Dormindo com o inimigo: uma crítica ao conceito de confiança
Em seu survey mundial de 1990-93, o cientista político Ronald Inglehart
perguntou aos seus entrevistados: "Em geral, você diria que a maioria das
pessoas é confiável ou que se deve ser precavido ao lidar com elas?" (Generally
speaking, would you say that most people can be trusted or that you can't be
too careful in dealing with people?). No Brasil, somente 7% dos entrevistados
responderam que a maioria das pessoas é digna de confiança, o resultado mais
baixo entre os 43 países pesquisados.
Há inúmeras maneiras de interpretar este resultado, e muitas delas
provavelmente atribuiriam o baixo nível de confiança interpessoal dos
brasileiros a um conjunto de características de nossa cultura cívica e
política. Inglehart (1999) sugere que o grau de confiança interpessoal de uma
determinada sociedade está diretamente relacionado à estabilidade democrática e
às tradições culturais-religiosas sedimentadas. De acordo com esse autor,
democracias estáveis e protestantismo produzem um alto grau de confiança
interpessoal. Instabilidade democrática e catolicismo, por sua vez, produzem
pessoas desconfiadas.
Neste artigo, pretendemos mostrar que as interpretações dos resultados obtidos
nesses surveyssão muitas vezes imprecisas ou equivocadas, visto que ignoram
importantes diferenças entre as sociedades pesquisadas no âmbito de suas
culturas cívica e política. Argumentamos que parte desse equívoco se deve à
fragilidade analítica com a qual o conceito de confiança interpessoal é
formulado, pois tal formulação desconsidera o papel que instituições que
adjudicam conflitos (por exemplo, o Direito) têm na mediação de relações
interpessoais em uma sociedade. Conseqüentemente, as respostas obtidas nas
pesquisas de opinião pública referentes ao conceito de confiança acabam por
traduzir uma dimensão distinta daquela originalmente pretendida por aqueles que
as realizam. Em suma, nosso argumento é que, devido à sua fragilidade
analítica, o conceito de confiança interpessoal é ineficaz enquanto ferramenta
de medição empírica, conduzindo, portanto, a conclusões nomológicas ' i.e.,
generalizações teóricas indutivas baseadas em evidências empíricas '
equivocadas.
Devido à impropriedade do conceito, a descoberta da relação necessária entre
confiança interpessoal e estabilidade democrática, baseada nas observações
empíricas do survey, também deve ser colocada sob suspeita. Não há, a
princípio, nenhuma razão para crer que este tipo de confiança não possa
existir, ou mesmo vicejar, em ambientes de degradação da cultura democrática,
segregação, autoritarismo, ou mesmo em sociedades fortemente hierarquizadas. Em
outras palavras, a fragilidade analítica dessa categoria suscita aspectos
normativos preocupantes que a abordagem empiricista dos estudos de política
comparada não está equipada para enfrentar.
Na próxima seção, traçamos a filiação teórica da tese culturalista de
Inglehart, segundo a qual a confiança interpessoal é um produto da herança
religiosa das sociedades contemporâneas, para depois apontar inconsistências
nos resultados de sua pesquisa que põem em dúvida essa mesma tese. Na seção
seguinte, examinamos a variação semântica do conceito de "confiança" em algumas
das mais faladas línguas ocidentais com dois objetivos: apontar para os
problemas que sua tradução e aplicação na pesquisa empírica podem acarretar, e
revelar as várias significações que o termo e expressões compostas como
"confiança interpessoal" e "confiança pessoal" podem adquirir em contextos
distintos. Em seguida, demonstramos os problemas teóricos decorrentes do
conceito de confiança interpessoal e propomos o conceito de confiança política,
ou melhor, confiança em instituições como alternativa. Na seção final,
apresentamos as implicações desta crítica para uma teoria democrática e
explicamos como a confiança em instituições pode funcionar como ferramenta de
aferição de regimes políticos reais1.
DESCONFIANDO DO CONCEITO DE CONFIANÇA INTERPESSOAL
Há duas décadas Ronald Inglehart tem comparado pesquisas de opinião pública
sobre aspectos socioculturais e políticos de vários países ' primeiro no
contexto mais restrito do Eurobarometer, no início dos anos 1980, e mais
recentemente com o World Values Survey. Já em sua terceira edição, o World
Values Surveyabrange 65 países nos cinco continentes. Sua amostragem cobre,
segundo dados do próprio autor, 80% da população mundial. Em cada país a
pesquisa é feita por grupos locais e com verba local, sendo que o trabalho
final de tabulação e análise fica por conta de Inglehart e sua equipe do
Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Michigan.
Dentre os trabalhos produzidos por Inglehart usando dados do survey mundial
encontra-se "Trust, Well-Being and Democracy", artigo publicado em Warren
(1999), em que o autor interpreta resultados dos dois primeiros surveys
mundiais levados a cabo em 1990-91 e 1995-98, dando ênfase especial às relações
entre confiança, bem-estar e democracia (Inglehart, 1999). Em termos gerais, o
artigo deve ser entendido como um esforço de se argumentar, através de
interpretações dos dados dos surveys, que o nível de confiança interpessoal é,
em grande parte, um produto da cultura política de um povo, e que essa
confiança está diretamente relacionada à estabilidade do regime democrático.
Recuperando a tradição culturalista das ciências sociais norte-americanas,
Inglehart pretende reconduzir o conceito de cultura política a um lugar central
na teoria democrática.
Inglehart apóia-se nos trabalhos de Robert Putnam (1993) e Francis Fukuyama
(1995) para dizer que a confiança interpessoal é um elemento essencial para o
desenvolvimento de democracias modernas. Segundo estes autores, esse tipo de
confiança promove a cooperação entre estranhos, o que, por sua vez, é um
elemento fundamental, no plano político, para a estabilidade das instituições
representativas e, no plano econômico, para o funcionamento de sistemas de
produção complexos de larga escala.
Essa tese, compartilhada por inúmeros cientistas sociais norte-americanos, é
baseada na premissa do primado da cultura sobre o político e o econômico
(Almond e Coleman, 1960; Almond e Verba, 1963), e consiste no maior legado da
recepção acadêmica de Max Weber nos EUA do pós-guerra. Tal tese é a espinha
dorsal da teoria da modernização ' uma das abordagens sociocientíficas mais
influentes e duradouras nos EUA. Contudo, a recepção de Weber foi muito além da
mera crença no primado da cultura na formação política de uma nação
democrática. De A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, os teóricos da
modernização apropriaram o argumento de que o protestantismo em sua vertente
puritana serviu de alicerce para o desenvolvimento da mentalidade capitalista.
Fazendo vistas grossas para a tese weberiana da secularização do mundo moderno,
esses acadêmicos construíram uma teoria na qual modernidade, capitalismo e
protestantismo se tornam praticamente indissociáveis. Isso lhes permitiu
reduzir a narrativa da modernidade a uma história do capitalismo protestante.
Da mesma maneira, produziu-se uma geografia da modernidade em que os EUA, os
países anglo-saxões e as nações germânicas protestantes, em ordem hierárquica
decrescente, representam o moderno, enquanto o resto do mundo é descrito como
tradicional (Lerner, 1967; Lipset, 1960; Rostow, 1960).
O poder simplificador da teoria da modernização foi além da equiparação do
trinômio modernidade/capitalismo/protestantismo. Alguns autores também se
apropriaram do termo "ocidente", argumentando que a narrativa weberiana da
gênese da mentalidade capitalista corresponde à história recente da civilização
ocidental (Millikan e Blackmer, 1961). Outros foram ainda além, dizendo que
modernização e ocidentalização são de fato sinônimos de americanização
(Blanksten, 1960; Lerner, 1967).
Inglehart não comete os mesmos arroubos triunfalistas de seus antecessores, mas
reproduz basicamente o mesmo argumento. Ao notar que os níveis de confiança
interpessoal nos países protestantes do hemisfério norte são em média maiores
dos que os níveis em países católicos, o autor conclui que essa diferença se
explica pela "herança cultural histórica" de cada povo. Ele também observa que
o índice de confiança interpessoal tem uma alta correlação com o nível de
riqueza e com o "nível de democracia" ' entendido como um agregado do respeito
a direitos civis e políticos e estabilidade institucional. Portanto, quatro
variáveis estão em jogo: confiança interpessoal, nível de riqueza (modernização
econômica), herança cultural histórica (religião) e democracia. Inglehart
sugere que tanto o desenvolvimento econômico quanto o nível de confiança e a
democracia são, de fato, produtos da herança religiosa.
As preocupações empírico-comparativas de Inglehart ofuscam os problemas
conceituais embutidos nas categorias que articulam seu argumento. O autor
afirma de forma contundente que a confiança interpessoal é uma conseqüência da
herança religiosa de um povo, mas ao mesmo tempo diz que seu texto não é lugar
apropriado para discutir as "complexidades dessa relação". Uma análise de
algumas dessas "complexidades", porém, demonstra que o poder explicativo de seu
modelo é bastante reduzido. Mais precisamente, o conceito de confiança
interpessoal em nada contribui para uma compreensão satisfatória das
trajetórias econômicas e políticas dos países analisados. Pelo contrário, ele
ofusca relações que verdadeiramente importam a uma interpretação comparativa
adequada do funcionamento das instituições democráticas destes países e do
nível de desenvolvimento econômico por eles alcançados. Comecemos com algumas
dificuldades da lógica interna do argumento proposto.
Em primeiro lugar, a categoria "herança cultural histórica", que Inglehart
reduz à religião atávica dominante em um país, é problemática. Inglehart
empresta o argumento weberiano para argumentar que os altos níveis de confiança
interpessoal nos países do Norte ocidental se devem à sua herança protestante.
Contudo, o autor não explica como a herança comum confucionista, que ele
atribui a China, Formosa, Japão e Coréia, contribui também para o alto nível de
confiança interpessoal encontrado naqueles países. De fato, o grupo de países
confucionistas parece negar as principais descobertas de Inglehart. A China
apresenta o maior nível de confiança interpessoal entre seus pares, apesar de
ser de longe o país mais pobre do grupo e certamente o menos "democrático".
Nesse grupo, quanto maior a renda per capita (medida escolhida pelo autor)
menor o nível de confiança ' um fato que também contraria a teoria do autor. De
novo, Inglehart esquiva-se do desafio de explicitar quais seriam as
complexidades e diferenças da religião confucionista nestes países que pudessem
explicar tal resultado. Ao leitor só resta a dúvida quanto à aplicabilidade do
modelo proposto.
Em segundo lugar, Inglehart argumenta que o baixo nível de confiança
interpessoal em países católicos é um produto da hierarquia centralizada da
Igreja, que submetia pessoas ao poder de autoridades distantes com as quais
elas não podiam manter relações interpessoais. Em contraposição, as pequenas
comunidades protestantes proporcionaram um ambiente propício para o exercício
da confiança. Mais uma vez, Inglehart ignora as complexidades e diferenças
internas aos subgrupos religiosos que ele mesmo adota. Neste caso, é o próprio
protestantismo, a religião que tanto importa para a comprovação de sua tese,
que é tratado com pouco cuidado. Afinal, o exemplo mais caro de país moderno
democrático protestante usado pelo autor, depois dos EUA, é a Inglaterra.
Contudo, devemos notar que o anglicanismo, enquanto doutrina religiosa, é muito
similar ao catolicismo, tanto no que diz respeito à doutrina em geral quanto à
centralização hierárquica da Igreja. De fato, ao unir o comando da Igreja e do
Estado nas mãos de uma só pessoa, o rei, a Inglaterra caminhou em um sentido
contrário ao da idéia "moderna" da separação entre essas duas esferas. Em seus
estudos, Weber nunca se arriscou a tentar explicar como o anglicanismo pode ter
gerado uma mentalidade capitalista, preferindo concentrar sua análise nos
grupos puritanos radicais que imigraram para os EUA fugindo da perseguição
religiosa que sofriam por parte dos mesmos anglicanos. O caso inglês
evidentemente não se enquadra de maneira trivial no modelo proposto por
Inglehart.
Mais preocupante ainda é a combinação da crença de Inglehart nas virtudes do
protestantismo (sejam elas quais forem) com sua falta de interesse em examinar
os detalhes da relação entre o conteúdo das diversas doutrinas protestantes com
as motivações orientadas para a confiança. A tese de Inglehart a favor do
protestantismo é tão verdadeira quanto à conclusão de que a confiança
interpessoal é uma característica do povo germânico. Afinal de contas, a
maioria dos povos com altos níveis de confiança interpessoal, democracia e
desenvolvimento econômico são de "cultura" e língua germânicas. Contudo, o
autor não se arrisca a fazer tal correlação. Muito popular nos meios
intelectuais norte-americanos do século XIX e início do XX, o pangermanismo
caiu em desgraça com a derrocada do regime nazista na Segunda Guerra Mundial.
Apesar de ainda sobreviverem nas margens do mundo acadêmico (Martin, 1990),
argumentos abertamente raciais felizmente não são mais aceitos no mainstreamdas
ciências sociais americanas. A título de nota para futuros estudos, devemos
ficar atentos para a possibilidade de que a recepção da teoria de Weber nos EUA
tenha servido como instrumento de continuação, escamoteamento à reciclagem das
teorias racistas do passado, principalmente o pangermanismo e o anglo-
saxonismo.
O argumento da hierarquia religiosa como fonte da falta de confiança, de fato o
único fornecido por Inglehart, torna-se ainda mais duvidoso quando notamos que,
uma vez controlada a variável econômica (renda per capita), os países reunidos
pelo autor sob o rótulo "cristianismo ortodoxo" têm um nível de confiança
interpessoal significativamente mais alto que países protestantes. Mas não
seriam as igrejas ortodoxas também caracterizadas por um alto grau de
hierarquização? Ou seja, as explicações oferecidas por Inglehart aplicam-se a
alguns casos, mas não a outros. A situação complica-se ainda mais quando
notamos que, uma vez feito o controle da variável econômica, até mesmo países
católicos apresentam um nível de confiança interpessoal tão "bom" ou "melhor"
que o de seus pares protestantes. Em suma, a categoria "herança cultural
histórica" parece se sustentar sobre explicações ad hoc que o autor não aplica
judiciosamente a todos os casos estudados.
São, contudo, as conclusões que podem ser derivadas do texto de Inglehart que
nos preocupam mais. O autor insiste no fato de que a "herança cultural
histórica" está profundamente entranhada no povo, e, portanto, só pode sofrer
mudanças significativas em um longo prazo. Isso significa dizer que, por ser
presa de sua cultura atávica, uma comunidade política não é agente de sua
própria história. O horizonte de expectativas gerado por esse raciocínio é no
mínimo desalentador, pois indicaria que aqueles que hoje se encontram em uma
posição "inferior" têm poucas chances de melhora significativa, a não ser que
sejam submetidos a um processo tout court de aculturação ou colonização por
parte dos protestantes.
Do ponto de vista metodológico, vale lembrar que o conjunto de suposições e
hipóteses, apresentados por Inglehart em "Trust, Well-Being and Democracy", é
feito a partir das respostas a uma única pergunta do World Survey: "Em geral,
você diria que a maioria das pessoas é confiável ou que se deve ser precavido
ao lidar com elas?" A metodologia de surveys, instrumentos que sem dúvida
enriquecem nossa compreensão sociológica das sociedades de massa, não recomenda
que se construam indicadores quantificados a partir de uma única pergunta. Há
ainda inúmeros problemas associados à aplicação de questionários que colocam
seriamente em dúvida a qualidade da compreensão de perguntas pelos
respondentes, em particular em países onde o nível de escolaridade médio da
população é baixo. Em se tratando de um surveycomparativo mundial, em que a
pergunta é traduzida para diversas línguas, adiciona-se a dificuldade cognitiva
de que expressões com conotação moral evidente (como o conceito de confiança)
adquiram significados bastante distintos nos contextos lingüístico-semânticos
em que são utilizadas. Como veremos na seção seguinte, uma análise etimológica
das palavras que exprimem a idéia de confiança em algumas línguas do tronco
indo-europeu já aponta para uma significativa diferença.
CONFIANÇA: UMA BREVE ARQUEOLOGIA ETIMOLÓGICA
Inglehart parece não se importar com o fato de que a medida experimental da
confiança interpessoal pode ser prejudicada em decorrência dos diferentes
significados da palavra confiança nas muitas línguas dos países em que o
surveyfoi aplicado. Ora, sabemos que a maioria dos seres humanos vive em
comunidades lingüísticas razoavelmente estáveis, e que os significados
atribuídos aos termos de uma língua são produtos de experiências sociais
compartilhadas dentro de cada uma dessas comunidades. Como conseqüência do fato
de a língua adquirir significado através da experiência vivida de coletividades
humanas, os campos semânticos de muitos termos complexificam-se e diferenciam-
se. Toda pessoa que algum dia se empenhou seriamente em fazer uma tradução
passou pela experiência de não poder achar termos na língua de destino que
correspondam perfeitamente aos termos da língua de origem. Não raro, expressões
inteiras têm que ser reescritas, e o tradutor, mais cedo ou mais tarde, se dá
conta de que seu trabalho é de fato uma forma de interpretação2.
Portanto, a questão que se coloca à medida experimental é: como se produzir uma
pergunta que signifique exatamente a mesma coisa em 65 contextos lingüísticos
diferentes? O alto grau de dificuldade dessa tarefa, sequer comentado pelo
nosso autor, coloca em questão o significado e a consistência de suas
descobertas. Nosso objetivo principal nesta seção, contudo, não é apenas
identificar mais um problema na análise de Inglehart, mas apontar para os
componentes semânticos divergentes que caracterizam o termo confiança e seus
correlatos em algumas das principais línguas indo-européias.
Comecemos pelo inglês, que é nos dias de hoje a primeira língua na academia
ocidental e a língua originária do surveyde Inglehart. Analisando
detalhadamente as citações ilustrativas do longo verbete do substantivo trust
no Oxford English Dictionary (Simpson, Weiner et alii, 1991), percebe-se que,
até o século XVI, o termo era utilizado em sentido não-metafórico, para se
referir a uma relação de confiança entre amigos, parentes ou pessoas
conhecidas, como também era usado para se referir à confiança em Deus. A partir
do século XVI, mas sem perder seus conteúdos semânticos anteriores, trust passa
a ser usado para significar "comprar em confiança", ou melhor, comprar fiado, a
crédito. Ao redor desse período, o termo também é apropriado pela terminologia
jurídica para significar a relação em que uma pessoa se torna tutora de bens de
outra pessoa. As palavras disponíveis nas principais línguas neolatinas que
melhor traduzem a noção de trust são, em sua maioria, derivadas do termo latino
fides: confiança em português, confianza em espanhol, confiance em francês, e
fiducia em italiano. Contudo, os significados atribuídos ao termo fides em
latim parecem não corresponder exatamente ao conteúdo semântico de trust em
inglês. Uma vez que não nos é possível aqui proceder a uma análise
pormenorizada dos termos de cada língua, vamos direto à língua fonte.
A Latin Dictionary (Andrews, Freund et alii, 1955) define fides como "trust in
a person or thing". À primeira vista, portanto, a definição parece não distar
muito de seu correspondente em inglês. Contudo, uma leitura mais cuidadosa do
verbete revela que, paralelamente ao seu significado "pessoal", fides também
queria dizer crédito monetário. Ou seja, diferentemente do termo trust em
inglês, que adquiriu o significado de crédito tardiamente, a forma latina
fidesaparece associada ao crédito já no período da República romana. Autores
como Plauto, Júlio César e Cícero empregavam o termo das duas maneiras, como as
abonações do dicionário nos permitem constatar. Confirmando a importância do
aspecto "comercial" na concepção romana, mesmo entre abonações que ilustram o
caráter pessoal de fides, há referências a promessas de pagamento.
O que dizer dessas diferenças entre o uso do termo em inglês e em latim? A
confiança comercial difere da pessoal em um aspecto muito importante: ela é
mais claramente limitada por precondições. Uma relação de crédito, ou mais
geralmente, de transferência de um bem a outrem com vistas a um pagamento
(retribuição) futuro, é delimitada no espaço e no tempo. Seus termos são, em
geral, claramente estabelecidos entre as partes, não raro na forma de um
contrato, que por sua vez está sujeito à ação reguladora da lei. Isso não se
aplica à confiança pessoal, cuja existência e manutenção envolvem
primordialmente aspectos morais e emocionais do âmbito privado. As precondições
da confiança pessoal, quando existem, não são necessariamente explicitadas e
raramente se tornam assunto de negociação entre as partes. Ademais, contrário à
relação comercial, o depositário da confiança pessoal supostamente não age com
vistas a qualquer benefício próprio ou lucro.
Estas evidências parecem apontar para o fato de a confiança pessoal ocupar um
espaço maior no campo semântico de trust. Por exemplo, mesmo um termo do
vocabulário jurídico inglês como trustee, que é uma invenção do início da Idade
Moderna, não denota uma relação contratual do tipo sugerido pela confiança
comercial. Pois, enquanto o beneficiário depende da confiança depositada no
trustee, este não recebe nenhum benefício dessa relação, a não ser a satisfação
moral de exercitar de maneira virtuosa a confiança que lhe foi depositada.
Mas é nos textos de teoria política, fonte pouco explorada no verbete do Oxford
English Dictionary, que identificamos a pista mais importante. Sem pretensões
de um exame extensivo da incorporação dessa palavra ao pensamento político
inglês, gostaríamos de fazer algumas observações que nos parecem cruciais. Foi
também no início da Idade Moderna que a palavra trust adquiriu o status de
conceito em teoria política. John Locke é, com certeza, o autor que mais se
notabilizou por conferir à palavra trust um sentido verdadeiramente político.
Contudo, Thomas Hobbes já havia feito amplo uso do termo no Leviatã. Sua
definição de trust é a seguinte: "To believe, to trust, to rely on another, is
to honour him; sign of opinion of his virtue and power. To distrust, or not
believe, is to dishonour"3.
Apesar de dar a trust um tom aparentemente social, associando o termo ao poder
e à virtude, Hobbes iguala o termo à "crença" (belief), atitude que
repetidamente associa à irracionalidade e/ou aos argumentos escolásticos
baseados na noção de auctoritas. Da mesma forma, o autor, em outra passagem,
argumenta que a ignorância é também uma fonte de confiança (Hobbes, 1983:63).
Para Hobbes, a confiança só pode se libertar da irracionalidade através do
contrato social, ou mais especificamente, da submissão das partes envolvidas em
uma relação de confiança submetida à força da espada. Em outras palavras, a
confiança pessoal, aquela baseada na afeição e na "crença" nas qualidades de
outrem, não serve como valor de regulação da vida coletiva. Só a confiança
comercial (contratual), quando garantida pelo poder do soberano, tem conteúdo
racional. Em suma, para Hobbes, a lei é precondição necessária para o exercício
da confiança.
Enquanto Hobbes usa o político para redefinir a confiança em termos comerciais,
Locke confere à confiança um verdadeiro sentido político, utilizando-a no
Segundo Tratadocomo um elemento crucial de seu argumento contra o
patriarcalismo político. O autor começa por analisar a confiança pessoal em seu
contexto mais próprio: a família. A intenção é mostrar que a confiança dos
filhos na autoridade paterna se justifica pela proximidade dos laços afetivos
que unem a família. De maneira similar, sustenta Locke, as primeiras
comunidades eram formadas por laços de amizade e parentesco, e,
conseqüentemente, esse tipo de confiança de origem pessoal foi estendido aos
seus líderes. Tanto no caso da família como no das pequenas sociedades
primitivas, a confiança depositada no chefe pressupõe tacitamente que este olhe
pelo bem comum.
Contudo, o crescimento e a complexificação da comunidade levam à degeneração
desse tipo de relação protopolítica. Os líderes corrompem-se, passando a cuidar
de seus próprios interesses e a oprimir as pessoas sob seu comando. Em outras
palavras, a confiança pessoal, e, por conseguinte, o patriarcalismo, não pode
mais servir como elemento principal de coesão social. Para resolver esse
problema, Locke propõe um contrato social no qual as pessoas depositam no
mandatário sua confiança, mas de maneira claramente limitada. A palavra trust
continua a ser usada, mas agora com um outro sentido. Não se trata da confiança
"irracional" depositada no pai ou no chefe clânico4, mas sim de uma confiança
racional fundada explicitamente na manutenção do bem comum. A necessidade de
"condicionar" a confiança ao respeito à vida, liberdade e propriedade dos
cidadãos é tão forte que, sempre ao usar a palavra trust no texto, Locke em
seguida reafirma as condições que limitam seu exercício.
O que esta rápida incursão pelo uso da palavra trust por esses teóricos
políticos ingleses do início da Idade Moderna nos mostra, entre outras coisas,
é que os autores trabalharam arduamente para redefinir a palavra trust, e que
essa redefinição implica mitigar o forte conteúdo de confiança pessoal
associado a ela. Em seu esforço para clarificar a mudança conceitual que
pretende operar, Locke chega a chamar seu novo tipo de confiança política de
fiduciary trust, apelando exatamente para a forma latina fides/fiduciapara
reforçar o aspecto semântico contratual e, assim, distingui-lo do aspecto
pessoal do uso comum de trust(Locke, 1983:cap. XIII).
Em resumo, se no começo da Idade Moderna encontramos Hobbes e Locke tentando
associar significados a trust que já faziam parte do campo semântico de fides
há mais de 15 séculos, isso é porque os dois termos não eram semanticamente
equivalentes. A noção de trust parece estar fortemente ligada à idéia de
confiança pessoal, enquanto fidessugeria, até para falantes do inglês, um tipo
de confiança ligada a relações contratuais e comerciais. É interessante notar
que nas línguas neolatinas, com a exceção do italiano, um prefixo con- foi
adicionado ao radical de fides, o que reforça ainda mais o caráter de
reciprocidade contratual do termo.
Essa constatação nos permite supor hipoteticamente que os significados
associados a trust e a seus correlatos em línguas atuais da família germânica
(i.e., Vertraung) podem ainda hoje ser razoavelmente diferentes dos
significados associados aos derivados de fides nas línguas neolatinas. Em
outras palavras, ao serem perguntados "generally speaking, would you say that
most people can be trusted...?", os falantes de língua inglesa podem ter
entendido que a expressão "most people can be trusted" se refere às pessoas
sobre as quais a confiança pessoal pode ser depositada, isto é, aquelas pessoas
que lhes são próximas ' as que Charles Taylor, por exemplo, chama de
"significant others". Por outro lado, falantes de línguas neolatinas teriam
mais dificuldade de depositar "confiança" em "pessoas em geral" visto que as
condições da relação de confiança não são dadas pelo enunciado da pergunta.
Inglehart poderia ter refinado mais sua ferramenta de pesquisa, incluindo a
pergunta "do you generally trust strangers'?", o que serviria de parâmetro
para tentarmos reavaliar o entendimento que os respondentes tiveram da questão
anterior. Em suma, a pesquisa comparativa de Inglehart, ao utilizar uma única
pergunta cujo sentido moral pode ser variável por toda a amostra, produz um
resultado potencialmente artificial. Parece-nos, além do mais, que estas
diferenças no uso do termo confiança entre as línguas latinas (em geral, países
católicos) e o inglês (países protestantes) é componente necessário a qualquer
explicação mais robusta dos resultados encontrados por Inglehart.
CONFIANÇA INTERPESSOAL VS. CONFIANÇA POLÍTICA
Há outros motivos, todavia, para desconfiar do conceito de confiança
interpessoal. Eles dizem respeito ao seu uso enquanto categoria para uma
análise sociopolítica comparativa da estabilidade democrática e modernização
econômica dos países no mundo de hoje. A confiança depositada em relações com
parentes, amigos e conhecidos é certamente um componente primordial de nossa
vida afetiva. Sem ela, o parentesco seria somente um formalismo aprisionante, e
a amizade não existiria. Quanto aos conhecidos, a confiança que lhes
depositamos varia com seu grau de proximidade e participação em nossas vidas.
Assim como no caso dos amigos mais próximos, a falta de confiança leva ao fim
dessa relação. Apesar de sua importância dentro do círculo dos significant
others, acreditamos que a confiança interpessoal não pode ser erigida em
conceito político útil a uma teoria da democracia. Mesmo assumindo que as
assimetrias marcantes que outrora fundavam relações familiares, e mesmo de
amizade, tenham sido mitigadas por uma ética pós-tradicional, e que, portanto,
haja nelas espaço para algum tipo de igualdade, o simples fato de morarmos em
sociedades de massa não permite que mecanismos sociais de gestão e deliberação
se baseiem exclusivamente nesse princípio relacional. Em outras palavras,
nossas democracias têm que sobreviver sem banquetes coletivos da mesma forma
que nossas economias precisam crescer sem depender de que os seus trabalhadores
sejam imbuídos de uma ética protestante que os inclina vocacionalmente à
produtividade.
O caso da aplicação do termo trust para relações mercantis, entretanto, é
diferente. O tomador do fiado não tem com seu credor qualquer relação
necessária de afeto ou hierarquia. Substituindo a afetividade, entra o
interesse. O tomador obviamente se beneficia com a oportunidade de adquirir
bens sem pagar à vista, enquanto o futuro credor, a princípio, não tem nada a
ganhar com a confiança que ele deposita no outro. Contudo, é interessante notar
que, mesmo nesse tipo de relação, o tomador acaba pagando mais caro pela
mercadoria do que se tivesse comprado à vista. Ou seja, o interesse do futuro
credor é uma forma de interest(juros). Diferentemente das relações familiares e
de amizade, que funcionam na base do altruísmo e da solidariedade mútua, a
confiança comercial é baseada somente no interesse. Assim, devemos assumir que
ela nunca é incondicional. O devedor oferece garantias e deve aceitar condições
de pagamento. Devemos, portanto, isolar o problema da confiança enquanto
mediadora de relações mercantis, já que neste caso ela depende diretamente não
só da vontade das partes, mas principalmente das instituições econômicas que
regulam empréstimos. O problema a ser abordado é o da relação entre confiança
interpessoal e confiança política no plano das relações sociais que reproduzem
a democracia.
A fenomenologia do ato de confiar aponta para algumas complexidades às quais o
conceito de confiança interpessoal parece ser insensível. Apesar de os
participantes do surveypossivelmente se sentirem compelidos a responder à
pergunta sobre a confiança em pessoas "em geral", de fato, no processo vital
humano, relações de confiança ocorrem quase sempre de maneira situada. Apesar
de usarmos e abusarmos intelectualmente do dualismo das categorias de público e
privado, nossas relações no mundo concreto dão-se de maneira muito mais
complexa. A linha que vai das pessoas íntimas às conhecidas e aos estranhos
pode ser dividida em infinitas gradações. Ademais, mesmo quando a possibilidade
de confiança tem como objeto pessoas estranhas, estas sempre nos aparecem em
situações específicas: no trânsito, na escola de nossos filhos, na rua, no
escritório, em uma manifestação política, em uma viagem etc. Em cada situação,
esses estranhos se nos apresentam de maneira diversa: um guarda de trânsito, um
mendigo, uma vendedora de enciclopédias, um passante etc. Cada uma dessas
situações relacionais é embebida em aspectos institucionais, menos ou mais
sutis, e em outros aspectos cognitivos que compõem nossa vida social.
A questão que se nos coloca, portanto, não é simplesmente a da relação entre a
confiança interpessoal e a democracia, mas da consistência e utilidade de se
entender o problema da democracia através da categoria da confiança
interpessoal. Esse ponto pode parecer demasiadamente sutil à primeira vista,
mas ele se faz fundamental para entender a perspectiva normativa aqui proposta.
Trata-se de assumir uma ordem léxica entre essas duas variáveis, ou seja, de se
reconhecer o primado do valor da democracia sobre qualquer aspecto da confiança
que possamos usar para compreendê-la. Caso contrário, corremos o risco de
concluir com Inglehart que a queda do nível de confiança interpessoal nos EUA,
por exemplo, é um problema para a democracia naquele país, um raciocínio que
sugere que a democracia americana era mais forte nos anos 1940 e 1950, tempos
em que a maioria da população negra sequer usufruía direitos civis e
políticos5. Nossa hipótese é a de que, enquanto a noção de confiança
interpessoal é inadequada a uma teoria democrática moderna, a confiança em
instituições é uma categoria central à compreensão da estabilidade e
legitimidade de regimes democráticos. Para prosseguir com este exercício de
diferenciação conceitual, precisamos, entretanto, definir estas duas categorias
em questão. Uma definição de confiança interpessoal sintetizada a partir de
pistas fornecidas pelo texto de Inglehart assumiria a seguinte forma: é a
expectativa depositada em um estranho de que este aja de maneira cooperativa,
ou, pelo menos, não danosa, em relação ao depositante. Uma definição sucinta da
confiança em instituições pode ser expressa da seguinte forma: é a expectativa
de ação reparatória ou punitiva por parte dos poderes estabelecidos contra
todos aqueles que violarem os preceitos da lei. É claro que a confiança
institucional pode ser estendida para aspectos relacionados a direitos
positivos de participação e deliberação política, direitos econômicos
redistributivos, direitos de preservação cultural e do meio ambiente etc. Essa
definição mínima, porém, nos parece suficiente para demonstrar nosso argumento.
Agora imaginemos um respondente qualquer do surveyde Inglehart confrontando a
pergunta sobre a confiança em pessoas "em geral". Ora, não seria absurdo
inferir que, quanto maior a confiança política dessa pessoa em instituições '
no caso específico de nossa definição mínima, na polícia e no Judiciário ',
maior a confiança interpessoal que ela tenderá a demonstrar. Ou seja, o aspecto
cognitivo de viver em um ambiente social no qual a lei impera deve contribuir
fortemente para o aumento da confiança interpessoal, uma vez que durante sua
vida o respondente tem chances de observar a punição consistente daqueles que
infringem os preceitos da lei. Ou, colocando o problema em termos da teoria da
escolha racional, dado que a confiança em geral pode ser também entendida como
uma expectativa que se pondera contra um risco, quanto menor o risco envolvido
na transação, maior a confiança. As instituições políticas entram nessa equação
como fatores de diminuição do risco, seja pela inibição prévia de potenciais
quebradores de confiança, pela garantia de punição daqueles que realmente a
quebram, ou pela possibilidade de reparação dos danos causados por uma eventual
quebra de confiança.
Contudo, Inglehart não está interessado em explorar a questão da confiança
política em instituições, e pensa poder controlar essa variável através do uso
do índice de democracia formulado pela Freedom House. Mas o uso de tal índice
está longe de dar conta das possíveis interações e distinções entre os dois
níveis de confiança (interpessoal e política), seja para casos particulares ou
para a amostra em geral. Vários autores, contudo, têm apontado para a
necessidade imperativa de se distinguir claramente entre o conceito de
confiança interpessoal e o conceito de confiança política.
Kenneth Newton (1999), por exemplo, demonstra que a confiança interpessoal,
quando se analisam os dados do World Surveyse dos Eurobarometerse se comparam a
outros surveys que medem confiança política (entendida genericamente como
confiança nas instituições governamentais), produzem resultados contraditórios,
o que sugere que se tratam de duas dimensões distintas. Mais importante ainda,
demonstra Newton, quando se analisam estes dados no plano intranacional, a
confiança interpessoal está positiva e fortemente correlacionada com renda e
escolaridade, o que sugere que quem expressa altos graus deste tipo de
confiança são "os vencedores na sociedade" (winners in society). Já a confiança
política não apresenta nenhuma correlação forte com ser ou não membro das
elites de uma sociedade. Curiosamente, também não há nenhuma correlação forte
entre participação política em associações voluntárias e confiança política.
Estes dados e análises de Newton sugerem não só a existência de duas dimensões
distintas do conceito de confiança (interpessoal e política), mas a
irrelevância da primeira dimensão para uma compreensão da estabilidade
democrática. É a segunda dimensão (a da confiança política nas instituições)
que, por apresentar resultados ambíguos e independentes de renda e
escolaridade, requer uma análise e compreensão mais aprofundada.
Um argumento semelhante é apresentado por Kenneth P. Ruscio (1999). Segundo o
autor, confiança pessoal (personal trust)e confiança política (political trust)
não podem ser confundidas. Enquanto o conceito de confiança pessoal, tal qual
apresentado por autores como Hardin (1993; 1996), é pensado como "noção
amoralizada" (unmoralized notion), indicando apenas uma decisão pessoal de
outorgar autoridade a outrem, o conceito de confiança política, que às vezes
aparece travestido em Hardin na forma do conceito de trustworthiness(merecer
confiança), implica aprovação moral por parte daquele que confia. Ora, se o
conceito de confiança (inter)pessoal indica apenas o sentido original da
palavra latina fides, retornamos ao âmbito de relações mercantilizadas, e não
há sequer porque chamar esta relação de con-fiança, uma vez que se trata apenas
de um interesse encapsulado que pode ser maximizado através da minimização dos
riscos da transação. O problema de quem merece confiança (trustworthiness), por
sua vez, não pode ser desvinculado da posição institucional ocupada pelo
sujeito dentro do conjunto das relações de poder de uma sociedade. Nas
sociedades pós-tradicionais, esta confiança política, na verdade, não é uma
confiança na pessoa em si (pode até ser em contextos carismáticos), mas uma
confiança na instituição que a media, no cargo que a pessoa ocupa, ou até mesmo
na capacidade do exercício competente da função atribuída. O tema que precisa
ser tratado criticamente, portanto, é o da confiança política nas sociedades
contemporâneas: entender as causas de sua variação (intra e internacional), as
possíveis formas de produzi-la e sua relação com a consolidação democrática.
DEMOCRACIA E CONFIANÇA
Discutimos anteriormente o primado da confiança em instituições sobre a
confiança interpessoal na construção de uma teoria democrática para as
sociedades contemporâneas. Falta-nos, porém, definir o modelo de democracia que
temos em mente. Não nos interessa aqui desenvolver uma teoria completa da
democracia, mas somente ressaltar alguns aspectos necessários às suas
instituições. Ao nosso ver, as instituições em um regime democrático devem
servir como espaços de discussão, deliberação e/ou adjudicação de três tipos de
demandas sociais: reconhecimento, redistribuição e revisão das regras das
próprias instituições.
A questão do reconhecimento tem recebido grande atenção na literatura
contemporânea sobre teoria democrática. Charles Taylor (1992) foi o pioneiro da
reintrodução desse conceito de origem hegeliana no vocabulário teórico político
atual. O problema levantado por esse autor é o de se pensar o funcionamento de
uma democracia moderna em uma sociedade multicultural, isto é, dividida em
comunidades que não compartilham dos mesmos valores e modos de vida6. Taylor
argumenta que indivíduos e grupos étnicos só podem usufruir uma vivência digna
dentro de uma comunidade política nacional se eles têm, de alguma maneira, o
valor de seu estilo de vida (etos, cultura) reconhecido por essa mesma
comunidade. Na linguagem corrente da chamada "virada lingüística", isto se
concretiza através do compartilhamento intersubjetivo de formas lingüísticas
propícias ao reconhecimento. Mas a constatação teórica da necessidade do
reconhecimento não oferece uma solução imediata para o problema político da
democracia em uma sociedade multicultural, pois, na prática há o problema da
valoração comparativa de diferentes culturas. Taylor rejeita a tese de que
todas as culturas têm o mesmo valor, e, portanto, a conclusão de que todas a
minorias étnicas devam ser agraciadas com os direitos necessários para sua
preservação. Em seu lugar, o autor propõe uma abordagem hermenêutica para o
problema, na qual a cultura dominante se abre ao estudo dos outros e, através
dessa abertura, se permite examinar criticamente a sua própria identidade,
modificando assim seu horizonte de valores. Apesar da beleza quase poética da
proposta, devemos notar que ela pressupõe um entendimento prévio do eu (self)
cultural dominante e, por conseguinte, dos outros; ou, em termos gadamerianos,
um estado inicial que precede o momento hermenêutico em que há um entendimento
intersubjetivo da própria tradição. Discordamos que deva haver tal momento
inicial em uma teoria democrática. Ou melhor, pensamos ser possível cogitar uma
alternativa que, sem descartar a questão do reconhecimento, não passe pela
reificação da cultura do eu e do outro e, portanto, não exija que as pessoas
para serem incluídas tenham que se apresentar como o Outro de sua própria
comunidade política.
Axel Honneth (1995) avança em relação a Taylor ao reconstruir uma teoria da
democracia moderna baseada na questão do reconhecimento. Para Honneth, o
reconhecimento não é somente um problema de minorias, mas a base sobre a qual
se deve assentar a formação da personalidade, do indivíduo como portador de
direitos e do cidadão. Segundo o autor, há três tipos básicos de
reconhecimento: o amor e afeto que uma pessoa recebe de seus significant
others, o respeito dos direitos iguais de cada pessoa e o reconhecimento do
estilo de vida de cada um como uma contribuição original à vida social. Essas
formas de reconhecimento operam através de processos intersubjetivos de
comunicação e são responsáveis por produzir na pessoa a auto-estima, a
autoconfiança e o respeito próprio. A tipologia do reconhecimento de Honneth
tem um aspecto normativo forte, pois funciona ao mesmo tempo como um horizonte
ético da vida do indivíduo em sociedade e como um conjunto de critérios através
do qual instituições públicas podem ser construídas, reformadas ou banidas.
Concordamos com Honneth em outorgar importância à questão do reconhecimento.
Nosso ponto de vista difere do dele, porém, na medida em que pensamos que, em
uma sociedade verdadeiramente democrática, o conteúdo substantivo do
reconhecimento só pode ser definido através da prática política, entendida como
atos comunicativos de participação e deliberação em situações de ação concreta.
Ou seja, o esforço de se definir o conteúdo do reconhecimento como um a
prioriteórico é contrário ao princípio democrático. Portanto, o aperfeiçoamento
das instituições políticas não se faz perseguindo formas fixas de
reconhecimento, mas sim proporcionando canais através dos quais as pessoas
possam resistir ao que elas entendem como falta de reconhecimento
(desrespeito). Dessa maneira, tanto o indivíduo como um coletivo de pessoas
podem reclamar pelo tratamento que lhes pareça mais justo (respeitoso) sem ter
que se limitar a uma concepção saudável de reconhecimento. O que importa,
portanto, do ponto de vista de uma teoria política normativa que opera sob o
horizonte democrático, é identificar formas retóricas através das quais o
desrespeito é produzido no uso da linguagem cotidiana e das linguagens técnicas
das disciplinas científicas (Feres Júnior, 2002).
Uma das críticas mais interessantes à posição de Honneth foi articulada por
Nancy Fraser (1997). Fraser reconhece a importância das demandas por
reconhecimento em sociedades modernas, mas chama atenção para a importância das
demandas por distribuição. De acordo com a autora, uma concepção de justiça
democrática não pode abrir mão de qualquer desses dois eixos de reivindicação.
Segundo Fraser, a teoria da democracia baseada no reconhecimento proposta por
Honneth e Taylor acaba por reduzir o problema da democracia a questões de
política da identidade, excluindo assim as demandas por redistribuição, que
foram o motor de grande parte dos movimentos sociais democratizantes no
Ocidente. Ademais, no plano dos movimentos sociais contemporâneos, questões de
reconhecimento e redistribuição não raro se encontram entrelaçadas, como é o
caso, por exemplo, das demandas contra formas de exploração econômica baseadas
em gênero e raça. Por fim, Fraser também chama atenção para o fato de que a
luta pelo reconhecimento deve abarcar não só demandas pela proteção de
identidades, mas também movimentos que propõem a desconstrução do essencialismo
que move a "política da identidade", como por exemplo queer politics, o
feminismo desconstrutivista, e a teoria crítica da raça (Fraser, 1997; Fraser e
Honneth, 2003).
Ora, não podemos ignorar o fato de que os outros das democracias modernas,
aqueles que têm um déficit de reconhecimento, são quase sempre os mesmos que
sofrem de injustiça distributiva. Não há, portanto, como discordar de Fraser a
respeito da necessidade de se contemplar tanto o reconhecimento como a
distribuição em uma teoria democrática. Pensamos, porém, que, no tocante às
instituições, é importante ressaltar a necessidade de suas normas também
estarem submetidas ao procedimento democrático, isto é, a discussão,
deliberação e revisão.
Para tanto, podemos usar o recurso contrafactual, como faz Habermas (1996), e
argumentar que a ausência de espaços institucionais para que qualquer uma das
demandas (reconhecimento, redistribuição e revisão de normas) possa ser
discutida publicamente comprometeria seriamente o caráter democrático de
qualquer regime. No modelo de democracia habermasiano, a construção dos
procedimentos discursivos recebe um tratamento nitidamente deontológico, em que
os princípios da ética do discurso (princípios U e D) são tratados como
momentos indisponíveis à discussão pública, já que seu questionamento
resultaria naquilo que Habermas denomina de "contradição performativa", isto é,
o agente que recusa estes princípios em um contexto comunicativo precisa, ao
mesmo tempo, aceitá-los para conferir pretensão de validade a esta recusa.
Entretanto, este tratamento deontológico aos procedimentos discursivos é ele,
também, vítima de uma contradição performativa, pois se os próprios princípios
da construção da autonomia privada não podem estar sujeitos ao exercício pleno
da soberania popular, caímos novamente em um modelo liberal de democracia, em
que tolerância (e a confiança interpessoal que ela pressupõe) se sobrepõe à
confiança nas instituições. Em suma, os próprios procedimentos discursivos '
i.e., as normas fundamentais ' precisam estar sujeitos à possibilidade de
revisão por parte das comunidades democráticas7.
Mas qual é, afinal de contas, a utilidade e a importância de incluirmos a
confiança política em instituições na produção de um modelo contemporâneo de
democracia? Essa categoria serve como ponte entre uma teoria normativa de
democracia e a realidade das democracias existentes no mundo contemporâneo. Por
mais irônico que pareça, a confiança em instituições pode ter uma importante
aplicação em ciência política, funcionando como ferramenta de medição do teor
democrático de regimes políticos concretos. Esse procedimento funcionaria como
importante contraponto, ou complemento, para análises institucionalistas, que
supõem poder determinar níveis de democracia através do estudo do desenho e
desempenho de instituições.
Para que isso seja feito, no entanto, é necessário que esse tipo de confiança
seja dividido de acordo com os tipos de demanda supracitados. Em vez de conter
perguntas sobre a confiança política em geral, surveysde opinião pública devem
ter blocos de perguntas sobre a confiança em instituições quanto a demandas por
redistribuição, reconhecimento e revisão de normas, separadamente. Por exemplo,
um cidadão em um país rico, com sistema de seguridade social consolidado, pode
confiar nas instituições que atendem demandas por redistribuição ao mesmo tempo
em que desconfia do sistema político, por esse não estar aberto a demandas por
maior participação e deliberação (normas). Outra pessoa pode se sentir
desrespeitada como membro de uma minoria cultural e alijada de processos
redistributivos e ao mesmo tempo confiar nas regras do jogo político. Em outras
palavras, a dimensão "confiança política" é a dimensão pertinente, e ela
precisa ser medida e especificada para os três níveis com os quais demandas
sociais interagem.
Em suma, se queremos construir sociedades democráticas tomando como ponto de
partida a realidade das democracias existentes e a realidade das demandas
sociais feitas em seu seio, precisamos reintroduzir a dimensão "confiança
política", entendida como a confiança que o corpo de cidadãos deposita nas
instituições responsáveis pelo reconhecimento, participação e distribuição de
riqueza. O ato de confiar é muito mais complexo e contém inúmeras sutilezas que
uma simples pergunta sobre o grau de confiança interpessoal entre os cidadãos
de um país jamais será capaz de captar. Ignoradas esta complexidade e estas
sutilezas, fica a impressão, pelo menos entre os mais céticos quanto à validade
das incursões da política comparada no campo da teoria democrática, de que
estamos dormindo com o inimigo.
NOTAS
1. O presente texto visa, portanto, a uma crítica analítica do conceito de
confiança interpessoal, não investindo na análise da literatura empírica que
trata dos níveis de confiança interpessoal em nosso país. Para tal, vide, por
exemplo, Avritzer (1995; 2001; 2002), Baquero (2001; 2003) e Singer (1999).
2. Sobre os problemas da tradução e sua importância para uma compreensão das
interações lingüísticas em geral, ver Gadamer (1975, esp. pp. 346-347)
3. Mantivemos o inglês da citação porque a tradução para o português para este
trecho do cap. X do Leviatã na edição da coleção Os Pensadores omite a palavra
"confiar" (trust): "Honrar aquele a quem outro honra é honrar este também, como
sinal de aprovação de seu discernimento. Honrar seus inimigos é desonrá-lo".
Ver Hobbes (1983:55).
4. Aqui o argumento é similar ao de Hobbes. Locke defende que o pátrio poder só
se justifica pela imaturidade e, portanto, racionalidade incompleta dos filhos.
Uma vez que as faculdades da razão se desenvolvem, as bases do poder da relação
familiar se extinguem.
5. Para uma crítica detalhada do conservadorismo dessa posição, ver Cohen
(1999).
6. A questão prática que move o esforço de Taylor (1992) é o da democracia em
um Canadá dividido entre anglófonos, francófonos e outras minorias.
7. De acordo com o princípio (U) da ética do discurso de Habermas, toda norma
deve satisfazer a condição que as "conseqüências e efeitos colaterais, que
(possivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cadaum dos
indivíduos do fato de ser ela universalmenteseguida, possam ser aceitos por
todosos concernidos (e preferidos a todas as conseqüências das possibilidades
alternativas e conhecidas de regragem)". Já o princípio (D) afirma que todos
aqueles potencialmente afetados pela norma cheguem a um acordo quanto a sua
validez (Habermas, 1989:86).