Geisel, Figueiredo e a liberalização do regime autoritário (1974-1985)
Em um depoimento concedido a historiadores sobre sua trajetória no regime
autoritário de 64, o ex-presidente Geisel admitiu a tortura como um meio
necessário para a obtenção de confissões. O general reconheceu que "há
circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter
determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior" (D'Araújo e Castro,
1997:225). A revelação de Geisel1, o quarto general a exercer o poder após a
deposição do presidente João Goulart, coloca em questão a imagem do dirigente
militar comprometido com a legalidade e com a condenação dos excessos de
violência praticada pelo aparato repressivo, sob controle da linha dura. Desse
modo, abrem-se novas vias de pesquisas sobre um dos períodos mais sombrios da
história republicana brasileira no século XX. Ressurgem as polêmicas não apenas
sobre as razões da liberalização, mas também com relação aos papéis
desempenhados pelos grupos militares na organização do regime que se tornou
conhecido por sua longa duração. De fato, em comparação com seus similares na
América Latina, o regime autoritário brasileiro distinguiu-se pela prolongada
existência e preservação da capacidade de intervenção militar, com a presença
no poder de um grupo dirigente voltado para a questão da institucionalização
política, seja ao assumir a condução do Estado em 1964, seja ao comandar a
lenta transição até a constituição de um governo civil em 1985. Este trabalho
discute a evolução do regime de uma perspectiva histórica, enfatizando os
conflitos e os dilemas enfrentados nesse período pelos militares enquanto
governo. Pressupõe que os dirigentes buscaram ampliar a legitimidade do regime
quando se decidiram pela liberalização, que foi implementada no rastro de um
momento favorável da economia e encontrou condições para se viabilizar e se
desdobrar em uma transição negociada em virtude das tradicionais instituições
do sistema político não terem sido eliminadas, mas manipuladas sob controle
autoritário. Isso possibilitou, a partir de 1974, a revitalização dos
mecanismos representativos clássicos, eleitorais e partidários, quando foram
ampliados os canais de comunicação com a sociedade.
Uma das características marcantes do autoritarismo que emergiu no Brasil em
1964 consistiu no poder de decisão que os militares, como integrantes do
aparelho estatal, adquiriram e expandiram em relação aos atores do sistema
político e da sociedade civil. O fato de se tornarem os atores principais do
processo político não significa que as Forças Armadas, enquanto instituição,
estivessem diretamente envolvidas em todas as decisões com relação à economia
ou outras questões da administração do governo. Embora se saiba que por volta
de 1979 27,8% dos cargos civis da administração federal, direta e indireta,
fossem preenchidos pelo pessoal militar (Góes, 1988:237), a posição de destaque
conquistada pela instituição militar no âmbito do Estado traduziu-se
principalmente no poder de veto sobre as grandes decisões, sendo a mais
importante a sucessão presidencial (Cardoso, 1982:48) Nesse sentido, houve uma
mudança no papel da organização militar, que se transformou no eixo em torno do
qual giravam as opções estratégicas do Estado. As diretrizes gerais para a
formulação de políticas substantivas passaram a depender da busca pelo consenso
na opinião militar, sobretudo do Exército (Coelho, 1976:165), a corporação
dominante no esquema de poder.
A intervenção direta na condução da política provocou conflitos entre as Forças
Armadas e as decisões dos militares como governo. Desde 1964 foram visíveis as
divergências entre correntes militares sobre a organização do tipo de regime. A
sucessão presidencial provocava momentos de aguda tensão no meio militar,
apesar do rodízio no poder ter sido adotado como procedimento do regime. A
disputa final pelo controle do governo estimulava nas Forças Armadas a formação
de facções. A partidarização do aparelho militar pode ter atingido seu ponto de
maior intensidade após a doença do presidente Costa e Silva em agosto de 1969,
quando em seguida assumiu o poder uma junta integrada pelos ministros de
Exército, da Marinha e da Aeronáutica. O sucessor de Costa e Silva, o general
Médici, foi escolhido pela oficialidade em um escrutínio reservado aos oficiais
das três armas (D'Araújo e Castro, 1997:211, 213), em flagrante desrespeito às
regras sucessórias estabelecidas pela Constituição de 1967. Todavia, a escolha
de Médici para assumir a presidência representou um amplo acordo do qual teria
feito parte até mesmo a corrente castelista, que perdera posições de poder
desde a eleição de Costa e Silva2. Desse modo, o desfecho sucessório em favor
do apartidarismo do general Médici significaria mais do que o fim das
pretensões do seu competidor, o candidato general Albuquerque Lima, tido na
época como integrante da linha dura e nacionalista de direita. Acabou
reforçando o clima de coesão que se criara entre os militares do governo e as
Forças Armadas desde a decretação do Ato Institucional nº 5 ' AI-5 (Cruz e
Martins, 1983).
No âmbito das transformações do regime autoritário, que ora tendia à cisão, ora
à unidade das Forças Armadas, elaborava-se o discurso da liderança, articulado
aos princípios da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento e à
concepção de que as corporações militares e os valores de disciplina e
hierarquia constituíam um modelo superior para organizar a sociedade e integrar
a nação. Formulada pela Escola Superior de Guerra, criada em 1949, a doutrina
atribuía uma conotação negativa aos conflitos sociais, interpretando-os como
ameaças à segurança interna e ao desenvolvimento nacional3. Os militares que
lideraram o golpe de Estado em 1964 associavam a indisciplina nas Forças Amadas
à indisciplina na nação. Influenciados pela idéia de que não se deve fazer
política no Exército, mas a política do Exército, eles viam nas Forças Armadas
o intérprete maior dos interesses da nação e consideravam a intervenção uma
missão constitucional, necessária para preservar o Estado. De conteúdo
conservador, a Doutrina de Segurança Nacional não apenas justificava a tutela
da sociedade pelo argumento de que sua natureza conflituosa confrontava o
projeto de elevar o Brasil ao patamar de potência capitalista ocidental, mas
criava no contexto de Guerra Fria e de uma suposta guerra revolucionária
comunista a base comum para a definição dos critérios sobre os quais foram
tomadas as decisões dos governos militares. Cabe lembrar que a paulatina
ampliação das características autoritárias do Estado ' observadas, sobretudo,
depois de 1968 com a decretação do AI-5, o fechamento do Congresso e a expansão
do aparato repressivo ' foi antecedida por instabilidades políticas, conjugadas
a agudas divergências e crises nas Forças Armadas. Havia um ambiente de
contestação ao regime que se expressou tanto pela organização extra-
institucional da Frente Ampla e derrota do governo no Congresso no caso Márcio
Moreira Alves, quanto pelas greves operárias em Osasco e Contagem e pelas
mobilizações lideradas por grupos de esquerda que organizaram passeatas
estudantis e protestos de segmentos da classe média.
Nesse sentido, ao lado da redefinição das regras do regime e dos procedimentos
de participação é preciso considerar a atuação do aparelho repressivo do
Estado, pois a escolha da força como meio privilegiado para obter obediência às
normas políticas exigiu que os órgãos de segurança ocupassem um lugar de
destaque. Se estabelecermos uma hierarquia entre os componentes institucionais
da estrutura repressiva de acordo com a responsabilidade de conter a
contestação à ordem autoritária, verificaremos que os serviços secretos se
encontravam em primeiro plano em comparação à justiça militar, à Lei de
Segurança Nacional e à censura. Detentores dos segredos vitais do Estado, os
órgãos de inteligência constituíram no Brasil pós-64 um dos núcleos centrais do
poder. A noção de um poder organizado segundo os princípios da não-
transparência, da não-visibilidade, ganha sua exata dimensão quando resgatamos
os ensinamentos de Hannah Arendt sobre a polícia secreta de Hitler, o mais
importante órgão do esquema de dominação nazista. Segundo a filósofa, "a
única regra segura num Estado totalitário é que, quanto mais visível é uma
agência governamental, menos poder detém; e, quanto menos se sabe da existência
de uma instituição, mais poderosa ela é" (Arendt, 1979:153). Guardadas as
devidas diferenças em relação aos serviços secretos do Estado totalitário na
Alemanha ' pela preparação ideológica de seus quadros, pelo domínio ilimitado
sobre todos os ramos do aparelho repressivo, inclusive o Exército, e pela
brutalidade dos crimes cometidos contra a humanidade ', esse verdadeiro poder
no Brasil pós-64 simbolizou, na sua forma, a essência do regime anti-
republicano e autoritário, ficando sua montagem e comando sob responsabilidade
dos militares. Os diversos órgãos da polícia política constituíam o que se
chamava de comunidade de inteligência, onde se destacava o Serviço Nacional de
Informações ' SNI, comandado por oficiais generais do Exército. O SNI não era
um órgão executante, porém o mais importante órgão de informação pelas
prerrogativas de que dispunha para vigiar e acompanhar áreas da sociedade
civil, política e do próprio aparelho de Estado, incluindo os serviços de
inteligência das Forças Armadas (Stepan, 1986) espalhados por diversas regiões
do país.
Conectada aos três ramos das Forças Armadas, criou-se também uma rede de
serviços secretos com unidades especializadas: Centro de Informações do
Exército ' CIE, Destacamento de Operações de Informações ' DOI, Centro de
Operações de Defesa Interna ' CODI pertencentes ao Exército, Centro de
Informações da Marinha ' CENIMAR à Marinha e Centro de Informações de Segurança
da Aeronáutica ' CISA à Aeronáutica. A forma como os organismos de repressão
executavam suas ações provocou impacto em setores da sociedade e na estrutura
da autoridade militar. O desgaste das corporações com denúncias de torturas e
desaparecimentos de presos políticos foi o capítulo mais visível dessa história
de violência do Estado. Uma questão de menor transparência diz respeito à
erosão da hierarquia militar provocada pela maior autonomia conquistada pelos
órgãos de repressão de acordo com a importância assumida no combate à
contestação aos governos. A rivalidade e a competição pelas informações, bem
como a necessidade de segredo nas operações e de rapidez nas investigações,
levavam os organismos a rejeitar a cadeia oficial de comando a qual deveriam
submeter-se e prestar contas. Documentos do SNI produzidos no governo Geisel
evidenciam que faltava "coordenação entre os Centros de Informações
Militares ou até mesmo entre o CIE e os DOI/Ex" (Castro, 2002:52). Relatos
de Geisel dão conta de que o CIE do Exército sonegava informações ao SNI,
dificultando o acompanhamento das operações que deveriam ser comunicadas ao
presidente. Criado por Costa e Silva em 1967 à semelhança do que existia na
Marinha com o CENIMAR e na Aeronáutica com o CISA, o CIE tornou-se o órgão mais
poderoso do aparato repressivo. Sua criação, no entanto, foi um erro, disse
Geisel, pois levou a uma superposição, abrindo-se "um processo de
descentralização que ia permitir que as ações particulares ou isoladas
desenvolvidas por esses órgãos fugissem ao controle da presidência"
(D'Araújo e Castro, 1997:228). Por causa da autonomia adquirida tanto no Estado
como na própria corporação, o general Golbery chegou a declarar que a
comunidade de segurança se tornara perigosa no final de 1973. Em uma série de
entrevistas concedidas a Alfred Stepan sobre os motivos da liberalização no
Brasil, o idealizador e criador do SNI disse que a autonomia e a radicalização
das forças de segurança, originadas da campanha antiguerrilha de 1969-72,
apresentavam uma dupla ameaça aos militares. Os perigos da dominância da
comunidade de segurança encontravam-se na possibilidade de
"fragmentação" dos militares e de "distanciamento cada vez maior
entre as forças fundamentalmente moderadas da sociedade brasileira e os
militares brasileiros" (Stepan, 1986:48).
A violência praticada pelos órgãos repressivos do Estado sempre foi cultivada
pelos dirigentes militares, situando-se no centro da estratégia para consolidar
o autoritarismo cujo propósito era desmobilizar e despolitizar a sociedade.
Todavia, a violência atingiu formas extremas de ilegalidade, chegando a
adquirir traços que a aproximasse do terrorismo totalitário como ocorreu entre
1969 e 1973. O Estado expandiu o perfil policial no controle da sociedade e os
indivíduos perderam por completo as garantias legais, ficando desprotegidos
ante as ameaças dos aparatos de segurança que não conheciam limites para as
suas operações. A falta de controle dessa estrutura paralela de poder,
evidenciada pelas declarações de Geisel e Golbery, ficou mais visível após
1969, quando foram ampliadas as atividades de planejamento e execução das
tarefas repressivas para conter os opositores, sobretudo a esquerda armada.
O recrudescimento das formas autoritárias de poder com a decretação do AI-5 e a
expansão das ações repressivas comandadas pelas forças de segurança criaram um
clima de que seria longa, até eterna para alguns, a permanência das Forças
Armadas na arena política. Isso explica por que o tempo dos militares no
controle do poder se tornou durante o governo Médici um dos assuntos discutidos
na Escola Superior de Guerra ' ESG, ganhando publicidade na imprensa.
Dirigentes comprometidos com uma posição mais moderada mantiveram o discurso
construído logo após o golpe de 64, segundo o qual a intervenção militar
deveria ser limitada no tempo. Em palestra proferida em 1971 na ESG, o ministro
do Planejamento do governo Castelo, Roberto Campos, articulou a demanda de
diminuição do componente de coação do Estado com a proposição de que as Forças
Armadas não deveriam promover uma escalada da intervenção estabilizadora para
um tipo de intervenção autocrática, pois isso implicaria uma reconsideração do
problema da institucionalização política. Nessa linha de argumentação, o chefe
do Estado Maior do Exército introduziu no cenário público no final de 1971 o
discurso que preservava o compromisso com o fim do ciclo militar e o
restabelecimento do caráter profissional dos membros das Forças Armadas. O
general Souto Malan afirmou que "estava [...] à vista o momento em que a
existência de quadros suficientemente amplos [...] permitiria aos militares
concentrar-se no exercício de sua profissão." Segundo o general,
"podemos permitir-nos prospecções sobre o processo que se chamaria de
desengajamento controlado das Forças Armadas"4. Esta declaração veiculada
pelo Jornal do Brasil teve grande repercussão na opinião pública, uma vez que
foi emitida na presença do ministro do Exército, general Orlando Geisel, por
ocasião da entrega da espada aos novos generais, alimentando expectativas de
que seriam restabelecidos alguns dos princípios liberais que antes haviam
orientado os processos de governo5.
O autoritarismo militar contemporâneo no Brasil não eliminou as tradicionais
formas de expressão política. Adotou-se uma ordem política híbrida na qual
formas autoritárias de poder conviviam com a limitada autonomia das
instituições liberais representativas. Todavia, foram introduzidas mudanças no
quadro partidário e o sistema eleitoral foi manipulado de modo que a competição
política fosse reduzida e os resultados eleitorais garantissem vantagens ao
partido governamental6. O Parlamento foi mantido aberto ' exceto por três
períodos (outubro de 1966, dezembro de 1968 a outubro de 1969 e abril de 1977)
', mas a instituição viu sua participação diminuída gradativamente na
formulação e legislação de políticas. Um exame detalhado da Constituição de
1967, que incorporou os controles autoritários mais importantes dos atos
institucionais anteriores, mostraria que esse contrato idealizado pela corrente
castelista acentuou a tendência de organizar um Estado fundamentalmente baseado
no poder Executivo7. A relação entre as instituições centrais (incluindo o
Judiciário) indicava a configuração de um quadro que poderíamos denominar de
ditadura do Executivo, pela inexistência de controles mútuos entre os poderes.
Com a crise de 1968, contudo, se seguiria uma nova mudança de qualidade no
exercício desses poderes, uma vez que após a instituição do AI-5 ocorreria uma
ruptura entre processos de governo e processos parlamentares. O governo passou
a dispensar a colaboração do Congresso na formulação, discussão e decisão sobre
políticas públicas (Santos, 1978:81).
Com o fechamento do Congresso após a crise de 1968 e a suspensão do projeto
mais moderado manifestado na Constituição de 1967, a estratégia de alcançar a
legitimação principalmente pelo desempenho econômico tomou força. Na verdade, a
prioridade da ordem econômica em relação à ordem política já se achava presente
na fase de implantação do regime. Castelo Branco iniciou seu governo dedicado a
promover medidas institucionais que visassem reorganizar a administração
econômica. A partir dos bons resultados alcançados ' restauração da
credibilidade externa, controle do déficit público e da inflação e retomada do
crescimento ' esperava-se encontrar as condições adequadas para a reorganização
da competição política8. Nesse tempo inicial, o cumprimento do calendário
eleitoral foi alvo de acirrados debates internos. Existia um clima favorável à
defesa da idéia de que as eleições de 1965 poderiam tornar-se um plebiscito
sobre o novo regime. Havia dúvidas sobre o apoio que o governo poderia alcançar
na opinião pública em virtude dos custos políticos provocados pelas cassações
de parlamentares, pelos expurgos no interior da burocracia civil e militar e
pela repressão sobre as organizações sindicais e estudantis. Cabe lembrar,
sobretudo, que o programa de estabilização econômica, comandado pelos ministros
Octavio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, era considerado "duro e
difícil", segundo palavras de Geisel, para quem as medidas de austeridade
teriam provocado "uma certa recessão", causando "dificuldades na
indústria e no comércio" (D'Araújo e Castro, 1997:173).
A estratégia dos governos militares foi, portanto, a de associar a meta de
crescimento econômico, com base no estilo tecnocrático de gestão, ao controle
burocrático autoritário da política. Com o esvaziamento do Legislativo como
lugar em que os partidos representavam múltiplos interesses, formulavam
políticas e compartilhavam o poder, a participação no interior da máquina
governamental foi reforçada (Lafer, 1975). O Conselho Monetário Nacional criado
em 1964 constitui um dos exemplos de como um órgão governamental ocupou lugar
privilegiado para onde convergiam as demandas de diversos segmentos do
empresariado, "transformando-se numa arena de negociação entre setor
público e privado, cabendo à tecnocracia o papel de agente mediador dos
interesses privados" (Diniz, 1994:209). Mais do que uma autoridade na
formulação da política monetária e creditícia, esse órgão passou a dirigir de
fato a política econômica do país, tornando-se o responsável pela administração
do "milagre econômico" ocorrido no governo Médici. Presidido pelo
ministro da Fazenda Delfim Netto, o Conselho Monetário Nacional variou a sua
composição, contando com ministros da área econômica, presidentes de
instituições financeiras e representantes da iniciativa privada como membros
nomeados (idem:208).
Enquanto foram concedidas oportunidades para setores da classe dominante
expressarem suas demandas, os representantes da classe trabalhadora foram
excluídos da participação ou da possibilidade de influência nos órgãos
decisórios do governo. Inicialmente vale lembrar o caso do Conselho Consultivo
de Planejamento, no governo Castelo Branco. O órgão de assessoria ao Ministério
Extraordinário para o Planejamento, no qual estava prevista a participação de
representantes de sindicatos de trabalhadores, foi esvaziado de sua função
(Cruz, 1978). Além de os representantes dos trabalhadores encontrarem
obstáculos formais de acesso aos centros decisórios, pois não estava prevista
sua participação nos outros colegiados de planejamento, como o Conselho
Monetário Nacional e o Conselho de Desenvolvimento Econômico (Diniz e Lima
Junior, 1986), os governos militares cercearam a liberdade e autonomia do
movimento sindical. Foram aplicadas de forma rigorosa antigas medidas legais
previstas na Consolidação das Leis do Trabalho ' CLT, a legislação trabalhista
herdada dos anos da ditadura varguista (Almeida, 1983). A repressão
burocrática-legal dos governos militares visou subordinar ao Ministério do
Trabalho as ações político-organizacionais dos trabalhadores. A intervenção nos
sindicatos, o afastamento de dirigentes eleitos, bem como a anulação de
eleições e o veto a candidaturas estavam entre as prerrogativas do Ministério,
que também reconhecia os sindicatos, possibilitando seu funcionamento oficial.
O caráter repressivo e de classe do Estado capitalista adquirido após 1964 fica
ainda mais nítido se considerarmos que o controle sobre a força de trabalho foi
exercido não somente por meio de uma lei de greve que na prática proibia o uso
desse instrumento de luta: as perseguições e prisões também fizeram parte do
cotidiano dos líderes operários e sindicais.
O mais alto grau de coerção política manifestou-se no decorrer do governo
Médici, quando a economia sob o comando do ministro da Fazenda Delfim Netto
apresentou um crescimento surpreendente, consolidando um tipo de
desenvolvimento que privilegiava a grande empresa nacional, estatal e
multinacional. As questões relativas ao crescente endividamento externo do país
e a deterioração na distribuição de rendas9 ficaram em segundo plano diante do
controle da inflação e do aumento das exportações, garantido pelos incentivos
governamentais e por um mercado mundial favorável. A expansão da economia
brasileira refletiu-se nos indicadores do Produto Interno Bruto ' PIB que subiu
em torno de 11% ao ano entre 1970 e 1973. Para estimular a indústria, Delfim
Netto expandiu o sistema de crédito ao consumidor e garantiu à classe média o
acesso aos bens de consumo duráveis ' de automóveis a aparelhos
eletrodomésticos. Este setor, prioritário das políticas econômicas, canalizou
uma parcela significativa dos altos investimentos estrangeiros, que, em termos
globais, passaram de cerca de US$ 11,4 milhões para mais de US$ 4,5 bilhões
entre 1968 e 1973 (Alves, 1989:148). Estudos mostram que em função do
desempenho da economia, na década de 70, o emprego urbano cresceu a uma taxa
mais elevada (6,42% ao ano) que a população urbana (4,83% anuais). Na criação
de empregos na década de 70, o setor secundário ' indústria de transformação,
construção civil e outras atividades industriais ' superou o setor terciário,
de serviços sociais e pessoais (Faria, 1983:151).
As taxas de rápido crescimento industrial facilitaram a construção da imagem de
um país dinâmico que havia modernizado sua estrutura capitalista e promovia uma
arrancada econômica. Os resultados favoráveis na economia criaram um clima de
euforia, sobretudo entre segmentos da classe média e do empresariado e
contribuíram para que os representantes do autoritarismo apresentassem
propostas diante das controvérsias sobre os benefícios do modelo político
instituído após o AI-5. Ao despedir-se da vida pública em dezembro de 1970, o
senador Mem de Sá (ARENA-RGS)*, por exemplo, reafirmou sua fé no regime e disse
que a "democracia plena, a que é estável e liberta de subversões, golpes e
eclipses, esta apenas nos chegará através do desenvolvimento econômico".
Identificado como um político solidário às teses do poder, o ministro da
Justiça de Castelo Branco na fase pós-AI-2 reiterava, assim, a necessidade de
manter a prioridade do econômico sobre o político e apontava o caminho do
fortalecimento do governo, de modo a assegurar a continuidade do
desenvolvimento10. A proposição do senador não teria causado tanta repercussão
caso o país não vivesse uma fase de crescimento econômico, ao lado da mais
total falta de perspectiva em direção às liberdades. No dia seguinte à sua
publicação pela imprensa, ela seria comentada pelo Jornal do Brasilem editorial
intitulado "Doutrina Perigosa", segundo o qual "a tese do
senador era no mínimo temerária e, em última análise, consistia em dizer que a
democracia seria um luxo proibido para as nações subdesenvolvidas"11. Esse
tipo de formulação adotada pelo representante da imprensa liberal carioca
chamava atenção para o fato de que as realizações no plano econômico não
deveriam obscurecer a rigidez do sistema político. Embora o governo Médici
encontrasse resultados favoráveis na economia, vivia-se o tempo de maior
restrição à participação e influência sobre os centros decisórios. Em torno
dessa questão também se manifestaria Golbery em documento datado de 1972,
argumentando que
"[...] a centralização do poder político nas mãos do Executivo,
as restrições ainda existentes para a atividade política e o
excessivo controle do Estado sobre a economia são todos riscos
calculados, aceitos conscientemente de forma a assegurar uma rápida
decolagem do país [...]. Além disso, a coerção excessiva gera muito
mais perigos e tensões [...]. Freqüentemente, como nesse caso, há um
certo grau de incompatibilidade entre os diversos objetivos em
conjunto. Essa incompatibilidade só pode ser contornada por uma
manobra estratégica a ser planejada e executada numa sucessão de
etapas" (Gaspari, 2003:198).
Nessa linha de raciocínio, apresentamos em trabalho anterior a idéia de que o
projeto da distensão política foi uma estratégia articulada e amadurecida no
decorrer do governo Médici, visando amenizar o grau de coerção, mas garantindo
a continuidade do regime (Carvalho, 1989). É preciso reconhecer que a vontade
de Médici foi determinante na escolha de Geisel para sucedê-lo na Presidência
da República (D'Araújo e Castro, 1997:258). A iniciativa de Médici teve origem
em janeiro de 1971, quando o presidente se reuniu com colaboradores próximos '
entre eles o general João Batista Figueiredo, chefe do Gabinete Militar ' e
juntos aprovaram a candidatura de Geisel, um nome nacional que supostamente
preservava a unidade militar. A partir dessa data até sua posse em janeiro de
1974, Geisel contou com um círculo íntimo de colaboradores que estabeleceu
contatos com a área militar, o governo e setores do sistema político e da
sociedade civil, formulando questões com foco nas mudanças que deveriam ser
realizadas na organização do Estado. Enquanto o general Golbery entrava em
contato com o empresariado, o general e o ministro de Exército Orlando Geisel e
João Batista Figueiredo movimentavam-se dentro da burocracia militar do
governo. Desse núcleo irradiador da proposta de distensão do regime também
fizeram parte, entre outros, o marechal Cordeiro de Farias, ministro do
Interior de Castelo, além de Heitor Ferreira de Aquino que era ligado por laços
de amizade a Roberto Campos e foi assistente de Golbery no SNI durante o
governo Castelo e assistente de Geisel na Petrobras (Gaspari, 2003).
Se no plano intragovernamental ocorreu uma articulação de apoio a Geisel, no
plano institucional militar a Escola Superior de Guerra promoveu debates sobre
o modelo político. Responsável pela preparação ideológica e técnica dos quadros
militares e civis que assumiram posições dirigentes no Estado após 1964, a ESG
tornou-se durante o governo Médici um centro de aferição e difusão de propostas
no campo político-institucional. O foco recaiu sobre a questão da sobreposição
da ordem jurídica institucional (AI-5) com relação à ordem constitucional,
modificada e outorgada pela Emenda de outubro de 1969, quando foi ampliada no
texto a noção de segurança nacional (Borges, 2003), refletindo a prioridade em
fortalecer o aparato repressivo voltado para a defesa da segurança interna.
Atores comprometidos com o regime ' parlamentares, autoridades do Executivo e
militares ' apresentaram as diferentes visões sobre a estratégia que pensavam
adotar para institucionalizá-lo, dividindo-se entre a permanência e a extinção
do AI-5. Embora restrito, o debate acabou ultrapassando os marcos da
instituição militar e, em alguns momentos, ganhou repercussão na imprensa. Foi
o caso, por exemplo, da palestra proferida na ESG pelo ministro da Justiça
Alfredo Buzaid que defendeu uma posição de continuidade. Ele via como
improvável a incorporação do AI-5 à Constituição e defendia a manutenção das
duas ordens, a constitucional e a institucional. Na sua avaliação, a nação
estava satisfeita com a conjuntura política e a revolução inaugurara uma
Constituição que definia o regime democrático. Além de pedir a permanência das
duas ordens jurídicas, Buzaid não fazia distinção entre a revolução como
ideário e como processo, procurando sensibilizar as áreas políticas para a
idéia de que uma "revolução que deseja alcançar seus supremos objetivos e
desenvolver em toda a plenitude sua filosofia não deve promover a fixação de
prazos e datas"12. No dia seguinte a esta declaração de Buzaid13, também
apresentada em uma palestra na ESG, o editorial do Jornal do Brasil, referindo-
se a ela, lembraria
"[...] que o movimento militar que pôs fim ao governo Goulart
foi concebido e posto em prática de acordo com a tradição política
brasileira, com o objetivo precípuo de restaurar a ordem no país,
francamente ameaçada. Por esse motivo o movimento de março de 1964
teria contado com o apoio da opinião pública. Como decorrência, a
palavra revolução teria uma inequívoca conotação de transitoriedade,
o que implicava a idéia de instabilidade. O caminho da estabilidade
seria o contrário do permanente estado revolucionário"14.
Questões como o tempo de intervenção das Forças Armadas, avaliação da
conjuntura econômica, segurança do Estado, incluindo as atividades da esquerda
armada, e modelo político15 adquiriram prioridade na agenda de discussão da
ESG, contribuindo para a constituição de um campo de forças que não questionava
o modelo burocrático-autoritário. A divergência central dava-se em torno das
proposições de manter o regime fechado politicamente (linha dura) ou continuar
com o regime, mas reduzir o coeficiente de arbítrio, pois "o arbítrio
excessivo, já dizia Roberto Campos em 1972, passa a ser uma disfunção pela
diminuição de insumos informativos e críticos"16. Para a linha de
pensamento de Roberto Campos convergiam outras declarações surgidas no âmbito
do sistema político e da sociedade civil, como a do senador Milton Campos que
anteriormente já havia tornado público em discurso feito no Congresso Nacional
uma posição divergente em relação à decretação do AI-5. O ex-ministro de
Castelo lembrou os compromissos democráticos da revolução, sinalizando para o
fato de que estaria havendo uma desvirtuação dos seus princípios originais. Ele
propunha que se distinguisse a revolução de seu processo: "a revolução há
de ser permanente como idéia e inspiração para que, com a colaboração do tempo
possa produzir frutos. O processo revolucionário há de ser transitório e breve,
porque sua duração tende à consagração do arbítrio"17. Além do governador
da Bahia Luiz Viana Filho, chefe da Casa Civil no governo Castelo, que pregava
a "retomada democrática"18 e do general Rodrigo Otávio, então
comandante da ESG, que propunha conciliar a condição de segurança com a redução
do arbítrio, soma-se ao discurso que demandava a redução da coerção estatal o
pronunciamento do marechal Cordeiro de Farias, um dos líderes do movimento de
1964 e ministro do Interior de Castelo. Em palestra na ESG em março de 1970 ele
havia feito críticas ao desfecho de 1968 e afirmara que o "AI-5 afastava
da Revolução uma grande e numerosa classe que pelo menos moralmente ficou sem
situação para defendê-la".
As declarações dos protagonistas do autoritarismo que se tornaram de domínio
público, somadas à articulação do grupo intragovernamental de apoio à
candidatura de Geisel são claros sinais de que a dinâmica do processo político
durante o governo Médici foi marcada por disputas em torno de posições na
corrida sucessória e por intensas polêmicas sobre o tipo de modelo político a
ser institucionalizado. Mostram também que alguns segmentos próximos aos
centros de poder estavam defendendo uma clara estratégia de resistência aos
rumos que o Estado tomara após a decretação do AI-5. Ao questionar a manutenção
de um tipo de autoritarismo mais dependente do apoio das Forças Armadas, que
desacreditava por completo as tradicionais mediações institucionais, a corrente
mais moderada acabou galvanizando opiniões que ultrapassavam as fronteiras do
aparelho de Estado. Alguns representantes da grande imprensa liberal, que antes
haviam apoiado o golpe em 1964, pronunciaram-se sobre a evolução do regime
durante o governo Médici. Apesar da forte censura a que estavam submetidos,
construíram um discurso de aproximação com os grupos favoráveis à diminuição do
grau de coerção estatal. Foi o caso do Jornal do Brasil que, embora não
contestasse a ordem instituída, adotou uma linha editorial que procurava
ampliar o exíguo campo de crítica a um regime que perdera as referências
legais. O jornal adotou uma estratégia discursiva de resistência ao tipo de
autoritarismo inaugurado após a decretação do AI-5, questionando a proposição
de que o Estado representava a totalidade da opinião pública. Freqüentemente
exaltava o compromisso original dos dirigentes militares, argumentando que a
defesa do Estado de Direito teria permitido o acordo entre as Forças Armadas e
setores da sociedade na deposição de Goulart em 1964. Nos textos do Jornal do
Brasilsobressaía a idéia de que o caminho para se encontrar a estabilidade
política exigia a garantia dos direitos dos indivíduos e o reconhecimento das
tradicionais instituições representativas da opinião pública contempladas na
cultura liberal-democrática. Enfim, o jornal que utilizamos como uma das fontes
do trabalho citado acima não apenas espelhou uma luta interna que se travava
nos bastidores do Estado entre as diversas tendências em disputa pela sua
direção. Ele acabou por ser um campo produtor de significados correspondentes
às demandas dos atores que viam na diminuição do grau de autoritarismo sobre a
imprensa, os partidos, as eleições e o Legislativo o primeiro passo para
caminhar no sentido de um Estado mais controlado pela sociedade, prescindindo,
assim, da intervenção militar na vida política.
Formulada em um contexto de crescimento econômico do país e de maior retração
das instituições da sociedade civil diante do Estado, a estratégia de distensão
explica-se, sobretudo, pelos antecedentes ideológicos da cultura política e dos
diversos atores19, cujos componentes pluralistas se manifestaram até mesmo no
discurso adotado pelos dirigentes militares comprometidos com a idéia de uma
democracia forte. Esta deveria ser instrumentalizada com as necessárias
salvaguardas de defesa do Estado, afinal não se poderia esquecer os riscos e
desafios enfrentados no último período democrático durante o governo Goulart.
Todavia permanecia o compromisso de se construir um regime que mantivesse
pontos de contato com os princípios liberais da ordem político-burguesa. Nesse
sentido, acreditamos que os dirigentes militares perceberam limitações no tipo
de autoritarismo instituído após a crise de 1968, principalmente os integrantes
do grupo que assumiu maiores responsabilidades no governo Castelo, do qual
fizeram parte Geisel e Golbery. Identificados como a corrente mais moderada,
eles mostraram intenções de estruturar um tipo de Estado que buscasse algum
fundamento de sua legitimidade também no desempenho eleitoral. Em outras
palavras, os dirigentes foram influenciados pelo pensamento de que deveriam
manter os mecanismos eleitorais e partidários em torno dos quais os regimes
políticos no mundo ocidental democrático comumente adquirem a base de sua
legitimidade. Com esse objetivo deve ser compreendida a ascensão de Geisel à
presidência que representaria a retomada, em linhas gerais, do projeto
castelista20 idealizado no primeiro governo.
Nos primeiros movimentos em direção à liberalização é difícil imaginar os
militares envolvidos pela idéia de retirar lenta e gradualmente a instituição
do poder. Devemos lembrar que em nenhum momento após ter assumido a
presidência, Geisel acenou com a possibilidade de eleições livres e diretas
para a escolha do próximo presidente, tal como exigia a oposição democrática.
Ele deixou bem claro que os instrumentos de exceção permaneceriam "até que
sejam superados pela imaginação criadora, capaz de instituir, quando for
oportuno, salvaguardas eficazes dentro do contexto constitucional"21. O
objetivo que se esboçava, portanto, continuava a ser o da institucionalização
de um regime que anunciava medidas liberalizantes, mas as condicionava à
consolidação do projeto autoritário22. A eliminação dos mecanismos
excessivamente coercitivos não deveria colocar em risco o controle dos cargos
executivos nem tampouco a maioria governamental no Congresso para aprovar a
legislação necessária às reformas. Nesse sentido, os estrategistas
governamentais, contando com os indicadores ainda relativamente favoráveis na
economia e com o suposto apoio social herdado do "milagre", esperavam
repetir a vitória obtida pela Arena nas eleições municipais de 1970,
evidentemente sem os efeitos negativos provocados pela intensa repressão da
época. Se as eleições parlamentares marcadas para novembro de 1974, entretanto,
transcorressem em um ambiente de liberdade, isso significaria a ampliação da
legitimidade eleitoral tão almejada desde o governo Castelo. O diagnóstico
otimista, conforme as previsões registradas nos documentos do SNI (Castro,
2002:44), foi todavia ultrapassado pelo realismo da luta política, pois as
mudanças beneficiaram a oposição institucional representada pelo Movimento
Democrático Brasileiro ' MDB. Aproveitando a oportunidade de maior liberdade
para tecer alianças e difundir idéias pelos meios de comunicação, o partido
ampliou o potencial de atuação e obteve uma expressiva vitória após uma
campanha de denúncias contra o regime focadas em três temas: a violência contra
os direitos humanos, a concentração de renda no país e a desnacionalização da
economia. O MDB conquistou mais de um terço do Congresso, levando o governo a
perder a maioria necessária para emendar a Constituição. Em função de seu
sucesso nas eleições legislativas de 1974, o MDB consagrou-se como porta-voz
legítimo da oposição democrática (Kinzo,1994).
A liberalização implicou riscos, pois as garantias dadas pelos dirigentes de
que se iniciava um novo tempo de maior segurança com relação aos direitos dos
indivíduos e dos grupos provocaram repercussões no plano social, propiciando o
surgimento de uma expectativa positiva com as formas de comportamento
oposicionista dos atores. Até mesmo os grupos da esquerda armada, após serem
desestruturados pela repressão e se desvencilharem da estratégia de luta
revolucionária, passaram a valorizar a conquista do poder pela via
institucional, reforçando a representatividade do MDB. A partir de então o
regime passou a viver cada vez mais os efeitos da ausência crônica de
legitimidade com relação às suas regras de procedimentos. Quanto mais adotava
as medidas de cunho liberal para ampliar sua base política e social, mais
ilegítimo tornava-se aos olhos da população. Nessas circunstâncias de retomada
da politização da sociedade, envolvendo maior liberdade de crítica por parte da
imprensa e o gradual incremento da ativação popular, as variações arbitrárias
do poder governamental visaram impedir a perda de controle sobre a agenda
política, de modo a determinar o ritmo e o alcance das mudanças. Assim deve ser
compreendida a instituição da Lei Falcão em 1976, quando se avaliou que os
resultados das eleições de novembro de 1974 comprometeriam nos próximos pleitos
o controle do governo sobre o processo legislativo. Com a proibição da
propaganda eleitoral no rádio e na televisão, a população não teve mais acesso
às críticas da oposição sobre as políticas governamentais. Para garantir a base
parlamentar necessária à continuidade da estratégia da liberalização outorgada,
o governo também investiu contra o Senado e a Câmara. Em abril de 1977, o
presidente Geisel colocou o Congresso em recesso e mudou as regras do jogo,
aprovando um conjunto de medidas que ficou conhecido como Pacote de Abril23.
Ao término do governo Geisel a ambigüidade do regime se mantinha. O AI-5 foi
extinto após ter sido utilizado para cassar mandatos de deputados estaduais e
federais e colocar em recesso o Congresso para impor as reformas
constitucionais em abril de 1977. Suspenso desde dezembro de 1968, o habeas
corpus para detidos por motivos políticos fora restaurado. A censura à imprensa
havia sido suspensa e com a revogação dos decretos de banimento grande parte
dos exilados políticos voltava ao Brasil, indicando que o país se preparava
para novos tempos políticos. De fato a liberalização avançara, embora o Pacote
de Reformas de 1978, introduzido sob a forma da Emenda Constitucional nº 11,
estabelecesse novos controles por meio de medidas denominadas
"salvaguardas de emergências"24. Além disso, deve-se destacar que o
vasto aparato de segurança se mantinha intacto. Eram de domínio público as
denúncias contra as forças de segurança responsabilizando-as por prisões,
torturas e mortes de opositores. Portanto, o desafio do governo Geisel não se
resumiu em desmantelar e renovar a estrutura legal autoritária, ao mesmo tempo
que manipulava o sistema eleitoral para impedir a oposição de conquistar o
poder no âmbito das próprias regras do regime. Também foi preciso recuperar a
autoridade presidencial sobre as ações dos órgãos de repressão controlados pela
linha dura militar, tarefa que contou com os recursos do SNI25 sob a chefia do
general Figueiredo (Castro, 2002:53-55), o indicado posteriormente por Geisel
para ocupar a presidência da República26. Uma vez que o governo precisava do
apoio das Forças Armadas, foi preciso combinar o enfrentamento com a negociação
em relação aos setores internos ao Estado que reagiam ostensivamente às
mudanças liberalizantes27.
A proposta de liberalização acionou reações até porque significava a
perspectiva de deslocamento de grupos encastelados no aparelho de Estado que,
inevitavelmente, perderiam posições de poder conquistadas após a radicalização
das ações repressivas empreendidas após 1968. Considerando também que houve um
envolvimento direto dos militares nas tarefas repressivas, foi equivalente o
medo de que após a retirada das Forças Armadas do poder tais responsabilidades
pudessem ser apuradas judicialmente. Assim, o receio de um revanchismo
constituiu-se em um forte argumento para os grupos de sustentação do regime que
desejavam a reversão da transição. Dispostos a manter o Estado-policial que
tantos custos políticos causou à instituição militar e ao regime como um todo,
setores da linha dura insistiram na intenção de afastar da convivência social
qualquer vestígio de normalização das instituições representativas. Todavia, a
estratégia de Geisel de contenção dos bolsões radicais mas sinceros, como eram
chamados pelos dirigentes militares, não se propunha a anular o desempenho das
funções repressivas do Estado. A intenção era a de recuperar um clima político
que evocasse o Estado de Direito, e, para isso, tornava-se necessário obter um
controle mais rigoroso sobre os aparatos de segurança que desafiavam qualquer
limite legal instituído. Nesse sentido, deve ser compreendida a "Diretriz
de atuação do CIE" baixada em 1974, subordinando as operações do Centro a
um entendimento com os comandantes dos quatro exércitos (Gaspari, 2003:403).
Portanto, sem questionar a manutenção dos aparelhos de espionagem, os
dirigentes preocuparam-se também com a retomada de certos princípios liberais
que encontravam obstáculos para firmarem sua credibilidade tendo em vista a
autonomia adquirida por esses órgãos da polícia política. A presença discreta e
regulada desses serviços secretos diminuiria o desgaste dos militares enquanto
instituição comprometida com a repressão, ao mesmo tempo que manteria seu
potencial de dissuasão para com aqueles que contestassem o poder governamental.
De acordo com essa abordagem, as revelações de Geisel apoiando a tortura e o
extermínio de militantes da esquerda podem ser mais bem avaliadas desde que
possamos esclarecer até que ponto as ações do aparelho repressivo controlado
pela linha dura, em que pesem a sua autonomia, respondiam às metas traçadas
pelas altas figuras do Estado, não desafiando a autoridade do presidente, nem
tampouco desgastando a imagem das Forças Armadas. Se não devemos diluir
completamente as fronteiras entre essas duas correntes que tinham influência na
direção do Estado, é preciso repensar as relações entre os grupos levando em
conta que a longa duração do regime exige a ênfase na complementaridade dos
papéis por eles desempenhados. Poderíamos supor que as prisões, torturas e
mortes de dirigentes do PCB ocorridas entre 1973 e 1976, partido ao qual os
dirigentes militares atribuíam influência na vitória do MDB nas eleições em
novembro de 1974, fizeram parte de uma longa e planejada ação, contando com
anuência da cúpula do poder28. Nessa linha de interpretação se coloca também a
ação repressiva que culminou no Massacre da Lapa29, com mortes de dirigentes do
PC do B em dezembro de 1976, quando o II Exército estava sob o comando do
general Dilermando Gomes Monteiro, considerado moderado e íntimo colaborador de
Geisel (Skidmore, 1988:348). O mesmo raciocínio não poderia ser aplicado às
mortes do jornalista Vladimir Herzog em outubro de 1975 e do metalúrgico
sindicalista Manoel Fiel Filho em janeiro de 1976, compreendidas mais como
provocações do aparato repressivo30, ficando a responsabilidade restrita aos
oficiais do II Exército, sob o comando do general Ednardo d'Ávila. Outro famoso
caso de provocação teria sido a explosão da bomba no Riocentro em 30 de abril
de 1981, durante show comemorativo do Dia do Trabalho, quando morreu no local
um sargento e ficou ferido um capitão, dois militares do Exército pertencentes
ao DOI-CODI. Vale lembrar que, exceto os dois primeiros episódios, os outros
resultaram em crises na cúpula militar, com a demissão do comandante do II
Exército Ednardo d'Ávila pelo presidente Geisel após a morte do metalúrgico. No
caso do Riocentro ocorrido no governo Figueiredo, o general Golbery renunciou
ao cargo de chefe do Gabinete Civil da presidência por discordar dos rumos
tomados pelo inquérito realizado pelo Exército, que encobriu os responsáveis
pela ação terrorista.
Embora fosse verdadeiro o empenho de Geisel e Figueiredo para controlar as
ações dos órgãos de segurança do aparato repressivo, os presidentes não se
comprometeram em desmontá-lo, mesmo recebendo das oposições demonstrações de
apoio manifestadas nas condenações a qualquer ato de violência e, em
particular, aos atos de terrorismo praticados pela linha dura. Apesar da
existência de um campo comum de interesses com a oposição parlamentar, que
cooperava com o jogo político no sentido de evitar o recrudescimento
autoritário, em nenhum momento os dois últimos governos militares prescindiram
da Lei de Segurança Nacional, considerada uma "salvaguarda necessária a
uma "democracia forte"31, em oposição a tradicional democracia
liberal" (Stepan, 1986:64). Vale lembrar que durante a greve dos
metalúrgicos na região do ABC em São Paulo em 1980, o sindicato sofreu
intervenção do Ministério do Trabalho, sendo Lula e os dirigentes sindicalistas
destituídos dos seus cargos e presos em uma ação conjunta envolvendo tropas de
choque e oficiais das forças de segurança do Exército, o conhecido DOI-CODI.
Lula e mais dez líderes sindicais foram condenados por um tribunal militar em
1981 acusados de violar a Lei de Segurança Nacional (Skidmore, 1988:435). O
movimento sindical na região do ABC em São Paulo serve de exemplo de que a luta
dos trabalhadores por melhores salários e pelo direito de greve ocorria sob um
clima de medo de uma regressão repressiva. A negociação com base na intimidação
e a repressão aberta faziam parte das práticas da elite militar dirigente e
constituíam as duas faces do Estado autoritário. Portanto, desde que
devidamente enquadradas dentro dos objetivos do projeto de distensão/abertura,
as forças de segurança continuaram a ser peças fundamentais na defesa do Estado
que carecia de legitimidade democrática. Elas constituíam um dos eixos de apoio
do esquema de poder militar, que sempre se utilizou de um vasto arsenal de leis
e de práticas autoritárias para restringir a participação popular e impedir a
alternância no poder. Uma vez que a tradicional política com base na
argumentação racional e pública foi substituída pela cultura de guerra, os
órgãos de segurança permaneceram até o último governo prontos para agir
conforme a natureza do regime, procurando o inimigo interno, intimidando as
oposições e praticando a violência contra os mais elementares direitos humanos.
Os sinais de que os dirigentes pretendiam chegar a uma "fórmula política
pós-autoritária não democrática" (O'Donnell e Schmitter, 1988:52) ficam
evidentes se colocarmos em foco a lei da anistia aprovada pelo Congresso em
1979 no governo Figueiredo, antecedendo a reformulação partidária idealizada
por Golbery. A anistia foi debatida da perspectiva da oposição democrática, com
apoio de entidades da sociedade civil, que a defendia ampla, geral e
irrestrita, implicando a revisão das medidas punitivas que afetaram desde 1964
o meio civil e militar, bem como a cobrança judicial dos responsáveis por
atrocidades repressivas tais como tortura e assassinatos de presos políticos.
Da ótica dos dirigentes, principalmente do aparelho responsável pela dura
repressão empreendida, a proposta de anistia anunciada pelos setores da
oposição foi encarada como um ato de revanchismo. Acabou prevalecendo a
proposta negociada com a oposição parlamentar de uma anistia recíproca que
enfatizava a fórmula do esquecimento dos atos repressivos praticados no
passado. Ao não permitir qualquer revisão judicial das suas ações, o aparelho
militar protegeu sua autonomia, reforçando o sentimento de impunidade e de
imunidade das Forças Armadas. A sociedade, por sua vez, deixou de conhecer os
agentes diretamente implicados nas atrocidades cometidas e as engrenagens dos
aparatos repressivos, fundamentais na sustentação do regime autoritário. Como
não foram cobradas responsabilidades pelos atos repressivos, a instituição
militar não foi colocada no centro de um amplo debate nacional sobre os papéis
que vinha cumprindo na esfera política e a opinião pública não colocou em
discussão os valores éticos necessários para a construção de uma autêntica
democracia.
É verdade que no final do governo Figueiredo, depois de vinte anos de
autoritarismo, as pressões para ampliar a democratização intensificaram-se,
sobretudo com as mobilizações populares a favor das "Diretas Já!".
Lideradas pelos partidos da oposição (PMDB, PDT, PT e outros) e com apoio de
instituições da sociedade civil como a Ordem dos Advogados do Brasil ' OAB, a
Associação Brasileira de Imprensa ' ABI e a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil ' CNBB, as manifestações, todavia, não impediram a derrota no Congresso
em abril de 1984 da emenda do deputado Dante de Oliveira do PMDB. Cabe lembrar
que a votação da emenda das diretas ocorreu sob um clima ameaçador em virtude
do estado de emergência decretado em Brasília, executado pelo general Newton
Cruz, comandante militar do Planalto e ex-chefe da agência do SNI da capital.
Com a garantia de que a transição se realizaria nos moldes da
institucionalidade vigente, parecia certa a vitória do candidato presidencial
do regime, em função da maioria casuística obtida pelo partido do governo no
Colégio Eleitoral. Todavia, acirraram-se as divergências internas no partido do
governo tornando impossível a definição de um candidato à presidência da
República. Nesse cenário foi criada a Aliança Democrática, nascida de um
ambiente de conciliação e de um pacto articulado entre setores da oposição
liberal (PMDB) e dissidentes do regime (PFL). Após a eleição de Tancredo Neves
pelo Colégio Eleitoral, e, em seguida, a sua morte, o país viu o comando da
transição negociada em direção à democracia ser assumido pelo vice-presidente
José Sarney, político da antiga UDN, da ARENA e do PDS, identificado como um
civil de confiança dos militares. Herdeiro de uma grave crise econômica e de
uma dívida social sem precedentes na história da República, o governo Sarney
permitiu que os militares continuassem a encontrar condições favoráveis para
reproduzir suas intenções de vigília sobre o sistema político, embora tivessem
deixado de intervir diretamente na direção do Estado, como o fizeram de 1964 a
1985.
Sob o comando de Sarney, o governo civil incorporou as marcas de uma história
não terminada, deixando a mostra o quanto era forte o componente militar nas
estruturas do regime de transição. As Forças Armadas brasileiras não foram
obrigadas a aceitar um papel radicalmente diferente daquele assumido na fase
autoritária, quando elas tiveram maiores responsabilidades na implementação de
políticas públicas e no condicionamento da postura dos demais atores. Apesar de
o sistema político ter sofrido transformações de cunho liberal-democrático, com
a aprovação do Congresso de leis restabelecendo as eleições diretas para a
presidência da República, concedendo o direito de voto aos analfabetos e a
liberdade para a organização dos partidos, o país ainda não havia conseguido
produzir uma força capaz de conter e disciplinar a vontade militar
interventora. Estudiosos já haviam alertado para o fato de que a
desmilitarização não constituía um problema que dizia respeito tão somente aos
militares (O'Donnell e Schmitter, 1988:58). Notava-se na Nova República
omissões das instituições políticas, particularmente dos partidos e do
Congresso quanto às responsabilidades na elaboração de projetos para controlar
o poder militar (Carvalho, 1987). Era o caso do Conselho de Segurança Nacional,
cujos poderes estabelecidos pela Constituição de 1967 o transformaram em órgão
de extrema importância pela responsabilidade em definir e executar a política
de segurança interna do país. Como órgão da presidência da República, o
Conselho de Segurança Nacional se militarizara, "em razão da integração de
suas funções, finalidades e estruturas com a intervenção militar"
(Oliveira, 1987a:160). Entre outros exemplos que evidenciavam a falta de
agressividade construtiva, para não falar da ausência de ousadia por parte das
forças civis em querer regular a ação militar, destacava-se o Serviço Nacional
de Informações ' SNI, que ainda não havia sido formalmente mudado. Este órgão
de inteligência, que acabaria saindo intacto do processo constituinte de 1988,
tornou-se um exemplo de preservação das estruturas autoritárias pelo qual a
instituição militar manifestava os interesses das corporações. Ele prestou
relevantes serviços ao governo Sarney no campo da avaliação conjuntural,
monitorando não só a atuação dos setores de oposição de esquerda liderados pelo
Partido dos Trabalhadores, bem como as articulações entre as demais forças
políticas. O ministro chefe do SNI na época, o general Ivan de Souza Mendes,
marcou presença no governo por endurecer as negociações com líderes
sindicalistas, reduzindo o espaço de negociação do então ministro do Trabalho
Almir Pazzianotto. A manutenção das estruturas repressivas controladas pelos
militares, lembrando ainda a imagem de uma instituição toda-poderosa com força
impositiva, foi um fator inibidor da prática democrática. Eis por que para o
primeiro governo da Nova República foi cunhado o termo democracia tutelada,
sinalizando para o fato de que, apesar dos progressos feitos em direção da
civilização das decisões governamentais, o país ainda guardava um elevado nível
de militarização da vida política32. Além de a cúpula militar opinar sobre
inúmeras questões fora das atribuições específicas militares tais como greves,
reforma agrária e tempo de mandato do presidente Sarney, cabe observar que o
Congresso Constituinte de 1988, no que trata das funções das Forças Armadas,
não modificou na essência as antigas cláusulas constitucionais, cabendo-lhes a
garantia da lei, da ordem e também a dos poderes constitucionais. Uma vez que
às Forças Armadas, segundo a Constituição, foi atribuído o papel de zelar pela
segurança interna e externa, elas continuaram a manter as condições para julgar
no futuro se devem ou não intervir em situações de crise, como sempre fizeram
desde a instituição da República.
Procurei defender neste artigo a idéia de que a proposta de liberalização do
regime estava presente no universo ideológico do autoritarismo e sua
implementação a partir de 1974 deve ser entendida como a resultante do conflito
interno de um sistema de poder orientado pela concepção de que a imposição de
uma maior coerção garantiria as condições para a expansão econômica
capitalista. Baseados na Doutrina de Segurança Nacional, na teoria do
"inimigo interno" e na existência de uma guerra revolucionária
comunista, os dirigentes criaram um Estado de controle repressivo que no
decorrer dos sucessivos governos militares estrangulou as antigas estruturas
institucionais representativas herdadas do modelo liberal democrático. Dessa
ótica, a retomada da proposta de liberalização no âmbito da liderança militar e
civil autoritária, ainda durante o governo Médici, vai ao encontro da linha de
abordagem que enfatiza a autonomia do núcleo dirigente e sua capacidade de
assumir a iniciativa das mudanças, manifestada nas articulações para
impulsionar a candidatura de Geisel e na consciência de que, para além da
eficácia econômica conseguida nos início dos anos 70, emergia o problema da
legitimidade33 das regras políticas.
Assim, a revitalização dos mecanismos representativos clássicos, eleitorais e
partidários não refletiu modificações no equilíbrio de forças entre a oposição
e os protagonistas do regime, mas teve sua origem na luta intra-grupos
dirigentes ocorrida no período mais repressivo do ciclo militar inaugurado em
1964. Aceitar, todavia, que a liberalização promovida pelos dirigentes
militares se enquadrava dentro de uma perspectiva de ampliar o apoio político e
social e que ela foi originalmente desencadeada em função das dificuldades do
regime em resolver suas contradições internas (Martins, 1988) não significa
negar a presença do fator pressão por parte dos atores oposicionistas do
sistema político e da sociedade civil. Mas sim dimensionar seu tempo de entrada
no cenário político e sua influência sobre o ritmo e o alcance das medidas
implementadas após 1974. Somente após o anúncio da liberalização feito pelo
presidente Geisel, as lideranças da oposição e as instituições da sociedade
civil assumiram diante do Estado uma postura mais ativa, no sentido de exercer
a crítica ao regime e incentivar a participação popular. A debilidade das
forças comprometidas com a democracia34 contribuiu para uma transição que se
estendeu por um longo tempo, ficou sob relativo controle da cúpula militar e
desaguou em um compromisso político conservador, garantindo a presença das
elites dissidentes do regime autoritário no comando do primeiro governo civil
após as Forças Armadas se retirarem do poder, quando teve início a Nova
República.
Nesse sentido, a distensão/abertura distinguia-se do projeto de democratização
aspirado por diversos setores da oposição. A implementação das medidas
liberalizantes iniciadas por Geisel estava condicionava à institucionalização
de um tipo de regime pós-autoritário com restrições democráticas, o que
significa que no projeto de distensão/abertura, a retirada das Forças Armadas
da direção do Estado implicava mais do que a sua substituição por um esquema
civil de confiança baseado no partido do governo, de modo a preservar os
interesses institucionais das corporações. Como integrantes do aparelho de
Estado, os militares deveriam continuar a exercer sua influência sobre as
questões em discussão pelos atores do sistema político e da sociedade civil, a
fim de garantir a institucionalização de um poder político voltado, sobretudo,
para moderar a participação popular tanto na constituição de governos quanto na
formação das suas decisões.
NOTAS
1. O livro do jornalista Elio Gaspari A Ditadura Derrotada também contém
importantes informações sobre a natureza repressiva do regime autoritário. Com
base em gravações e documentos pertencentes aos arquivos dos protagonistas do
regime, o jornalista revela uma conversa em que o presidente Ernesto Geisel
manifestou ao ministro do Exército, o general Dale Coutinho, sua aprovação à
eliminação de militantes comunistas (Gaspari, 2003:324). Segundo Geisel, Dale
Coutinho era seu "amigo e conhecido de longa data" (D'Araújo e
Castro, 1997:268).
2. Após as eleições para governadores em outubro 1965, o governo de Castelo, do
qual o general Geisel era chefe da Casa Militar, enfrentou pressões das bases
militares. A oposição havia obtido no pleito a vitória em Minas Gerais e
Guanabara, estados governados por líderes da UDN que tiveram presença destacada
na conspiração contra Goulart. Foi a primeira crise militar mais séria que
resultou no AI-2 com a extinção dos antigos partidos (PSD, PTB, UDN e outros),
a instituição do bipartidarismo (MDB e ARENA) e as eleições indiretas para
presidente, vice-presidente, governador e vice-governador. O desfecho do
episódio barrou o projeto do então chefe do SNI, o general Golbery, que havia
tentado postergar as eleições para governadores de outubro de 1965 e articulava
a reeleição de Castelo para que seu governo se estendesse até março de 1969
(Gaspari, 2003:171). Nesse sentido, os resultados eleitorais de 1965 não
favoráveis ao governo apontaram também para uma nova correlação de forças entre
os grupos dirigentes. O ministro da Guerra Costa e Silva assumiu a partir daí
uma postura mais aberta de candidato à presidência e passou a galvanizar apoio
dos oficiais de linha dura. Embora tentasse promover um candidato civil da área
política de sua confiança, Castelo acabou aceitando, em nome da unidade
militar, a escolha de Costa e Silva, homologado pela Arena e posteriormente
eleito pelo Congresso em outubro de 1966 (D'Araújo e Castro, 1997:189 e 196).
3. Nesse aspecto, a Doutrina de Segurança Nacional teria resgatado elementos do
moderno pensamento militar formulado pelo general Góis Monteiro que considerava
a "defesa nacional fator e resultado de uma política de desenvolvimento
nacional que, para ser eficaz, supõe como condição uma estratégia global de
rígida contenção das forças políticas em luta e de disciplina social".
Adotei a posição de Edmundo Campos Coelho (1976:114) que enfatiza linhas de
continuidade na construção do pensamento militar pós-64. Segundo o autor, a
fórmula Segurança e Desenvolvimento seria em essência uma visão atualizada da
idéia desenvolvida por Góis Monteiro, ao formular uma doutrina para o Exército
durante o Estado Novo.
4. Malan vê os civis capazes de assumir o poder (Jornal do Brasil (15/12/1971,
p. 3).
5. Comentário feito pelo deputado Tales Ramalho (MDB-PE). "Tarso admite
retorno rápido à normalidade" (Jornal do Brasil, 5/1/1972, p. 3).
6. O trabalho de Fleischer mostra como a manipulação casuística no plano
político eleitoral tem tradição no país. Entretanto, a manipulação autoritária
pós-64 foi levada ao extremo. O autor coloca em dúvida a eficiência das
manipulações político-eleitorais praticadas no período militar. Além de afirmar
que os "engenheiros não compreendiam as suas conseqüências", ele
argumenta que as "mudanças se tornaram uma faca de dois gumes, dada a
combinação de um sistema eleitoral fraco e partidos não muito
institucionalizados com um eleitorado cada vez menos manipulável"
(Fleischer, 1994).
7. Na linha de análise que enfatiza o estudo dos textos constitucionais,
Pessanha esclarece como foram operadas as restrições impostas pelo regime
autoritário ao exercício do Poder Legislativo. A Carta de 1967 manteve as
restrições à iniciativa legal do Poder Legislativo, criou duas modalidades de
delegação legislativa e constitucionalizou o decreto-lei (Pessanha, 2002:166-
171).
8. Concordo que não havia "planos de governo detalhadamente
estabelecidos", a não ser algumas "diretrizes de saneamento
econômico-financeiro traçadas por alguns ipesianos" (Fico, 2004:74).
Todavia, é possível imaginar que os dirigentes mais voltados para a questão da
institucionalização política estivessem desde a tomada do poder em 1964
amadurecendo algumas reformas nesse campo, considerando os graves conflitos no
governo Goulart. Castelo, segundo Geisel, acreditava em uma "nova
Constituição, com o regime de dois partidos e talvez com a instituição da
eleição indireta" (D'Araújo e Castro, 1997:200), regras que foram
introduzidas com o AI-2, juntamente com as medidas repressivas exigidas pela
linha dura para retomar a "operação limpeza".
9. Em que pese a relativa estabilização do crescimento dos preços entre 1964 e
1972, os indicadores evidenciam a deterioração na distribuição de rendas,
expondo a perversidade do modelo econômico. Entre 1960 e 1970, a parcela de
renda apropriada pelos 40% mais pobres da população declinou de 15,8% para
13,3%, alcançando 10,4% em 1980 e 9,9% em 1990 (Cysne, 1994).
10. Poder econômico destrói a liberdade, diz Mem de Sá (Jornal do Brasil, 22/
12/1970, p. 4).
11. Doutrina perigosa (Jornal do Brasil, 23/12/1970, p. 6).
12. A declaração do ministro Buzaid respondia a uma pergunta formulada durante
conferência na ESG por um estagiário desta instituição sobre a
institucionalização da revolução, quando o tema do marxismo e cristianismo foi
abordado (cf. Jornal do Brasil, 4/7/1970).
13. Hélgio Trindade vê em Buzaid um dos representantes da corrente integralista
que teria compartilhado o poder no governo Médici. O autor detecta a existência
de uma nova tentação fascista, possibilitada pela formação de uma atmosfera
favorável à ação de radicais de direita. Sua origem estaria no vácuo político
formado após a rápida queda de Goulart e nas disputas internas pelo poder pós-
64 entre os moderados da "Sorbonne" representados pelo presidente
Castelo e a "linha dura" comandada pelo ministro da Guerra Costa e
Silva, que acabou liberando o avanço das forças repressivas após o AI-5. A
tentação fascista representaria a ruptura com a base civil udenista ocorrida
após a doença de Costa e Silva, quando se decidiu que uma junta militar
assumiria o poder (Trindade, 1994).
14. Transitório e permanente (Jornal do Brasil, 4/7/1970, p. 6).
15. Para o acompanhamento dessas questões e do debate promovido pela ESG que
suponho ter existido durante o governo Médici, ver Carvalho (1989).
16. Citação feita pelo deputado da Arena Etelvino Lins Albuquerque, que
resgatou o pensamento de Roberto Campos (ver "Etelvino acha clima propício
para conciliação", Jornal do Brasil, 17/1/1972, p. 3).
17. Diário do Congresso Nacional, nov.1969, sábado, 8 ' 0271. Extraído do
Jornal do Brasil, 1972.
18. Luiz Viana quer líderes na luta pela democracia (Jornal do Brasil, 13/1/
1971, p. 3).
19. Ao discutir a liberalização, Bolivar Lamounier (1988) enfatiza a força da
tradição liberal e pluralista do sistema político brasileiro.
20. Ao esclarecer o processo sucessório no governo Médici e o surgimento de sua
candidatura, Geisel reconhece a existência de uma corrente castelista da qual
fariam parte Golbery, Luiz Viana e Roberto Campos (D'Araújo e Castro, 1994:
257).
21. Trecho do discurso de Geisel pronunciado na abertura da primeira reunião de
seu Ministério (Cruz e Martins, 1983:46).
22. Na análise da documentação do Arquivo Geisel sobre o Ministério da Justiça,
cujo titular da pasta era Armando Falcão, D'Araújo nota que, antes da posse,
havia a "nítida preocupação do futuro ministro em desenvolver ações que
permitissem o aprimoramento da Revolução' e que reforçassem os instrumentos
para o controle do governo sobre a oposição". "O ministério após a
posse de Geisel assumiu uma linha de ação no sentido de consolidar a
Revolução'"; para tanto deveria promover a institucionalização da
"Revolução através de uma reforma da Constituição que produzisse um modelo
político brasileiro". Isso significava a manutenção e o aprimoramento do
bipartidarismo, o fortalecimento da Arena e a instrução de seus quadros para
serem mais agressivos no Congresso na defesa do governo (D'Araújo, 2002:26 e
35).
23. No plano eleitoral, a Emenda nº 8 estipulava que um terço do Senado e os
governadores estaduais seriam eleitos pela via indireta. Foram também
modificados os critérios que regulamentavam o número de deputados federais e a
escolha dos delegados municipais junto ao Colégio eleitoral, reduzindo o peso
das regiões industrializadas. As restrições à propaganda adotadas para as
eleições municipais foram estendidas para todas as eleições que envolvessem o
voto popular (Alves 1989:194).
24. Com as salvaguardas que complementavam os dispositivos constitucionais para
a declaração de estado de sítio, o Executivo adquiria poderes extraordinários
em caso de guerra externa, de ameaça à existência do Estado, ou em casos de
sublevação interna (Alves, 1989:218).
25. As apreciações do SNI manifestadas nos documentos pertencentes ao Arquivo
Geisel indicam o esforço desse órgão no sentido de controlar os métodos
repressivos que causavam desgastes políticos para o regime naquela conjuntura
de liberalização política (Castro, 2002).
26. Há uma correspondência entre o fortalecimento do SNI, que durante o governo
Figueiredo "transformou-se numa espécie de quarta força armada, tamanho
era seu poderio", e a fragilização nesta fase do Sistema DOI-CODI,
considerado o principal obstáculo ao projeto de abertura política (Fico, 2003:
200).
27. Segundo Geisel, "um dos fatores que é preciso levar em conta é que eu
(Geisel) não podia ficar com as Forças Armadas e principalmente o Exército
contra mim". O combate à subversão era um dentre os muitos temas que eu
tinha que atender. Era um dos problemas. Eu também não podia ser radicalmente
contrário ao combate. Podia ser contrário aos métodos, aos procedimentos, à
maneira de combater, e sobre isso eu muito conversava, e muitas vezes procurava
convencer" (D'Araújo e Castro, 1997:379).
28. Geisel reconhece que durante o seu governo e todo o período militar
"sempre se procurou acompanhar e conhecer o que o partido (Comunista)
fazia, qual era a sua ação, como ele se conduzia, o que estava produzindo, qual
era o grau de periculosidade [...]. No fim do governo, o Dilermando, já no
comando do II Exército, atuou em São Paulo sobre uma grande reunião dos chefes
comunistas. [...] Fizemos tudo para evitar um recrudescimento das ações
comunistas. Porque houve época em que eles matavam, roubavam, faziam o
diabo" (D'Araújo e Castro, 1997:366).
29. Os preparativos dessa ação repressiva, segundo D'Araújo, estão parcialmente
registrados no Arquivo Geisel referente ao Ministério da Justiça ( 2002:31).
30. Perguntado se as mortes de Herzog e Fiel Filho teriam sido um acidente de
trabalho da repressão ou uma provocação intencional de grupos interessados em
desestabilizar o processo de abertura, Geisel respondeu que "a tendência é
ficar com a pior hipótese [...] Pode-se fazer a suposição de que fizeram o
enforcamento e resolveram continuar, talvez como um desafio" ( D'Araújo e
Castro, 1997:377).
31. Ao ser perguntado se era contrário às eleições diretas na época da campanha
pelas "Diretas Já", Geisel respondeu que no Brasil a eleição para
presidente deveria ser indireta, feita pelo Congresso Nacional ou por um
Colégio Eleitoral. Segundo ele, "essa história de democracia plena,
absoluta, para o Brasil, é uma ficção" (D'Araújo e Castro, 1997:444-445).
32. Esse apoio militar ao governo civil, garantindo-lhe estabilidade, mas
também lhe impondo limites quanto à ação, constitui o que Eliézer Rizzo de
Oliveira chama de função tutelar das Forças Armadas. O autor sustenta a
hipótese de que essa função tutelar, caracterizada pela presença dos militares
no governo Sarney, desenvolveu-se como desdobramento da função de predominância
durante o processo de distensão/abertura. No decorrer deste processo, os
dirigentes teriam encaminhado as mudanças de forma que o aparelho militar
pudesse retirar-se gradativamente do exercício direto do Estado (função de
predominância) sem, no entanto, perder a capacidade de influência sobre as
decisões governamentais (função tutelar) (Oliveira, 1987b).
33. Segundo Geisel, "Um presidente, agora, não vai poder se apoiar
exclusivamente nas Forças Armadas. Nem nos políticos. [...] Bom era no tempo
dos reis. O problema da legitimação era simples [...] Depois inventaram esse
negócio de povo". Pensamentos de Geisel registrados no Diário de Heitor
Ferreira, 16 de fevereiro e setembro de 1972 (Gaspari, 2003:233).
34. É esclarecedora a observação de Werneck Vianna, segundo a qual o processo
de transição à democracia revelou os efeitos da modernização autoritária
conduzida pelo regime militar. O autor refere-se à degradação da esfera
pública: "Chega-se à democracia política sem cultura cívica, sem vida
associativa enraizada, sem partidos de massa e, mais grave ainda, sem normas e
instituições confiáveis para garantias de reprodução de um sistema
democrático" (Werneck Vianna, 2000:150).