A aberração carcerária à moda francesa
Em março de 2003, o Ministério da Justiça francês lançou pela televisão uma
campanha publicitária a fim de melhorar a imagem da administração penitenciária
e assim atrair os 10 mil guardas que urgia recrutar para atender à previsível
explosão da população carcerária. Três meses depois, havia mais de 60 mil
presos para 48 mil lugares, recorde absoluto desde o fim da Segunda Guerra
Mundial. Insalubridade; deterioração dos locais; promiscuidade extrema; falta
de higiene; carência de pessoal e ausência flagrante das atividades de formação
e de trabalho, reduzindo a missão de "reinserção" a mero slogan vazio e cruel;
congestionamento nos locais de visita; avanço dos movimentos de reivindicação;
e aumento dos incidentes graves e dos suicídios (cujo número duplicou em vinte
anos) eram então objeto de protestos unânimes dos sindicatos de agentes
penitenciários, de associações de advogados, do Conselho Nacional dos
Tribunais, das associações humanitárias, das famílias de detentos, e dos
militantes e pesquisadores da área penal1. Nada disso logrou reação da parte
das autoridades, que chegaram a reduzir ao mínimo os tradicionais indultos
presidenciais de 14 de julho para demonstrar a firme vontade de lutar contra o
que o Chefe do Estado ' que entende do assunto ' chamou com rancor de
"impunidade".
No final de janeiro de 2004, o Comitê Europeu de Prevenção à Tortura publicou
um relatório desanimador sobre o "tratamento desumano e degradante" aplicado
aos detentos franceses, amontoados em condições de superpopulação quase feudais
' cinco em uma cela de doze metros quadrados em certas prisões ' e sobre o
desprezo dos direitos fundamentais, a começar pelo direito à cela individual,
estipulado pela Lei de 15 de junho de 2000 para os réus com processos ainda sem
trânsito em julgado, e cuja aplicação, sempre adiada, descumpre o compromisso
do país perante o Conselho da Europa (direito este estabelecido em 1968 e
reafirmado em 1975, que deveria levar à individualização da pena, mas nunca
respeitado pela administração penitenciária). Esse relatório repercute os que
foram feitos no início de 2000 por três comissões nomeadas pela Assembléia
Nacional, pelo Senado e pelo ministro da Justiça, unânimes a denunciar a
distorção do sistema penitenciário francês que resvala para o tipo de "prisão
'pátio dos milagres'" onde vigoram "o arbítrio penitenciário" e a "lei do mais
forte", chegando os senadores, unânimes, a falar de "humilhação para a
República"2. Um mês depois, o ministro da Justiça, sr. Perben, respondeu com
arrogância às críticas dos juristas europeus afirmando que a França passa
apenas por um atraso na construção de novas prisões, o que em breve estará
sanado. E acrescentou que, com 98 detentos/100 mil habitantes, o país ainda
está abaixo da média já que em outras nações européias o número de
encarceramentos chega a ser um terço superior a esse3.
Tudo isso porque o governo de Jean-Pierre Raffarin ' depois do de Jospin '
transformou o zelo policial e o rigor penal em fortes argumentos eleitorais, e
até em dogma político. Resultado: em dois anos, houve um aumento de 13 mil
presos, sejam eles condenados ou réus. Aumento de recursos e intensificação das
ações policiais nas "zonas sensíveis"; pressão burocrática e política sobre os
juízes a fim de aumentar as penas e acelerar os processos (um terço das
detenções procede de intimações para comparecimento imediato, contra um quarto
de detenções na década anterior); ampliação generalizada do recurso à prisão e
endurecimento das penas bem como das disposições relativas à detenção
provisória, doravante estendida aos adolescentes de 13 a 16 anos para delitos
simples; restrição da redução das penas e queda do livramento condicional e do
regime semi-aberto: tudo concorre para inflar a população colocada atrás das
grades. Se a França continuar nessa via, em menos de cinco anos seus efetivos
carcerários estarão duplicados, ou seja, uma progressão duas vezes mais rápida
que a dos Estados Unidos no auge da bulimia penitenciária da década de 80, que
os tornou campeões mundiais da detenção (700 presos/100 mil habitantes).
Naquilo em que a esquerda dita plural praticava uma incriminação disfarçada e
vergonhosa da miséria, a direita republicana assume plenamente, por meio de um
vigoroso e enfático aparelho repressivo, sua opção de conter os distúrbios e
desordens sociais que se acumulam nos bairros dos excluídos, que vivem
solapados pelo desemprego maciço e pelo emprego informal. Mostrar a luta contra
a delinqüência das ruas como um permanente espetáculo moral permite aos
dirigentes atuais (como aos anteriores) reafirmar simbolicamente a autoridade
do Estado no momento exato em que se percebe sua impotência no campo econômico
e social. Essa encenação de segurança também lhes dá a esperança de atrair uma
camada de eleitores fascinados pelo programa autoritário e xenófobo do Front
National. E quando os resultados das urnas decepcionam, como ocorreu com o
governo da esquerda plural na eleição municipal de 2001 e com a direita
majoritária nas eleições regionais do inverno de 2004, só resta intensificar a
repressão penal, e subordinar mais estreitamente o funcionamento da
administração penitenciária ao da Justiça, e a política judiciária ao ativismo
desenfreado da polícia.
A PRISÃO COMO ASPIRADOR DA ESCÓRIA SOCIAL
Utilizar a prisão como "aspirador social" para limpar as escórias das
transformações econômicas em curso e retirar do espaço público o refugo da
sociedade de mercado ' os pequenos delinqüentes ocasionais, os desempregados e
os indigentes, os sem-teto e os sem documentos, os toxicômanos, os deficientes
e doentes mentais deixados de lado por incúria da proteção sanitária e social,
assim como os jovens de origem popular condenados a uma (sobre)vivência feita
de expedientes e de furtos para suprir a precariedade dos salários ' é uma
aberração no sentido exato do termo, isto é, segundo a definição do Dicionário
da Academia Francesa de 1835, uma "falha de imaginação" e um "erro de juízo"
tanto político quanto penal.
Aberração, primeiro, pois a evolução da criminalidade na França não justifica
em nada o crescimento fulgurante da população prisional após o decréscimo
moderado de 1996-2001. Como já se constatou em outro trabalho (Wacquant,
2004b), os arrombamentos, furtos de veículos e de pequenos objetos (que
constituem três quartos dos crimes e delitos registrados pelas autoridades)
estão diminuindo regularmente desde 1993; os homicídios e lesões corporais
seguidas de morte refluem desde 1995, segundo os levantamentos do Institut
National de la Santé et de la Recherche Médicale ' INSERM (e, segundo dados da
polícia, desde 1984); e o aumento de roubos que obnubila a mídia, além de ser
sobretudo "violência" verbal (insultos, ameaças), decresce constantemente há
vinte anos4. Não houve um surto de delitos que justifique automaticamente a
confusa intervenção do Estado nesse ponto. Além disso, ao invés da impressão
esmagadora criada pela recente obsessão tanto da televisão quanto da imprensa
sobre o assunto, a preocupação com segurança hoje não é nova nem
excepcionalmente aguda na população. As sondagens de rua mostram que o medo do
crime (medido pela adesão à frase "não me sinto em segurança") permanece
relativamente estável nas duas últimas décadas, exceto em três modestos picos
em 1978, 1983-1985 e 1999-2001, e, depois destes três anos de alta, seu nível
de 2001 iguala-se ao de 1978 (Robert e Pottier, 1997; Robert, 2002:13-16, para
o período 1995-2001). Enfim, sabe-se que o medo do crime não tem muito a ver
com sua incidência real, já que a imagem dominante de uma violência anônima que
atingiria todo mundo em toda a parte, e em especial os mais vulneráveis
(idosos, mulheres e transeuntes comuns), não corresponde de modo algum à
distribuição socioespacial dos delitos. Assim, a metade dos franceses, que
declararam ter sofrido um ato de violência em 1996 (ou seja, uma pequena
minoria correspondente a 5% de adultos de mais de 25 anos), conhecia seu
agressor; 3% dos entrevistados haviam sido atacados na rua, 10% em casa e 13%
no local de trabalho; as vítimas jovens de 25-29 anos eram três vezes mais
numerosas que os sexagenários; os homens mais numerosos que as mulheres (mesmo
com idêntica freqüência de saídas); e, por fim, o medo do crime a domicílio era
tão comum na zona rural quanto na cidade (10%) e tão forte em residência
individual quanto em moradia coletiva, embora os delitos fossem mais freqüentes
no segundo caso (Crenner, 1996:1-4). Em suma, não foi tanto a criminalidade que
mudou nos últimos anos e sim a maneira como políticos e jornalistas, porta-
vozes dos interesses dominantes, vêem a delinqüência de rua e as populações que
supostamente a alimentam. Os mais visados são os jovens das classes populares,
imigrantes magrebinos confinados na periferia retalhada há três décadas pela
desregulação econômica e pela omissão urbana do Estado, periferia transformada
em chaga que a cataplasma administrativa da "política da cidade" tentou, sem
êxito, cauterizar.
Aberração, também, porque a criminologia comparada confirma peremptoriamente
que não existe em lugar nenhum ' em nenhum país e em nenhuma época ' correlação
entre a taxa de encarceramento e o nível de criminalidade (Christie, 2003). É
costume citar os Estados Unidos como exemplo de nação que teria recentemente
conseguido diminuir as infrações pela ênfase dada à repressão penal. Mas já foi
constatado em estudo anterior (Wacquant, 2004b) que todas as análises sérias a
esse respeito concluem, ao contrário, que a política policial de "tolerância
zero" alardeada por Nova Iorque e o seu número de presos quatro vezes maior em
25 anos só tiveram um papel decorativo na baixa dos litígios, resultante da
conjuminação de fatores econômicos, demográficos e culturais. Seja como for, a
prisão só atende, na melhor hipótese, a uma ínfima parcela da criminalidade e
até da mais violenta: nos Estados Unidos, que dispõem de um aparato policial e
carcerário grotescamente superdimensionado, em razão do descarte sucessivo nas
diferentes etapas dos trâmites penais, os 4 milhões de delitos mais sérios
contra as pessoas contatadas em 1994 pelas pesquisas de vitimização
(homicídios, ferimentos e lesões corporais de natureza grave, roubos, estupros)
equivalem a menos de 2 milhões de queixas à polícia, que motivaram 780 mil
detenções que, por sua vez, só levaram afinal a 117 mil prisões efetivas, ou
seja, 3% dos atos perpetrados, deixando intactas 97% das violências criminosas
graves(Rand, 1997; Federal Bureau of Investigation, 1997; Brown e Langan,
1998). O mesmo "efeito funil" é observado no funcionamento da justiça penal na
França, onde menos de 2% dos processos levados a tribunal redundam em pena de
prisão5. Percebe-se como a prisão está inapta para lutar contra a pequena e
média delinqüência e, com maior razão, contra as "incivilidades" que, na
maioria, nem constam do Código Penal (olhares intimidativos, atitude agressiva,
insultos, empurrões, ajuntamentos e baderna em locais públicos, pequenos
vandalismos etc.). Mais uma prova de que a repressão judiciária é ineficaz na
França como em outros lugares é esta: as condenações de menores à prisão em
regime fechado subiram de 1.905, em 1994, para 4.542, em 2001, e o número de
detenções provisórias de adolescentes praticamente dobrou, passando de 961 a
1.665; com tudo isso, a delinqüência juvenil continuou aumentando nesse
período, segundo declarações oficiais.
Em terceiro lugar, o recurso automático do encarceramento para debelar as
desordens urbanas é um remédio que, em muitos casos, só agrava o mal que
pretende sanar. Instituição baseada na força e agindo à margem da legalidade
(apesar das reiteradas recomendações de muitas comissões oficiais, o detento
francês não dispõe de estatuto jurídico)6, a prisão é um cadinho de violências
e de humilhações cotidianas, um vetor de desagregação familiar, de desconfiança
cívica e de alienação individual. E, para muitos presos implicados ligeiramente
em atividades ilícitas, é uma escola de formação, para não dizer de
"profissionalização", na carreira do crime. Para outros, o que também é
péssimo, o cárcere é um abismo sem fundo, um inferno alucinante, a extensão da
lógica de destruição social que eles já viviam fora do presídio, agora,
acrescida da aniquilação pessoal (Rouillan, 2004; Lucas, 1995). O funcionamento
dos presídios caracteriza-se pela completa disjunção entre a pena proferida
pelo discurso judiciário e a que é de fato aplicada, o que provoca "nos
detentos uma descrença radical aliada a um profundo sentimento de injustiça"
(Chantraine, 2004:249) ' e o caos da vida na prisão ainda prolonga e acentua a
experiência da arbitrariedade judiciária7. A história penal mostra, além disso,
que em nenhum momento e em nenhuma sociedade a prisão cumpriu sua suposta
missão de recuperação e reintegração social, de acordo com a óptica de redução
da reincidência. Como observou laconicamente um agente penitenciário, "a
reintegração não se dá na prisão. Aí já é tarde demais. Para reintegrar é
preciso dar trabalho, igualdade de oportunidades, escola. Essa é que é a
reintegração. Medidas de tipo 'social' podem ser tentadas, mas já pouco
adiantam" (Chauvenet et alii, 1994:38). Sem contar que tudo ' desde a
arquitetura até a organização de trabalho dos guardas, passando pela pobreza de
recursos institucionais (trabalho, formação, escolaridade, saúde), pela
extinção deliberada do livramento condicional e pela ausência de medidas
concretas de ajuda no momento da libertação ' se opõe à suposta função de
"reforma" do detento.
Finalmente, convém destacar ' para aqueles que invocam o ideal de justiça
social a fim de legitimar o recrudescimento da repressão nos bairros mais
pobres a pretexto de que "a segurança é um direito, a insegurança é uma
desigualdade social" atingindo prioritariamente os cidadãos menos favorecidos,
como gostava de repetir o então primeiro-ministro Lionel Jospin8 ' que a
contenção carcerária atinge desproporcionalmente as categorias sociais
econômica e culturalmente mais frágeis, e isso de modo mais duro por elas não
disporem de recursos. Como seus homólogos de países pós-industriais, os
detentos franceses provêm maciçamente das parcelas instáveis do proletariado
urbano. Filhos de famílias numerosas (dois terços têm ao menos três irmãos ou
irmãs), das quais se separaram muito jovens (um em cada sete deixou o lar antes
dos 15 anos), são na maioria desprovidos de escolaridade (três quartos
abandonaram a escola antes dos 18 anos, contra 48% da população masculina), o
que os condena para sempre aos setores subalternos do mercado de trabalho. Uma
metade é de filhos de operários e de empregados, e a outra é de operários
(contra 3% de filhos de executivos, que equivalem a 13% da população ativa
nacional); quatro detentos em cada dez têm pai nascido no estrangeiro e 24%
nasceram fora do território francês9. Ora, a prisão só contribui para
intensificar a pobreza e o isolamento: 60% dos que deixam a prisão são
desempregados, comparados com 50% dos que entram; 30% não são ajudados nem
atendidos por ninguém; mais de 25% não dispõem de dinheiro (menos de 15 euros)
para arcar com as despesas ao serem soltos, e um em oito não tem moradia ao
sair da prisão (Guillonneau et alii, 1998:1-4). Mesmo dentro dos
estabelecimentos penitenciários, a trajetória e as condições de vida dos
detentos apresentam fortes desigualdades de classe. Do registro de entrada e da
destinação, passando pelas transferências, pelo acesso aos recursos internos e
ao direito de progressão no cumprimento da pena, cada etapa do circuito
prisional contribui para o empobrecimento cumulativo dos presos mais
desfavorecidos em virtude da total prioridade que a gestão cotidiana dá ao
imperativo de segurança (Marchetti, 2002:416-434). Ademais, o impacto danoso do
encarceramento não age apenas sobre o detento mas também, e de modo mais
insidioso e injusto, sobre sua família: deterioração da situação financeira,
desagregação das relações de amizade e de vizinhança, enfraquecimento dos
vínculos afetivos, distúrbios na escolaridade dos filhos e perturbações
psicológicas graves decorrentes do sentimento de exclusão aumentam o fardo
penal imposto aos pais e cônjuges de detentos (Dubéchot et alii, 2000; Comfort,
2002:467-499).
O argumento, habitualmente invocado pelos partidários da política punitiva,
segundo o qual a inflação carcerária corresponde a uma redução automática da
criminalidade pois "neutraliza" condenados que, atrás das grades, já não
oferecem perigo, parece cheio de bom senso, mas, se bem examinado, revela-se
ilusório, porque, quando aplicado à delinqüência de baixa periculosidade, o
encarceramento desmesurado equivale a "recrutar" novos delinqüentes por efeito
de substituição10. Assim, um pequeno traficante de drogas detido é
imediatamente substituído por outro, contanto que haja uma demanda solvível
para a mercadoria e uma expectativa de lucro. E, se esse substituto for um
novato desconhecido, estará mais disposto à violência para se firmar e
assegurar seu negócio, o que, afinal, redundará em mais criminalidade. Além
disso, a prisão tem a característica de uma bomba social que aspira-e-expele:
ela devolve à sociedade indivíduos capazes de cometer ainda mais delitos e
crimes em virtude do corte sociobiográfico que a reclusão exerce; da carência
de programas de "reinserção" durante e após o encarceramento; e da série de
restrições, incapacidades e outros prejuízos decorrentes de uma passagem pela
polícia. Pesquisa recente mostra que 52% dos presos na França cometem uma (ou
várias) infrações nos cinco anos seguintes à sua soltura e que a probabilidade
de reincidência varia muito na razão inversa da severidade do primeiro delito:
ela vai de 23% para os delitos sexuais contra crianças e 28% para os homicídios
dolosos a 56% para a venda de drogas, 59% para o uso de drogas e a 75% para os
furtos (Kensey et alii, 2004:1-4). Mesmo assim, nada é feito para interromper
de fato o circuito crime-prisão-crime, a não ser o agravamento da pena para os
reincidentes, embora se saiba que o efeito dissuasivo do encarceramento é
praticamente nulo para os delitos menores.
Enfim, o encarceramento em grande escala induz um processo de mitridatização
penal das populações que ele atinge regularmente, tornando-as pouco a pouco
insensíveis à ação preventiva ou retributiva buscada pelas autoridades. Ao
banalizar a repressão judiciária, o Estado esmaece o efeito que a cerca e apaga
o estigma que lhe está associado, de tal modo que precisará sempre aumentar as
"doses" de castigo necessárias para ajustar o comportamento dos que não se
enquadram ' fenômeno que, do ponto de vista da luta contra o crime, pode ser
resumido em uma frase que soa bem aos ouvidos dos economistas liberais: "Prisão
demais acaba com a prisão". Ultrapassado um certo limiar de penetração penal, a
carga simbólica negativa da condenação inverte-se e a estada na cadeia torna-se
distintivo de honra masculina e sinal valorizado de pertencimento ao grupo dos
que estão destinados à cultura e à economia da rua (exemplos em Chantraine,
2004:85-103, para a França; e em Simon e Burns (1997) para os Estados-Unidos).
Afinal, sorvendo um número sempre maior de indivíduos, a prisão acaba se
alimentando com seus próprios produtos, tal qual uma fábrica de reciclagem do
rebotalho social que despeja na sociedade, a cada ciclo, substâncias cada vez
mais nocivas11.
COMO ESCAPAR DA CILADA DA SEGURANÇA
É portanto aberrante, do ponto de vista penal e político, discriminar
deliberadamente de um lado a política da "insegurança" criminal e de outro o
aumento de insegurança social que alimenta a primeira, tanto na realidade
quanto nas representações coletivas. É também insensato pretender tratar os
ilícitos menores com um instrumento tão grosseiro e ineficaz como é a prisão.
Urge considerar plenamente os efeitos judiciários perversos e os danos sociais
causados pela intensificação indiscriminada da repressão penal e pela extensão
incontrolada de um aparelho prisional já sobrecarregado que, no funcionamento
cotididano, desqualifica os ideais de justiça e igualdade que supostamente deve
defender. Para não resvalar em uma escalada penal sem fim e sem saída, é
indispensável reconectar a discussão sobre a delinqüência com a ampla questão
social deste século: o aparecimento do trabalho dessocializado, vetor de
insegurança sociale de enfraquecimento material, familiar, escolar, sanitário e
até mental. Pois ninguém consegue ordenar sua percepção do mundo social e
conceber o futuro quando o presente está fechado e se torna uma luta diária e
sem trégua pela sobrevivência12.
Não se trata de negar a realidade da criminalidade nem a necessidade de lhe dar
uma resposta, ou melhor, respostas, inclusive penal, quando essa é a adequada.
Trata-se de entender melhor sua gênese, sua fisionomia mutável e suas
ramificações, "re-situando-a" no sistema completo das relações de força e de
sentido que ela exprime, o qual ajuda a explicar não só sua forma e incidência,
mas também as reações histéricas que provoca na conjuntura deste início de
século. Para tal, convém parar com os discursos alarmistas e iniciar uma
discussão racional e documentada sobre os ilícitos (plural), seus efeitos e
significados. Essa discussão deve primeiro especificar por que ela se concentra
em certas manifestações de delinqüência ' mais nos corredores dos conjuntos
habitacionais do que nos corredores dos hotéis da cidade, nos roubos de
carteiras e de celulares do que nas negociatas da Bolsa e nas infrações à
legislação trabalhista ou tributária etc.13. Deve distinguir os delitos e medir
cada um deles com rigor e precisão, em vez de proceder por amálgama e por mais-
ou-menos14, e evitar os raciocínios e as reações elaborados a partir de casos
extremos (por exemplo, designar o suicídio de um aluno como "violências
escolares" e os "grupos mafiosos" como tráfico de entorpecentes nas imediações
de um conjunto da periferia). Deve sair do imediato e da comoção da atualidade
jornalística para distinguir com clareza as camadas superficiais e as
profundas, as variações acidentais de um ano para o outro e as tendências a
longo prazo; não confundir a subida da intolerância, do medo, ou da preocupação
com o crime com o aumento do próprio crime. Mas, sobretudo, uma política
inteligente sobre a insegurança criminal precisa reconhecer que os atos
delinqüentes são o produto não de uma vontade individual autônoma e singular,
mas de um conjunto de causas e de motivos múltiplos que se mesclam de acordo
com várias lógicas (vandalismo, exibicionismo, alienação, transgressão,
afrontamento à autoridade etc.) e, por isso, reclamam remédios bem diferentes e
cuidadosamente coordenados. Estes remédios devem levar em conta a fraca
eficácia congênita do aparelho penal e romper com a desgastada alternativa
sugerida pela parelha prevenção/repressão, a fim de instaurar uma pluralidade
de mecanismos de contenção e de oferta de oportunidades. Tudo isso por
reconhecer que o tratamento policial e penal, que alguns apresentam hoje como
panacéia universal, é em geral pouco aplicável e se revela muitas vezes pior
que o mal, quando se contabilizam seus "efeitos colaterais".
As ciências sociais não se manifestam sobre esse assunto para "desculpar" este
ou aquele comportamento, simplesmente porque elas não procedem da lógica do
processo, cujo intento é absolver ou condenar. Seu objetivo é explicar e
compreender, isto é, fornecer instrumentos de conhecimento comprovado que
possam também se tornar instrumentos de uma ação inteligente na cidade. "Saber
para prever, prever para poder", dizia Auguste Comte, pai da sociologia. A
criminalidade é, em todas as sociedades, um problema sério demais para ser
entregue aos falsos especialistas e aos verdadeiros ideólogos, e menos ainda
aos policiais e aos políticos prontos para explorar o problema sem julgá-lo de
forma justa nem saber dominá-lo de fato. Suas transformações exigem não a
desistência, mas sim uma nova abordagem sociológica, a única que pode salvar do
pornografismo da segurança, o qual reduz a luta contra a delinqüência a um
espetáculo ritualizado servindo apenas para saciar os "fantasmas da ordem" do
eleitorado e para reafirmar simbolicamente a autoridade viril de quem decide no
âmbito governamental.
Tanto quanto o emprego desregulamentado, que alguns insistem em apresentar como
uma necessidade natural (importada dos Estados Unidos) filha de uma
"globalização" inelutável embora nem sempre desejável15, o recurso crescente ao
braço policial e penitenciário do Estado para debelar as desordens sociais e
mentais geradas pela instabilidade do trabalho não é uma fatalidade. Opor-se à
incriminação da pobreza urbana e de seus corolários obriga a travar uma luta
tríplice. Primeiro, no nível das palavras e dos discursos, a fim de frear os
deslizes semânticos, na aparência anódinos, que comprimem e prescrevem o espaço
do pensável e, portanto, do factível (por exemplo, limitando arbitrariamente o
sentido da palavra "segurança" apenas à esfera criminal, desligada da segurança
do emprego, da renda, da moradia etc.) e levam a banalizar o tratamento
punitivo das tensões ligadas ao agravamento das desigualdades sociais (por
exemplo, pelo uso de noções vagas e incoerentes como a de "violências
urbanas")16. É imperativo a esse respeito que se submeta a importação das
pseudoteorias fabricadas pelos think tanks americanos e seus seguidores
europeus para justificar a expansão do Estado penitenciário a um severo
controle alfandegário sob a forma de uma infalível crítica lógica.
Quanto à política e à prática judiciária, cabe também obstar à proliferação dos
dispositivos que tendem a "ampliar" a rede penal; deve-se propor, sempre que
possível, uma alternativa econômica, social, sanitária ou educativa mostrando
como esta, em seu âmbito, contribui para tratar o problema pela raiz, ao passo
que a contenção punitiva quase sempre só o agrava, principalmente porque,
ocultando as causas, favorece-lhe o desenvolvimento. Convém nunca esquecer as
condições e os efeitos destrutivos da prisão, não só sobre os detentos mas
também sobre suas famílias e seu ambiente. Lembrar que a prisão não é um
simples escudo contra a delinqüência, mas uma faca de dois gumes: um órgão de
coerção que tanto ataca quanto gera o crime e que, quando tem um
desenvolvimento exagerado, como nos Estados Unidos nos últimos 25 anos ou na
União Soviética durante a era stalinista, transforma-se em vetor autônomo de
pauperização e de marginalização17.
É também necessário defender a autonomia e a dignidade dos profissionais do
braço social do Estado ' o trabalhador social, psicólogo, professora, educador
especializado, animador, crecheira, enfermeiro, médico ' para não incorrer no
corporativismo. Esses profissionais devem exigir os recursos orçamentários e
humanos indispensáveis ao cumprimento de sua missão, de toda a sua missão e
nada além de sua missão
18, isto é, recusar-se ao papel de auxiliar da polícia e da administração
judiciária sob a alegação de uma melhor coordenação do serviço público e de
eficiência burocrática. As sinergias entre os setores do Estado são, em
princípio, desejáveis, mas resta saber qual delas impõe sua lógica, sua
linguagem, seus critérios de ação, seu horizonte temporal e seus objetivos19: o
que se busca é aumentar a "segurança social" das famílias e dos indivíduos em
dificuldade a longo prazo, de modo a conferir-lhes maior estabilidade e
capacidade de vida ' ou será que se procura produzir "segurança criminosa" a
curto prazo (ou, pior ainda, sua encenação para a mídia) baixando à força as
estatísticas registradas sobre a delinqüência e exibindo severidade
paternalista com fins eleitoreiros? Que força do Estado vence nessa queda-de-
braço permanente entre as duas modalidades possíveis da ação pública? O "lado
esquerdo", que alimenta e sustenta, protege os desfavorecidos dos riscos da
vida, reduz as desigualdades; ou o "lado direito", incumbido da manutenção da
ordem, tanto moral e econômica quanto legal? Do setor policial e penal também:
os agentes penitenciários devem defender a dignidade e a integridade de sua
profissão, negando-se a exercer funções degradadas de atendimento social e
sanitário que não lhes competem (como nas prisões em que o setor psiquiátrico
passa a tratar os casos de patologia mental profunda que, por não terem sido
assistidos no devido âmbito hospitalar, são levados à reclusão).
Enfim, é desejável que se estabeleçam contatos entre militantes e pesquisadores
criminalistas e sociais, entre sindicalistas e membros de associações dos
setores assistencial, educativo e sanitário, por um lado, e seus homólogos que
se dedicam aos setores policial, judiciário e penitenciário. Essa sinergia
ativista e científica deve firmar-se não apenas em âmbito nacional, mas em
escala européia para otimizar os recursos intelectuais e organizacionais a
serem investidos na luta permanente pela redefinição do âmbito e das
modalidades da ação pública (Pedro, 2003). Há enormes jazidas de saber teórico
e prático a serem exploradas e partilhadas em nível continental. Pois a
verdadeira alternativa para não descambar na incriminação da miséria, leve ou
rigorosa, é a construção de um Estado social europeu digno deste nome. Três
séculos e meio depois de sua invenção histórica, o meio mais eficaz de conter a
prisão continua sendo ainda e sempre o avanço dos direitos sociais e
econômicos.
NOTAS
1. Há uma descrição detalhada e aflitiva sobre o estado atual das prisões
francesas no Observatoire International des Prisons (2003).
2. Relatório do sr. Guy Canivet enviado a sra. Guigou, ministra da Justiça, em
6 de março de 2000; relatório do sr. Jacques Floch, nº 2.521, entregue à
Assembléia Nacional em 28 de junho de 2000; relatório do sr. Guy-Pierre
Cabanel, nº 449, entregue ao Senado em 28 de junho de 2000.
3. O ministro da Justiça citava sobretudo as proporções acima de 130 detentos/
100 mil habitantes da Espanha e de Portugal. Ele omitiu os países que têm menos
presos que a França, entre os quais, a Alemanha, a Áustria, a Suíça, os países
nórdicos, a Bélgica, a Irlanda, a Grécia e até a Turquia (Mansuy, 2004:3-4).
Quando a França tiver alcançado o líder britânico (que apresentava 143
detentos/100 mil habitantes em abril de 2004, após um crescimento de 55% em uma
década), ser-lhe-á ainda possível, na lógica desse raciocínio, comparar-se com
países bem mais punitivos como a Eslováquia (165), Romênia (200), Polônia (224)
e, enfim, Ucrânia (417) e Rússia (584).
4. Para uma análise mais minuciosa, consultar os capítulos relativos a essas
infrações em Mucchielli e Robert (2002).
5. Os 5.461.024 processos recebidos pelos tribunais franceses em 2002
produziram 3.733.366 casos arquivados (seja por caracterização inadequada das
infrações seja por falha de elucidação) e 1.350.393 processos penais, dos quais
mais de um terço (429.505) foram classificados como extintos (por motivo de
desistência ou carência do queixoso, prejuízo de pouca monta, inimputabilidade
do acusado em virtude de retardamento mental, responsabilidade da vítima etc.),
ao passo que 289.483 desencadearam uma pena alternativa, para um restante de
624.650 processos sentenciados (ou seja, 11,4% do número original). Levando em
conta todas as jurisdições, essas sentenças levaram a 477.935 condenações
penais, das quais 99.682 ordens de prisão em regime fechado e 1.355 penas de
reclusão total, ou seja, uma "resposta carcerária" cobrindo 1,8% dos casos
levados a tribunal (101.037 divididos por 5,4 milhões; cf. Estatísticas do
Ministério da Justiça, "Activité des Parquets en 2002", disponível em: <http://
www.justice.gouv.fr/chiffres/penale03.htm>).
6. Sobre a fraqueza e a incoerência do direito carcerário francês, apesar de
progressos verificados na década passada, ver Herzog-Evans (1998).
7. Assim como é documentado pelo relatório do Cimade [Service Oecuménique
D'Entraide], Les Prétoires de la Misère. Observation Citoyenne du Tribunal
Correctionnel de Montpellier, de 2004, e pelas crônicas correcionais de
Simonnot (2003).
8. "Sécurité: Le Gouvernement Souhaite Étendre la Politique de Proximité" (Le
Monde, 8/12/1999). Jean-Pierre Chevênement, o ministro do Interior que presidiu
a conversão sobre a questão da segurança da esquerda governamental, gostava de
destacar as "virtudes pedagógicas" da sanção penal e até do encarceramento ("La
Répression a aussi une Vertu Pédagogique", Le Parisien, 30/3/2000).
9. Dados extraídos da pesquisa junto a 1.719 detentos de 23 casas de detenção e
de cinco presídios, realizada pelo Institut National de la Statistique et des
Études Économiques ' INSEE e pela administração penitenciária no âmbito de um
estudo mais amplo sobre a história familiar, cf. Cassan et alii (2000:1-4).
10. Sobre as zonas sombrias, efeitos perversos e outras conseqüências contra-
intuitivas da filosofia "neutralizante" do encarceramento, é muito recomendável
a leitura de Zimring e Hawkins (1995).
11. O peso crescente dos fatores endógenos na hiperinflação carcerária nos
Estados Unidos foi mostrado por Caplow e Simon (1999:63-120).
12. Como havia demonstrado Pierre Bourdieu (1962:313-331) nos casos extremos
dos subproletários argelinos durante a guerra de libertação nacional. A
pertinência dessa análise para as situações de marginalidade urbana nas
sociedades contemporâneas é evidente quando as descrições feitas por Stettinger
(2003) são lidas.
13. Convém lembrar que o custo econômico da criminalidade de colarinho-branco é
consideravelmente mais elevado que o da delinqüência comum e dos crimes
violentos. Em 1996, o contravalor monetário das falsificações era estimado em
25 bilhões de francos, enquanto a fraude nas contribuições sociais somava 17
bilhões, contra 250 milhões para os roubos em lojas, 4 bilhões para os roubos
de veículos e 11 bilhões para os crimes dolosos contra a vida. Nesse ano, o
peso da fraude fiscal e alfandegária foi de 100 bilhões e o custo dos acidentes
de tráfego foi superior a 39 bilhões (Palle e Godefroy (1999); foram
consideradas as estimativas mais elevadas para cada uma das categorias de
delitos). Desse ponto de vista, a prioridade do Estado deveria ser o respeito
do código tributário e do código de trânsito. Mas atacar esses dois desvios de
massa implicaria reconhecer a delinqüência do cidadão comum e impediria que a
ação repressiva se concentrasse sobre a categoria "bode expiatório".
14. As evidentes insuficiências dos atuais instrumentos de medida no caso
francês são mostradas por Tournyol du Clos (2002:25-34). É bastante improvável
que o Observatório Nacional da Delinqüência, inaugurado em novembro de 2003
pelo ministro do Interior Nicolas Sarkozy, seja capaz de suprir essas carências
porque, entre os 27 membros do seu conselho diretor, não há nenhum
criminologista nem pesquisador de valor reconhecido (o único pesquisador
universitário é Frédéric Ocqueteau, diretor da revista interna do Institut des
Hautes Études de la Sécurité Intérieure ' IHESI, principal órgão de propaganda
estatal sobre segurança), além de ser presidido pelo vendedor de conselho em
"segurança urbana" Alain Bauer, cuja incompetência estatística é bem conhecida
de todos.
15. Há uma corrosiva crítica empírica e teórica a essa crença central do
neodarwinismo econômico dominante no texto de Esping-Andersen e Regini (2000).
16. A quem subestima a importância dessa luta ou a vê como preocupação de
intelectual. Pierre Bourdieu lembra que "o mundo social é o lugar da luta a
respeito de palavras que são graves ' e até violentas ' porque as palavras
quase sempre determinam as coisas, e mudar as palavras, e de modo mais geral as
representações [ ], já é mudar as coisas" (1987:69).
17. Para uma demonstração minuciosa sobre o encarceramento punitivo dos
moradores do gueto negro norte-americano no fim do século XX (cf. Wacquant,
2004a:cap. 3).
18. Essa exigência concerne às lutas internas travadas pelos trabalhadores
sociais a respeito dos objetivos e das modalidades de sua ação na era do
desemprego de massa, e do assalariado esfacelado diante da diversificação dos
cargos, da burocratização das tarefas, da ascensão da abordagem gerencial e do
ressurgimento do trabalho voluntário (cf. Ion, 1998).
19. Um exemplo dessa luta entre justiça e trabalho social no âmbito da proteção
da infância é dado por Serre (2001:70-82).