Autonomia e discricionariedade do Ministério Público no Brasil
INTRODUÇÃO
O Ministério Público no Brasil, até a Constituição de 1988, era uma instituição
ligada ao Poder Executivo, como é o modelo na maioria das democracias
consolidadas. Embora sua previsão constitucional tenha ocupado diferentes
seções e capítulos das diversas cartas magnas republicanas, instrumentos
institucionais, tais como a indicação e destituição pelo presidente do
procurador-geral da República, comprovavam sua ligação com o governo. Os
constituintes de 1987/88, contudo, decidiram garantir mais autonomia à
Instituição, não somente do ponto de vista formal, fazendo-a constar de
capítulo à parte do Poder Executivo, como também criando mecanismos que
protegem consideravelmente o Ministério Público dos estados e da União contra
ingerências por parte dos governantes em particular e dos políticos de uma
maneira geral. Essa autonomia, entretanto, não foi acompanhada por
significativos instrumentos de accountability.
Não é somente a autonomia que transforma promotores e procuradores em
importantes atores políticos. Autonomia sem instrumentos de ação não seria
suficiente para que as notícias sobre a atuação do Ministério Público migrassem
dos cadernos policiais para os espaços destinados à política nos jornais. O
inverso também é verdadeiro: somente instrumentos de ação ' tais como ação
penal pública, ação civil pública e inquérito civil ' sem autonomia
transformariam o Ministério Público em instituição do Poder Executivo e
executora de decisões e orientações governamentais.
Além disso, o leque de atribuições do Ministério Público é extenso, permitindo
afirmar que há poucos assuntos referentes à sociedade brasileira que não possam
ser transformados pela instituição em uma questão judicial. De um crime
passional ao desvio de dinheiro por parte de um burocrata, passando pela
poluição de um rio ou pelo direito de um político se candidatar em uma eleição,
quase todos os assuntos podem ser judicializados pela instituição.
Este artigo discutirá o novo Ministério Público surgido pós-Constituição de
1988. A conclusão é que o Ministério Público é singular porque combina
elementos ' autonomia, instrumentos de ação, discricionariedade e amplo leque
de atribuições ' que não são comuns em instituições com poucos mecanismos de
accountability.
AUTONOMIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Os constituintes brasileiros de 1987/88 retiraram o Ministério Público de sua
ligação direta com o Poder Executivo sem colocá-lo subordinado ao Poder
Legislativo ou ao Judiciário. A autonomia em relação aos poderes de Estado,
entretanto, não precisaria significar necessariamente a independência de
qualquer tipo de accountability político. A questão é descobrir se há
instrumentos, mesmo com a autonomia da instituição, capazes de garantir que
promotores e procuradores de justiça prestem contas de suas ações, se são
responsivos a um ator externo à organização e se os integrantes do Ministério
Público podem ser responsabilizados por seus atos quando identificados desvios.
O número de sanções aplicadas pelos políticos, o número de comissões
parlamentares responsáveis por fiscalizar uma instituição, a exigência de
relatórios anuais de atividade etc. são os indicadores mais evidentes para
avaliar o grau de interferência externa sobre uma organização.
Se o único parâmetro fosse esse tipo de fiscalização a posteriori, conhecida
como patrulha de polícia (Kiewiet e McCubbins, 1991), a conclusão seria que há
total ausência de accountability e que os constituintes abriram mão de qualquer
tipo de interferência sobre os rumos do Ministério Público no Brasil, ocorrendo
uma abdicação por parte dos políticos em relação à instituição. As sanções
diretas não ocorrem, inclusive porque não existem instrumentos para que os
políticos as façam. Embora seja prevista uma fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial pelo Parlamento, esta se restringe a
questões de responsabilidade do Tribunal de Contas e não se traduz no
acompanhamento das atividades propriamente processuais do Ministério Público.
Nesse sentido, os políticos seriam incapazes de reverter a atuação dos
integrantes do Ministério Público pela ausência de instrumentos diretos para
esse fim.
Alternativa diversa é buscar instrumentos indiretos que poderiam servir de
incentivo para que a instituição observasse os desejos dos políticos. A
fiscalização a posteriori de tipo patrulha de polícia é apenas uma das
possibilidades ' menos eficiente, diga-se de passagem ', mas não a única. Não é
porque os políticos não punem constantemente os integrantes do Ministério
Público e não fiscalizam diretamente as ações tomadas pelos integrantes da
organização que, necessariamente, os promotores não levam em conta o desejo dos
políticos e que estes não possam reverter o tipo de atuação do Ministério
Público, pelo menos no médio prazo. Essa falta de punição pode indicar, na
verdade, que os promotores e procuradores de justiça estão se antecipando aos
desejos dos políticos para evitar possíveis sanções. Dito de outra forma,
"[...] o fato de que os agents da burocracia aparentam fazer política
pública com pouca orientação direta dos políticos eleitos não
significa necessariamente que os burocratas são responsáveis pelas
escolhas políticas ou que eles se utilizam de uma significativa
discricionariedade. As escolhas realizadas pela burocracia estão
fortemente ligadas a um jogo em que o poder de indicação do Executivo
e do Legislativo, junto com a ameaça de sanções, proporciona uma
influência potencialmente decisiva sobre a política"(Calvert,
McCubbins e Weingast, 1989:589, ênfase e tradução do autor).
A delegação de tarefas e poderes por parte dos políticos para uma instituição
estatal, portanto, nem sempre é sinônimo de abdicação. Esta significa "que o
agent possui a completa discricionariedade sobre as escolhas das políticas
públicas e que o principal não detém controle" (McCubbins e Noble, 1995:74,
ênfases e tradução do autor). A definição, como os próprios autores reconhecem,
é bastante extrema, já que poderia haver graus diversos de abdicação, "mas
relativas quantidades de abdicação significam que o principal pode influenciar
as escolhas do agent em pelo menos alguma dimensão" (ibidem, ênfases e tradução
do autor). Desse modo, a abdicação absoluta somente existiria em uma relação
entre políticos e burocratas se os primeiros não detivessem nenhum mecanismo
para modificar as ações e iniciativas dos atores não-eleitos. Caso haja algum
tipo de controle orçamentário e/ou os políticos detenham instrumentos
institucionais mesmo que indiretos em relação à burocracia, não é possível
caracterizar a transferência de tarefas como uma abdicação.
Por essa definição, órgãos com alto grau de autonomia diante dos políticos não
seriam realmente autônomos. Afinal, é prerrogativa dos atores eleitos aprovar o
orçamento, mesmo quando proposto pelo próprio órgão. Nessa linha de
argumentação, o Ministério Público pós-Constituição de 1988 é muito semelhante
ao Ministério Público da ditadura militar ' afinal, os orçamentos, em ambos os
casos, são aprovados, em última instância, por políticos. Além disso, seria
possível argumentar que, como a iniciativa legislativa cabe aos atores eleitos,
no limite, os políticos poderiam modificar a legislação para alterar os rumos
de um órgão estatal, mesmo em casos em que o orçamento é administrado com
relativa autonomia ou em casos em que um órgão possui verbas vinculadas. Essa
definição, entretanto, não leva em conta que uma organização que possui
previsão constitucional, como o Ministério Público, está mais protegida das
ingerências externas do que uma prevista por legislação ordinária. Um órgão,
por exemplo, que é obrigado a prestar contas regularmente de suas atividades ao
Poder Legislativo é menos autônomo do que uma instituição em que para o
principal modificar o "contrato" é necessário emendar a Constituição do país.
Já um órgão público que propõe seu orçamento ao Poder Legislativo é mais
autônomo relativamente do que aqueles que não detêm esse direito. Ao não
identificar essas diferenças, pode-se concluir que praticamente não haveria
nenhuma organização com autonomia na estrutura estatal e que as mudanças
ocorridas em 1988 em relação ao Ministério Público são, no fundo, irrelevantes.
A sugestão deste artigo é que o conceito de abdicação poderia ser mais útil
quando flexibilizado e pensado relativamente a outras organizações, tanto
nacionais quanto internacionais, ou quando a aprovação do orçamento pelo
Legislativo sofresse restrições que limitassem a interferência dos políticos. O
orçamento do Ministério Público, por exemplo, é proposto pelo órgão ao Poder
Legislativo, e sua administração é realizada pelo próprio Ministério Público, o
que aponta uma diferença importante em relação a outras organizações estatais
ou ao próprio Ministério Público antes da Constituição de 1988. Além do mais,
como a ação penal pública é monopólio do Ministério Público, diminuir suas
verbas pode significar a paralisação de atividade fundamental de enforcement da
lei, já que não há outro substituto legal para cumprir a função.
Ou seja, a avaliação de que ocorreu apenas uma delegação é simplificadora no
sentido de não identificar a criação de uma série de instrumentos, muitos deles
previstos constitucionalmente, que dificultam a intervenção do governo ou do
Poder Legislativo nos rumos da organização. Por outro lado, afirmar que houve
uma abdicação não explica que a independência orçamentária do Ministério
Público, por exemplo, seja apenas relativa. Assim, entre abdicação e delegação,
surge um fenômeno intermediário: alto grau de autonomia, embora com alguns
poucos instrumentos de accountability. A hipótese deste artigo é que houve,
para o caso do Ministério Público construído a partir da Constituição de 1988,
uma quasi-abdicação.
Instrumentos Institucionais que Garantem Autonomia
Cabe, então, perguntar, à luz da literatura, quais seriam os instrumentos
capazes de reverter o tipo de atuação dos promotores e procuradores de justiça
brasileiros e quais seus problemas?
Um primeiro instrumento é a idéia de múltiplos agents, ou seja, tarefas
semelhantes são delegadas a diferentes atores estatais. A idéia é que as mesmas
tarefas executadas por agentsdiversos, embora aumentem os custos de manutenção
(folha de pagamento, manutenção de equipamentos etc.), geram competição entre
as organizações e "combinada[s] a incentivos adequados, melhora[m] o
desempenho" (Przeworski, 1998:56-57). Assim, além de diminuir as chances de que
ações não sejam tomadas, permite que sejam comparados os níveis de atuação
entre os atores ' aspecto difícil em matérias sob responsabilidade do Estado.
O pressuposto é de que os políticos podem punir a organização que não esteja
atuando corretamente e premiar aquela que desempenha melhor seu papel ' por
exemplo, garantindo verbas maiores para a segunda, em detrimento da primeira.
Mesmo que ocorra a concorrência entre organizações, o Ministério Público pode
ser punido somente parcialmente, uma vez que há limitações referentes ao corte
de seu orçamento. Além do mais, no caso da ação civil pública, embora outros
atores possam lançar mão do mesmo instrumento, o recurso ao inquérito civil e à
ação penal pública (muitas vezes utilizados de forma complementar à ação civil)
é monopólio dos promotores e procuradores, ou seja, o Ministério Público não
detém o monopólio sobre uma série de questões, mas possui instrumentos
privilegiados relativamente a outros atores, tornando a competição desigual.
Outro instrumento para buscar gerar responsividade das burocracias públicas é
que para cada órgão estatal exista outro com poderes para bloquear as ações do
primeiro, garantindo uma fiscalização institucional (Kiewiet e McCubbins, 1991;
Przeworski, 1998). O problema de múltiplos agents com capacidade de veto sobre
um órgão é que, quanto maior o número de atores com direito a veto, maior a
dificuldade de se modificar o status quo; quanto maior o número de mecanismos
de controle sobre o agent, maior será a dificuldade de atuação deste para
mudanças que justificaram sua criação: "Controles [checks], portanto, inibem a
possibilidade que os agents atuem da forma que o principal considera
indesejável, mas necessariamente também obstaculizam os agents de atuarem no
sentido desejado [...]" (Kiewiet e McCubbins,1991:34, ênfases e tradução do
autor).
Um aspecto importante, contudo, é se o Poder Judiciário pode ser incluído como
um órgão com poderes para bloquear ações de outros atores estatais,
incentivando uma responsividade aos políticos dos atores não-eleitos. Afinal, o
Judiciário não responde diretamente aos políticos, e a questão aqui é uma
fiscalização institucional entre os agentsem que o principal é formado por
políticos. Se o Poder Judiciário fosse uma dessas organizações, não haveria
nenhum ator estatal realmente autônomo. Mesmo agências de regulação, que gozam
de alto grau de autonomia, podem ter suas ações revistas pelo Poder Judiciário.
Em outras palavras, o Poder Judiciário não é um agent que participa da
fiscalização institucional incentivado por um principal formado por políticos.
Contudo, caso seja incluído o Poder Judiciário como um dos atores com direito a
veto sobre o Ministério Público e responsável pelo accountabilitysobre a
instituição, poder-se-ia afirmar que a atuação dos promotores estaria limitada?
A resposta a esta pergunta é sim, pelo menos em boa parte dos casos. Afinal, os
promotores e procuradores brasileiros são aqueles que propõem as ações, mas é o
Poder Judiciário que as julga. Entretanto, existem tipos de atuação em que o
Ministério Público independe dos juízes, embora em um segundo momento os
prejudicados possam recorrer aos tribunais:
"Problemas relacionados ao direito do consumidor, ao meio ambiente, à
comunidade são, na maior parte das vezes, resolvidos sem o recurso
aos procedimentos judiciais que os levariam ao Poder Judiciário.
Aliás, promotores e procuradores priorizam a solução a partir de
acordos entre as partes em litígio, procedimentos administrativos,
requisição de providências aos órgãos públicos e privados e demais
instrumentos extrajudiciais. Chega-se a calcular que 90% das questões
são resolvidas sem o recurso ao Judiciário" (Sadek, 2000:28).
Além disso, em questões relativas diretamente ao jogo político, a resposta do
Poder Judiciário pode vir tarde demais. O trâmite dos processos judiciais
dificulta que um político acusado de alguma irregularidade seja julgado a tempo
de, por exemplo, ver o seu nome "limpo" antes de uma eleição. Como na maioria
dos casos não há impedimentos para o posicionamento público dos promotores
sobre políticos acusados de irregularidades, a imprensa é utilizada para
levantar suspeitas (e, muitas vezes, proceder ao próprio julgamento) que podem
prejudicar os políticos. Mesmo a responsabilização judicial destes promotores
por acusações que não se sustentam é uma possibilidade remota e nunca política,
distanciando essa punição de um mecanismo claro de accountability.
Em suma: o Poder Judiciário não é um típico instrumento de indução sobre os
promotores para que estes atuem no sentido desejado pelos políticos justamente
porque os juízes não respondem aos políticos. O Judiciário também não é um
parâmetro razoável por si só para indicar se uma instituição goza de altas
doses de autonomia ' afinal, sempre há a possibilidade de se recorrer aos
tribunais, o que levaria à conclusão de que nenhum ator estatal é autônomo.
Além disso, há uma série de iniciativas do Ministério Público que passam à
margem dos juízes ou cujos procedimentos processuais impedem que as respostas
cheguem em tempo razoável do ponto de vista do jogo político-eleitoral.
Outro instrumento importante para que os políticos exerçam influência sobre os
rumos de um órgão estatal é o direito de indicar o chefe da organização,
colocando no cargo alguém afinado com seus interesses. Entretanto, é preciso
também que os políticos detenham os mecanismos para retirar da chefia aqueles
que não observam seus desejos. O temor da punição ' a perda do cargo ' é
fundamental para gerar incentivos para que o agentobserve os desejos do
principal (Shapiro, 1997; Finn, 1993; Calvert, McCubbins e Weingast, 1989). Na
busca por se manter no cargo, o agentse antecipa procurando agradar os
políticos. Esse instrumento é tão importante que, na análise de agências norte-
americanas, Wood e Waterman descobriram que "em cinco dos sete programas
examinados, os resultados da agência mudaram imediatamente após troca de
chefia" (1991:822, tradução do autor).
No caso da escolha do chefe do Ministério Público da União, o procurador-geral
da República é indicado pelo presidente, entre os membros de carreira do
Ministério Público da União, sendo que seu nome deve ser aprovado pela maioria
do Senado. Essa forma de indicação poderia sugerir que o cargo é de confiança
e, portanto, um instrumento importante de interferência dos políticos sobre o
Ministério Público da União. Pela lógica aqui descrita, o principal escolheria
alguém afinado com seus interesses, e o procurador-geral seria o responsável
por criar uma política institucional, respeitando os desejos dos políticos
envolvidos no processo de escolha.
Entretanto, dois mecanismos institucionais enfraquecem essa interpretação. O
primeiro aspecto é que, ao observar as regras de demissão do ocupante do cargo,
se nota que o agent é bastante protegido da interferência dos políticos. Além
do mandato de dois anos, o procurador-geral da República somente é passível de
demissão por iniciativa do presidente da República, precedida de autorização da
maioria absoluta do Senado. Se a demissão de um ministro de Estado, ato
decidido somente pelo presidente, em muitos casos, é custosa do ponto de vista
político (alianças são rompidas, cargos sugeridos por partidos são perdidos
etc.), com a necessidade da participação do Senado, tal iniciativa pode ser
extremamente difícil. Essa proteção é uma exceção na política brasileira, tanto
em relação à maioria dos cargos na estrutura estatal quanto em relação às
outras constituições, no que se refere ao Ministério Público. Mesmo em
perspectiva comparada, geralmente, o chefe da instituição que detém o monopólio
da ação penal é indicado e destituído pela exclusiva vontade do chefe do Poder
Executivo1.
A proteção contra a exoneração decidida exclusivamente pelo presidente não é
desfrutada no Brasil nem pelo presidente do Banco Central nem por diretores de
empresas estatais, por exemplo. A relação com o principal, além de frágil,
também é baseada em dois principals distintos, já que não há garantias de que o
presidente tenha maioria no Senado. Segundo Kiewiet e McCubbins (1991),
múltiplos principals podem não conseguir expressar uma única política, o que
dificultaria a avaliação da atuação dos agents e garantiria certa margem de
manobra para os burocratas, podendo gerar ações prejudiciais aos interesses de
um dos principals2. Afinal, como há dois principals, não fica claro qual deles
o agent deve levar em conta para orientar sua atuação, já que nem sempre os
interesses são coincidentes.
Além disso, outro dado limita a importância de se indicar o procurador-geral da
República. Os instrumentos institucionais para que o procurador-geral exerça
controle em relação aos demais integrantes do Ministério Público da União
também são limitados quando aquele é transformado em principal. A estrutura do
Ministério Público não é tradicionalmente hierárquica, como se dá na maior
parte das organizações estatais. Os procuradores do Ministério Público Federal
possuem considerável autonomia diante do procurador-geral da República, assim
como os promotores em relação aos procuradores-gerais de Justiça dos estados.
As promoções dos membros do Ministério Público, que poderiam funcionar como um
importante instrumento de incentivo para um alinhamento dos promotores com o
procurador-geral, ocorrem independentemente da vontade do chefe da instituição,
sendo definidas ora pelo critério de antiguidade, ora por decisão de órgãos
colegiados do Ministério Público. Em outras palavras, mesmo que o promotor
tenha um desempenho profissional não afinado com as orientações do procurador-
geral, há mecanismos institucionais que garantem o progresso em sua carreira.
Esse modelo pode incentivar uma baixa previsibilidade de atuação do Ministério
Público e impossibilitar a criação de uma política institucional unificada e
coerente definida pelo procurador-geral.
A possibilidade de recondução ao cargo, embora limitada pela questão dos
múltiplos principals, poderia servir como incentivo para que o procurador-geral
da República levasse em consideração os desejos dos políticos. Pela
Constituição, o procurador-geral da República pode ser reconduzido quantas
vezes o presidente e o Senado acharem conveniente. Assim, buscando manter-se no
cargo, o procurador-geral atenderia aos interesses dos principals com vistas a
garantir sua recondução. É a lógica do voto de accountability transposta para o
caso de um sistema sem eleição direta3. Entretanto, com um presidente sem
maioria no Senado, a quem o procurador-geral deveria "agradar"? Caso seja ao
presidente, o procurador-geral pode ser vetado no Senado. Caso seja aos
senadores, o procurador pode não ser indicado pelo presidente.
Situação pouco diversa é a indicação e a destituição dos procuradores-gerais de
Justiça, chefes dos Ministérios Públicos estaduais. Pelas regras
institucionais, por meio de eleição direta entre os membros da instituição, são
selecionados três nomes que serão apresentados ao governador do Estado. Assim
como o procurador-geral da República, o procurador-geral de Justiça também
possui um mandato de dois anos, podendo somente ser afastado do cargo por
decisão da maioria absoluta do Poder Legislativo estadual, sem a necessidade de
interferência do governador.
Nesse caso, portanto, os principalssão múltiplos: os próprios colegas da
instituição estadual, que votam para compor a lista tríplice; o governador, que
escolhe entre os três nomes apresentados; e os deputados estaduais, que podem
decidir pelo afastamento do procurador-geral de Justiça. Mas outro detalhe
merece destaque. Diferentemente do procurador-geral da República, o procurador-
geral de Justiça só pode ser reconduzido ao cargo uma única vez, transformando
o processo em algo ainda mais imprevisível. Em uma eleição direta, o partido
político tem um papel importante no caso de candidatos que se apresentem pela
primeira vez aos eleitores, assim como em casos de uma última candidatura. Na
ausência de partidos, políticos que não continuassem na vida pública teriam
menos incentivos para observar os desejos dos seus eleitores, já que não
disputariam novas eleições nem transfeririam seu legado a um partido político.
Transpondo esse modelo para o caso de um procurador-geral de Justiça, que tem
um número de oportunidades finito (uma recondução) e nenhuma agremiação
partidária, este poderia tornar-se "incontrolável" em seu segundo mandato.
Em outras palavras, embora a indicação daquele que ocupa a chefia de uma
organização seja um instrumento importante para garantir a influência dos
políticos sobre uma instituição estatal, isto pode não ocorrer no caso do
Ministério Público no Brasil. Primeiro, porque não há um único principal.
Segundo, porque o cargo não é propriamente de confiança. Terceiro, a
organização não é tradicionalmente hierárquica, sendo que o chefe da
organização tem poderes internos bastante limitados.
Outro instrumento capaz de gerar incentivos para que atores não-eleitos atuem
no sentido desejado pelos políticos é o alarme de incêndio (Kiewiet e
McCubbins, 1991). Como a fiscalização a posteriori, do tipo patrulha de
polícia, não é capaz de garantir que o agent relate a verdade sobre sua
atuação, a fiscalização do tipo alarme de incêndio busca informações naqueles
que recebem os serviços da burocracia, ou seja, os cidadãos.
"[...] precisamente pelo fato de a burocracia estatal prestar
serviços aos cidadãos, são os cidadãos que têm a melhor informação
sobre seu desempenho. Além disso, se os políticos se preocupam com o
bem-estar dos cidadãos, então os interesses dos cidadãos coincidem
com os interesses dos políticos, que são os principals, e não com os
interesses dos burocratas que são os agents" (Przeworski, 1998:58).
O alarme de incêndio, portanto, permite que os políticos busquem modificar a
atuação dos agents quando os grupos organizados, que giram na órbita daquela
burocracia, fazem soar o alarme contra eventuais falhas daqueles atores
estatais. O problema desse alarme é que, quando os grupos não são organizados,
estes podem não se fazer ouvir pelos políticos, ou, utilizando um termo
apresentado em Moe (1984), o decibel meter não funciona a contento. Outra
dificuldade é que, se os políticos não possuem mecanismos institucionais para
modificar a atuação de seus agents, mesmo em caso de disparo do alarme, não há
como corrigir rapidamente a atuação da burocracia.
O alarme de incêndio seria um instrumento importante para a fiscalização do
Ministério Público, já que, por exemplo, não há a apresentação de uma prestação
de contas aos políticos sobre a atuação dos promotores ' mesmo sabendo que isso
não significa que os agents não esconderão informações de seu principal. O
problema, contudo, é que a atuação do Ministério Público nem sempre é voltada
para grupos organizados, mas muitas vezes para indivíduos isolados entre si ou
grupos dispersos. Assim, o alarme pode soar fraco e não ser ouvido pelos
políticos. Mesmo que seja ouvido, quais são os instrumentos políticos para
punir a instituição por eventuais desvios? A questão é que os mecanismos
institucionais de fiscalização sobre a organização, além de imperfeitos,
praticamente não deixam margem para punições, dificultando, portanto, o
accountability.
Uma medida que poderia limitar a autonomia do Ministério Público foi a criação
do Conselho Nacional do Ministério Público em 2005. O órgão é composto pelo
procurador-geral da República, quatro membros do Ministério Público da União,
três membros do Ministério Público dos estados, dois juízes indicados pelo
Supremo Tribunal Federal e outro pelo Superior Tribunal de Justiça, dois
advogados indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil e dois cidadãos de
notável saber jurídico e reputação ilibada indicados pela Câmara dos Deputados
e pelo Senado Federal. Sua atribuição é a fiscalização da gestão administrativa
e financeira do Ministério Público, o controle da atuação dos promotores e
procuradores de Justiça e a escolha de um corregedor nacional entre os membros
que o integram. Embora essa iniciativa indique um maior accountability em
relação à organização, e demonstre que os políticos não abdicaram de seu
direito de legislar com vistas a influenciar a atuação do Ministério Público,
vale notar que os membros do órgão são exclusivamente operadores do direito,
que a maioria é composta por integrantes do próprio Ministério Público e que
somente dois deles são indicados diretamente por parlamentares eleitos pelo
voto direto dos cidadãos. Não há dados suficientes para afirmações definitivas
sobre a atuação do Conselho. Entretanto, se a idéia era uma fiscalização
externa mais efetiva e cotidiana, a composição do órgão com a maioria de
membros do próprio Ministério Público pode não ser suficiente para romper
elementos corporativos.
Assim, a conclusão é que houve, senão uma abdicação completa (porque os
políticos ainda podem emendar a Constituição, modificar a legislação
infraconstitucional ou interferir no orçamento proposto pelo Ministério
Público), pelo menos uma delegação que garantiu boa margem de autonomia e uma
amplitude de tarefas pouco comuns a órgãos estatais com integrantes não-
eleitos. Em outras palavras, houve uma quasi-abdicação.
AMPLO LEQUE DE ATRIBUIÇÕES E INSTRUMENTOS DE AÇÃO
Esta quasi-abdicação, embora pouco comum ao princípio de que em uma democracia
o poder soberano é exercido pelos cidadãos por meio de seus representantes
eleitos, é identificável em alguns casos, não sendo exclusividade do Ministério
Público no Brasil. Alguns órgãos, como o Banco Central norte-americano, os
ombudsmen nórdicos ou as agências reguladoras brasileiras, detêm suficiente
autonomia perante os políticos ou a própria sociedade. Em alguns casos, altas
doses de independência podem até ser, se não desejáveis do ponto de vista do
sistema baseado na soberania popular, pelo menos aceitáveis: ou porque garantem
liberdade aos atores para agirem contrariamente aos interesses políticos
partidários momentâneos, ou porque garantem aos compromissos políticos maior
credibilidade, não aparecendo como conseqüência direta do desejo de algum grupo
político partidário localizado, ou porque, ainda, diminuem os custos de
transação do Legislativo.
Entretanto, nem toda quasi-abdicação é igual no que se refere à amplitude das
tarefas transferidas para os atores não-eleitos. Pode-se afirmar que os
exemplos de órgãos com maciça autonomia são geralmente aqueles que desempenham
papéis pontuais em suas interferências no jogo político, na sociedade, na
economia ou nas políticas públicas. Afinal, é mais fácil prever regras legais e
mecanismos institucionais aos burocratas quando suas funções são bem
delimitadas e com pouca discricionariedade. Em contrapartida, quanto maior o
leque de atribuições e mais vaga a legislação ' aumentando a chance de
discricionariedade dos atores não-eleitos ', maior deve ser o accountability
para que o principal possa acompanhar o desempenho de seu agent. Segundo
Shapiro: "Uma coisa [...] de qualquer modo, é colocar as políticas públicas
para além do controle democrático de acordo com as relativamente fixas
cláusulas da constituição e outra completamente diferente é colocá-las nas mãos
de uma agência de governo com um poder discricionário" (1997:289, tradução do
autor). Desse modo, quando se limita o grau de discricionariedade, as chances
de arbitrariedades também diminuem, tornando mais razoável em uma democracia a
existência de órgãos com altas doses de autonomia. Por outro lado, quanto maior
a liberdade de um ator estatal, maior deve ser a fiscalização sobre sua
atuação.
Partindo da observação de que o Ministério Público brasileiro sofreu um
processo de quasi-abdicação, pode-se afirmar que essas recomendações
normativas, relativas à limitação de tarefas e limitação de discricionariedade,
são cumpridas em relação à organização? A resposta varia de acordo com a função
observada. Como se sabe, o Ministério Público é, na verdade, uma instituição
única que desempenha papéis diversos. Ao ser observado o papel "clássico" do
Ministério Público, ou seja, a responsabilidade de propor a ação penal pública
para crimes comuns, pode-se afirmar, como será demonstrado, que o grau de
discricionariedade é relativamente baixo. Entretanto, em relação às duas outras
funções principais ' a fiscalização de políticos e burocratas (um papel
semelhante ao dos ombudsmen) e a fiscalização do cumprimento da lei pelos
governos e por particulares ', tais recomendações não são cumpridas, garantindo
aos promotores e procuradores altas doses de discricionariedade com pouco
accountability.
O Papel Tradicional: Condução da Ação Penal Pública
Quando ocorre um crime ' roubo ou assassinato, por exemplo ', a polícia é
responsável pela investigação. Sob a coordenação do delegado, o inquérito
policial é elaborado e enviado para um juiz, que distribui o caso para o
promotor responsável. Baseado nessa peça, o promotor vai ao Poder Judiciário,
que decidirá sobre a condenação ou absolvição do acusado.
O que obriga o promotor a levar todos os casos ao Poder Judiciário,
independentemente da gravidade do mesmo, é o chamado princípio da legalidade,
modelo não utilizado em todos os países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o
promotor pode negociar com o réu a denúncia dos comparsas em troca da
diminuição da pena sem a participação do Poder Judiciário, utilizando-se do
princípio da oportunidade. Entretanto, em 45 dos 50 estados norte-americanos,
os district attorneys são eleitos diretamente pelo voto popular, em um claro
mecanismo de accountability vertical. Em outros países que garantem
discricionariedade aos seus promotores, geralmente, a agência responsável pela
ação penal é ligada ao Ministério da Justiça, sendo o ministro que indica os
cargos-chave da instituição, traça estratégias coletivas e possui instrumentos
de punição àqueles que se desviam de suas orientações, criando uma política
institucional coerente e unificada, em um claro mecanismo de accountability
horizontal. No caso brasileiro, em relação à ação penal para crimes comuns, os
promotores não possuem discricionariedade para decidir se uma ação deve ou não
ser levada ao Judiciário, compensando, até certo ponto, os frágeis instrumentos
de accountability.
Assim, a regra parece se confirmar em relação ao Ministério Público brasileiro:
quanto menor o accountability, menor a discricionariedade, sendo que nos países
que se orientam pelo princípio da oportunidade a relação é inversa, ou seja,
maior discricionariedade combinada com maior accountability. Neste caso
específico, a quasi-abdicação em relação ao Ministério Público no Brasil é
menos estranha à democracia, pois garante pouca discricionariedade aos
promotores e procuradores em relação à ação penal para crimes comuns.
Processando (ou não) Políticos: Uma Agência de Accountability
Um órgão responsável pela fiscalização de políticos, como o Ministério Público,
é o reconhecimento de que somente os clássicos instrumentos dos checks and
balances ' poderes de Estado limitando poderes de Estado ' não seriam
suficientes. A complexidade do Estado contemporâneo fez surgir órgãos
especializados e auxiliares dos poderes de Estado, não previstos na teoria
clássica da democracia liberal, para limitar abusos de atores estatais ' como
as ouvidorias dos países latinos ou os ombudsmen dos países nórdicos, por
exemplo. Portanto, um órgão responsável pela fiscalização de políticos não é
uma exclusividade brasileira; o que é diferenciado, entre outros, é o grau de
independência de todos os seus integrantes e o seu amplo leque de atribuições.
Por outro lado, esse tipo de órgão é também o reconhecimento de que o voto dos
eleitores é um instrumento fraco diante da complexidade do jogo político. A
fiscalização requer um tal nível de informações que, sem o auxílio de órgãos de
accountability, como afirmam Przeworski, Stokes e Manin (1999), o eleitor seria
incapaz de controlar seus políticos. Entretanto, há uma diferença entre órgãos
que aumentam as informações dos eleitores e os que detêm instrumentos para
também processar políticos, ou seja, há uma diferença entre o ombudsman e o
Ministério Público brasileiro. Enquanto o primeiro levanta informações para os
eleitores ou para os órgãos do Poder Executivo que poderão atuar judicialmente,
o Ministério Público no Brasil detém a capacidade, praticamente, sem a
necessidade de consultar outro ator, de levar os políticos ao banco dos réus.
A importância e a necessidade de organizações como instrumento de
accountability sobre os políticos não é capaz, por si só, de invalidar
possíveis críticas. Investigações de homens públicos também podem ser
conduzidas de maneira a privilegiar aliados ou prejudicar desafetos,
principalmente com o grau de discricionariedade do Ministério Público em
relação à ação civil. Mesmo com a participação de políticos nos processos de
investigação, como as Comissões Parlamentares de Inquérito ' CPIs, os
promotores não são obrigados a processar os nomes sugeridos pelos
parlamentares. Desse modo, verifica-se uma estranha equação para o processo
democrático: um órgão com poucos mecanismos de accountability, mas com razoável
grau de discricionariedade.
Os pontos contrários a essas ressalvas são alguns números de ações contra
políticos apresentados por ministérios públicos estaduais. Dos 645 municípios
de São Paulo, por exemplo, até o ano 2000, 38% tiveram seus prefeitos
processados (Arantes, 2002), um número bastante expressivo. Contudo, há de se
observar outro aspecto: se o Ministério Público detém razoável grau de
discricionariedade nas ações civis, ou seja, se a organização pode selecionar
casos, ao processar mais de duas centenas de prefeitos em um Estado, isto
significa que os outros são inocentes? A qual conclusão devemos chegar quando
um prefeito não é processado? Pode-se concluir que o Ministério Público deu um
certificado de idoneidade ao político, ou que há uma seleção de casos mais
importantes que o dele, ou que o promotor é um tipo mais "burocrático" e não
deseja confusão em sua comarca. Os critérios adotados pelos integrantes do
Ministério Público, que detém poder discricionário, podem não ser claros. Como
afirma William West, citando Kenneth Davis, "Geralmente as mais importantes
decisões discricionárias são as negativas, como não iniciar, não investigar,
não processar, não entrar em acordo, e as decisões negativas geralmente
significam uma disposição definitiva" (West, 1995:25, tradução do autor).
Por fim, outro aspecto deve ser ressaltado. Como a condenação por corrupção no
Poder Judiciário é bastante complexa, parece que atuar extrajudicialmente
constitui uma espécie de estratégia do Ministério Público ou, pelo menos, de
uma parte dele. Ao divulgar à imprensa que está investigando um político, este
pode ser condenado pela opinião pública sem um julgamento baseado no princípio
liberal de que todos são inocentes até que se prove o contrário. Imagine-se uma
situação-limite: uma semana antes das eleições, um promotor ou procurador
anuncia à imprensa que determinado candidato é suspeito do desvio de dinheiro
quando ocupava um cargo na administração pública. Quais são as chances de
defesa deste candidato?
Defensor Discricionário de Direitos: A Ação Civil Pública
Outra importante atribuição dos promotores e procuradores brasileiros refere-se
à fiscalização do correto cumprimento da lei, incluindo-se aí as leis
constitucionais. O principal instrumento para essa tarefa é a ação civil
pública e o inquérito civil.
A ação civil pública é um instrumento jurídico que permite a representação,
junto ao Poder Judiciário, de interesses coletivos, difusos e individuais
homogêneos4. União, estados, municípios, autarquias, empresas públicas,
fundações, sociedades de economia mista e associações existentes há pelo menos
um ano, com objetivos de defesa do meio ambiente, do consumidor ou do
patrimônio histórico e cultural, e Ministério Público podem lançar mão de tal
mecanismo. Por esse motivo, mesmo que a ação civil esteja prevista
constitucionalmente na seção destinada ao Ministério Público, ela não é
monopólio da instituição, embora responda por 90% das ações, segundo Ada
Pelegrine Grinover (Sadek, 1997). Portanto, o Ministério Público é o ator
privilegiado para utilizar este instrumento que permite judicializar uma gama
imensa de assuntos e que garante a discricionariedade aos integrantes da
instituição.
A discricionariedade é reforçada por meio do monopólio do inquérito civil pelo
Ministério Público ' instrumento utilizado na fase preliminar ao processo
judicial. O inquérito civil permite que as investigações sejam conduzidas e
coordenadas pelos promotores, sendo que eles podem decidir independentemente de
outro ator estatal se o caso merece se transformar em uma ação civil pública.
Ou seja, mesmo não detendo o monopólio sobre a ação civil pública, o Ministério
Público é reconhecidamente o mais importante ator a utilizá-la e mantém um alto
grau de discricionariedade sobre este ponto. Portanto, um dos elementos que
formalmente serviam de defesa contra a falta de instrumentos de accountability
(a obrigatoriedade de levar o caso à Justiça como na ação penal e,
conseqüentemente, a pouca discricionariedade) perde sua força, garantindo a um
órgão com integrantes não-eleitos, muito pouco accountable, o papel de decidir
ou não sobre a procedência de um caso.
A argumentação de que a defesa de certos interesses pelos promotores por meio
da ação civil coincide com a vontade do cidadão não significa que estes
controlem a instituição. Como afirma Gruber, "se por uma feliz coincidência
burocratas agem no sentido em que os cidadãos desejam que eles ajam, a
burocracia pode parecer não ser um problema tão grande, mas não está sob
controle democrático". Isto porque
"Controle deveria ocorrer por meio de um processo de reações
antecipadas. Se os burocratas antecipassem com precisão o que os
cidadãos gostariam que fosse feito, e então se sentissem
constrangidos a agir baseados nesta antecipação, uma forma de
controle democrático teria ocorrido. Mas se os burocratas estiverem
errados na sua antecipação e agirem em um sentido em que os cidadãos
e o legislativo não aprovem, não se pode dizer que suas ações foram
controladas pelos cidadãos" (1987:12-13, tradução do autor).
É possível argumentar que os promotores, em relação ao seu papel na ação civil
pública, só estariam cumprindo a lei e, portanto, não interferindo motivados
por uma opção política de seus integrantes, mas sim, para garantir o
cumprimento do que está previsto constitucionalmente ' principalmente em um
país onde a sociedade seria incapaz de exigir seus direitos por conta própria.
Nesse sentido, haveria uma optimal policy definida constitucionalmente, o que
justificaria a existência de um órgão com integrantes não-eleitos, com poderes
ampliados e com independência em relação ao jogo político-partidário.
Embora os princípios constitucionais possam ser definidos como objetivos a
serem perseguidos, como chegar a eles e quais são as prioridades são questões
passíveis de discussão e de discricionariedade dos políticos ' e não de
burocratas. Em outras palavras, se a lógica das eleições fosse levada ao
extremo, todo político buscaria maximizar os ganhos da sociedade através de
políticas públicas, não por altruísmo, mas sim porque garantiria a reeleição
agradando a todos os eleitores. No entanto, são as limitações orçamentárias que
impedem a completa realização dessa opção racional, aspecto que não
necessariamente entra no leque de preocupações dos integrantes do Ministério
Público brasileiro. Ou seja, na democracia, a escolha de prioridades é
realizada por políticos eleitos diretamente pelos cidadãos. Quando essa escolha
é feita não pelo embate político, mas transformada em questão jurídica ou
técnica, perde-se uma dimensão importante da participação e interferência
popular. Assim, a judicialização da política ' a transformação de questões
tradicionalmente tratadas pelos Poderes Executivo e Legislativo em ações
judiciais ' caminha juntamente com a negação da política presente nos discursos
que desconfiam de partidos e políticos e depositam fé nos técnicos de bancos
centrais, agências reguladoras e toda a sorte de instituições com pouca
possibilidade de interferência da soberania popular.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Afirmar que houve uma abdicação dos políticos em relação ao Ministério Público
na Constituição de 1988 é desconsiderar instrumentos institucionais
importantes. Alguns mecanismos indiretos foram mantidos, dentro da lógica do
checks and balances dos estados democráticos. Entretanto, o novo Ministério
Público é razoavelmente protegido de injunções político-partidárias mais
cotidianas sobre a organização. A conclusão é que estamos diante de uma quasi-
abdicação dos políticos, pouco comum quando se observa outros órgãos estatais
no Brasil.
Essa quasi-abdicação, por si só, não é fenômeno singular em perspectiva
comparada, até porque é possível identificar organizações de diversos países
também razoavelmente protegidas contra injunções político-partidárias. O que
diferencia o Ministério Público brasileiro é que, paralelamente à sua
autonomia, os constituintes garantiram razoáveis graus de discricionariedade a
estes atores não-eleitos do Estado. Assim, o argumento de que os promotores e
procuradores somente cumprem a lei, não precisando, por este motivo, de
instrumentos de accountability, não se sustenta. É a possibilidade de exercer a
discricionariedade, somada à autonomia, aos instrumentos de ação e ao amplo
leque de atribuições, que transforma o Ministério Público em uma organização
pouco comum à democracia.
NOTAS
1. Sobre um estudo comparando o Ministério Público no Brasil com seus similares
em outras democracias, ver Kerche (2005).
2. Este problema é chamado de Dilema de Madison (Kiewiet e McCubbins, 1991).
3. O voto de accountability é aquele em que o eleitor pune ou premia o
candidato de acordo com sua atuação passada. Este tipo de voto é distinto do
voto mandate, em que o eleitor seleciona as melhores propostas durante a
campanha. Para mais detalhes ver Przeworski, Stokes e Manin (1999),
principalmente a introdução.
4. Os interesses difusos e coletivos são os "transindividuais de natureza
indivisível" (Arantes, 1999:88), e os individuais homogêneos "são os
decorrentes de origem comum" (ibidem). O fato é que os interesses são amplos,
tornando possível judicializar praticamente qualquer assunto que envolva um
grupo de cidadãos. Para mais detalhes, ver Arantes (1999).