Simmel no Brasil
Dedicado ao Octávio Ianni, in memoriam
APRESENTAÇÃO
Desde quando se pode detectar a presença das idéias e dos escritos de Georg
Simmel (1858-1918) no Brasil? Esta é a primeira questão que orienta este texto.
Procuro indicar e investigar os primórdios da recepção de Simmel no Brasil,
localizar autores e obras nos quais sua presença se faz sentir e indicar
variadas modalidades de recepção, importação, apropriação e discussão das
idéias de Simmel no Brasil. A isso acrescenta-se uma ponderação crítica acerca
das modalidades indicadas, de sorte a oferecer, como uma primeira abordagem de
uma questão ainda inexplorada, não apenas um mapeamento inicial, mas também
subsídios para uma valoração que possa indicar os pontos mais fortes e mais
fracos, mais amplos e mais restritos, mais ou menos literais, mais ou menos
articulados nos modos de lidar e pensar com Simmel, e as conseqüências disso
para as pesquisas e disciplinas envolvidas. Sob certo ponto de vista, a
investigação faculta acompanhar uma história da sociologia no Brasil.
Entretanto, é preciso, antes de tudo, destacar o caráter anti-simmeliano de tal
investigação acerca de sua fortuna crítica ou acrítica no Brasil, pois é
preciso inventariar e classificar com um ímpeto bastante estranho ao pensamento
de Simmel. Além disso, esta investigação ' que não pretende completude, apenas
exemplaridade em sua diversidade ' nada tem do empolgante, do cativante e do
sedutor que costuma caracterizar Simmel e, rumando na direção oposta, é
monótona, cansativa e de resultados rarefeitos. Tal rarefação, contudo, é de
interesse sociológico e necessita de entendimento.
Falar de recepção, de cultural transfers, de apropriações, de circulação de
idéias exige, com relação a Georg Simmel, lembrar sua célebre afirmação acerca
de sua herança:
"Sei que irei morrer sem herdeiros espirituais (e é bom que seja
assim). Meu espólio é como uma herança em dinheiro vivo, que é
dividida entre muitos herdeiros: cada um converte a sua parte em
alguma aquisição de acordo com a sua natureza, de modo que não se
pode enxergar a sua proveniência daquele espólio." (Simmel, 1967
[s.d.]:1, ênfase no original, tradução do autor)
Para quem escreveu uma filosofia do dinheiro, a analogia é plena de sentidos.
Podemos ler no livro de 1900: "[...] a transação com dinheiro tem aquele
caráter de uma relação absolutamente momentânea, que não deixa nenhum rastro
[...]" (Simmel, 1991 [1900]:513, tradução do autor). Assim se compreende porque
a recepção de Simmel é, em algumas de suas vertentes mais instigantes,
subterrânea, oculta e ocultada. De meu lado, lembro apenas que outras formas de
propriedade que não o dinheiro trazem consigo vestígios de sua origem ' Simmel
diria: vestígios que não se deixam apagar, vestígios objetivos ou psicológicos
' que fazem com que o proprietário se lembre da origem de tal propriedade '
enquanto com relação ao dinheiro não há vestígios que se deixem rastrear.
E, de fato, os herdeiros lidaram de modos bem variados com a herança, e uma
pequena, quase insignificante, ramificação disso tudo é o que se pode esperar
de um texto intitulado "Simmel no Brasil". Ademais, tratarei de Simmel no
Brasil no âmbito das ciências sociais, sobretudo da sociologia e antropologia;
uma possível investigação a esse respeito com relação à filosofia e à história
deixo a cargo dos colegas especialistas1.
Ainda no domínio dos prolegômenos, cabe lembrar que Simmel, nascido em Berlim
há quase 150 anos, tinha por Muttersprache (língua mãe) o alemão, e em alemão
sempre escreveu. Por essa razão, em certa medida, que é preciso ponderar, o
conhecimento, a recepção e a circulação de seus textos dependeu do acesso a
essa língua. Mas não exclusivamente, pois desde cedo ele foi bastante traduzido
em duas das grandes metrópoles da sociologia da virada do século, Paris e
Chicago. Desde cedo, portanto, além do Simmel berlinense, existiu um Simmel
parisiense e um Simmel chicaguense. Além, claro está, de alguns outros em
outras línguas, que nunca cresceram tanto, ao menos em seus inícios.
Circulação de livros e periódicos, acesso a línguas estrangeiras, agentes de
transmissão, fontes de divulgação, instituições de reprodução e assim por
diante são sempre elementos fundamentais para que se possa falar de recepção e
circulação, assim como dessa casta malpaga e mal-amada, os tradutores. Simmel
no Brasil, certamente, depende disto tudo e de algo mais. Pensemos nos agentes
e centros de difusão:
- não há sociólogos brasileiros que estudaram com Simmel;
- não há, entre nós, uma instituição a partir da qual a recepção de
Simmel se irradiou inicialmente;
- não há, praticamente, publicação de textos de Simmel em português.
Comecemos por este último ponto, e aqui vai a lista das traduções de textos '
em grande maioria fragmentos de texto ' de Simmel que consegui fazer; ela vai
apenas até a virada para os anos 1980, por razões que explicarei mais adiante.
1. "As Formas Sociais como Objeto da Sociologia", em 1940, na
coletânea Leituras Sociológicas, organizada por Romano Barreto e
Emilio Willems (1940:7-12. Trata-se de excerto do início da
Soziologie de 1908).
2. "O Indivíduo e a Díade", em 1961, na coletânea Homem e Sociedade,
organizada por Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni (1961)2.
3. "A Metrópole e a Vida Mental", em 1967, na coletânea O Fenômeno
Urbano, organizada por Otávio Velho (1967:13-28)3.
4. "Requisitos Universais e Axiomáticos da Sociedade", em 1969, na
coletânea Comunidade e Sociedade, organizada por Florestan Fernandes
(1969:62-81).
5. "O Problema da Sociologia", em 1977, na coletânea Teoria
Sociológica, organizada por P. Birnbaum e F. Chazel (1977:18-21).
6. Variados artigos, preponderantemente da Soziologie de 1908, em uma
coletânea de textos de Simmel na coleção Grandes Cientistas Sociais,
em 1983, organizada por Evaristo de Moraes Filho (1983)4.
Ao lado disso, é preciso destacar a relevância das traduções para o espanhol
das obras de Simmel, pois muitas vezes foi através destas traduções que Simmel
foi lido no Brasil. Em termos mais gerais, é um fenômeno que teve uma
importância que ainda está por ser avaliada no âmbito das nossas ciências
sociais, e no caso particular de Simmel isso foi tanto mais relevante, quanto
parcas foram as traduções nacionais e variadas as espanholas ' publicadas
sobretudo em Madri e Buenos Aires (cf. Vernik, 2006).
A simples listagem das traduções brasileiras revela o fato de Simmel estar
presente desde os primórdios da institucionalização das ciências sociais no
Brasil, como foi o caso da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo5.
Foi ali que se gestou a primeira das traduções e publicações, concebida como
material didático pelos professores Barreto e Willems, em uma antologia que
retém ainda hoje, passados 65 anos, seu interesse. Naquela ocasião, a relação
com Simmel era ainda uma relação direta com a obra em alemão, língua nativa de
Willems. Embora a presença das idéias e dos autores de Chicago não fosse de
menor importância, as duas vertentes confluíram em uma escola que juntou
professores vindos dos Estados Unidos e da Alemanha ' embora por mero acaso.
Mas, a partir de então, a relação passa a ser predominantemente intermediada
por Chicago, e mesmo as traduções passam a ser de segunda mão, realizadas a
partir de traduções norte-americanas ' nos melhores casos, coteja-se com o
original alemão. Isto não se alterará nem mesmo em 1983.
Dada a importância da recepção de Simmel em Chicago, o centro irradiador da
sociologia nos EUA desde a virada do século até o Entre-Guerras, convém lembrar
alguns fatos de base: não somente Albion Small como colega de Simmel em Berlim,
e Robert Park como seu aluno na Alemanha, para nomear apenas os dois mais
conhecidos e influentes, mas também as traduções no American Journal of
Sociology, e o papel, que dificilmente se pode exagerar, desempenhado por
Robert Park e seu colega Ernst W. Burgess que, em 1921, publicaram, pela
University of Chicago Press, sua Introduction to the Science of Sociology, uma
das coletâneas-manuais de sociologia de maior penetração não só nos EUA, mas no
mundo todo. Nesse volume, Simmel é o autor com o maior número de trechos
selecionados (10) e a presença e importância de Simmel nessa introdução '
conhecida mundo afora como "Park and Burgess" ' foi decisiva para a presença
duradoura de Simmel na sociologia norte-americana e para sua maior difusão por
toda a sociologia ocidental. E, em 1936, Edward A. Shils, também em Chicago,
traduziu "The Metropolis and Mental Life"6, um texto que propiciará, mais que
todos os outros, uma certa divulgação e penetração de Simmel nas ciências
sociais brasileiras.
Quis destacar essas duas publicações norte-americanas porque elas revelam algo
muito significativo para o tema e problema Simmel no Brasil, ao corresponderem,
grosso modo, a dois momentos da recepção por aqui. Nesse sentido, gostaria de
parafrasear um estudo clássico sobre a recepção de Simmel nos EUA, tendo em
vista a nossa situação local: "A transmissão das idéias de Simmel na sociologia
americana [brasileira, LW] ocorreu na verdade em tempos diferentes, em locais
diferentes, de modos diferentes e por diferentes razões" (Levine, Carter e
Gorman, 1976:178).
Se conseguirmos ganhar alguma clareza com relação a essas variáveis, creio que
poderemos começar a formar uma idéia da recepção de Simmel no Brasil. Vejamos:
Um primeiro momento pode ser caracterizado do mesmo modo como o fizeram os
autores americanos, Levine, Carter e Gorman: "Estabelecendo o domínio
sociológico". Segundo eles,
"Durante aqueles anos, Simmel aparecia como alguém que levou
especialmente a sério a questão de estabelecer um domínio analítico
claramente demarcado para a sociologia, e sua delimitação decidida do
campo ajudou a promover um sentido de identidade profissional para
alguns daqueles que aprenderam com ele" (idem:178-179, tradução do
autor).
Exatamente o mesmo processo ocorre no Brasil, no período que vem de
aproximadamente meados dos anos 1930 até a virada para os anos 1980:
1. Simmel é incorporado nos manuais e introduções à sociologia de
variados autores, como se vê nos casos citados das antologias-manuais
de Barreto e Willems (1940), Fernando Henrique Cardoso e Ianni
(1961), e Florestan Fernandes (1969), produzidas no Brasil; e no caso
da coletânea de Birnbaum e Chazel (1977), estrangeira, mas traduzida.
2. Simmel aparece como um sociólogo importante ou muito importante,
ao lado de outros, no processo de definição, circunscrição,
constituição e legitimação da sociologia como ciência e/ou campo
autônomo de problematização e investigação. Simmel é reconhecido como
um dos patriarcas da disciplina, que precisa, portanto, ser de algum
modo minimamente conhecido por todos, e que muitas vezes fornecerá
aportes mais ou menos importantes para os sociólogos brasileiros em
suas investigações.
3. Por outro lado, não há espaço, interesse, maturação e adensamento
intelectual e acadêmico para um aprofundamento na sociologia e no
pensamento de Simmel: ele aparece, já o disse, como um importante
sociólogo, dentre outros, no processo de constituição da disciplina.
O segundo momento já se deixa entrever por contraste com o anterior: a
legitimação do domínio sociológico, o crescente adensamento das ciências
sociais no Brasil, a institucionalização crescente da disciplina e dos cursos
de graduação e pós-graduação, das agências e dos programas de pesquisa: em
suma, adensamento e diferenciação disciplinar possibilitam uma atenção mais
detida ao pensamento de Simmel, e a partir de então ele não é mais somente um
autor em meio a vários outros, mas um autor que merece atenção por si mesmo.
Esse fenômeno possui evidentemente duas dimensões: representa, por um lado, uma
diminuição da relevância de Simmel e, por outro, um aumento desta relevância;
ou Simmel está fora de um campo de interesse, e nesse sentido deixa de existir,
ou torna-se precisamente um foco significativo em outro campo de interesse, e
então torna-se um autor e um pensamento que se precisa conhecer mais e melhor.
Por outras palavras, Simmel deixa de ser um autor obrigatoriamente conhecido e
é progressivamente relegado; mas, no pólo oposto, quando aparece, é como um
autor que possui uma relevância especial para o estudo em pauta.
A partir desse momento pode-se, embora esquematicamente, apontar duas
vertentes, não necessariamente excludentes, nas quais a pesquisa e presença de
Simmel se desdobram: por um lado, sua presença como um clássico da sociologia,
vale dizer como uma referência presente e viva na história da disciplina; por
outro lado, como um autor que fornece pontos de partida importantes para a
realização de pesquisas e investigações variadas, e nesse sentido firma-se como
uma referência intelectual de fundo (em conjunto, o mais das vezes, com outros
desenvolvimentos).
Como já indiquei, é na virada para os anos 1980 que, creio eu, se pode
localizar cronologicamente essa passagem, que nada tem de brusca, mas se
realiza de modo gradual. Basicamente três acontecimentos fornecem
indicativamente o enquadramento dessa passagem:
1. A tese de livre-docência de Gabriel Cohn na Universidade de São
Paulo ' USP, em 1977, publicada em 1979 com o título Crítica e
Resignação. Fundamentos da Sociologia de Max Weber. Embora o livro
seja dedicado a Weber, contém um capítulo sobre Georg Simmel que é um
marco no tratamento dado a Simmel no Brasil, devido à penetração com
que é abordado e o destaque que recebe no curso do argumento. A
simples possibilidade de adensamento intelectual e acadêmico que veio
a possibilitar a concepção, escrita, submissão, aprovação, publicação
e reconhecimento de tal tese já é um índice seguro de que as ciências
sociais, no Brasil, comportavam naquele momento um trabalho daquele
gênero.
2. A coletânea Georg Simmel: Sociologia, organizada por Evaristo de
Moraes Filho e publicada em 1983 na coleção Grandes Cientistas
Sociais, dirigida por Florestan Fernandes. Como já assinalei, a
coletânea reúne textos variados: um artigo inteiro e 11 fragmentos de
livros, grande parte deles extraídos da Soziologie de 1908. Vale
notar que o volume dedicado a Simmel na coleção é o de número 34, o
que significa que antes dele se publicaram 33 volumes dedicados a
outros autores, e essa posição reflete, embora não de modo absoluto,
a importância que então se atribui ao sociólogo de Berlim (a coleção
foi inaugurada, como não poderia deixar de ser, com o volume dedicado
a Émile Durkheim).
3. Uma série de investigações de Gilberto Velho, que se inicia na
passagem dos anos 1970 para os anos 1980 e que perdura até o
presente, nas quais Simmel é uma referência fundamental: no centro
dessas investigações está o problema do indivíduo/ individualismo e
da sociabilidade, e Simmel é o autor por excelência, embora não o
único, que orienta as problematizações de Gilberto. Apenas a título
de ilustração ' pois aqui se trata menos de publicações e mais de
algo que se poderia mesmo denominar um programa de investigação, de
que as publicações são um resultado ' posso nomear os livros
Individualismo e Cultura. Notas para uma Antropologia da Sociedade
Contemporânea, de 1981, e Subjetividade e Sociedade. Uma Experiência
de Geração, de 1986.
Esses três fenômenos, um paulista, um paulista-carioca e um carioca, são
indicativos; assim como é indicativo que se trate de protagonistas sociólogo,
jurisconsulto, antropólogo. Como quer que seja, minha proposta é indagar um
pouco pelo primeiro momento, e a forma para tanto é a do inventário.
UM MANUAL DOS ANOS 1930 E UM PROTAGONISTA IMPORTANTE: FERNANDO DE AZEVEDO
Fernando de Azevedo publica, em 1935, os seus Princípios de Sociologia. Pequena
Introdução ao Estudo de Sociologia Geral, um manual com cerca de dezena e meia
de referências a Simmel (Azevedo, 1935)7. O livro é bastante amplo e arrola um
grande número de vertentes da sociologia e de autores (preponderantemente
franceses, norte-americanos, ingleses, alemães e italianos); Simmel aparece no
manual em variados momentos:
1. Na defesa da objetividade do conhecimento dos fatos e fenômenos
sociais, na busca de uma imparcialidade, embora não deixe de
reconhecer que o sujeito do conhecimento carece estar em uma relação
íntima com o objeto que almeja compreender (idem:23).
2. Em um capítulo sobre a importância da sociologia dos grupos
sociais, Azevedo retoma e destaca a compreensão simmeliana da relação
entre a formação de uma personalidade individual e independente e os
diferentes e múltiplos círculos sociais (idem:66).
3. Azevedo também destaca a questão das "formas sociais",
compreendidas como "tipos de interação dos indivíduos nas suas
relações recíprocas" (idem:69). Na investigação de tais formas, o
interesse deve recair sobre as modalidades de relações que estão ali
em jogo, tais como conflito, cooperação, imitação, subordinação etc.,
pois são nessas relações que "os homens se tornam sociedade" (idem:69
e 150) Vê-se aqui uma compreensão acurada, por Fernando de Azevedo,
de um nexo fundante da sociologia e do pensamento de Simmel.
4. Azevedo destaca a importância dada por Simmel à grandeza dos
grupos sociais, como um fator significativo para a análise das formas
sociais. Nesse sentido, Azevedo também pontua, através de Bouglé (uma
figura central na história da recepção de Simmel na França), o tema
simmeliano da grandeza da cidade como um fator importante na análise
das relações sociais que então se estabelecem, sobretudo no que diz
respeito às dimensões de dependência-independência do indivíduo
(idem:72 e 82-84).
5. Azevedo retoma a crítica, feita por Durkheim, das insuficiências
da sociologia simmeliana enquanto estudo das formas, que resultaria
em uma fundamentação equivocada e errônea da sociologia, pois o
processo de abstração operado por Simmel não é suficientemente
disciplinado no que concerne ao método (idem:78, 151 e 154).
6. Em capítulo intitulado "A Luta pela Autonomia da Sociologia como
Ciência", Azevedo reserva um item para "A Sociologia Formal de G.
Simmel" (idem:14, 141 e 150-151), publicando inclusive um retrato de
Simmel (idem:153).
Aqui vale citar um pouco mais extensamente Azevedo, pois talvez seja a primeira
vez, no Brasil, em que Simmel é glosado:
"Nessa luta pela emancipação da sociologia, G. Simmel, filósofo e
sociólogo, tomou posição, procurando nas suas obras, em que apresenta
uma teoria sociológica sem dúvida das mais originais, estabelecer o
objeto da sociologia e libertá-la das analogias mecânicas, biológicas
e psicológicas. Ele via, na sua teoria das formas sociais', o único
meio de desprender dessas analogias a nova ciência e de torná-la
ciência substantiva e independente e, portanto, a única maneira de
impedir esta ciência de respigar perpetuamente no campo dos
vizinhos'. Para encontrar esse objeto, apresenta o sociólogo alemão
uma noção preliminar de sociedade' que é, para ele, a ação
recíproca dos indivíduos', passando em seguida a estabelecer a
distinção (por abstração científica) entre as diversas formas de
associação' e o conteúdo' material da associação [...]" (idem:150).
Azevedo prossegue, discriminando as idéias de "conteúdo" e "forma" e retomando
a crítica de Durkheim a Simmel; alinha-se ao primeiro e termina por afirmar:
"É, de fato, com É. Durkheim que a sociologia se apresenta sob uma forma
verdadeiramente científica [...]" (idem:151). A embocadura geral do livro e da
sociologia professada por Fernando de Azevedo é de fato baseada em Durkheim, e
nesse sentido a reprodução da crítica de Durkheim a Simmel nada mais faz do que
reforçar as posições do autor, em um jogo tautológico que é característico das
relações de filiação.
7. Azevedo discute o processo de autonomização da sociologia enquanto
ciência na Alemanha e, nesse contexto, retoma as proposições do
Simmel da década de 1890, em seu esforço de delimitar a nascente
sociologia (idem:377-378).
8. Em um subcapítulo intitulado "A Moderna Sociologia na Alemanha",
Azevedo oferece curtos verbetes de alguns dos mais significativos
sociólogos alemães, dentre eles Simmel (idem:386-387).
São basicamente estes oito tópicos que atestam a presença de Simmel nesse
manual dos anos 1930 (tomado aqui como representativo de uma série de manuais e
símiles). É de interesse sublinhar que, em Fernando de Azevedo, Simmel chega ao
Brasil pela via francesa, e não pela via norte-americana. Como na França,
Simmel, após a Grande Guerra, praticamente desaparece, essa via de acesso
utilizada por Azevedo murcha e não encontra continuidade, posto que se fazia em
sintonia com os desenvolvimentos franceses. Reveladora, nesse mesmo sentido,
são as apreciações de Simmel por Durkheim e Bouglé, que informam em grande
parte os desenvolvimentos de Fernando de Azevedo8.
Além disso, também é de suma importância a sistematização de Leopold von Wiese
(cf. Azevedo, 1935:386-387)9. A sociologia formal de von Wiese é sempre vista '
e não somente em Azevedo ' em unidade com a sociologia formal de Simmel, como
um continuador que sistematiza o que em Simmel ainda está desordenado e apenas
sugerido. Logo depois será possível perceber como isso aflora com toda clareza;
na revista Sociologia, em cujos inícios von Wiese aparece com destaque, ele é
explicitamente caracterizado como sistematizador da sociologia simmeliana e
como um continuador seu, como por exemplo no que diz respeito ao conceito de
"socialificação"; em mesma medida, quando Simmel é criticado, ele o é em
conjunto com von Wiese10.
REVISTA SOCIOLOGIA, EMILIO WILLEMS, DONALD PIERSON
Já fiz menção anteriormente à empreitada fundadora de Antenor Romano Barreto e
Emilio Willems em 1940, ao comporem a coletânea Leituras Sociológicas, na qual
aparece, pela primeira vez no Brasil, um texto de Simmel, ou melhor, um
fragmento do início de sua grande Soziologie. A mesma dupla já havia, ademais,
fundado no ano anterior a revista Sociologia, primeira revista específica de
sociologia no Brasil, confirmando a vocação pioneira dessa díade11.
Segundo uma investigação de Andrea Alves, já em seu primeiro ano a revista
Sociologia revela a importância de Simmel para Willems, interessado em temas
como "sociabilidade", "assimilação" etc. Dentre os autores alemães mais citados
no triênio 1939-1941, Simmel aparece em primeiro lugar (Alves, 1993:15, 17 e
anexo não paginado). Dessarte, quando se trata de definir sociologia, no número
inaugural da revista, Simmel oferece vários aportes importantes: por um lado,
com a idéia de sociabilidade, em um sentido na verdade não propriamente
simmeliano (há inclusive a possibilidade dos ruídos de tradução infiltrados
aqui: que conceito simmeliano se verte de fato por "sociabilidade"?
Provavelmente Vergesellschaftung, e não Geselligkeit). Segundo Alves, a idéia
de "sociologia formal" também aparece como fundante, donde sua conclusão: o
interesse morfológico presente nos fundadores da revista encontraria em Simmel
uma fonte de legitimação, nomeadamente na idéia de uma sociologia formal,
operante por meio de conceitos como "interação", "associação" e "assimilação",
direcionados para uma pesquisa eminentemente empírica (idem:20)12.
Além disso, Alves afirma que os enfoques de inspiração simmeliana são
combinados com o pragmatismo norte-americano: "Se a concepção de sociologia é
retirada de Simmel, a forma de estudá-la é essencialmente inspirada na tradição
sociológica dos Estados Unidos. [...] Esse processo conflituoso de apropriação
da perspectiva simmeliana e sua adaptação ao viés pragmatista reflete-se na
leitura de Sociologia" (idem:21). A revista funciona como uma instância de
institucionalização, legitimação e divulgação do pensamento e prática
sociológica, e nesse movimento põe em circulação idéias de proveniência
simmeliana, mas deglutidas e digeridas por Park e seus colegas ' basta pensar
na presença de Simmel no estudo de Park sobre o homem marginal, o uso que faz
das idéias de distância social, "estrangeiro", interação. Tudo isso evidencia o
já mencionado processo de apropriação da sociologia simmeliana nos EUA.
Mas, observando a revista como um todo, no período que vai de 1939 a 1955,
Simmel é dos autores que aparece com maior freqüência. Ele "foi o autor de
língua alemã citado mais vezes no periódico durante o período sob análise,
tendo sido mencionado em 16 artigos", diz outra pesquisadora, Naara Luna (1998:
20). No registro de artigos que Luna classifica como didáticos, ele é
mencionado em basicamente três contextos: a) na definição de sociologia; b) na
concepção de sociologia formal; c) na discussão dos grupos sociais. Em geral,
pode-se dizer que Simmel aparece como um dos mais importantes fundadores da
disciplina (idem:21-22).
Além desse aspecto didático, Simmel aparece como interlocução e/ou legitimação
em alguns artigos, de variados autores:
a) Mário Lins (1940), que procurou desenvolver, nos anos 1940, uma
sociologia do espaço, encontra em Simmel um importante ponto de
apoio, nomeadamente na noção de distância social e na utilização dos
conceitos de "socialificação" e "socialidade" ' atestando a recepção
da Soziologie de 1908, via tradução espanhola.
b) Costa Pinto, em artigo intitulado "Sociologia e Mudança Social",
de 1947, utiliza o Simmel da sociologia formalista como elemento de
contraposição à sua preconizada sociologia histórica (Luna, 1998:23-
24).
c) Oracy Nogueira, em "A História de Vida como Técnica de Pesquisa",
de 1952, lança mão da idéia de "estranho sociológico" na
fundamentação da relação que se estabelece entre entrevistador e
entrevistado, citando Simmel através de Burgess (idem:24).
Do levantamento das ocorrências de menção a Simmel na revista, Luna sintetiza
sua investigação, no que diz respeito a Simmel:
"A recepção de Simmel, ao contrário da que ocorre com os demais
autores, desde o princípio ultrapassa a simples apresentação e
classificação em artigos didáticos, mas coincide com a introdução da
ciência sociológica e se confunde com ela. Desta forma, nos primeiros
artigos a Sociologia é apresentada através de conceitos simmelianos
e, embora essas noções sejam debatidas, chega-se ao ponto de usar sua
distinção de forma social e conteúdo para classificar escolas
sociológicas em sociologia formal e sociologia cultural. [...] O tema
mais presente a princípio é a questão da sociologia formal, formas e
conteúdos sociais variando independentemente [...]. No processo de
recepção, Simmel respondeu muitas perguntas sobre o fazer sociedade e
grupos sociais e o papel da interação social [...]. Não há unidade
nas seleções feitas pelos autores dos textos quando fazem sua busca
na obra de Simmel [...]. A tese simmeliana de o objeto da Sociologia
ser as formas sociais é festejada nos primeiros anos e depois
rebatida e deixada de lado. Sua abordagem da interação social como o
tecido da sociedade também é muito discutida de início, mas deixa de
figurar nos artigos a partir de 1944. De fato, se a medida do
interesse nesse autor forem as menções feitas a ele, há um grande
interesse nos dois primeiros anos da revista, o número de citações
diminui, mas ocorre anualmente de 1941 a 1944, tornando-se irregular,
surge em 1947 e depois apenas em 1952. Parece haver um decréscimo da
leitura de Simmel, particularmente no tocante à temática da
sociologia geral, continuando a responder perguntas mais restritas
como as do conflito e a da situação de estrangeiro" (idem:24-25, cf.
45-46).
Essa afirmação corresponde, como se vê, a algo que já antes se sugeriu, a
saber, que a importância de Simmel, nos anos 1930 e 1940, estaria ligada ao
processo mesmo de delimitação do saber sociológico, da definição da disciplina
e de sua institucionalização e legitimação; uma vez que isso avança, perde-se o
interesse naquilo que fora uma fonte e referência importante.
Creio que a importância de Simmel para Willems também não deixa de ir na mesma
direção. Willems, que chega ao Brasil em 1931 e a São Paulo em 1936, atua a
partir de 1937 na USP e na Escola Livre de Sociologia e Política ' ELSP. A
análise de Luna sobre os trabalhos de Willems na revista Sociologia mostra que
Simmel não foi um autor especialmente citado (idem:18), mas, por outro lado, o
texto fulminante sobre a sociologia do esnobismo, publicado na
Revista do Arquivo Municipal
13, em 1939, é claramente devedor, e em profundidade, de Simmel ' embora,
paradoxalmente, ele não seja então mencionado.
No Dicionário de Etnologia e Sociologia, outra realização pioneira de Willems,
desta vez em parceria com seu compatriota Herbert Baldus, publicado em 1939,
Simmel é naturalmente mencionado, e inúmeros conceitos de impregnação
simmeliana são elencados: interação, conflito, acomodação, competição,
assimilação, espaço social etc.14.
Alguns anos depois, em 1947-1948, Willems publica Cunha: Tradição e Transição
em uma Cultura Rural do Brasil, no qual não se vê menção a Simmel. Mas na
reedição do livro em 1961 (com o título: Uma Vila Brasileira. Tradição e
Transição), expurgado da ampla parte final antropométrica, o autor menciona, na
nova introdução, a sociologia simmeliana do conflito como uma das contribuições
decisivas para o tipo de investigação que pretendera levar a cabo (Willems,
1961:11). Ilusão retrospectiva ou ocultamento germânico em uma investigação em
tempo de guerra? De qualquer forma, revelador.
Companheiro de Willems na ELSP foi Donald Pierson, aluno de Mead, Park,
Redfield & Cia. em Chicago15. Pierson, para quem a idéia/conceito de
"interação", vinda da vertente Chicago, desempenha um papel importante, escreve
no início dos anos 1940 um manual de sociologia, Teoria e Pesquisa em
Sociologia, publicado em 1945, no qual indica Simmel e Durkheim como os
"pioneiros da Sociologia", em seu estabelecimento como disciplina científica
(Pierson, 1945:18, 48 e 71)16. Especificamente nesse sentido, seu manual
alinha-se com o de Fernando de Azevedo; mas em um ponto importante, destacado
já desde o título, ambos divergem: na ênfase que dão às pesquisas empíricas e à
formação do pesquisador em sociologia. A formação norte-americana de Pierson
modula desde o âmago sua concepção do sociólogo como pesquisador, mas ' dado
importante e muito interessante ' isso não se faz à custa de um menor interesse
e aplicação com relação aos fundamentos teóricos da disciplina. Assim, para
mencionar um exemplo, na discussão da relação da história com a sociologia,
Pierson reporta-se ao livro de Simmel Die Probleme der Geschichtsphilosophie,
cuja 2ª edição aparecera em 1915 (idem:48-49). Isso revela a formação sólida do
pesquisador e a impregnação do ambiente de Chicago por Simmel nos anos de
formação de Pierson, não somente no que diz respeito às suas obras mais
conhecidas e específicas de sociologia, mas também com relação à questão das
condições de possibilidade do conhecimento histórico, um tema cuja importância
dificilmente se pode exagerar no processo de fundamentação das ciências
sociais.
Além disso, Pierson destaca os problemas da interação e das formas que esta
assume na sociedade (idem:58, 106-107 e 191-279), indicando como tipos
fundamentais de interação a competição, o conflito, a acomodação e a
assimilação (idem:106-107 e 228-279) ' aproximando-se portanto do que foi
indicado com relação a Emilio Willems. Dessa maneira, Teoria e Pesquisa em
Sociologia tem passagens inteiras dedicadas a discutir "o processo de
interação: conceito básico nas ciências sociais" (idem:191 e ss.), sempre tendo
em vista as "profundas e penetrantes análises do pensador alemão Georg Simmel"
(idem:71), cuja Soziologie de 1908 é indicada como um dos livros
"indispensáveis" para o sociólogo (cf. idem:58)17.
Outro tema de grande importância para Pierson e no qual Simmel também é
fundamental é o do "estranho sociológico", que Pierson toma da Soziologie de
1908 (idem:178, 181-182 e 448) e que desenvolve em mais de um estudo, como por
exemplo em texto na revista Sociologia, "Um Sistema de Referência para o Estudo
de Contatos Raciais e Culturais", de 1941, o que será também retomado, em 1947,
em um estudo empírico sobre uma comunidade do interior paulista, Icapara,
quando fala do "forasteiro" (cf. Pierson e Teixeira, 1947).
Portanto, não é somente em Teoria e Pesquisa em Sociologia, mas também em
variados artigos de Pierson que Simmel aparece com destaque. Por exemplo, no
artigo "Competição e Conflito", publicado na revista Sociologia em 1943, em que
Simmel surge com as idéias de interação, conflito, competição (Luna, 1998:23).
E é importante sublinhar que essa visão de Pierson é a repetição literal da
incorporação de Simmel por Park e por ele difundida em sua (em conjunto com
Burgess) Introduction to the Science of Sociology, de 1921. Ou seja: Pierson
chega a Simmel por intermédio de Park e reproduzindo o modo como Park recebe e
"organiza" Simmel. Em Park and Burgess, interação é identificada em suas quatro
grandes modalidades, que são as apontadas por Pierson. E quando indica a
bibliografia "indispensável", o primeiro livro que Pierson cita é Park and
Burgess ' no qual, como já disse de início, Simmel tem lugar de honra (Pierson,
1945:108, 231, 430 e 431; 1988:33-34). Aliás, é o próprio Pierson quem, em seu
manual, relata a importância da presença de Simmel nos cursos que freqüentou em
Chicago em seus anos de formação, como que repetindo, em chave autobiográfica,
o que assinalaria, anos depois, com relação à importância de Simmel para o
estudante Park (Pierson, 1945:94; 1988:91).
ROGER BASTIDE
Há pouco um periódico paulista republicou um artigo de Roger Bastide dos idos
de 1951, "Variações sobre a Porta Barroca", acompanhado de um par de
fotografias de Pierre Verger. Tivesse sido possível publicar em conjunto o
célebre texto de Georg Simmel sobre "A Ponte e a Porta", aparecido em 1909, e
não poderia haver dúvida do tributo de um a outro, tamanha a similitude de
perspectiva, procedimento de análise e interpretação (cf. Bastide, 2006 [1951];
Simmel, 2001 [1909])18. E, não obstante, são muito raras as referências de
Bastide a Simmel, como a revelar que, sob certos aspectos, as feridas e
diferenças da Grande Guerra eram bem vivas no Entre-Guerras e que as fissuras
no desenvolvimento do campo intelectual francês e suas diferenças de origem e
institucionalização também permaneceram bastante vivas, mesmo após a morte de
seus protagonistas de primeira hora.
Como disse, as referências explícitas de Bastide a Simmel são raras, e elas
somente não permitem fundamentar uma relação forte e significativa de recepção.
É preciso deixar-se afogar nos textos de Bastide para perceber o quanto alguns
deles são próximos e, ao que parece, tributários de Simmel. E isto se revela
por conta de uma simples pergunta: em que tradição ou vertente da sociologia
francesa poderia ter bebido Bastide, ao procurar e propor uma sociologia que
tomasse a poesia como método? Não me parece haver. Mas, se lembrarmos o quanto
Simmel foi traduzido na França no período que chega até agosto de 1914, não se
pode duvidar da presença do filósofo berlinense no ambiente francês interessado
em sociologia ' e isso sem deixar de lembrar que, em 1919, Bastide vai estudar
em Estrasburgo, uma universidade que acabara de ser reconquistada pelos
franceses e na qual Simmel havia lecionado nos últimos anos, até sua morte em
1918, ou seja, pouco antes da retomada da cidade, do final da guerra e da
chegada de Bastide.
Com isso sugiro que, para um jovem interessado em sociologia ao final dos anos
1910, e que não parece afinar totalmente com a doxa durkheimiana, Simmel era
com muita probabilidade uma leitura instigante, estimulante e até mesmo
obrigatória, apesar de maculada pela origem germânica19.
Se há uma rubrica que permite sintetizar a poesia como método sociológico para
Bastide, ela é a idéia de uma "estética sociológica", ou de uma "sociologia
estética". Ambas as fórmulas são utilizadas de modo intercambiável por Bastide,
conforme lhe interessa enfatizar a estética ou a sociologia, ou mesmo sem
critério algum na diferenciação. No final das contas, as duas coisas são uma
coisa só20. E, com isso, também não há como não se recordar do importante texto
de Simmel, "Soziologische Ästhetik" (cf. Simmel, 1992a [1896])21.
Se o leitor compara os dois textos sobre a porta, pode dizer que um é
desenvolvimento do outro. O de Simmel é mais genérico e abstrato, e possui
mesmo essa intenção, pois tem em vista a dimensão metafísica, em sentido
simmeliano, da ponte e da porta, vale dizer, identificar "as formas que dominam
a dinâmica de nossa vida" (Simmel, 2001[1909]:60). No caso de Bastide, a visada
metafísica é imediatamente sociologizada, na busca da função social da porta
(isto é, no âmbito da discussão de Simmel, um aspecto particular do amplo nexo
que ele pretende sugerir, não mais que sugerir) e, a seguir, direcionada para a
porta no barroco brasileiro. Por essa razão, pode-se afirmar que o ensaio de
Bastide é uma paráfrase, extremamente bem-sucedida, do texto de Simmel, pois o
enquadra em um contexto específico e nele o problematiza e desenvolve ' um
aluno à altura do mestre, poderíamos dizer. De sorte que sou tentado a afirmar
que temos em Bastide, ocasionalmente, a mais rica e multifacetada, criativa e
instigante recepção de Simmel em terras brasileiras ' e assumo assim,
interessadamente, Bastide como brasileiro, o que naturalmente não se faz sem um
grão de sal22.
É de se notar, contudo, que a poesia como método sociológico se constitui, ao
menos em sua vindicação apaixonada, no Bastide brasileiro23. Caracteriza o seu
procedimento por meio daquele "princípio os projetores convergentes, que
iluminam o objeto estudado, como num teatro a dançarina é aprisionada nos
múltiplos fachos luminosos que jorram de todos os cantos da sala" (Bastide,
1977[1946]:79). Não por acaso, Bastide precisa lançar mão de uma analogia '
precisamente a mesma figura da analogia, tão recorrente e tão reveladora do
procedimento simmeliano (cf. Kracauer, 1977) ', e essa idéia da iluminação
múltipla do objeto coincide com inúmeras descrições e depoimentos dos alunos de
Simmel, como o procedimento por excelência do filósofo berlinense no trato de
seus variados objetos (Waizbort, 2000:11-34 e 571-588). Não é o caso de
inventariar os objetos de inquirição comum de um e de outro; apenas quero
apontar mais alguns outros, além da porta: o segredo, a paisagem, o salão, a
refeição, as cidades etc., sem falar, é claro, nos temas sociológicos mais
usuais (basta lembrar que Simmel foi um dos fundadores da especialidade
"sociologia da religião")24.
O resultado disso se deixa ver na conclusão de sua aluna Gilda de Mello e
Souza: "desentranhar o fenômeno estético do cotidiano, dos fatos
insignificantes e sem foros de grandeza, que compõem, no entanto, o tecido de
nossa vida" (Souza, 1980:34). Como se percebe, tal afirmação também poderia
caber, sem violência alguma, a Simmel. Mas esse desentranhar, no final das
contas, remete ao que há de mais significativo, àquela substância da vida que
Simmel não titubeou denominar metafísica.
A ausência de alusão mais freqüente e mais explícita a Simmel em Bastide
faculta uma observação acerca dos procedimentos e padrões de alusão e citação
na literatura científica, eles mesmos intrinsecamente históricos e relativos ao
contexto, o que já aponta para o fulcro do problema: que nem sempre se alude e
cita do mesmo modo, com a mesma precisão, com o mesmo ímpeto; bem ao contrário.
Os padrões definem-se em processos complexos de diferenciação inter e
intradisciplinar, de configuração de públicos leitores, de formação e
existência de comunidades de interesse, e outras coisas mais, de modo que
muitas vezes se cita sem citar, pois se trata de referência conhecida, ou de
referência que já se constituiu em patrimônio comum, ou de referência que não
se quer revelar. As razões são quase tantas quantos os casos. Assim, qual não
foi a minha surpresa, anos atrás, ao ler um artigo em que um colega
demonstrava, com brilho, o quanto Simmel "plagiara" uma literatura científica
de seu tempo, sem citar nem mencionar. Mas, naquele contexto, o que hoje seria
um plágio era apenas um procedimento comum da lide acadêmica. As fronteiras
entre citação, paráfrase, plágio, cópia são tênues e, como disse, sobretudo
históricas, relacionadas ao contexto. Daí a necessidade de que o pesquisador, a
cada vez, na tentativa de reconstituição de um processo de recepção, remonte ao
contexto, no sentido indicado por Pierre Bourdieu: "quanto maior a ignorância
do contexto de origem, mais prováveis as deformações do texto" (Bourdieu, 2002:
7).
GILBERTO FREYRE
Embora esteja há muito para reler a "Introdução à História da Sociedade
Patriarcal no Brasil" para fazer uma cata miúda do que podem ser as
"influências" e "afinidades" de Freyre com Simmel, ainda não cheguei a tanto.
Por ora só me é possível assinalar as ocorrências explícitas, que ademais são
as indicadas nos índices finais dos volumes. Assim, se no primeiro volume não
há ocorrências, no segundo ' Sobrados e Mocambos ', aparece a referência a
Philosophische Kultur, nomeadamente ao ensaio sobre "O Relativo e o Absoluto no
Problema dos Sexos", que é mencionado, em chave crítica, quando Freyre discute
"A Mulher e o Homem". Naquela altura, para quem não se lembra, Freyre abordava
o problema dos atributos caracteristicamente masculinos ou femininos, na
sugestão de uma diferença de fundo e irredutível entre os sexos (Freyre, 2000
[1952]:138-139, 174 e 836). Por fim, no último volume concretizado da planejada
tetralogia, embora haja menção a Simmel, trata-se de menções de pouca
importância, pois se referem a possíveis leituras, e da falta delas, por parte
de figuras do mundo da ordem e do progresso.
É de fato frustrante, em uma obra na qual o perfume de Simmel parece exalar em
variados momentos, não poder indicar de modo mais concreto as possíveis
"influências" e "afinidades". Nesse sentido, gostaria apenas de dar uma prova
daquilo que uma pesquisa mais detida ainda poderá oferecer. A certa altura,
Freyre discute a questão da "interpenetração de feudalismo e capitalismo" na
América Latina e no Brasil e então afirma:
"Em 1822, em Memórias Econopolíticas sobre a Administração Pública no
Brasil (Rio de Janeiro, 1822-23), escrevia à página 4 da Primeira
Memória' Hum Portuguez' que a organização colonial no Brasil não
diferia do feudalismo' senão na substituição dos pequenos senhorios'
pelos pretos escravos' que lavravam para si e não apenas para os
senhores. Hum Portuguez' percebia que dentro das mesmas formas podem
variar os conteúdos, sem alteração sociológica das formas" (idem:94;
ênfases do autor).
Como se vê, uma tomada literal de uma dimensão, certamente a não menos
influente, da sociologia simmeliana, e que sugere mesmo que essa tomada, senão
advinda do contato direto com os textos de Simmel ' pois como se viu ele leu o
sociólogo berlinense ', coincide com a tópica de sua sociologia que melhor
frutificou no âmbito específico das sociologias do Entre-Guerras, seja na
formal sociology recebida nos EUA, seja na Beziehungs- und Gebildelehre de von
Wiese (que foi amplamente recebida nos EUA em função do trabalho conjunto de
von Wiese e Howard Becker). De todo modo, aqui também se precisam aferir um
pouco as variações do texto nas sucessivas edições de Freyre, caso se pretenda
indicar com alguma segurança a cronologia dos acontecimentos.
Voltando: a distinção de forma e conteúdo é operada em pleno espírito
simmeliano, como que seguindo a cartilha esboçada por Simmel ainda ao final do
século XIX, em seu texto programático sobre "O Problema da Sociologia", e que
retornaria sempre em seus escritos, nomeadamente na grande Sociologia de 1908.
Que Gilberto Freyre assim formule, e mais ainda, assim afirme, indica, creio,
uma recepção forte, que aguarda, como disse, o estudo em profundidade. De
resto, as afinidades temáticas são mais do que evidentes: moda, posição da
mulher, espaço social, distinção, alimentação, em suma: a atenção aos detalhes
e ao inusitado inscrevem, ou ao menos parecem inscrever, Gilberto Freyre na
galeria dos simmelianos de espírito e de letra.
Não haveria portanto de ser surpresa encontrar Georg Simmel amplamente referido
no manual de sociologia de Freyre, publicado em 1945 (cf. Freyre, 1957
[1945])25. A própria definição do sociólogo parece ter sido cortada e moldada
segundo o figurino simmeliano: o sociólogo deve valorizar os
"[...] insights na realidade social de que são capazes grandes
inteligências ou mesmo gênios do tipo denominado perceptivo'; e cujo
próprio impressionismo' pode abrir caminhos a verificações o mais
possível objetivas que venham realizar eles próprios ou outros
observadores. E neste particular a própria sensibilidade ao
pitoresco, quer da parte de observador menos estranho ao meio, quer
da parte de nativo aguçado em sua percepção regional pela permanência
mais ou menos longa no estrangeiro e pelo estudo, em meio científico
estrangeiro, não só do seu próprio grupo mas de outros grupos, pode
ser estimulante e até fecunda para a Sociologia científica" (idem:
42).
É evidente que tal formulação é modelada sobretudo para descrever, sem nomear,
o próprio Gilberto Freyre; mas quantos atributos não indicam precisamente o
fulcro da experiência da sociologia simmeliana? Insight, impressionismo, abrir
caminhos: não são precisamente caracterizações de Simmel? Não por acaso, logo a
seguir Gilberto Freyre destaca Simmel dentre aqueles "cientistas sociais" que
valorizam a expressão e "se vêm exprimindo de modo a serem considerados
escritores" (idem:43) ' novamente um modo de falar de si por meio do outro, e
esse outro é Simmel. Freyre, é preciso reconhecer, não quer jamais "correr o
risco de desprezar tudo o que seja impura ou difusamente sociológico", morrer
em "castidade sociológica" (idem:58). Para ele, como para Simmel, método é
insight ' o que não significa de modo algum descuido ou desinteresse quanto ao
rigor interpretativo.
Além disso, em alguns outros aspectos, Simmel aparece com destaque na
Sociologia:
1. Na própria definição do que há de ser a sociologia:
"[do] mundo enorme de vida social, podemos dizer que a Sociologia
procura retirar para estudo seu: a) os fatos, no seu aspecto de
socialidade ' de societalização, diria Simmel para acentuar o caráter
dinâmico desses fatos; isto é, os fatos de dependência do indivíduo,
da organização social e da cultura e os de dependência ' através da
mesma socialidade ' da organização social e da cultura, do indivíduo;
b) o processo ou a forma de interação por que se realiza essa
interdependência e mercê do qual o indivíduo perde de início a pureza
individual para tornar-se, através de funções, homem social, pessoa
social ou socius: indivíduo com status ou com situação na vida
social" (idem:113, ênfases no original)26.
Pode-se dizer que essa formulação é devedora de Simmel não somente em sua
superfície terminológica, mas também em sua profundidade de concepção. Com
efeito, está aqui sobretudo em jogo uma concepção de sociedade e da relação de
indivíduo e sociedade que destaca o caráter relacional que as articula, e que
se pretende enfaticamente processual (idem:113-114, 146 e 280). Ainda veremos
ao final como isso foi percebido na própria atividade intelectual de Gilberto
Freyre e que sentidos a isto se atribuíram.
2. Na importância da questão da distância social (sobre a qual
Freyre, já em 1936, escrevera um artigo), quando remete ao capítulo
da Soziologie de Simmel sobre o espaço (idem:193, 241-242 e 298).
3. Na importância dada ao problema dos "tipos" sociais (idem:126).
4. No interesse pela moda (neste caso sem nomear Simmel) (idem:135,
547-553 e 578).
5. No reconhecimento dado ao problema da constituição social do tempo
(neste caso sem nomear Simmel) (idem:185-186 e 241-242).
6. Nas variadas discussões sobre o papel social, ligado à questão dos
grupos sociais27.
7. Na importância dada a diferenciação, conflito, competição,
acomodação, assimilação como processos sociais básicos (nisso em
parte coincidindo com a visada de Pierson, vinda de Chicago) (idem:
380-390).
8. Sobreordenação e subordinação ("superiores' e inferiores'
sociais", na tradução de Gilberto Freyre) como processos sociais
(idem:453 e 483). Aqui vale uma citação representativa:
"Também no Brasil, a civilização patriarcal, ou antes, a sociedade
agrária, escravocrata e latifundiária [...] acabou de tal modo
influenciada pelo escravo africano que se pode hoje falar [...], com
Simmel, de uma formação social brasileira em que o domínio do senhor
lusitano, ou do patriarca de origem européia, sob mais de um aspecto
se apresenta comprometido, amolecido e em algumas de suas zonas até
neutralizado pela influência inversa' do escravo; ou do inferior'
sobre o superior'" (idem:451-452)28.
Parece evidente, para os leitores de Freyre, a importância que recebe essa
apropriação de Simmel.
9. Na crítica à determinação da infra-estrutura econômica diante de
outras dimensões da vida social (p. ex. idem:506-508), Freyre apóia-
se fortemente em Simmel, defendendo o caráter múltiplo e complexo das
"interpenetrações de influências" (idem:506 e 586)29. Tal idéia
oferece, ademais, uma embocadura sugestiva para pensar o próprio
problema de Simmel em meio às interpenetrações de influências que
modelam o pensamento e a escrita de Gilberto Freyre.
10. Na importância dada aos mecanismos, os mais variados, de
distinção social, como uma chave privilegiada para a compreensão da
sociedade e seus variados processos (neste caso sem nomear Simmel)
(cf., p. ex., idem:545-570).
11. Afirmando a idéia de interação como base de sua sociologia,
Freyre formula, a seu modo, um dos fundamentos da sociologia
simmeliana (idem:611-625).
Com razão pode-se e deve-se objetar que tais temas, problemas e visadas não são
específicos nem exclusivos da sociologia simmeliana, mas patrimônio sociológico
comum. Entretanto, cabe sugerir que talvez algo da sensibilidade de Gilberto
Freyre para estes temas e problemas possa ter passado pela recepção do
pensamento de Simmel. É cabível tal sugestão, uma vez que, como espero ter
indicado antes, o nexo forte com Simmel já está comprovado, embora não
demonstrado em toda a sua extensão.
Por outro lado, em sua Sociologia, Freyre, a certa altura, buscou marcar as
diferenças que o afastavam do sociólogo de Berlim, quando considera ' seguindo
nisso uma vertente da recepção norte-americana de Simmel ' a sociologia
simmeliana exclusivamente como uma sociologia formal. Não se trata
absolutamente de questionar a crítica que Freyre faz à sociologia formal, pois
isto é um aspecto significativo da recepção do pensamento de Simmel, isto é,
sua conversão em sociologia formal. Nesse sentido, é bastante elucidativo
lembrar que Freyre recebe Simmel por vários lados: pelas bandas de Chicago, e
pela via alemã de von Wiese (aí inclusa a via teuto-americana no trabalho
conjunto de von Wiese e H. Becker), e mesmo, como já assinalei, diretamente.
Mas, parece-me, a fórmula e a rubrica da sociologia formal enquadraram em
grandes linhas a compreensão e recepção de Simmel por Freyre. Vale citar:
"Tão numerosos são os fatos de interação que em face deles a
Sociologia é cada vez mais interacionista nas suas tentativas de
generalização e de síntese. Pelo interacionismo a Sociologia foge aos
simplismos de toda espécie [...]. E procura analisar, compreender e
explicar a realidade social considerada em toda a sua complexidade e
na sua totalidade quanto possível viva de situações e formas em que
os elementos chamados materiais' e os ideológicos' interpenetram-se
e completam-se e, através de processos peculiares ao que é social e
cultural, formam não só bolos sócio-culturais como combinações ou
complexos sociológicos.
Essas combinações ou complexos o observador não pode apalpar, tocar,
cheirar. Nem por isso estamos impedidos de os considerar, em
Sociologia científica, à parte dos processos especiais, ou do
processo geral, pelos quais eles se realizam. É aqui que nos
afastamos da teoria da sociologia exclusivamente formal de Simmel,
para incluir entre os objetos de estudo sociológico tais combinações
e seus processos e as situações que criam à parte de suas formas"
(idem:620, ênfases no original).
Os leitores de Simmel sabem muito bem que ele jamais se limitou à doutrina da
sociologia formal, que de resto só se sedimentou nas mãos de um von Wiese ' um
sociólogo que Freyre também recebeu30.
Engata-se aqui um aspecto que permite tanto apontar para debates de época, como
salientar disputas no campo intelectual e, por fim, ressaltar em que medida
Simmel era percebido em Freyre e que significados a isto se atribuía. Refiro-
me, claro está, a asserções polêmicas de Sérgio Buarque de Holanda a respeito
da obra de Freyre, moduladas com relação à edição refundida de Sobrados e
Mocambos (1952), ou seja, aquela obra que anteriormente pus em detaque,
assinalando a presença de Simmel em seu enquadramento de análise.
O argumento de Sérgio Buarque é desenvolvido de modo mais amplo do que cabe
aqui reproduzir; quero apenas destacar uma passagem de sua crítica. Sérgio
Buarque retoma a diferenciação gilbertiana de forma e conteúdo, de clara
extração simmeliana, na qual a idéia da organização patriarcal da vida e da
família se imporia como forma, a que se podem amalgamar variados conteúdos. Uma
forma independente de um conteúdo ' é exatamente isso que Freyre afirma,
variadas vezes, ao longo do livro, como no seguinte passo, também destacado por
Sérgio Buarque:
"Do ponto de vista sociológico, pouco importa que variem não só
designações como dimensões de casas nobres; ou o material, quase
sempre precário, de construção das casas dos servos. Pouco importa
que estes ' os servos ' fossem africanos ou indígenas, escravos ou
agregados' reduzidos à condição de servos. Ou mesmo que, em algumas
áreas, chegasse a haver confraternização tal entre senhores de casas-
de-telha e agregados de casas-de-palha que o caráter patriarcal das
relações entre tais elementos deixasse de parecer patriarcal' ou
feudal' para parecer ' sem realmente ser ' democrático' e até
coletivista', como em certos trechos dos sertões pastoris e do Rio
Grande do Sul.
Da denominação ou mesmo da condição específica de escravo', em
oposição a senhor', seria um erro fazer condição indispensável à
existência de um sistema sociologicamente patriarcal-feudal, isto é,
patriarcal-feudal em suas formas e seus processos principais de
relações entre dominadores e dominados: a dominação, a subordinação,
a acomodação. O sistema pode existir ou funcionar sob aparências as
mais suaves: simples coronel' ou major', o senhor; morador', o
servo. É o que parece ter sucedido em grande parte do Piauí, do
Ceará, da área do São Francisco e do Rio Grande do Sul dando a esses
Estados ou a essas áreas aparência de exceções puras e completas à
predominância do sistema patriarcal-feudal, ou familial-tutelar,
característico da formação do Brasil em suas áreas de colonização
mais antiga" (Freyre, 2000 [1952]: 753-754)31.
Opera aqui, como se vê, uma distinção entre forma e conteúdo, de forte e clara
inspiração simmeliana, e se afirma que uma mesma forma se concretiza
historicamente em conteúdos que podem variar. Com relação a isso, então, Sérgio
Buarque de Holanda desenvolve sua crítica:
"Aquelas noções a que tanto se apega, de forma' e de conteúdo' ou
substância, provinda, em última análise, da filosofia social de
Simmel, retiram toda a sua força da própria indefinição. É verdade
que em Simmel elas não passam, ao menos teoricamente, de simples
metáforas. Na versão, porém, que lhes dá o autor de Sobrados e
Mocambos, tende a dissipar-se, mesmo em teoria, esse nominalismo
delibrado. De instrumentos de exposição, distinção, confronto,
análise, convertem-se em realidades mais ou menos empíricas, servindo
de base a julgamentos de valor que mal se disfarçam.
Assim é que, nos seus escritos, as formas' sociais se mudam com
facilidade, ora em entidades reais, à maneira dos organismos
biológicos ' e então se confundem praticamente com os processos'
sociais, capazes de crescimento, maturação e morte ' ora em idéias'
de sabor hegeliano ' idéias de onde hão de emanar misteriosamente os
próprios objetos materiais'" (Holanda, 1979:106, cf. 102-108 e
207)32.
Independentemente da justeza ou não da crítica de Sérgio Buarque, o que é aqui
interessante é a mobilização de Simmel como ponto de apoio. Há a mobilização de
Simmel por parte de Gilberto Freyre e há a mobilização desta mobilização
freyriana por parte de Sérgio Buarque. A discussão se estabelece ' dentre
outros aspectos, claro está ' tomando Simmel como um ponto de referência, a
partir do qual se discute um problema e se faz a crítica a esta discussão.
Além disso, o que me parece central aqui é indicar a funcionalidade que essa
visada simmeliana possui no argumento de Gilberto Freyre: ela permite guarnecer
o argumento central da atenuação do conflito e da tensão e de um convívio entre
as duas partes antagônicas e em oposição; permite dissolver uma relação de
oposição forte em uma relação de coexistência, senão pacífica, ao menos
suportável, simbiótica e até mesmo razoável. Dito por outras palavras, a
relação forma-conteúdo é condizente e funcional para o modo como Gilberto
Freyre dilui a tensão do conflito racial, harmonizando-o e conciliando-o. Nesse
sentido, a presença de Simmel torna-se muito importante, facilitando o
argumento do equilíbrio dos antagonismos.
O mesmo vale, creio, para a idéia da família patriarcal como forma de
socialização: a família patriarcal pode assumir, e de fato assume, variados
conteúdos e até mesmo perecer, mas a forma permanece. É nesse sentido que
Simmel se torna, na "Introdução à 2ª Edição" de Sobrados e Mocambos, a
fundamentação de base do argumento desenvolvido por Freyre.
Com isso fica indicada, por vários lados, a presença de Simmel, e podemos
passar ao próprio Sérgio Buarque.
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA
Muito já se disse e especulou acerca da presença e influência de autores
alemães na obra de Sérgio Buarque de Holanda e sobretudo em Raízes do Brasil,
em parte em virtude de confissão do próprio autor (Holanda, 1979:29-30). Para
nossa discussão, tem especial interesse a contribuição de Gabriel Cohn ao tema,
desmistificando a importância de Max Weber e apontando ' embora não seja nisso
pioneiro ' para uma aproximação muito mais substantiva e significativa, com
relação a Georg Simmel. Ao contrário de uma literatura que se reproduz
continuamente e que insiste em ver tipos ideais weberianos em Sérgio Buarque,
Gabriel Cohn não titubeia em afirmar que, se há algo como tipo ideal em Raízes
do Brasil, isto só ocorre de modo muito torcido, pois "não o são na sua
construção e, sobretudo, no modo como operam na análise" (Cohn, 2002:11) ' e
são justamente essas duas dimensões, a Begriffsbildung e o método, as dimensões
fundamentais para Weber. Com uma simples distinção, põe-se portanto a
descoberto um vício de interpretação; e como contrapartida abre-se a
perspectiva para uma nova visada, descompromissada, com o objeto, e o que se
vê, então, é uma aproximação cheia de sentido a Simmel. Isso é afirmado como
hipótese, e o autor assim busca sugeri-la com relação a Raízes do Brasil:
"Um indício [...] está no próprio modo sinuoso e indireto como as
questões vão aparecendo e sendo perseguidas na exposição. Nada dos
duros recortes weberianos, mas sim do faro desse incansável
perseguidor de significados fugidios que foi Simmel [...]. Ambos, o
brasileiro e o alemão, são a seu modo pensadores do desterro, da
inadequação, da distância entre o fluxo espontâneo dos impulsos
vitais e a forma que ele assume na sua conformação pela força
ordenadora da cultura" (idem:11).
Na verdade, pulsa por detrás de Sérgio Buarque uma teoria da cultura ' não por
acaso Raízes do Brasil chamava-se, antes de publicado, Teoria da América ', uma
teoria da cultura que muito parece dever às discussões alemãs da virada do
século, e de que Simmel formulou uma das versões mais poderosas e de maior
fortuna.
Não é possível reconstruir o problema com a obra de Sérgio Buarque em tela, ao
menos nessa ocasião: vale apenas destacar como o artigo-mãe de Raízes do
Brasil, "Corpo e Alma do Brasil", respira por inteiro essa teoria (de modo
algum homogênea), no interior da qual encontram solo a "estandardização das
formas exteriores da cordialidade", o "triunfo do espírito sobre a vida", as
bases para uma psicologia do homem cordial, o "caráter nacional", o "fundo
emocional", a "maturidade precoce", a "hipertrofia", as "forças vitais", o
"processo formativo", a "polaridade impersonalismo-caudilhismo", "o predomínio
do elemento emocional sobre o racional", os "dois estilos de vida radicalmente
diversos", as "formas de vida", o "elemento normativo sólido, inato na alma do
povo, ou implantado pela tirania, para que possa haver cristalização social",
assim como outras expressões e idéias, que moldam o ensaio de Sérgio Buarque e
que se plasmam, no ano seguinte, no clássico que é Raízes do Brasil (cito
Holanda, 2006 [1935]). Um dos elementos que permitem tal valoração, a de
clássico, é precisamente certa maturidade que facultou a Sérgio Buarque não
sucumbir ao lado obscuro das forças irracionais, como bem já destacou Antonio
Candido (1995:329-330).
Além disso, parecem estar de fato presentes em Raízes do Brasil alguns tipos:
mas jamais os tipos ideais de Weber, e sim os tipos sociais de Simmel. Isso
também já foi destacado por Antonio Candido, que aproximou explicitamente
Sérgio Buarque de Raízes do Brasil de "Simmel, quando define tipos sociais
ambíguos" (idem:329). Avançando nessa linha, valeria testar a hipótese de que o
célebre "homem cordial" é um tipo social de extração simmeliana, uma forma
investida de um conteúdo33. Mas não só, pois os tipos do aventureiro, do
ladrilhador, para apenas lembrar as figuras que se tornaram mais conhecidas,
também podem testemunhar essa mesma reflexão. Todas essas coisas aparecem em
Sérgio Buarque de Holanda de modo muito mediado, em empréstimos e amálgamas que
se furtam a uma genealogia positiva e unívoca ' e mesmo nisso ele se aproxima
de Georg Simmel. Passemos, portanto, à seguinte.
GILDA ROCHA DE MELLO E SOUZA
O mesmo Sérgio Buarque de Holanda esteve dentre aqueles que acompanharam a
feitura de tese de Gilda Rocha de Mello e Souza, intitulada A Moda no Século
XIX e apresentada e defendida em 1950 na Universidade de São Paulo. A tese,
elaborada sob a orientação de Roger Bastide, inscreve-se na mesma ambigüidade
terminológica e espacial-disciplinar do orientador, oscilando entre uma
estética sociológica e uma sociologia estética; se, ao final, ela acaba optando
por esta última, é sobretudo porque se tratava, antes de tudo, de uma tese de
doutorado em sociologia; logo depois, a autora passou institucionalmente para o
outro lado, para a estética sociológica, quando migrou da cadeira de sociologia
para a de filosofia. Curiosamente, não se nota diferença, e é esse mesmo o
ponto, como já enfatizei com relação ao seu orientador (cf. Waizbort, 2003; no
prelo).
Na tese, Simmel é um dos autores sociólogos importantes, mas não é o único;
interessante é que aqueles que já haviam recebido Simmel no âmbito da
sociologia brasileira se tornam uma literatura a ser mobilizada, ou seja, um
Simmel de algum modo já aclimatado: é o caso do Emilio Willems da sociologia do
esnobismo e do Gilberto Freyre dos sobrados, para não falar, claro está, do
próprio professor orientador do trabalho.
Na tese de Gilda de Mello e Souza, Simmel aparece ora como o autor dos textos
sobre moda e sobre cultura feminina, ora como o autor de uma sociologia dos
grupos, da diferenciação social, dos mecanismos de distinção social, do
conflito e da competição, ora como observador perspicaz dos significados
sociais dos modos de comportamento, dos adereços, da festa. É uma presença de
fundo, que aflora apenas ocasionalmente, e somente os leitores da grande
Soziologie de 1908 sabem aquilatar o quanto ele está vivo e atuante por entre
as linhas.
EVARISTO DE MORAES FILHO
Em um tratado de sociologia do direito, publicado no mesmo ano de 1950,
Evaristo de Moraes Filho realizou um apanhado geral da sociologia, com ênfase
histórica e arrolando seus principais autores. Nesse contexto, dedicou algumas
páginas a Georg Simmel, baseando-se em Über soziale Differenzierung (1890),
"Das Problem der Soziologie" (1894) e na tradução argentina da Soziologie de
1908. Embora destaque a idéia de sociologia formal em Simmel, em mesma medida
procura defendê-lo de todo e qualquer formalismo e insiste na unidade de
conteúdo e forma presente nos fenômenos sociais. Ademais, também sublinha a
idéia de "ação recíproca", indicando a célebre Wechselwirkung simmeliana. De
todo modo, Simmel é, no manual de Evaristo de Moraes Filho, apenas um autor
entre inúmeros outros, que não recebe de modo algum tratamento diferenciado
(Moraes Filho, 1950:101-107). Por outro lado, logo depois Moraes Filho, em seu
livro O Problema do Sindicato Único no Brasil. Seus Fundamentos Sociológicos,
publicado em 1952, lançou mão de uma concepção de sociedade fortemente
inspirada em Simmel, nomeadamente na sua idéia de Vergesellschaftung e na sua
sociologia dos grupos, realizando um trabalho que fugia ao padrão usual das
investigações da época ' e aqui apenas sigo a interpetação de Glaucia Villas
Bôas. Contudo, o livro de Evaristo de Moraes Filho praticamente não teve
recepção na sociologia brasileira (cf. Villas Bôas, 2005:61-84, esp. 64, 72-
74).
Além disso, Moraes Filho parece ter tido uma importância considerável na
difusão de Simmel em sala de aula. Aqui vale o depoimento de um antigo aluno,
Gilberto Velho, que freqüentava a Faculdade Nacional de Filosofia logo após o
golpe militar de 1964 e vivenciou os problemas por que passava, naquela quadra,
a faculdade e em especial a cadeira de sociologia:
"[...] e afinal veio nos dar aula, para impedir que perdêssemos o
ano, o professor Evaristo de Moraes Filho. Evaristo era catedrático
de direito do trabalho na Faculdade de Direito, mas era livre-docente
de sociologia na Filosofia. [...] Evaristo assumindo, a sociologia
melhorou dramaticamente. Ele é uma pessoa de enorme cultura e gostava
de um autor por quem na época eu já me interessava: Georg Simmel.
Evaristo é o responsável pela publicação da primeira e única [sic]
coletânea do Simmel no Brasil. Na época, a coletânea ainda não estava
publicada, mas ele falava no Simmel, e eu, pelo pouco que conhecia
até então, já me interessava" (Velho, 2001a:267-268).
Com este depoimento, já tocamos aquela geração e aquelas figuras que mencionei
ao início e que representam, creio, um novo momento na história da recepção de
Simmel no Brasil.
UM EXEMPLO EM NEGATIVO: FLORESTAN FERNANDES
Nos anos 1950 e 1960, os temas de maior interesse e estudo nas ciências sociais
brasileiras não possuíam muita afinidade com a sociologia simmeliana, e nesse
sentido é emblemática a posição de Florestan Fernandes. Esta posição aflora com
nitidez nas resenhas que Florestan fez, em 1945 e em 1952, do Arte e Sociedade
de Roger Bastide e de A Moda no Século XIX, de Gilda de Mello e Souza. Nos dois
casos, trata-se de obra de colegas, com quem trabalha na Faculdade de Ciências
e Letras da USP, e com os quais procura manter um tom de discordância em tudo
discreta. Contudo, a leitura das resenhas não deixa dúvidas quanto às
diferenças de Florestan Fernandes em relação aos colegas: em poucas palavras,
eles são simmelianos demais, ou seja, pecam pela ausência de sistematicidade e
pelo excesso de ensaísmo. Tudo o que permite sentir o perfume de Simmel em seus
leitores brasileiros irrita o sociólogo paulista, preocupado com a
fundamentação da explicação sociológica, na qual, diga-se de passagem, Simmel
só é mencionado para ser imediatamente descartado34.
A irrelevância de Simmel para a sociologia brasileira dos anos 1950 e 1960 '
sociologia da modernização, do desenvolvimento, sobretudo ' só começará a
reverter no momento em que a dimensão cultural ' e não a economia, a política,
a transformação social ' passar a ser um foco importante da atenção dos
sociólogos, o que, por outro lado, reforça a posição do Gilberto Freyre citado,
que publica a edição refundida de Sobrados e Mocambos no início dos anos 1950.
NOVOS TEMPOS
Destarte, parece-me que, nos anos 1950 e 1960, os temas de maior interesse e
estudo nas ciências sociais brasileiras não possuíam muita afinidade com a
sociologia simmeliana, como se deixa ver nos casos de Florestan Fernandes ou de
Luís de Aguiar Costa Pinto, já mencionados. Por essa razão, nessas décadas a
recepção e o tráfico de Simmel pelas ciências sociais parece ter perdido lugar
e interesse.
Como sugeri ao iniciar, podemos situar na virada para os anos 1980 a passagem
para outro momento na história da recepção do pensamento de Simmel no Brasil.
Além do que já foi dito na ocasião, isso pode ser investigado em outra
dimensão, que aparece em um comentário de Gilberto Velho acerca de Gilberto
Freyre:
"Freyre retoma com originalidade o pensamento de G. Simmel. O grande
pensador alemão foi uma das maiores influências na sociologia norte-
americana. Acredito serem muito fortes as afinidades de Freyre com
sua obra, principalmente no que se refere à temática indivíduo e
sociedade e à questão da subjetividade. A partir daí, encontramos a
elaboração de reflexões que estão no limite entre uma antropologia
cultural e uma psicologia social.
A valorização da heterogeneidade sociocultural brasileira permite-lhe
estar atento e valorizar o fenômeno da reciprocidade e das trocas
socioculturais. Não se tratava de desconhecer contradições e
conflitos, mas de vê-los como dimensão da vida social, aparecendo
tanto na sociedade como um todo, como nas próprias trajetórias
individuais, aproximando-o de Simmel" (Velho, 2001b:116, ênfases no
original).
Ao passar rapidamente por Sérgio Buarque de Holanda, tomei como ponto de apoio
uma reflexão de Gabriel Cohn acerca da possível presença de Simmel em Buarque
de Holanda; agora também em Gilberto Velho podemos encontrar uma reflexão
acerca da presença de Simmel em Gilberto Freyre. Se, por um lado, esses dois
colegas realizaram trabalhos significativos, nos quais a presença de Simmel foi
importante, tanto mais relevante é perceber o esforço que realizaram para
evidenciar como aquilo que para eles foi e é precioso também se encontra em uma
tradição anterior, à qual, de algum modo, por meio desse processo de
identificação, se enlaçam. Com isso, criam um nexo de continuidade e a
possibilidade de um movimento cumulativo-formativo, no qual podem situar os
seus próprios trabalhos e, por esse mesmo movimento, obtêm uma perspectiva para
realizar uma observação do processo das ciências sociais no Brasil. Creio que
isso permite vislumbrar um novo momento na história da recepção de Simmel no
Brasil, nomeadamente em uma dimensão auto-reflexiva das ciências sociais entre
nós ou, dito em outro jargão, uma observação de segunda ordem (cf. Luhmann,
1997:esp. cap. 2).
Feitas as contas, apresentado o inventário (é verdade que bem incompleto), bem
se pode ver que a herança de Simmel não é algo morto e sem vida, indiferente e
indiferenciador, mas que a seu modo vive e pulsa nas ciências sociais do
Brasil, desde que elas se pretenderam ciência. Nesse sentido, não tem nada de
similar ao dinheiro, como Simmel, ao que parece erroneamente, sugeriu; com
efeito, o exercício da lembrança tem sido uma constante, que se atualiza de
maneira diferenciada a cada momento na história das nossas ciências sociais.
Mais do que enfatizar um conjunto de possíveis fatos históricos comprováveis
sob lupa positivista, interessa indagar e investigar em que medida Simmel se
fez de algum modo presente em uma memória coletiva que molda o pensar das
ciências sociais no Brasil35, e nesse sentido se revela e também se oculta nos
textos mais ou menos canônicos, mais ou menos conhecidos, mais ou menos lidos e
valorizados dos autores brasileiros.
NOTAS
1. Colegas historiadores e filósofos que consultei não souberam identificar uma
possível recepção de Simmel em seus respectivos campos disciplinares.
2. Novamente, trata-se de excerto do início da Soziologie de 1908 e é traduzido
da coletânea organizada por Wolff, The Sociology of Georg Simmel, por Robert
Schwarz e cotejada com o alemão.
3. O texto foi traduzido da coletânea organizada por Wolff (1950).
4. A coletânea (192 p.) reúne 12 "textos" de Simmel, sete deles excertos da
Soziologie de 1908, dois deles da pequena Sociologia de 1917, além de três
outros textos. Alguns deles foram traduzidos diretamente do alemão, outros de
traduções norte-americanas, e revistos pelo organizador. Além disso: Simmel
(1992b), tradução de uma coletânea realizada na França, e Souza e Oelze (1999),
coletânea com textos de Simmel e sobre Simmel; assim como a edição portuguesa
(Simmel, 1970 [1910]).
5. Cf. em geral Miceli (1989/1995), em especial, no vol. 1,Limongi (1959/1945:
217-233).
6. Mas o texto só terá ampla divulgação, nos EUA, a partir de 1950, com sua
publicação em Wolff (1950), em tradução de Hans Gerth e C. Wright Mills.
7