacional
portuguesa" ' prosseguida sem descanso desde o advento do nacionalismo
romântico até o seu congelamento pelos ideólogos do Estado Novo, culminando nos
duvidosos "carateres nacionais" do etnólogo Jorge Dias ' que nos ajudará muito
a superar a controvérsia. Com efeito, não há nada que exponha mais a ideologia
identitária a uma crítica devastadora do que as tentativas para ancorá-la em um
pretenso "caráter nacional", com o seu drástico reducionismo e a sua paralela
dimensão normativa: "Um misto de sonhador e de homem de acção [...] o Português
é, sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco"
(Dias, 1971:19).
Previsivelmente, Jorge Dias, depois de reconhecer que "a origem da Nação se dev
[e] também à política", sente a necessidade de acrescentar imediatamente que "a
vontade do príncipe naturalmente se aproveitou de certas aspirações de
independência latentes nas populações de Entre Douro e Minho" (ênfases minhas),
para sustentar a seguir que a "curiosa particularidade [da] unificação e
permanência da Nação portuguesa deve-se ao mar", conciliando assim todas as
teses disponíveis ' tanto as empíricas como as fundacionais ' sobre a formação
do chamado Estado-nação: "A força atractiva do Atlântico [...] foi a alma da
Nação e foi com ele que se escreveu a História de Portugal". Dessa síntese
demasiado eclética, que não dispensa a habitual alusão aos "Lusitanos" nem à
"luta contra os mouros", brotará então uma idéia de "cultura portuguesa", cujo
maior interesse reside nas especificações que Jorge Dias tem o cuidado de fazer
a respeito das "culturas regionais" e, sobretudo, da dimensão restrita, para
não dizer elitista, dessa cultura espartilhada entre o "local" e o "superior"
(idem:12-17).
Quanto ao "caráter nacional" propriamente dito, o autor socorre-se de todos os
estereótipos do repertório nacionalista, desde a "saudade" até o "manuelino",
passando pela "brandura de costumes" e pela "inclinação por mulheres de outras
raças", para terminar com uma conclusão banal e datada, mas nem por isso menos
significativa na sua vácua circularidade: "É um povo paradoxal e difícil de
governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os
seus defeitos, conforme a égide do momento" (idem:33).
Apesar dessa insustentável vacuidade, João Leal mostrou recentemente que "a
força do ensaio de Jorge Dias parece ser tal que a denúncia das suas teses" não
impede autores atuais, como Boaventura Sousa Santos (notadamente nas suas "Onze
Teses " incluídas em Pela Mão de Alice de 1994), sempre que entram em diálogo
com ele, em busca de uma fundação caracterial qualquer da identidade
portuguesa, não só de incorrerem em uma "proximidade genérica difícil de
desmentir" como de deixarem "o leitor atento perplexo" (Leal, 2000:101-104).
João Leal havia dito o mesmo, aliás, a respeito de José Mattoso, a propósito da
sua Identidade nacional, o que lhe permite concluir com uma ponta de ironia:
"Volvido quase meio século, os 'elementos fundamentais da cultura portuguesa'
[retomados em O Carácter Nacional...] continuam a projectar a sua sombra nas
discussões contemporâneas acerca do que é ser português". E algo de semelhante
se passa também, segundo o autor, com Eduardo Lourenço e o tema da saudade. E
por aí fora... com o grupo musical dos Madredeus (idem:103-104).
CONTEÚDO E RELEVÂNCIA DO SENTIMENTO NACIONAL
Pela minha parte, a inconsistência intrínseca de todo e qualquer conteúdo que
se pretenda atribuir ao chamado "carácter nacional" leva-me, pois, a abandonar
esse longo intróito em torno da genealogia da identidade portuguesa para
adotar, doravante, um ponto de vista regressivo ' isto é, de diante para trás '
a fim de examinar essa mesma identidade a partir do ângulo sincrônico da
observação sociológica empírica. Debruçar-me-ei assim sobre algo que me
preocupa mais do que as origens do sentimento nacional, a saber: qual a sua
relevância para o conhecimento e compreensão da sociedade portuguesa atual.
Com efeito, do ponto de vista do conteúdo, confesso não ver em que medida a
identidade portuguesa se distingue da impenetrável mas banal circularidade
dessa inevitável tautologia que é todo e qualquer nacionalismo ' igual a todos
os outros na reivindicação de uma diferença radical entre cada um deles, como
creio que Gellner mostrou de uma vez por todas e como Llobera deixou entrever
sem querer. Movendo-se embora no espaço e com a escala em que observador e
observado se situem ' por exemplo, no Brasil serei português; em Portugal
açoriano; nos Açores micaelense; em S. Miguel serei da "cidade" [Ponta
Delgada], e assim sucessivamente ', a verdade é que o conteúdo identitário não
deixa de ser ontologicamente pobre, apetece mesmo dizer ensimesmado. Essa
espécie de replicação, por assim dizer mimética, do sentimento identitário
segundo a escala em que os indivíduos se situam está documentada para os
Açores, por exemplo, em estudos empíricos com diversas sedes disciplinares
(Leal, 2000:227-244; Mendes, 1999).
Isso não significa, como sabemos, que tal conteúdo não possa, apesar da sua
pobreza ontológica, tornar-se criticamente relevante quando o imaginário
nacional (ou regional: veja-se o caso açoriano) é ativado do exterior e, em
especial, contra o exterior, mas pontualmente também contra o "interior", o que
aponta para um conteúdo fatalmente não autônomo, para não dizer negativo, da
chamada identidade nacional. É importante mencionar aqui a distinção, a meu ver
muito pertinente para essa reflexão, que os maurrassianos e os "integralistas
lusitanos" faziam entre patriotismo ' isto é, a ativação de toda a população do
país contra um inimigo externo, como terá acontecido pela primeira vez,
historicamente, durante a Revolução Francesa, cunhando a expressão patriote ' e
o nacionalismo propriamente dito, isto é, a activação de uma parte da população
contra os alegados "inimigos internos" da Nação7. É certo que a identificação
de um ennemi de l'intérieur remonta à Revolução Francesa, designando então as
forças internas que alegadamente se opunham à condução da guerra pelo Comitê de
Salvação Pública; porém, a partir do final do século XIX, a expressão foi
recuperada pela direita radical francesa a fim de designar indiferenciadamente
os seus adversários políticos: liberais, democratas, socialistas, comunistas e
outros anarquistas (Sternhell, 1978).
Porém, antes de tentar circunscrever a relevância do sentimento identitário,
vale a pena fornecer um dado empírico atual e refletir por um momento acerca
dele. Com efeito, todos os inquéritos sociológicos recentes nos quais é feita
uma pergunta ' obviamente redutora e descontextualizada ' a respeito do espaço
social com o qual os portugueses mais se identificam têm revelado,
estranhamente ou não, um grau limitado de identificação com o espaço nacional.
Embora estejam em maioria relativa, os inquiridos que se identificam
prioritariamente com Portugal ' sobretudo habitantes de Lisboa e populações do
Sul ' não chegam, em geral, a metade da população; os outros inquiridos se
distribuem sobretudo pelas suas "terras" ' aldeias, vilas ou pequenas cidades '
ou pelas suas regiões, principalmente no Norte em volta do Porto; por fim, há
um resíduo de excêntricos, no duplo sentido da palavra, que dizem identificar-
se prioritariamente com o espaço europeu ou mesmo universal.
Em um dos mais recentes desses inquéritos, realizado em 1997 junto de uma
amostra representativa da população jovem portuguesa (15-29 anos de idade), os
resultados foram os seguintes (Fernandes, 1998:311, Tabela_1):
Por outras palavras, quando a identidade nacional não é ativada do exterior e o
sentimento de pertença é referido à experiência quotidiana das pessoas, o que
vem ao de cima é uma clivagem ' pronunciadamente classista, aliás, sendo a
distribuição aquela que os manuais de sociologia prevêem, segundo a qual a
identidade nacional é um atributo das elites ' entre múltiplos localismos e a
identificação espontânea com a Nação. Só marginalmente poderei entrar aqui na
questão da cidadania, mas bastará dizer que é significativa, do ponto de vista
estatístico, a correlação inversa entre a força dos sentimentos de pertença
local e um déficit, por vezes acentuado, do exercício dos direitos da cidadania
democrática. Por outras palavras, quanto menor a identificação com o espaço
nacional, menor também a propensão para o exercício da cidadania política
(Cabral, 1997; 2000).
Em suma, por mais paradoxal que possa parecer em um país tão antigo como
Portugal, com uma coincidência alegadamente perfeita entre Estado e Nação, a
verdade é que o processo de nacionalização das populações ' talvez devido aos
profundos curtos-circuitos da cidadania, dependentes por seu turno dos atrasos
da alfabetização de massas e do distanciamento entre estas e o poder político '
encontra-se longe de estar completado em Portugal (Cabral, 2003). Por motivos
históricos mal conhecidos e que não é possível aprofundar agora, o velho Estado
português tem ainda muito que fazer no plano da "nacionalização das massas",
lembrando às vezes a situação da França antes da Guerra de 1914-18 identificada
por Eugen Weber (1976).
Com efeito, estudos clássicos, como o de Reinhard Bendix (1996:134 e ss.), há
muito que assinalaram o papel da instrução pública básica na construção da
cidadania8, bem como o contributo específico do sufrágio universal e secreto,
que Portugal apenas conheceu há um quarto de século, para a transformação dos
indivíduos em "cidadãos nacionais". Bendix chama a atenção, efetivamente, para
a estreita associação histórica entre a formação das identidades sociais de
caráter nacional ' isto é, a concepção da cidadania como nacionalidade ' e o
desenvolvimento de uma identidade política, ou seja, da cidadania como pertença
ativa a uma comunidade política nacional.
Nesse sentido, tem cabimento pensar que, para poder se falar plenamente de
Estado-nação, isso implicaria a vivência nacional de uma "fusão entre
autoridade e solidariedade" (Reis, 1996:21), segundo a qual o sentimento de
pertença deixaria de ser passivo perante a autoridade do Estado para ser,
também, ativo e solidário, graças à participação cívica e aos benefícios
partilhados pelos cidadãos nacionais. Se à solidariedade quisermos acrescentar,
como elemento da cidadania, conforme sugerido acima, a participação na cultura
nacional através da instrução de massas, vale a pena recordar o que escrevia o
insuspeito Jorge Dias a este respeito ainda em 1971: "Se existe uma cultura
[portuguesa] com longa tradição, também é certo que são poucos os que nela
participam, pois, por razões de educação e instrução, a maior parte da
população recebe sobretudo a cultura tradicional da sua região" (Dias, 1971:
13). A ser assim, é lícito argumentar que a plena assunção da "identidade
nacional", por parte de numerosos estratos da população portuguesa, é bem mais
recente, muito provavelmente, do que se poderia julgar à primeira vista.
O PAPEL DO NACIONALISMO POLÍTICO EM PORTUGAL
Para terminar, algumas breves reflexões sobre a efetiva relevância histórica da
chamada identidade nacional, não só no plano das políticas interna e externa,
como também no plano dos interesses materiais de alguns grupos sociais e,
seguramente, no plano das identidades pessoais.
Latente, se não mesmo adormecido durante a maior parte do tempo, o sentimento
nacional constitui, pois, um recurso ao dispor dos membros da comunidade, tanto
para efeitos pessoais, como para a manutenção da identidade individual perante
a emigração ou o exílio, por exemplo, experiências em que os portugueses são
historicamente peritos, mas também para efeitos coletivos, como, por exemplo, o
estabelecimento de redes grupais suscetíveis de trazerem benefícios econômicos,
embora a população portuguesa ainda hoje se caracterize, sociologicamente, pelo
primado das redes familiares e/ou clientelares (e só nesta medida
"portuguesas"), na linha daquilo que alguns, como eu próprio, têm designado
como o "familismo amoral"9. Algumas observações etnográficas pontuais de Jorge
Dias a propósito do pretenso "carácter português" são, aliás, integráveis na
noção de "familismo amoral", como, por exemplo, a "crença na sorte" e no
"empenho ou pedido", bem como "a dificuldade [do funcionário público] em
representar um papel impessoal"; até a pretensa "negação do espírito
capitalista" que Jorge Dias atribui à cultura portuguesa é enquadrável nos
termos do dito "familismo amoral" (idem:30-31). Em contrapartida, tais atitudes
e comportamentos sociais não são mais "portugueses" do que "italianos", por
exemplo, nem são obviamente comuns ao conjunto das respectivas populações
nacionais.
Mais gratuitas ' puramente simbólicas, se tal coisa existe ' são, por exemplo,
as comoções identitárias coletivas induzidas, como Hobsbawm mostrou para o
período da integração política das "massas" nos sistemas demo-liberais
oitocentistas, pelos rituais celebratórios da pátria comum e, porventura mais
inocentes ainda, os confrontos desportivos internacionais. Nada disso é, por si
só, politicamente inócuo, como os promotores de tais eventos bem sabem e, hoje
em dia, planeiam cuidadosamente, como quem reforça um reflexo comportamental.
Finalmente, mais relevante do que todas essas manifestações da identidade
nacional é o fato de o sentimento nacional ter sido objeto, desde o último
quartel do século XIX (e sem dúvida antes, mas apenas de forma incipiente e
intermitente), de ativação política recorrente, seja pela oligarquia dominante
contra alegados perigos externos ou, simplesmente, como fator de mobilização
nacional perante desafios como, por exemplo, aquele a que Portugal vem
respondendo diante da integração européia; seja ainda por um segmento das
elites contra outros segmentos, como sucedeu com o movimento nacionalista
autoritário que levou à tomada do poder por Salazar, entre 1928 e 1930, à
institucionalização da ditadura do Estado Novo até à Guerra Colonial (iniciada
em 1961) e, por fim, à prolongada agonia do regime consumada em 1974. Ao longo
de todo esse penoso e conturbado percurso, a mobilização do sentimento de
identidade nacional constituiu, sem a menor dúvida, uma das variáveis mais
independentes da evolução política do país, apenas comparável ao papel das
subidentidades das diversas camadas sociais que foram disputando à Ditadura o
monopólio do "interesse nacional".
Assim se demonstra como algo de conteúdo afinal tão imaginário e tão pobre
pode, de fato, produzir efeitos tão reais e tão relevantes para uma comunidade
cujas diferenças são tanto mais críticas quanto têm de ser dirimidas,
obrigatoriamente, no mesmo território com o qual toda essa comunidade se
identifica. Daqui é lícito concluir que, sendo indiscutível a relevância de
algo tão inefável como a identidade nacional, esta última é no entanto menos
parte da solução, como promete a ideologia nacionalista, do que parte dos
problemas que a Nação ' na realidade, a Sociedade e o Estado ' tem para
resolver.
NOTAS
1. Sobre esse sistema de clivagens, ver o estudo clássico de Lipset e Rokkan
(1967).
2. Pós-modernistas no sentido abrangente que lhes é conferido pela sua
aspiração comum ao retorno à subjetividade contra os processos de objetivação
característicos das ciências sociais modernistas, conforme sugere Le Bras
(2000).
3. Prefiro a minha tradução à de "comunidades imaginadas", como é vulgar
traduzir a expressão de Anderson.
4. A esse propósito, ver Cabral (1988). Para uma análise pormenorizada dos
"exercícios de etno-genealogia" a que se dedicou, empenhadamente, a etnografia
portuguesa desde finais do século XIX, ver Leal (2000: maxime cap. 2).
5. Carta de Felipe II de 1579.
6. A respeito da evolução da "ideologia portuguesa" do "decadentismo" à
"salvação nacional", ver Cabral (1993).
7. Sobre essa questão do "inimigo do interior", cujo uso é aqui de inspiração
tipicamente maurrassiana, ver Lyttelton (1975); para Portugal, ver Cabral
(1988; 1993).
8. Se formos exigentes, de acordo por exemplo com as sugestões de Jack Goody
(1987) em relação à "alfabetização restrita", a sociedade portuguesa só teria
atingido o limiar da alfabetização de massas ' digamos, mais de 50% da
população adulta ' depois da 2ª Guerra Mundial. Daqui, seguramente, muito do
analfabetismo funcional que ainda hoje se observa em Portugal (Benavente,
1996).
9. Ver Cabral (2003), onde procuro reconstruir a noção original de "familismo
amoral", cunhada pelo politólogo norte-americano Edward Banfield (1958) para
caracterizar as atitudes e comportamentos de uma comunidade rural da Itália
meridional; para o Brasil, ver Reis (1998).