Velhas teses, novos dados: uma análise metodológica
Dados publicou em seu número 1, volume 47 (2004), artigo de Jairo Nicolau
reportando resultados de pesquisa sobre o destino partidário dos votos em
coligações no período 1945-62. Conheci uma primeira versão bastante preliminar
do relatório em que se enfatizava, principalmente, o processo da pesquisa e seu
sucesso, anunciando a possibilidade de que as descobertas pudessem trazer
substanciais modificações em seções do conhecimento especializado.
A versão publicada em Dados é, para mim, inédita, salvo os dados utilizados
para identificar os eleitos por coligação. Essa era uma lacuna nos estudos
sobre o sistema partidário brasileiro, especificamente no período 1950-64, pois
nas primeiras competições pós-ditadura varguista, em 1946, não foram permitidas
coligações nas eleições proporcionais. À parte os votos dados nominalmente a
candidatos individualizados e aqueles depositados na legenda pela qual se
inclinava o eleitor, os demais votos abasteciam as coligações entre partidos. O
Tribunal Superior Eleitoral TSE não discriminava os votos nominais nem em
legendas, quando via coligações, obrigando os estudiosos à utilização de
estratagemas para superar a deficiência. Segundo Nicolau, tais estratagemas têm
limites, entre eles o de não deixar saber ao certo "como foi a evolução da
votação dos partidos nos estados, nem [teria sido] possível calcular com
precisão uma série de indicadores que dependem da especificação dos votos de
cada partido para serem calculados" (:86).
O juízo não está bem formulado, visto que o problema que os novos dados
pretendem elucidar é outro. Era e é possível avaliar a evolução do sistema
partidário-parlamentar daquele período, tanto quanto calcular indicadores
relevantes. Em termos metodologicamente rigorosos, o que se fazia era aceitar o
postulado1 de que a falha nas informações não seria de magnitude suficiente
para comprometer os resultados obtidos sem elas. Aceita a premissa, os
resultados de todos os cálculos não deixavam de ser precisos, embora
processados sobre base incompleta de informações. A identificação dos votos em
coligações permite o que, a seguir, afirma Nicolau: "A dúvida é se a ausência
desses dados não pode ter distorcido as análises, apontando tendências (ou
deixando de apontá-las) que só poderiam ser assinaladas com precisão mediante
os resultados eleitorais" (ibidem). Nicolau está seguro de que a resolução da
incógnita dos votos em coligações trará alterações substantivas nas hipóteses
preservadas pela literatura. As perguntas de que o presente artigo se ocupa são
as seguintes: é procedente a afirmação de que o estoque de conhecimento
disponível é retificado em grande extensão? Procede o juízo de que o estoque de
conhecimento disponível sobre o sistema partidário daquele período é
falsificado pelas novas evidências? Ou, contrariamente, as retificações são
marginais e não há acréscimo de conhecimento substantivo em razão do acréscimo
de informações?
Ao fim de meticuloso rastreamento de dados, Nicolau propõe uma reorganização da
estatística eleitoral da República de 1946 destinada a dirimir dúvidas, depois
de estabelecer, segundo ele, qual era a filiação partidária de 88% dos 5.242
candidatos que disputaram as eleições de 1945, 1950, 1954, 1958 e 1962. Para
efeito de precisão, registre-se que grande parte dos candidatos não era, de
fato, desconhecida, pois que um número considerável deles estava identificado,
agregados na enorme massa de dados sobre as votações nominais e nas legendas
(são sete volumes do TSE transcrevendo exatamente essas informações), restando
por identificar os que se elegeram via coligações. De qualquer modo, o
resultado é satisfatório, tendo o total de votos dos já identificados,
acrescido aos agora recuperados, alcançado 96% dos votos depositados no período
1945-62.
Estabelecida a nova organização dos dados, Nicolau propõe-se a corrigir
opiniões correntes sobre a evolução do grau de nacionalização dos partidos,
teses sobre alterações na distribuição das cadeiras na Câmara dos Deputados
entre partidos conservadores e progressistas, outras sobre a trajetória da
dispersão eleitoral e parlamentar, e ainda outras sobre a volatilidade dos
votos entre eleições. O programa revisionista é de grande porte, exigindo
tratamento pormenorizado. A fidedignidade da nova estatística eleitoral parece
indiscutível, e o esforço para estabelecê-la, louvável. Isto feito, a questão
substantiva consiste em saber, como sustenta Nicolau, se a identificação dos
candidatos e partidos eleitos através das coligações acrescenta informação
surpreendente ao estoque de conhecimento acumulado pela literatura e se tal
informação subverte as teses correntes. Para tanto, é indispensável ter uma
idéia da extensão dos reparos feitos. A seguir encontram-se a tabela construída
com os dados do TSE e a tabela reconstruída por Nicolau com base nas
informações desse mesmo Tribunal, retificadas pelas identificações a que
procedeu. Comparando as duas, e havendo sublinhado, na tabela do TSE, os
números discrepantes, descobre-se que:
a) das 60 observações no período 1945-62, 21 foram retificadas (35,0%), assim
distribuídas: 2 em 1945, 2 em 1950, 7 em 1954, 3 em 1958 e 7 em 1962;
b) das 21 retificadas, em 13 (62,0%) o valor da retificação foi inferior a 1,0
ponto percentual;
c) das 8 restantes, das 21, 6 (26,1%) sofreram retificações entre 1,1 e 1,5
pontos percentuais;
d) as outras 2, uma foi retificada em 2,7 (PTB em 1962) e outra em 1,8 pontos
percentuais (PSD em 1962)2.
Em princípio, apenas 2 casos, em 60 observações (os da linha dacima),
justificariam a suspeita de sérias implicações substantivas. Continuando,
entretanto, com a delimitação do problema, torna-se obrigatório esclarecer os
comentários de Nicolau às tabelas retificadas. As listas do TSE, depois das
eleições, enumeram os candidatos eleitos e os candidatos derrotados, os quais,
automaticamente, são registrados como suplentes. Por essa característica da
lei, é possível calcular o número dos que se apresentaram como candidatos,
antes das eleições: basta somar candidatos eleitos e candidatos suplentes e se
chega ao total dos candidatos pré-momento eleitoral. Nas listas pós-eleitorais,
tal como nas listas de antes das eleições, os candidatos por coligações não têm
suas legendas de origem reconhecidas. Fique registrado, então, que o problema
da identificação se refere somente aos eleitos, dos quais se ignora o partido
de origem. São conhecidas e transcritas nas estatísticas do TSE as legendas
partidárias de todos os demais candidatos. Felizmente, portanto, Nicolau não
foi obrigado a investigar os 5.242 candidatos do período, tampouco os 1.365
efetivamente eleitos nas cinco Legislaturas consideradas. A Tabela_2
complementa a informação de Nicolau, discriminando, por eleição e partido, o
número de eleitos não identificados pelas listas do TSE.
Nicolau crê possível encontrar implicações de ordem substantiva com base na
identificação de 511 casos, equivalentes a 37,4% de todos os eleitos para a
Câmara de Deputados, de 1950 a 1962. Exponho e comento, a seguir, os principais
argumentos de Nicolau, questão a questão, salvo a última.
Tratando da expansão ou declínio dos partidos, que Gláucio Soares estimava
estar ocorrendo em relação ao PTB, de um lado, e ao PSD e UDN, de outro,
Nicolau confirma a opinião de Soares de que o PTB se expandiu entre o fim e o
início do período (1945-62), mas considera relevante apresentar a qualificação
de que parte da expansão, em 1950, "provavelmente, se deveu ao fato de o PCB
não participar da disputa, e outra parte aos reflexos da candidatura vitoriosa
de Getulio Vargas à Presidência" (:91). A qualificação, note-se, introduz juízo
de probabilidades, e não mais de precisão. Sendo assim, caberia a sugestão da
hipótese de que a expansão resultou de uma difusão organizacional do PTB,
igualmente mencionada por Soares, nunca investigada sistematicamente, lembrando
que o PSD e a UDN nasceram praticamente organizados, tendo seus quadros
composto o governo e a oposição no período varguista anterior. Ainda no
conjunto dos "prováveis", é possível que a urbanização também tenha contribuído
para o crescimento petebista, como é reiterado na literatura. Juntas, as duas
hipóteses aqui acrescentadas ajudariam, sem dúvida, a esclarecer o que teria
levado o PTB a novo salto nas eleições de 1962, depois da crise da renúncia de
Jânio e posse de Jango. O tema da renúncia de Jânio e posse de Jango, outra
possibilidade, poderia ter sido convocado por Nicolau, como hipótese, assim
como, anteriormente (para a eleição de 1950), convocara a eleição de Vargas.
Preferiu, contudo, deixar sem explicação, pelo menos hipotética, como fizera
antes, o importante salto numérico da bancada do PTB, em 1962, que, afinal,
corrobora a tese de Soares sobre o crescimento do PTB ao longo do período.
Fundamental para a presente discussão é que, não obstante as retificações da
informação primária, continuamos dependentes de explicações "prováveis" sobre a
evolução dos votos em partidos progressistas.
Quanto aos conservadores PSD e UDN, Nicolau contrasta a primeira eleição (1945)
com a última (1962) e corrobora uma substancial queda na votação do PSD. Nesta
comparação entre extremos, a tese de Soares sobre o relativo decréscimo
histórico do PSD fica igualmente atestada. Lembre-se, entretanto, que a eleição
de 1945, a primeira depois da remoção da ditadura, não foi de modo algum
típica, com 52,8% das cadeiras da Câmara de Deputados sendo controladas pelo
PSD e 7,7% pelo PTB. Razoável, portanto, que os resultados das eleições de 1950
fossem mais realistas, sendo a partir deles que a tese de Soares se mostra
excessiva em relação aos dados. Para o ponto nevrálgico da dúvida de fundo,
contudo, o aspecto crucial é que tanto os resultados de 1945, quanto os de
1950, para PSD e PTB, são os mesmos na tabela do TSE e na tabela retificada.
Em conclusão, a hipótese de que o PTB se expandiu ao longo do período e o PSD
sofreu queda abrupta da primeira para segunda eleição, mantendo-se mais ou
menos estável até nova queda importante em 1962, não exigiu as retificações
para ser formulada, nem foi por elas modificada. A tabela do TSE (Tabela_1)
revela, inclusive, que o PSD aumentou sua bancada, em números absolutos, em
todas as três eleições posteriores à de 1950, o mesmo ocorrendo com o PTB. A
diferença consistiu em que o PTB aumentou a sua bancada, proporcionalmente,
mais do que o PSD, a sua. Deve ser acentuado, em especial, no contexto de uma
queda relativa, o fato de que, entre 1958 e 1962, o tamanho da Câmara aumentou
de 326 para 409 deputados, 83 cadeiras a mais (26%), crescimento aproveitado
pelo PTB, PDC, UDN, e também pelo PSD, em termos apenas absolutos no caso
deste, insuficiente para mantê-lo em sua posição relativa. A hipótese contrária
à tese de um declínio do PSD, com apoio na tabela do TSE, é, pois, antiga,
aceita pela literatura, e continua válida, independente de qual tabela é
analisada. As razões que explicariam o declínio relativo do pessedismo e o
crescimento do PTB, contudo, continuam por serem descobertas.
A nacionalização de um partido, outro difícil tópico abordado por Nicolau, é
importante não só pelo cálculo da amplitude de seu poder, mas sobretudo porque
constitui indispensável ajuda no exercício do poder conquistado. Partidos
estaduais como os da Primeira República, ou, no melhor dos casos, regionais,
como o foram alguns durante o experimento 1945-64, não contam com informações
rápidas de retorno sobre as conseqüências das políticas de governo em
logradouros distantes. A perspectiva dos partidos nacionais é mais abrangente
do que a estadual ou regional, e os abastece de dados atualizados sobre o que
vai pelo país. A relevância do tópico é indiscutível.
Nicolau refere-se a dois autores favoráveis à tese de que os partidos
brasileiros estavam se nacionalizando, no período considerado, e a outro,
convencido de que somente três partidos, os maiores, se espalhavam
significativamente pelo país. O método empregado por este último autor foi
simples: contou o número de estados cujas contribuições somadas, em volume
decrescente de votos, alcançavam 50% ou mais da votação total do partido
examinado. Com isto, ficou claro que, afora os três maiores, alguns dos outros
caminhavam para a estadualização, e ainda outros necessitavam de um número
maior de estados para alcançar um total de votos cada vez menor.
Ao contrário de tratar o tema por inspeção direta dos dados, Nicolau preferiu
adjudicar a questão por via metodológica, não obstante a verificação de que os
dados retificados não alteraram os resultados obtidos com a contagem das
porcentagens dispostas na tabela do TSE. A precisão buscada, no caso, não
dependia das retificações nos dados, mas da aplicação de instrumento de medida
mais formalizado.
Em termos simples, o índice adotado por Nicolau autoriza a inferência de que um
partido será dito tanto mais nacional quanto mais a composição proporcional de
sua votação total for congruente com a participação proporcional de cada estado
no eleitorado total. Se o eleitorado de um estado xcorresponder a 5% do
eleitorado total do país, então, 5% do eleitorado total do partido deverá ter
sido obtido naquele estado. E assim com todo os partidos, em todos os estados.
Medidas com essa inspiração possuem apelo intuitivo, e acredito que todos os
estudiosos do problema já se sentiram tentados a adotar alguma variante delas.
Eu as abandonei quando deparei com situações esdrúxulas, derivadas de sua
aplicação. Por exemplo: suponha um país com dois grandes distritos eleitorais,
cada um deles contendo 50% do eleitorado total do país, disputados por dois
partidos. Para ser nacional, conforme a medida adotada por Nicolau, os partidos
devem ter um portfólio de votos congruente com a distribuição proporcional do
eleitorado nacional; no exemplo, deveria ser congruente com a distribuição do
eleitorado nacional entre seus dois distritos. Quantos partidos nacionais
imagina o leitor essa sociedade poderia ter? É possível que, no repente,
suspeite que apenas dois. Na verdade, contudo, ou terá um partido nacional ou
nenhum. Na hipótese de divisão igualitária dos distritos entre os dois
partidos, cada um ficaria com 50% do eleitorado, classificando-se, ambos, como
seminacionais. Se um deles obtiver 50% de sua votação total em um distrito e
75% dos votos do outro distrito, o sistema partidário contará com um partido
detendo 87,5% dos votos totais contra 12,5% do outro, mas não haverá partido
nacional. Somente se um partido conseguir os 50% de um distrito e mais os 50%
do outro, ou seja, 100% de cada um dos dois distritos, é que será considerado
nacional. Medida sem valor, claro, porque não haveria outro partido no sistema.
A rigor, não haveria sistema.
Estes exemplos remetem a situações extremas, uma comunidade política somente
com dois distritos eleitorais, cada um com 50% dos eleitores, mas que não são
impossíveis porque não são autocontraditórios (definição lógica de
impossibilidade), e são válidos em um argumento analítico. Providenciar
soluções aceitáveis para experiências-limite é uma das propriedades essenciais
de medidas como a da nacionalização de partidos.
Supondo um país com um total de 800 votos e um estado B, com 200 eleitores,
correspondendo a 25% do eleitorado dos mesmos 800 votos, do mesmo país, um
partido deve contar com 25% do total de seus votos para ambicionar à condição
de partido nacional. Nessa variante há um partido cujo total de votos equivale
a 7,5% do eleitorado do país, isto é, 60 votos, sendo que apenas 15 destes
(25%) devem vir do estado B, o que deixaria esse estado em condições de ajudar
na nacionalização de mais 12 partidos nas mesmas condições, ou a 7 partidos
cuja votação total alcançasse 100 votos, 25 dos quais (25% de 100) tendo vindo
dos 185 votos restantes, descontados os 15 sufrágios conquistados pelo primeiro
partido. Em resumo, um mesmo colégio eleitoral pode colaborar para a
nacionalização de 13 partidos (o primeiro, que abiscoitou 15 votos, e mais 12),
ou 7 partidos um pouco maiores, acrescidos de um dos de legendas menores, ou 8
partidos, digamos, grandes. Em conclusão, para um dado eleitorado, o número de
partidos nacionais dependerá, de fato, da participação percentual de cada
distrito eleitoral (dos estados, nos exemplos) no eleitorado total, e da
variação no volume total de votos dos partidos, mas não estritamente da
distribuição desses votos pelas unidades.
Tentei, posteriormente, outra possibilidade tomando a votação total do
partido (100%), dividindo o percentual por 27 (o número de estados mais o
Distrito Federal), obtendo o valor de 3,7% de votos por unidade, independente
do tamanho do eleitorado local. Idealmente, cada partido deveria obter o
equivalente a 3,7% dos votos de cada estado para que a votação total do partido
refletisse eqüitativamente a contribuição de cada um deles. Mas, com esta
hipotética medida, verifiquei que os partidos ficariam impedidos de tomar a
decisão de, eventualmente, desejar uma distribuição nacional desequilibrada com
o objetivo de conquistar maior poder em regiões ou unidades escolhidas. Por
exemplo, o eleitorado do Estado de São Paulo, em 2002, alcançava 25.655.553
eleitores. A cota de 3,7% que caberia hipoteticamente a cada partido equivalia
a 949.255 votos do colégio eleitoral paulista. Ora, o quociente legal para a
eleição de um deputado federal naquele estado, em 2002, foi estipulado pela
Justiça Eleitoral em 272.931 votos3. Na cota de 3,7% (949.255 votos) caberiam,
por conseguinte, não mais do que 3 deputados. Com uma bancada de 70
representantes na Câmara, sobrariam 67 cadeiras para os demais partidos. Com a
métrica normativa de 3,7% de votos para todos os partidos que desejassem se
apresentar como nacionais, o eleitorado paulista seria capaz de atender até o
22º dos partidos aspirantes, contribuindo para a nacionalização de 23 partidos.
Atente o leitor para o aspecto de que o número não se refere a partidos de
menor expressão, mas a 23 partidos nacionais, desde que bem-sucedidos nas
demais unidades da Federação, nelas obtendo os mesmos 3,7% dos votos locais.
Por outro lado, se somente existissem, digamos, 15 partidos em competição,
sobrariam votos para a nacionalização de mais 8 partidos. Uma espécie de maior
número de votos para menor número de partidos nacionais.
Obviamente, nenhum partido, tendo oportunidade, trocará uma cadeira de deputado
a mais em São Paulo ou em vários outros estados, por outra em estados pequenos.
A meta de se nacionalizar, dos grandes partidos4, não pode comprometer o
cálculo pragmático de somar o maior número de votos nas unidades de maior peso
na Federação. É do interesse racional dos partidos de maior porte, em
conseqüência, construir uma representação nacionalmente desequilibrada que lhes
proporcione, ao mesmo tempo, o máximo de peso parlamentar específico.
Depois de tentativas malsucedidas, escolhi a alternativa de estimar o grau de
nacionalização dos partidos, pós-eleição, acumulando os votos por eles obtidos,
a partir do maior colégio, e verificando qual o número necessário de unidades
da Federação para que a soma dos votos nelas conquistados atingisse, pelo
menos, 50% do total dos votos partidários: quanto maior o número de unidades da
Federação necessárias para alcançar 50%, maior o grau de nacionalização do
partido. Com esta simples contagem, cheguei a conclusões sobre a nacionalização
dos três maiores partidos, em curso no período 1945-62, e sobre a
estadualização progressiva de vários outros. Nem os dados retificados, sem
função nesta matéria, aliás, nem a medida sugerida por Nicolau, contrariaram,
aprimoraram ou deram mais precisão a esses resultados. Concluindo: todos os 16
partidos do período 1945-62 poderiam tornar-se nacionais, conforme a métrica
que usei, sem dar origem a qualquer situação partidária teratológica.
Até a publicação de The Political Consequences of Electoral Laws, de Douglas
Rae5, o espetáculo de um parlamento multipartidário justificava a imagem de um
instituição caótica. Tal como outros fenômenos nucleares da análise política
(competição, renovação parlamentar, governabilidade etc.), a azáfama dos
congressos multipartidários era indistintamente designada por dispersão,
fragmentação e sinônimos, sem que se pudesse avaliar se tal dispersão crescia
ou diminuía, no tempo, nem comparar dispersões, por assim dizer, de diferentes
parlamentos. Não obstante a ausência de medida confiável, a literatura era
pródiga em hipóteses a respeito6.
Atuais críticos do sistema partidário brasileiro sustentam tratar-se de um
sistema em que os partidos são destituídos de coerência e disciplina internas,
ficando seus representantes no parlamento liberados para votar como lhes
aprouver. Desvencilhados do vetor causal derivado da fidelidade partidária,
segue a crítica, o comportamento dos parlamentares torna-se presa de outros
vetores de causalidade a corrupção, o carreirismo, o clientelismo. Reduziu-se
a ênfase na variável "dispersão", também atribuída ao multipartidarismo, e só
longinquamente se aponta a possibilidade de uma crise de governabilidade, à
conta da "anomia parlamentar". O argumento crítico, hoje, arma-se na seguinte
seqüência: multipartidarismo inconseqüente, "anomia parlamentar" produzida pela
ausência de fidelidade partidária, substituição dos programas dos partidos por
fisiologismo, corrupção e carreirismo como variáveis causais do comportamento
parlamentar.
Há um quarto de século, em meio à terceira ou quarta onda autoritária na Ásia,
África e América Latina, o diagnóstico preferido pelos conservadores internos e
analistas internacionais atribuía à irresponsabilidade do multipartidarismo os
males desses continentes, incluindo sempre o sistema de representação
proporcional como variável antecedente. Esquematicamente, a hipotética
seqüência conectava uma elevada dispersão partidário-parlamentar, resultado do
sistema proporcional, a permanente instabilidade. Interessa, aqui, registrar
que os insatisfeitos com o diagnóstico, como o presente autor, estavam
desafiados a demonstrar que a instabilidade, por ventura precedendo à
instalação de ditaduras, não resultara de elevada dispersão anômica do
eleitorado, nem do parlamento, mas de outras linhas de causalidade.
Para mim, interessado em compreender teoricamente o golpe militar de 647, era
aceitável a tese de que o multipartidarismo se seguia naturalmente ao sistema
de representação proporcional, mas do multipartidarismo não se desentranhava
diretamente uma crônica instabilidade política. Vetores diretamente mais
relevantes, e alguns outros intervenientes, deviam estar em operação8.
Inexiste na literatura de política comparada dos anos 60 e meados dos 70,
estudos que se tenham valido de um conceito e medida efetivamente acurados para
comprovar o putativo estado pré-caótico em que se encontravam as populações
africanas e asiáticas, propiciando as condições suficientes para intervenções
militares. Medida e conceito de dispersão partidário-parlamentar estão ausentes
dos trabalhos de David Apter sobre a África, de Frederik Frey sobre a Turquia,
de Herbert Feith sobre a Indonésia, entre outros, até porque quase todos os
sistemas se encaminharam para soluções autoritárias a partir de governos também
autoritários. Mas não havia como medir, para além da etnografia dos laços
tribais de parentesco, o conceito nuclear de "faccionalismo", reiteradamente
apontado como estopim das guerras internas.
A América Latina, em contraposição, reivindicava um lastro histórico de
períodos de governos representativos, com parlamentos multipartidários e
eleições, controversas, dependendo da região, mas atendendo formalmente às
imposições legais. O continente latino-americano serviu como arena para
experimentos ideais-weberianos, repletos, portanto, de contrafactuais, mas
contribuindo para a acumulação de dados relevantes sobre o passado-passado,
sobre o passado recente e sobre o presente latino-americano. Os golpes
brasileiro, argentino, chileno e uruguaio teriam entre si o explosivo
denominador comum de ocorrerem em sistemas presidencialistas Argentina,
Brasil e Chile (com variante mitigada no Uruguai) e proporcionalistas, quanto
ao sistema eleitoral. Armou-se a nefasta equação, segundo os críticos, de um
sistema eleitoral proporcional produzindo dispersão partidário-parlamentar,
desta saindo a inevitável instabilidade política, leia-se, ditaduras. Todos os
volumes publicados na década de 60 e até, aproximadamente, meados da década de
70 acompanhavam esse diagnóstico. Nessa literatura, o denominador comum era
outro: em nenhum estudo se oferecia uma forma de calcular a desordem
parlamentar, nem se definia de maneira precisa, para benefício de investigações
empíricas mais sofisticadas, o que efetivamente estaria sendo designado por
dispersão partidária. No exterior, e em análises produzidas na segunda metade
dos 70, é que a nefasta equação assume papel preponderante. Não obstante, em
nenhuma publicação individual ou nas coleções editadas naquela época (entre
1975 e 1985), à exceção do livro Parties and Party Systems, de Giovanni
Sartori, de 1976, o tema nuclear da fragmentação dos parlamentos é tratado como
variável nobre.
Na década de 90, as expressões "fragmentação", "polarização", "crise de
paralisia" foram estilisticamente incorporadas pelos especialistas em análises
de sistemas eleitorais e partidários, particularmente na literatura de análise
comparada. Raros, entretanto, são os autores que exploraram o tema da
"fracionalização" em sua formulação rigorosa, restringindo as reflexões ao
âmbito da prosa educada. No volume editado por Juan Linz e Arturo Valenzuela,
The Failure of Presidential Democracy, de 1994, o longo ensaio inicial de Linz
faz generoso uso da expressão "fracionalização" sem se referir, quer à medida,
quer ao conceito a ela associado. E embora o volume 2, dedicado à América
Latina, traga estudos sobre a Colômbia, o Uruguai e o Peru, com inúmeras
remissões ao problema da fracionalização, somente Arturo Valenzuela transcreve
uma tabela com valores de F, no caso chileno, sem explicar seu significado
substantivo.
Em 1967, em The Political Consequences of Electoral Laws, Douglas Rae
apresentou uma medida de fracionalização (denominada índice F) de fácil
operacionalização e aplicação. De importância crucial, o conceito substantivo a
que a medida se referia, fracionalização, era clara e exemplarmente definido.
Fracionalização, na interpretação de Rae, significa sem ambigüidade a
probabilidade de que dois deputados (ou eleitores) selecionados ao acaso em um
parlamento (ou em um eleitorado), pertençam a partidos diferentes. Quanto mais
alta a probabilidade, maior, evidentemente, a fracionalização. Se não houver
nenhuma dispersão no parlamento (ou no eleitorado), quaisquer dois deputados
(eleitores) pertencerão ao mesmo partido. O conceito tornou-se substantivamente
lógico e de interpretação precisa.
Os partidos que contribuem para o grau de fracionalização de um sistema
partidário são traduzidos aritmeticamente da seguinte forma: o número de
cadeiras de cada um é transformado na porcentagem do total de cadeiras ocupadas
pelo partido na Câmara; e assim com todos. O somatório dessas porcentagens
partidárias é igual a 100, e o segundo passo consiste em elevar ao quadrado
cada uma das porcentagens. O somatório dos quadrados das porcentagens será
inferior a 100%, e o novo total diminuído de 1. Assim, 1 menos o somatório dos
quadrados das porcentagens de cadeiras de cada partido é igual a um número
decimal por exemplo, 0,780. Agora, o essencial significado substantivo da
medida: nesse parlamento existem 78% de chances de que dois parlamentares
escolhidos ao acaso pertençam a partidos diferentes. Quanto maior esse número,
maior a dificuldade de selecionar ao acaso dois parlamentares que sejam do
mesmo partido. De onde se segue que, quanto maior a probabilidade de que os
dois selecionados pertençam a agremiações diferentes, mais fracionalizada é a
Câmara.
Para encerrar o tópico do cálculo da medida, assinale-se que o valor do índice
F é sensível ao número de partidos e de lugares em disputa, o que quer dizer
que parlamentos diferentes em número de partidos e de cadeiras podem apresentar
índices F, indicando um deles como o mais fracionalizado quando, na realidade,
não é este o caso. Em trabalho posterior, Douglas Rae e Michael Taylor
apresentaram uma fórmula que permite descontar essas diferenças, tornando
comparáveis parlamentos de tamanhos diferentes9. Aborda-se o problema da
dispersão parlamentar em três passos: calcula-se F, depois se calcula o F
máximo possível naquele parlamento (em função do número de partidos e de
cadeiras) e, por fim, divide-se F por Fmax, o que nos revela quão próximo da
fracionalização máxima F, de fato, está, e a este valor se chama de
fragmentação (Frag); quando Ffor igual a Fmax, terá atingido o maior valor
possível e o parlamento respectivo estará convivendo com a maior fragmentação
que seu tamanho, em cadeiras e número de partidos, é capaz de experimentar.
A tese adversária do sistema proporcional afirma justamente isso: que o sistema
proporcional conduz o parlamento a tais níveis de fragmentação e gera crises
políticas de grande envergadura, cujo desenlace costuma ser um golpe de Estado.
Usando o mesmo instrumental, índices de fracionalização e fragmentação, tenho
seguidamente argumentado contra esta não comprovada e catastrófica inferência.
A seguir encontra-se uma tabela (Tabela_3) em que aparecem todos os Fs, Fmaxs e
Frags, de 1946 a 1982, ou seja, cobrindo o período que vai do início das
eleições pós-Vargas à última eleição sob regime militar pós-64. A tabela e
comentários encontram-se no capítulo 3 da Primeira Parte de O Cálculo do
Conflito, "Regimes proporcionais, multipartidarismo e estabilidade política".
Posteriormente, os leitores encontrarão a razão que me obriga a transcrever o
longo comentário à tabela, o que faço agora:
"[...]verifica-se que a dispersão parlamentar na Câmara dos Deputados
em 1966, 1974 e 1978, só nominalmente (Fp) foi inferior ao período
pré-64. Em verdade, a fragmentação (Fp/Fmx) nas três eleições
consideradas foi superior à do pré-64, tendo alcançado em 1978 um
valor próximo do unitário. Embora lateral aqui, convém deixar
registrado que não é necessariamente verdade que regimes
autoritários, ou sistemas bipartidários (pois tal foi o sistema entre
1966-1978), garantam uma dispersão parlamentar efetiva (fragmentação)
inferior à de regimes democráticos e multipartidários. Estes
resultados são sistematicamente omitidos pelos críticos do sistema de
representação proporcional, deixando subentendido que os sistemas de
representação majoritária exibem, sempre e necessariamente, valores
de fracionalização e fragmentação inferiores aos dos sistemas
proporcionais. Este subentendido não corresponde aos fatos.
Aliás, é relevante esclarecer não só que a quantidade de partidos
eleitorais não implica elevada fracionalização parlamentar, como
também que o número significativo de partidos parlamentares não está
associado à fragmentação. O coeficiente de correlação simples entre
número efetivo de partidos e fragmentação, em dez eleições para o
parlamento brasileiro (1946-1982), é de -0,171, indicando associação
negativa, contrário ao suposto pela hipótese do majoritarismo e,
ainda mais, sem significado estatístico.
A alienação eleitoral também não está associada à fragmentação. O
coeficiente de correlação simples para as mesmas dez eleições
corresponde a 0,319, isto é, sem significação estatística. A
necessidade de proceder a testes simples e de esclarecer as relações
entre essas variáveis decorre da importância que a literatura credita
à fragmentação como indutora de instabilidade.
No Brasil, o que parece explicar a fragmentação é o número de
partidos eleitorais. Os coeficientes de correlação para três
eleições, 1954, 1958 e 1962, em 21 estados, foram, respectivamente,
0,658, 0,605 e 0,620, todos significantes a 0,05. Juntando este
resultado ao anterior inexistência de associação entre número
efetivo de partidos parlamentares e fragmentação , segue-se que a
cautela recomendaria não inferir instabilidade a partir de
fragmentação, ao contrário do que faz a literatura especializada e o
jornalismo político.
Quando se aponta para a suposta vulnerabilidade dos sistemas de
representação proporcional, o que os advogados dos sistemas
majoritários querem sugerir é bem mais do que uma relação entre
representação proporcional e multipartidarismo o que intuitivamente
sabemos ser correto , mas a existência de uma conexão entre
multipartidarismo e fragmentação o que, como se viu, não é sempre o
caso e, sobretudo, um nexo entre fragmentaçãoe instabilidade
política. Evidências internacionais, todavia, revelam não existir
qualquer vínculo sistemático e consistente entre fragmentação e
instabilidade. De 19 países de democracia estável, 13 apresentam um
índice médio de fragmentação acimade 0,80, que é o patamar em que se
encontra o Brasil. [...] A menos que se negue a esse conjunto de
países o usufruto da estabilidade democrática, deve-se concluir que
as relações entre fragmentação e instabilidade não são tão simples
quanto às vezes se pretende. Se o fosse, deveríamos ser capazes de
explicar a crise de 1964 em função do elevado coeficiente de
fragmentação parlamentar resultante das eleições ocorridas dois anos
antes, em 1962. Leitura atenta da Tabela 3-1 permite desde logo a
formulação de duas perguntas: por que dois anos depois das eleições
de 1962 e, não, quatro anos após as eleições de 1958? Ou por que não
em 1958, quatro anos depois de transcorridas as eleições de 1954?"
(Santos, 2003:100-103).
A longa citação foi motivada pela nota 16 do artigo de Nicolau, que diz o
seguinte: "Na primeira parte do livro, apesar dos diversos cálculos, Santos
(2003) não faz comentários sobre as tendências da fragmentação no plano
nacional". Adiante me ocuparei do resto da nota de Nicolau. Mas, desde logo,
não sei como interpretar o que Nicolau indica com "plano nacional". Todo o
capítulo 3 mencionado, no qual se encontra o trecho acima transcrito, e mais os
comentários não só aos dados nacionais, mas em comparações internações (ver
Tabela 3.2, p. 102 do Cálculo, "Fragmentação parlamentar média em 19
democracias representativas e o Brasil"), não se destinam, prioritariamente, a
outro objetivo senão o de refutar a tese de que os sistemas proporcionais
nacionais, conduzindo as nações ao multiparidarismo, terminam por levá-las a
crises nacionais10. Não só trato o problema tomando a Câmara dos Deputados como
unidade de análise (na Tabela 3.1, citada), como, depois, tendo como unidade de
análise as bancadas estaduais no plano nacional, isto é, na Câmara dos
Deputados, calculo os índices de fracionalização, de fracionalização máxima e
de fragmentação de todos os estados na Câmara, em Brasília, para as eleições de
1954, 1958 e 1962 Tabela 5.2, "Fracionalização e fragmentação parlamentares
das bancadas estaduais na Câmara dos Deputados eleições de 1954, 1958, 1962"
, tabela que toma as páginas 148 e 149. O contexto é o do debate sobre se os
pequenos partidos estavam ou não se nacionalizando, e, dando início à
discussão, comento, no primeiro parágrafo que segue à tabela:
"O que se observa na coluna da fragmentação(a última), que indica a
fracionalização tomada como proporção da fracionalização máxima
possível, e que depende do número de partidos por isso escolhi esse
indicador é que, em apenas quatro casos (ES, PA, PI e SP), se
revela crescente fragmentação do sistema. Em praticamente todos os
demais, à exceção de Acre, Paraíba e Bahia (decréscimo consistente) o
valor da fragmentação oscila erraticamente." (idem:149-150)
A continuação da nota 16 de Nicolau, depois de sustentar que não trato do
problema nacionalmente, complementa: "Para os estados, o autor afirma que os
índices de fragmentação (F como proporção do F máximo) oscilam" (:104). Tenho
dúvidas se Nicolau se refere aos estados em sua representação nacional ou se em
suas Assembléias Legislativas. Tendo em vista a declaração anterior, a de que
não trato o problema em "plano nacional", se eu não transcrevesse o texto das
páginas 149-150 o leitor suporia que o meu comentário citado por Nicolau se
refere às assembléias estaduais. Por outro lado, ao se lembrar de minha tese de
fragmentação crescente, ficaria equívoca minha assertiva de que em alguns
estados ela oscilava. Para um leitor desatento, a conclusão provável é a de que
eu estaria ora afirmando que a fragmentação cresce, ora que oscila. Minhas duas
inferências referem-se, todavia, a unidades de análise diferentes: uma tomando
a Câmara como sujeito, outra, as representações estaduais individualizadas
nessa Câmara.
Esperando haver sanado o pequeno embaraço do texto do artigo "Velhas Teses,
Novos Dados", cabe examinar o tratamento dado por Nicolau ao importante tema da
fracionalização, do qual se espera análises proporcionadas pelas retificações
promovidas na tabela do TSE, e contrárias às teses em circulação na disciplina.
A abordagem de Nicolau ao tópico inicia-se pela observação de que, não estando
disponíveis, à época, as retificações efetuadas por ele na estatística, Olavo
Brasil de Lima Junior, Antônio Lavareda e eu chegamos a resultados distorcidos
(:96). Não obstante, à página 98 comenta o seguinte: "É interessante salientar
que, apesar de mostrar dados semelhantes que evidenciavam estabilidade na
dispersão de poder parlamentar, Santos (2003:77, 99) chegou a conclusões
diferentes". De acordo com o princípio do terço excluído, é evidente que não
posso haver analisado a dispersão eleitoral apoiado em dados distorcidos, mas
que seriam, ao mesmo tempo, semelhantes aos por ele obtidos. Entendo, porém,
que a frase indica a surpresa de Nicolau com o que lhe pareceu um erro crasso.
Pois bem, este é um excelente contexto para avaliar a contribuição das
retificações de Nicolau à análise da fracionalização do sistema partidário
brasileiro entre 1945 e 1962.
A resposta concisa à observação de Nicolau é a seguinte: a razão pela qual
chegamos a conclusões diferentes se deve a utilizarmos bases de dados
diferentes (pouca relevância), buscando respostas a questões diferentes (média
relevância), com métodos parcialmente diferentes (muita relevância).
Esclarecendo logo as duas primeiras diferenças: eu utilizei as estatísticas do
TSE, enquanto Nicolau, as retificadas, as quais, segundo informa, discrepam
largamente das do TSE (mas isto, como mostrei, não é exato); meu objetivo,
reiterado nas várias páginas de meu livro a que Nicolau remete, era o de
criticar a tese de que o sistema de eleições proporcionais leva à instabilidade
política e a golpes de Estado, pela via do multipartidarismo, ao passo que o
objetivo de Nicolau é triplo: rejeitar hipóteses da literatura sobre a evolução
da força dos partidos, ao longo das eleições no período 1945-62; rejeitar
outras sobre possíveis avanços na nacionalização dos partidos; e, finalmente,
reconsiderar profundamente teses correntes sobre a fracionalização do sistema
partidário brasileiro. Esclarecidas as diferenças entre as respectivas bases de
dados e objetivos das análises, resta a diferença de metodologias.
Informo ao leitor, preliminarmente, que, não obstante discutir o problema da
dispersão, ou fragmentação partidária (parlamentar e eleitoral), Nicolau não
transcreve uma só tabela de fracionalização ou fragmentação. Todas as suas
tabelas, com respeito à fragmentação, trazem, na verdade, número efetivo de
partidos, mas nenhum índice F, Fmax ou Frag. Por isso, transcrevi minha Tabela
3.1 e comentários (aqui exposta como Tabela_3). Duas observações: a primeira é
que Nicolau não está usando o conceito de "fragmentação" tal como existe na
literatura pertinente, mas na forma estilisticamente livre em que o
transformaram alguns analistas, sinônimo de "efetivo número de partidos" ou de
presidentes11. A segunda observação refere-se ao equívoco a que o leitor pode
ser conduzido ao concluir que o efetivo número de partidos é uma medida de
fragmentação. Não é. É uma medida extremamente obscura, sem nenhuma
interpretação substantiva autorizada.
Nicolau registra que ora utilizo a expressão "efetivo número de partidos", ora
a substituo por "número efetivo de partidos". Está correto, utilizo ambas como
variação estilística, posto que significam a mesma coisa: o adjetivo "efetivo"
qualifica o mesmo substantivo "número", independente da ordem em que se coloca
o adjetivo em relação ao substantivo. Nos artigos e livros que adotam a medida,
a expressão invariavelmente usada é "efetivo número de partidos", como se
qualquer outra designação fosse incorreta. As duas que uso são semanticamente
equivalentes. Grave falha metodológica é aquela cometida precisamente pelos que
atribuem monopólio de significado a "efetivo número de partidos", a saber, a
insinuação de que "número" se refere a partidos efetivos, sugerindo que aquele
seria o número de partidos que efetivamente contam na respectiva Câmara ou
eleitorado. A distinção é perfeitamente conhecida por todos os profissionais,
inclusive pelos inventores da medida, mas quase todos contribuem para a
confusão, inclusive os inventores da medida, interpretando os resultados como
se designassem partidos efetivos.
Em "The 'Effective' Number of Parties", Markku Laakso e Rein Taagepera (1973:3-
27) aspeam a expressão "efetivo" e expressamente advertem que não se trata de
"partido efetivo". Considero obscuro, rejeitada essa interpretação, qual seja,
então, o significado de "número efetivo" ou "efetivo número", tanto faz. A
confusão é promovida logo a seguir, no exemplo em que a medida é aplicada ao
parlamento britânico, em duas oportunidades, registrando a existência de 2,4 e
2,0 "efetivos números de partidos", mas tratados como se fossem 2,4 e 2,0
"partidos efetivos". A expressão mesma, literalmente, "effective parties", é
empregada no exemplo finlandês imediatamente a seguir (idem:4).
Há problemas computacionais sérios (não o cálculo, mas a interpretação dos
passos) na medida, mas não é o mais importante aqui12. Relevante são as razões
que abalam o "efetivo número de partidos" como indicador de fracionalização ou
de fragmentação.
a) o efetivo número de partidos é derivado de F, e sua fórmula, 1/1-F,
substitui uma probabilidade de direta e não ambígua interpretação, que é F, por
fracionários do tipo 2,4, 1,8, ou, mesmo, 5,0 efetivos números de partidos de
impossível interpretação substantiva. Não há como identificar os "partidos
efetivos", a partir do "número efetivo de partidos", nem se é capaz de deduzir
proposições probabilísticas, como em F, sobre os partidos aos quais os membros
do parlamento estariam filiados13.
Os inventores da medida apresentam uma definição clara de seu significado, que
reza assim: "O efetivo número de partidos é o hipotético número de partidos de
igual tamanho que teria o mesmo efeito total na fracionalização do sistema, tal
como o têm os partidos reais
de tamanhos desiguais
"14 (ibidem, ênfases no original). Não conheço argumento lógico, somente a
coincidência estatística apresentada pelos usuários de 1/1-F, que dê a razão da
nova medida. Por isso, formulei um argumento mais rigoroso do que a prosa dos
inventores e seguidores na expectativa de que o leitor compreenda o que
significa o efetivo número de partidos, excluída a interpretação de que não se
refere a número de partidos efetivos. Os passos do argumento são os seguintes:
1) Para qualquer valor de F, derivado de uma distribuição de n cadeiras por N
partidos, há pelo menos uma outra distribuição de n por N, além da que gera o F
máximo(quando F é igual a F máximo), que satisfaz a equação F = 1 (S%c2).
2) Dados os valores reais de F, n e N, existe um número abstrato N', diferente
de N, caracterizado por uma distribuição igualitária de n entre eles, dando
origem a um F' igual ao F gerado pela distribuição original, desigual, de n por
N. Esse abstrato número de partidos N'é induzido dos valores de F, n e N reais,
e não pode ser deduzido de nenhuma distribuição hipotética da qual não se
conheça, por implicação, o valor real do índice F da distribuição.
O índice NEP(número efetivo de partidos) constrói-se como um contrafactual
aritmético, dispondo, em suas premissas, condições contrárias aos fatos: como
todo contrafactual, se existisse um número hipotético de partidos N', e se cada
um deles controlasse o mesmo número de cadeiras n, então, o índice de
fracionalização desse hipotético parlamento (F') viria a ser igual ao F real do
parlamento real.
A tradução mais generosa da definição de NEPe suas derivações é, pois, a
seguinte: dado um F real, para uma desigual distribuição de n entre N, quantos
partidos, entre os contidos em N, seriam necessários para que, na hipótese de
que n fosse igualitariamente distribuído entre eles, o segundo F, derivado da
nova distribuição (igualitária), fosse semelhante ao F real? O quebra-cabeça
aritmético é interessante, pois uma distribuição igualitária de n lugares por N
partidos produz um F variável, à medida que N varia. Distribuir
igualitariamente o total de cadeiras por 5, 7 ou 8 partidos produzirá F
diferentes para cada valor de N, se mantido n constante. Como exercício
aritmético, e tão-só aritmético, sem modelo que estabeleça a relação entre suas
entidades abstratas e as entidades reais, o número efetivo de partidos pode ser
descoberto conforme os passos a seguir:
Dados N(número de partidos) e n (número de cadeiras), qual será o Fderivado de
uma distribuição igualitária de n por N? A resposta existe, compromete a
originalidade do NEP, e é a seguinte: a distribuição máxima de n cadeiras por N
define de maneira exata, e única, a distribuição igualitária desse sistema (que
é o cálculo formulado por Rae e Taylor). O cálculo de fracionalização máxima,
como se viu, independe do valor real de F, sendo suficiente a informação sobre
n e N. Embora duas distribuições diferentes possam dar origem ao mesmo valor de
F, a relação entre fracionalização máxima e F é biunívoca. Não existe nenhuma
outra distribuição de n por N cujo valor F também possa ser idêntico a Fmax.
Para qualquer valor de ne N, pelo menos duas distribuições diferentes de n por
N podem gerar o mesmo valor de F. O valor de Fmax, ao contrário, só é
compatível com uma distribuição: aquela que dá origem ao próprio Fmax15. Entre
os partidos incluídos em um N real, e dados n e F, tambémreais, não é difícil
calcular um NEP, não havendo, entretanto, nenhuma possibilidade de identificar,
entre os partidos reais, quais aqueles que, estipulados pelo NEP,produziriam o
mesmo F real, desde que n fosse igualitariamente distribuído entre eles. Quais
os 4 partidos, por exemplo, que seriam escolhidos entre os 16 do período 1945-
62? PSD, PTB, UDN e..., PR? PL? PSP? PDC? E quando o efetivo número de
partidos for igual a 4,3, por quais 4,3 partidos efetivos, isto é, reais, o
número de cadeiras será eqüitativamente distribuído? O mundo da fracionalização
real é distinto do mundo da fracionalização contrafactual, e não é deste que se
deduz aquele, mas ao contrário, é do mundo da fracionalização real (uma efetiva
distribuição existente) que se induz um contrafactual aritmético. Por isso, o
NEP não mede fracionalização, nem mesmo variação no número de partidos. É
medido (limitado) por eles e pelo número de cadeiras a distribuir.
Trata-se, portanto, 1/1-F, de uma transformação aritmética contrafactual que, a
partir de uma distribuição real desigual, que se expressa nos quadrados dos
diversos valores percentuais das cadeiras de cada partido, chega ao número de
partidos que, com uma distribuição eqüitativa das cadeiras, geraria o mesmo F
real. F mede a dispersão real, o que é absolutamente relevante para o cálculo
dos custos de transação na formação de coalizões, tendo em vista o significado
probabilístico substantivo de F perdido na transformação contrafactual
aritmética , enquanto o NEP não mede o número de partidos reais que produzem
efeito no sistema, não apenas em índices, nem o número abstrato em que se
expressa pode ser distribuído entre os partidos reais. Quais são os quatro
partidos que produziriam o F real, dispensando-se os demais, em um conjunto de
12, 13 partidos. A propósito, o NEP que acompanhou todo o período 1945-62
variou de 4 a 4,3: quais 4 entre os 16 do sistema partidário brasileiro? De um
contrafactual aritmético nada pode ser derivado substantivamente sobre o mundo
extra-aritmético. De F real decorre a probabilidade de que dois parlamentares
(ou eleitores) selecionados ao acaso pertençam a partidos diferentes.
b) Ainda enumerando as limitações do NEP, diferentes distribuições de cadeiras
no parlamento podem dar lugar ao mesmo índice F, levando, claro, ao mesmo
efetivo número de partidos. Se o número de cadeiras e de partidos variarem,
contudo, o índice F pode não captar a variação subseqüente na divisão das
cadeiras pelos partidos, indicando dois perfis diferentes de n (número de
cadeiras) por N(número de partidos) e, portanto, com fragmentações realmente
diferentes, como se possuíssem a mesma dispersão original. Obviamente, o
"efetivo número de partidos" acompanha o índice nesta reconhecida
vulnerabilidade.
c) Ignora-se a relação entre o índice Fe o efetivo número de partidos, embora
este seja uma derivação daquele. Por exemplo: a quanto equivale uma variação em
F na tradução de 1/1-F (não esquecendo, esta é a fórmula do efetivo número de
partidos)? quantos valores diferentes de F podem conduzir ao mesmo número
efetivo de partidos?
Não obstante essas objeções, também apresento, em meu livro, resultados
relativos ao efetivo número de partidos, mas, desde a primeira tabela em que
aparecem, encontra-se a seguinte nota de rodapé: "utilizo aqui esta medida [a
do número de partidos] atendendo ao convencional da literatura contemporânea,
apesar de algumas limitações importantes que a caracterizam" (Santos, 2003:77,
nota 14). Nicolau, ao contrário, sustenta, em sua nota 17, que "O número
efetivo de partidos, proposto por Markku Laakso e Rein Taagepera, mensura o
peso relativo de cada partido nas eleições ou no Legislativo" (:104). Como
mostrei, a afirmação é, tecnicamente, improcedente.
Suprirei a lacuna de uma efetiva, necessária e omitida análise da
fracionalização da tabela retificada por Nicolau depois de dar um exemplo
numérico do equívoco a que os estudiosos se expõem quando tomam o
ininterpretável efetivo número de partidos por confiável indicador de
fracionalização. Considere a hipotética tabela abaixo na qual se encontram: os
anos eleitorais, o atribuído valor que Fteria alcançado naqueles anos e,
finalmente, o valor do NEP derivado da série hipotética:
Observe-se que, de 1945 a 1966, Fpassou de 0,750 a 0,760, variação que pode
indicar muita ou pouca coisa quanto ao potencial de coalizões parlamentares,
dependendo dos movimentos partidários que explicam o aumento da dispersão. Mas
aponta, com certeza, que algo mudou e merece investigação minuciosa. Duas
distribuições diferentes podem originar o mesmo valor de F,como se sabe. É
impossível, contudo, que uma só distribuição gere mais de um valor do índice.
Por isso, variações no valor de F asseguram que houve alteração nas divisões
originais de n por N.
Na última coluna (NEP) encontram-se os valores de 1/1-F, calculados sobre a
coluna dos F, para o mesmo período (1945-66), correspondendo a um intervalo de
21 anos e 6 medidas F, tendo estas crescido a quantidades uniformes. Verifica-
se que o cálculo produziu o mesmo não interpretável número 4, de 1945 a 1958,
alterado para 4,1, estável, nas duas medidas seguintes com diferentes Fs. E
assim continua a série de tal modo que, tanto quanto se pode perceber,
permanece desconhecida a relação sistemática entre valores variáveis de F e
esses obscuros e extraordinariamente estáveis números efetivos de partidos.
Pela tabela hipotética, mas perfeitamente verossímil (veja, adiante, os
cálculos para a tabela retificada de Nicolau), em 41 anos e 11 medidas de
fracionalização, enquanto os valores de F passaram de 0,750 para 0,770, de 1945
a 1986, o número efetivo de partidos variou, entre os extremos, de 4 para 4,3
partidos. Em minha opinião, a validade de qualquer inferência substantiva, não-
lógica, a partir desses números é bastante precária.
Compreendo, portanto, porque Nicolau evitou avaliar o impacto de suas
retificações sobre a real fracionalização do sistema partidário brasileiro, no
período 1945-62, limitando-se a expor valores de um indicador claramente
inferior ao F de Rae. É de todo interesse que esses cálculos de F sejam feitos,
entretanto, de modo estritamente subordinado ao ângulo estipulado por Nicolau,
ou seja, o de decidir se as modificações por ele introduzidas nas estatísticas
eleitorais do período afetaram, como ele afirma que teriam afetado, as análises
até então produzidas, em particular aquelas relativas à fracionalização do
sistema.
Desde 1962 até a eleição de 2002, o Brasil experimentou outras dez eleições
gerais e não há motivo para que não se transcreva a série histórica completa do
índice F, desde 1950, excluindo-se 1945 por seu caráter atípico. O gráfico
abaixo reproduz a evolução da fracionalização do sistema partidário-parlamentar
no Brasil, de 1950 a 2002:
Com o transcorrer do tempo, ficaram ressaltados dois movimentos: o da queda
abrupta em F, logo depois do golpe militar, da repressão partidária e das
cassações; e o da retomada do crescimento do valor do índice, ainda na ditadura
(a partir de 1970), até a eleição de 1990, permanecendo relativamente estável
nas três eleições subseqüentes.
Observo, de imediato, que a tese da instabilidade política associada ao
multipartidarismo, que resultaria do sistema de eleição proporcional, perde
qualquer vestígio de verossimilhança. Os valores do índice têm variado por
razões ainda não estudadas completamente16, mas suas conseqüências estão
bastante circunscritas à dinâmica das coalizões parlamentares, sem que, até
agora, tenha havido ameaça à estabilidade política do país por conta do
putativamente esgarçado sistema partidário. Vale enfatizar ainda que os valores
de F, pós-86, são superiores aos do pré-64. O temporário esquecimento da tese
que associava sistema proporcional à instabilidade política encontra, no
gráfico acima, parte de sua explicação, e rejeição, sem prejuízo de que alguns
brasilianistas continuem produzindo trabalhos especulativos de escasso valor
comprobatório com base nessa hipótese.
Trazendo a matéria para os números do período 1945-62, apresentei em O Cálculo
(Tabela 3.1) os dados já reproduzidos aqui e, em outra passagem do volume (:
245), listei os índices F com dois dígitos apenas. Esta segunda versão é apenas
indicativa porque a terceira casa decimal costuma introduzir diferenças em
índices até então homogêneos. Com aproximação nas decimais, a tabela da p. 45
de O Cálculo, apresentaria a seguinte sucessão: 0,71, 0,83, 0,84, 0,84 e 0,84.
Com três casas decimais a série é a que está disposta na Tabela 3.1. Entre 1945
e 1962, F variou de 0,708 a 0,843; entre 1950 e 1962 dispensando 1945 por
atipicidade o índice, ainda assim, variou entre 0,832 e 0,843. Não há dúvida
de que entre os dois pontos extremos F variou para mais. Desagregadamente,
verifica-se que o índice aumentou de 1945 a 1954, permanecendo, depois, mais ou
menos estável.
Computado como proporção do máximo possível, ou seja, como fragmentação, o
índice é crescente, à exceção da própria eleição de 1962, e próximo do máximo
desde 1954, aí, então, inclusive a de 1962. Se tomamos como base a variação
entre os extremos, cabe sublinhar o visível aumento no valor da Frag. Se
tomamos como base os índices desagregados por eleição, cabe apontar aumento
seguido de estabilidade a níveis próximos do máximo. Em qualquer caso, os
resultados permitem que se afaste a hipótese de que instabilidade se segue à
fragmentação. Fosse a hipótese correta, não se entenderia por que a
instabilidade não ocorreu em 1958, e sim depois de 1962, nem por que, em
comparações internacionais, ponderável número de países de indiscutível
estabilidade apresentaram índices médios de Fbem superiores ao do Brasil
(Santos, 2003:102, 247).
A seguir, o leitor encontrará três tabelas, cada uma delas apresentando os
resultados dos cálculos que fiz dos índices de fracionalização, fracionalização
máxima e fragmentação da tabela retificada por Nicolau, ao lado dos índices
calculados sobre as estatísticas do TSE.
Os índices de fracionalização (F) da tabela de Nicolau, que teria permanecido
surpreendentemente estável, mesmo com a exclusão de 1945, crescem
consistentemente de 1950 a 1962, contra a opinião de Nicolau, passando de 0,757
a 0,779, embora o efetivo número de partidos permaneça entre 4 e 4,5. Os da
tabela do TSE, à exceção de 1958, são iguais aos da tabela retificada, se
tomados somente com dois dígitos, e bastante próximos, em 1958 e 1962. O índice
de fragmentação cresce até 1954, recua ligeiramente em 1958, e volta a crescer
em 1962. Os números da coluna do TSE crescem em todos os anos, caindo
ligeiramente em 1962, exatamente no ano em que o índice de fragmentação da
tabela retificada volta a crescer, embora ligeiramente. Nenhum impacto
relevante, portanto, na investigação dos graus de fracionalização do sistema
partidário brasileiro, à conta das informações retificadas. A fracionalização
máxima dependendo do número de partidos e do número de cadeiras, mas não da
distribuição delas, só difere na tabela retificada da tabela do TSE nos dois
anos em que, em razão da distribuição de cadeiras antes em "coligações", altera
o número de partidos na tabela de Nicolau. Até porque, número de cadeiras e
número de partidos, variáveis nobres no cálculo da fragmentação, nada têm a ver
com as retificações operadas por Nicolau. Em minha opinião, ficou demonstrado,
pelo correto cálculo de fracionalização, que as retificações nos dados
primários não trouxeram subversões de monta a alterar a base de dados nem os
cálculos que autorizam a análise da fracionalização do sistema partidário-
parlamentar brasileiro apoiada nas estatísticas do TSE.
Finalmente, Nicolau não fornece a necessária distinção entre fracionalização e
estabilidade/instabilidade. É de fácil compreensão que, tanto aumento quanto
diminuição do índice F, ou de Frag, são perfeitamente compatíveis com a
estabilidade relativa de alguns partidos. E vice-versa: instabilidade nas
votações de alguns partidos pode, não obstante, dar origem a um Fde valor
constante. Ou seja, em sentido exato, uma coisa é a estabilidade na votação de
um partido, outra, o grau de dispersão do sistema de que faz parte. Na falta da
distinção, pela submissão ao obscuro efetivo número de partidos, pode-se acabar
provocando uma sucessão de raciocínios desconexos.
Desafortunadamente, não fui capaz de tratar com brevidade os tópicos do artigo
de Nicolau. Não são triviais, nem é recomendável que se os apresente como tais.
Procurei transformar este artigo em exercício de esclarecimento conceitual e
metodológico de expressões recorrentes que, com freqüência, são empregadas de
forma estritamente literária. Espero ter ficado claro, entretanto, que nenhum
resultado de pesquisa é descartável. Um projeto fracassado deixa como saldo
positivo certo acréscimo no estoque das proposições equivocadas, o que nos
permite rejeitá-las, e esclarecimentos onde havia dúvidas. No caso, os
estudiosos podem utilizar com segurança as estatísticas eleitorais do TSE, ou
as retificadas por Nicolau, posto que nenhuma das teses relevantes em
circulação na academia foi por estas abalada.
NOTAS
1. Axioma refere-se a uma proposição evidente por si mesma; um postulado é um
protocolo mediante o qual se aceita como premissa legítima uma proposição não
demonstrada.
2. Aumentando o número de eleitos via coligações seria natural que se
descobrisse número bem mais elevado de discrepâncias. De fato, os dois casos
especialmente anotados ocorreram justamente no ano em que o número de eleitos,
via coligação, foi o maior de toda a série. A porcentagem de eleitos via
coligação, discriminada por partidos e eleições, encontra-se na Tabela 5.8, de
O Cálculo do Conflito (Santos, 2003:159).
3. Os quocientes legais e operacionais (eleitorado menos abstenção, votos
brancos e nulos) para todos os estados, em todas as eleições, até 1998,
encontram-se no capítulo 2 de Santos (2002:55-64).
4. A estratégia dos médios e pequenos partidos é distinta. Eles se concentram
nos estados onde têm mais chances, antes que dispersar esforços e recursos
materiais.
5. A 2ª edição, de 1971, traz novo e importante capítulo, o de número 10,
indispensável à compreensão das teses de Rae.
6. Por necessidade de investigação sobre competitividade eleitoral e sobre
renovação parlamentar fui levado a construir dois índices: ver "Da Oligarquia à
Poliarquia Competição Eleitoral e Processos Não-Encarceráveis" (Santos,
1997a), sobre competitividade; e "Da Poliarquia à Oligarquia? Eleições e
Demanda por Renovação Parlamentar" (Santos, 1997b), sobre renovação
parlamentar. Em outro trabalho, preferi apresentar um modo mais simples de
indicar a competitividade, mediante o número médio de candidatos por vaga. Cf.
Regresso Máscaras Institucionais do Liberalismo Oligárquico(Santos, 1994),
reproduzido em Décadas de Espanto e Uma Apologia Democrática(Santos, 1998).
Recentemente, em livro com o sugestivo título de The Deadlock of Democracy in
Brazil, Barry Ames (2001) usa a medida mais rigorosa. Na p. 116, nota 17, dá a
fórmula de cálculo do índice, mas não registra a fonte.
7. Fiz a análise da conjuntura do período em Quem Dará o Golpe no Brasil
(Santos, 1961) e em Reforma contra Reforma(Santos, 1963).
8. Simplificadamente, atribuo à paralisia decisória do Executivo e da Câmara
dos Deputados a responsabilidade imediata pela crise de Estado que antecedeu o
golpe de 64. Essa paralisia, por sua vez, resultou de um processo de
fragmentação das coalizões na Câmara (três coalizões de veto e nenhuma de
governo), resultado e vetor coadjuvante na radicalização do período 1961-64. O
argumento completo encontra-se em O Cálculo do Conflito (Santos, 2003).
9. A fracionalização máxima é calculada pela fórmula: N(n-1)/n(N-1), onde N
representa o número de cadeiras e ndesigna o número de partidos parlamentares
(cf. Rae e Taylor, 1970:26). O valor alcançado indica qual seria o valor de F
se as cadeiras estivessem igualmente divididas por todos os partidos.
10. Calcular índices médios de fracionalização em assembléias de um mesmo país
serve como ponto de referência, mas sua utilização deve ser cautelosa, tendo em
vista a propriedade do índice de que duas distribuições diferentes podem
originar o mesmo valor de F. Comparar índices médios de vários países exige
redobrados cuidados e as conclusões devem ser tentativas. Mas calcular índices
médios de fracionalização ou de efetivo número de candidatos presidenciais (!),
para um conjunto de países, cada um deles com seu índice médio, é uma
incompreensível extensão metodológica (cf. Carey, 1997:75, Tabela_3).
11. Veja a nota 10 relativa a trabalho de John Carey.
12. Trato extensamente das vulnerabilidades da medida proposta por Laakso e
Taagepera em Santos (1999), que fiz circular entre alguns colegas.
13. Farrell (1997:146-147, Tabela 7.1) lista valores do efetivo número de
partidos para eleições em 37 países, variando de 1,92, nos Estados Unidos, em
uma média de 23 eleições, a 5,1, média de 11 eleições na Suíça.
14. A condição hipotética de igual tamanho é repetida no capítulo 8 de Seats
& Votes(Taagepera e Shugart, 1989), e logo esquecida, passando os autores a
sugerir que o NEP hipotético e F real são a mesma coisa, com a vantagem,
segundo os autores, de que o NEP seria mais fácil de calcular. A afirmação é
claramente descabida, pois que, em ambas, o passo principal é o mesmo somatório
dos quadrados das porcentagens dos partidos. Arend Lijphart (1994:69) repete o
mesmo juízo depois de haver afirmado, à p. 68, o seguinte: "The effective
number of parties carries the same information as the Rae index of party
fractionalization". Esta surpreendente declaração é incorreta. Caso ambos
trouxessem a mesma informação, do número efetivo de partidos poderiam ser
derivadas probabilidades sobre coincidências ou contrariedades de partidos a
que os parlamentares pertencem e isto é absolutamente impossível de ser
calculado e, por outro lado, também não seria permitida a menção a número de
partidos, do qual o Fde Rae é completamente independente, exceto quando F =
Fmax.
15. E pela essencial razão de que Fmax mede o valor de F quando n e N são
distribuídos igualitariamente. A proporção F/Fmax indica justamente qual a
distância a separar o valor de F da distribuição igualitária entre cadeiras e
partidos.
16. Arturo Valenzuela em seu artigo na coletânea de Juan Linz e ele próprio, já
citada, "Party Politics and the Crisis of Presidentialism in Chile", único que
apresenta índices de fracionalização conforme definição e método ortodoxos,
procede a alguns testes e verifica a não associação entre índices de
fracionalização e as variáveis ecológicas de praxe (cf. Linz e Valenzuela,
1994:104, Tabela 6.4).
17. As diferenças entre os índices de fracionalização máxima das tabelas do TSE
e a retificada por Nicolau deveram-se, principalmente, à diminuição do número
de partidos computados na tabela do TSE, associados a coalizões, e que
desaparecem na tabela de Nicolau.