Relações econômicas internacionais, isomorfismo institucional e democracia na
América Latina: explicando as convergências (inesperadas?) entre Uruguai,
Brasil e Honduras
O presente estudo parte da inquietação de seu autor diante dos resultados
expressos pelo informe "La Democracia en América Latina ' Hacia una Democracia
de Ciudadanos y Ciudadanas", documento divulgado pelo Programa de las Naciones
Unidas para el Desarrollo PNUD (2004a). A repercussão dos resultados dessa
pesquisa deu vazão a um grande número de interpretações sobre o estado de saúde
da democracia na América Latina. O propósito do PNUD foi investigar um quadro
aparentemente paradoxal: em face do insatisfatório desempenho econômico dos
países latino-americanos ao longo dos anos 1990, associado a um quadro de
intensas reformas do Estado (o que significou, em regra, uma concomitante
retração deste vis-à-vis um avanço das estruturas de mercado), sob que
circunstâncias se fez possível a relativa estabilização das práticas
democráticas no subcontinente?
A própria elaboração da pergunta ' central à pesquisa do PNUD ' embute os
valores em que assentam os estudiosos responsáveis pela condução dos trabalhos.
Passemos em revista os supostos: em primeiro lugar, presume-se não apenas a
compatibilidade, senão a relação benigna (e desejável) entre democracia e
desenvolvimento econômico. Esta relação remete aos escritos originais de
Seymour Lipset, publicados em meados dos anos 1950 (Paramio, 2002a:16).
Contudo, nem sempre se acreditou possível a convivência harmônica entre estas
categorias ' democracia e desenvolvimento. Merquior lembra que a economia
clássica, teorizadora do mercado, era ideologicamente alheia ' e até antipática
' ao princípio democrático1. Coube aos economistas neoclássicos, já no avançado
do século XIX, "celebrar as núpcias entre teoria econômica e visão democrática"
(Merquior, 1982:134). Hoje, a relação positiva entre democracia e
desenvolvimento é pedra de toque da maior parte dos trabalhos acadêmicos nesta
seara. Tornou-se ponto de partida, e não mais hipótese ' ainda que estejamos
cercados de evidências empíricas mistas e inconcludentes a respeito (cf.,
principalmente, Przeworski et alii, 2000). Os informes do PNUD (2004a; 2004b;
2004c) incorporam a regra.
É importante, em segundo lugar, compreender o que se pretende por
"estabilização das práticas democráticas" no contexto latino-americano. Aqui, a
abordagem do PNUD é procedimentalista: importa, para os efeitos pretendidos
pelo informe, saber se o país em exame conta com quatro elementos, quais sejam,
(a) sufrágio universal; (b) eleições limpas; (c) eleições livres; e (d) acesso
a cargos públicos via eleições. Uma vez presentes os quatro elementos
arrolados, estará atestado o caráter eleitoralmente democrático de um regime
(PNUD, 2004b).
A perplexidade suscitada pelos referidos informes do PNUD (2004a; 2004b; 2004c)
apresenta-se da seguinte maneira: se a democracia e o desenvolvimento devem
preferencialmente caminhar juntos (proposição de Lipset), como, então, explicar
a hipótese de a democracia nos países latino-americanos ter-se estabilizado '
bem entendido: "democracia" nos termos descritos pelo PNUD ' a despeito do
insatisfatório desempenho econômico daqueles países ao longo das duas últimas
décadas? Boschi (um dos pesquisadores que colaboraram para o debate conceitual
do PNUD sobre a democracia latino-americana) adiciona dois pontos: "se o legado
histórico da América Latina não favorece a democracia, o contexto tampouco o
faz, tanto de um ponto de vista econômico quanto de uma perspectiva das
características do sistema internacional, começando da conjuntura da Guerra
Fria até chegar ao cenário atual, de predomínio da violência e do terrorismo
internacional" (Boschi, 2004b:216, tradução do autor).
A passagem desperta dúvida. Afinal, se parece evidente que a democracia (sob o
prisma teórico do institucionalismo histórico) não deita raízes profundas em
solo latino-americano, afigura-se pouco clara a conexão entre o contexto
internacional vigente e a democracia que se configurou nestas paragens. A
rigor, as relações internacionais contemporâneas ajudam ou interferem no
arraigamento das práticas democráticas em um subcontinente ' política e
economicamente periférico ' como o nosso?
Tradicionalmente, as relações interno/internacional e as implicações que estas
relações guardam com os processos de democratização e desenvolvimento não têm
merecido a devida ênfase da parte dos pesquisadores. Muitos são os que ignoram
a dimensão internacional dos processos que se dão no bojo dos estados,
entendendo não se tratar de variável (ou conjunto de variáveis) que mereça
maior atenção (Naim, 1993; Przeworski, 1994). Outros tentam equiparar a pressão
internacional a fatores domésticos, tais como a cultura política, a
legitimidade e os interesses das elites (Varas apud Zovatto, 2002). Há ainda
quem busque, por meio de abordagem cognitivista, entender os mecanismos
psicológicos por detrás das tomadas de decisão dos governantes (Weyland, 1998;
2002). Uma terceira linha de teóricos, à qual sou simpático, busca assinalar a
impossibilidade de se estabelecer qualquer relação causal a respeito dos
processos de democratização e desenvolvimento na América Latina que não leve em
conta a complexa teia de relações internacionais que conformam a inserção do
subcontinente latino-americano no mundo (Ikenberry, 1990; Gilpin, 2004; Henisz,
Zelner e Guillén, 2004; Pevehouse, 2002). Entender o "estar no mundo" da
América Latina seria, pois, precondição para algum avanço na compreensão da
problemática das relações entre democracia e desenvolvimento.
Mas a que "contexto internacional" se está a referir? Aludo ao contexto em que
se deram as reformas institucionais do Estado latino-americano ' ou seja, às
décadas de 1980 e, sobretudo, 1990. Durante esse período, muito se passou: a
gradual dissipação do clima de Guerra Fria e a ruína do "império" soviético
trouxeram consigo a disseminação, em escala global, dos valores liberal-
democráticos (Fukuyama, 1992; Ruggie, 1998); propagou-se uma espécie de
receituário econômico de cunho ortodoxo, basilar às reformas do Estado, levando
ao que alguns perceberam como o predomínio da economia sobre a política; a
assertividade com que as relações econômicas internacionais modularam as
reformas institucionais do Estado latino-americano fez-se notar pela pronta
assimilação (e propagação) do rótulo "reformas neoliberais". Comum foi a
percepção de que as reformas estruturais na América Latina se deviam ao
encaminhamento das relações internacionais pós-Guerra Fria. Para sobreviver em
um mundo dito globalizado, seria necessário para o Estado reformar-se ' e fazê-
lo segundo ditames mercadológicos, emanados dos centros econômicos mundiais.
Quão acurada é essa percepção? Poder-se-á argüir, contrario sensu, que os
governos nacionais adotam o curso das reformas institucionais orientadas para o
mercado em virtude de fatores domésticos, tais como o desempenho incipiente de
alguns setores da economia, as pressões de grupos de interesse, a deterioração
do quadro fiscal ou a busca por avanços tecnológicos (Henisz, Zelner e Guillén,
2004). Em que pesem tais alegações, apresento aqui a hipótese de que, não
fossem as pressões internacionais pelas reformas neoliberais, nenhum desses
fatores internos seria decisivo a ponto de fazer mudar toda a formatação
institucional do Estado latino-americano.
Portanto, eis a primeira hipótese a ser discutida neste artigo: a de que as
reformas orientadas para o mercado na América Latina estão diretamente
relacionadas à incidência das forças econômicas internacionais. Imputar
relações de causalidade ao movimento reformista dos anos 1980 e 1990 na América
Latina requer, antes de tudo, compreender a dinâmica das relações econômicas
internacionais.
Caso as forças econômicas internacionais sejam realmente as maiores
responsáveis pela remodelagem institucional do Estado latino-americano, quão
autônomo estará o seu povo para determinar o seu rumo? Ou, noutros termos: se
os países latino-americanos estiverem, de fato, submetidos, de forma
irresistível (como se costuma alegar), a uma lógica dos mercados internacionais
(o que aqui chamo de relações econômicas internacionais), quão legítima será a
democracia ' ou seja, o governo do povo ' exercida sob tais condições? Ainda
que se reconheçam os avanços institucionais, em que extensão foi possível
concretizar o ideal da democracia na América Latina de hoje? Para mais, qual o
grau de adequação entre a conduta democrática (preconizada pelo PNUD) e o ideal
democrático no subcontinente latino-americano? Por mais que sejamos democratas
(praticantes da democracia eleitoral, nos termos do PNUD), poderíamos nos
considerar politicamente democráticos?
Se eu estiver correto a respeito da crença no papel decisivo que as relações
econômicas internacionais exercem sobre o Estado latino-americano (o que
estaria substanciado na adoção das reformas orientadas para o mercado), a
concepção que se defenderá adiante é a da inviabilidade de se colocar em
prática, na América Latina, um arranjo institucional que se aproxime de uma
noção mais substantiva de democracia. Ou, posto de outra forma: acredito ser
difícil a conjugação de uma lógica pura de mercado com uma lógica puramente
democrática. Avanços na real democratização de uma sociedade implicam certos
retrocessos da mercantilização dessa mesma sociedade, e vice-versa (Hanson,
1999). Para o propósito do artigo, considerarei, portanto, a relação de trade-
off existente entre a democracia e o mercado ' como, de resto, o faz o próprio
PNUD (2004a).
Segue, assim, minha segunda hipótese: a de que a democracia possível na América
Latina é formalista e pouco substanciosa porque está calcada em procedimentos
que não impedem os agentes racionais ' orientados pela lógica das relações
econômicas internacionais ' de atingir os seus objetivos, mesmo que à custa dos
ideais democráticos. A hipótese envolve a suposição adicional de que os
cidadãos latino-americanos não têm consciência do sentido da democracia, sendo
incapazes de aquilatar o poder de alocação dos recursos públicos que eles,
cidadãos, detêm em mãos. Hipótese a investigar.
Rearranjando fatores, tentarei decifrar a lógica que estrutura a relação
triangular entre (a) as forças econômicas internacionais; (b) as reformas
institucionais do Estado; e (c) a democracia na América Latina. O processo dar-
se-á em duas etapas: (1) o estudo das relações entre reformas neoliberais na
América Latina e forças econômicas internacionais; e (2) a apreciação dos nexos
entre as relações econômicas internacionais e a democracia na América Latina.
Para tanto, parece indispensável o suporte factual. A relação triangular,
anteriormente sugerida, será analisada por meio do acompanhamento da evolução
das reformas neoliberais e de seus desdobramentos em três países da América
Latina: Uruguai, Brasil e Honduras. Essa seleção de países não é fortuita.
Seguem alguns critérios formais, tais como a disponibilidade de dados
(confiáveis) e a presença [dos três países] no conjunto dos 19 países
pesquisados para a elaboração do informe do PNUD (2004a); além de critérios
arbitrários, estabelecidos por mim, notadamente a constatação de uma
convergência nas trajetórias de "reformas do Estado" nesses países, a despeito
das diferenças históricas, geográficas, étnicas, demográficas, sociais e
econômicas que os três, Uruguai, Brasil e Honduras, ostentam entre si.
Paralelamente, serão também analisados os dados agregados referentes à América
Latina.
O PESO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Pôr em apreço a primeira hipótese requer o conhecimento da evolução das
reformas econômicas na América Latina. A Tabela_2, produzida a partir de dados
disponibilizados pela Comisión Económica para América Latina ' CEPAL (1999)2 e
PNUD (2004b)3, é um bom ponto de partida. Em primeiro lugar, chama a atenção o
fato de que os dois conjuntos de índices, elaborados por CEPAL e PNUD, parecem
apontar para um mesmo horizonte ' malgrado tratar-se de duas entidades com
orientações teóricas e abordagens metodológicas distintas. Segundo, fica
patente a curva ascendente no tocante às reformas para o mercado na América
Latina, ao longo dos últimos 30 anos. Mas há sensíveis diferenças entre os
países em exame, sobretudo no aspecto do timing: o Uruguai atinge um limiar de
país liberalizado (índice = 0,8) já no início dos anos 1980, ao passo que
Brasil e Honduras só o atingiriam por volta de 1995. O gradualismo do caso
uruguaio, contrastado ao ritmo acelerado das reformas no Brasil e em Honduras,
fica ilustrado nos dados relativos às duas últimas décadas: enquanto o primeiro
evolui lentamente de um indicador 0,76 (1980) para 0,83 (2000), os dois últimos
dão verdadeiros saltos (de 0,49 para 0,81, no Brasil; de 0,65 para 0,85, em
Honduras). O passo decisivo no processo de reformas uruguaio deu-se ainda nos
anos 1970, quando o país avançou de um status de economia fechada (0,39 em
1970) para o de economia aberta (0,76 em 1980). Terceiro, refutando o senso
comum, a evolução dos índices sugere que os anos 1990 não constituíram
exatamente o período mais denso em termos de reformas do Estado na América
Latina (ou, como preferiram alguns, a "década neoliberal"). A rigor, a
seqüência dos dados aponta para a maior concentração de reformas nos anos
compreendidos entre 1985 e 1995 (ver Figura_1). Portanto, se houve uma "década
neoliberal" na América Latina, ela inclui a segunda metade dos 1980 e a
primeira metade dos 1990.
Internacionalmente, o cenário foi bastante movimentado durante o período de
culminância das reformas (1985-1995). Compreendeu, dentre outros, os primeiros
anos da redemocratização na América Latina e no Leste Europeu, a queda do muro
de Berlim (1989), o fim da União Soviética (1991), o fim da Guerra Fria e a
proliferação do ideário liberal-democrático pelo mundo (Fukuyama, 1992; Ruggie,
1998). Não é por acaso que, na primeira metade dos anos 1990, se tenha dado o
lançamento de vários experimentos de livre-comércio regional (Asia-Pacific
Economic Cooperation ' APEC (1989), Área de Livre Comério das Américas ' ALCA
(1990), Mercado Comum do Sul ' Mercosul (1991), União Européia (1992), North
America Free Trade Agreement ' NAFTA (1994)), bem como a criação da Organização
Mundial do Comércio ' OMC (1994), além do sem-número de acordos bilaterais de
livre-comércio e cooperação que se celebraram na América Latina e no mundo. As
relações econômicas internacionais encontravam-se em intensa atividade.
Os dados apresentados em PNUD (2004b) bem ilustram o modelo de inserção
econômica internacional adotado pela América Latina. Percebe-se a evolução
positiva da participação das exportações no Produto Interno Bruto ' PIB no
Uruguai, Brasil e Honduras, assim como em toda a América Latina, entre 1980-
2000. A única guinada significativa ocorre no Brasil, onde a relação
exportações/PIB mais que duplica no curso dos últimos 20 anos. Uruguai e
Honduras, dois países de economias tradicionalmente mais extrovertidas, também
experimentam ligeiros acréscimos no coeficiente exportações/PIB durante os anos
de reformas do Estado. A Tabela_3 mostra a evolução do investimento externo
líquido ' IEL, no curso da década de 1990, em nosso subcontinente. Nitidamente,
a parábola segue uma trajetória ascendente a partir de 1992, atingindo o ponto
mais alto da curva entre 1998-2001, e, então, declina rapidamente, nos três
países. O período de 1998-2001 corresponde ao ponto alto das privatizações das
empresas estatais na América Latina. Ao que se pôde perceber, com o esgotamento
dos ativos do Estado latino-americano e a ocorrência de crises financeiras
(Brasil, em 1999; Argentina, em 2001), o ânimo do investidor estrangeiro para
remeter divisas diminuiu sensivelmente.
Há também o aprofundamento da dependência do financiamento externo para o
investimento interno bruto no Estado latino-americano. No ínterim 1990-2001,
esse percentual subiu de 6,7 para 28,2 ' na média dos países da América Latina.
Dá-se a transição de um modelo de "tutela capitalista", comum aos anos de
Guerra Fria, para a competitiva economia mundializada da década de 1990. O caso
de Honduras afigura-se exemplar: em 1980-1985, cerca de 47% de seu investimento
interno era patrocinado por fontes externas; no ano de 1995, esse número havia
despencado para 14% (PNUD, 2004b). Ocorre que, por ocasião da revolução
sandinista, na Nicarágua, os Estados Unidos posicionaram tropas em território
hondurenho, e ali se mantiveram durante os anos 1980, fazendo-se acompanhar por
investimentos infra-estruturais no país. A retirada das tropas e a perda do
interesse estratégico dos Estados Unidos em Honduras, com o fim da Guerra Fria,
fizeram retroceder dramaticamente as cifras de ajuda externa ao governo
hondurenho, levando à conseqüente deterioração de um quadro (já incipiente) de
investimentos internos. A década de 1990 inaugura a era do "cada um por si" nas
relações econômicas internacionais.
A combinação de dados fornecida pelas Tabelas_4, 5 e 6 joga luz sobre a
natureza assimétrica das relações entre as forças da economia internacional e
as reformas institucionais do Estado na América Latina. Na Tabela_4, percebemos
como os três países, Uruguai, Brasil e Honduras, passaram por choques
deflacionários na segunda metade dos anos 1990, vindo atingir taxas anuais de
inflação de apenas um dígito no início dos anos 2000 (o repique inflacionário
uruguaio, no ano de 2002, deveu-se, em larga medida, à crise argentina
desencadeada no ano anterior). O paralelismo das mudanças de orientação de
política econômica não é fortuito: em toda a América Latina, os preços passaram
por uma estabilização assemelhada (não é demais lembrar que, no Brasil, tal
controle inflacionário se deu a despeito de uma política fiscal pouco austera '
pelo menos, até meados de 1999). Metas de inflação passaram a ser perseguidas
pelos bancos centrais nacionais, com a aura de um verdadeiro "imperativo
categórico". Cabe mencionar: a contenção da inflação é condicionalidade imposta
pelos receituários econômicos dos bancos multilaterais ' os financiadores
emergenciais das crises de liquidez na América Latina. A revoada rumo à
estabilização dos preços é mais um considerável indício da submissão do Estado
latino-americano aos parâmetros e fórmulas praticados nas relações econômicas
internacionais. A esse propósito, a Tabela_5, de forma distinta, também sugere
relações assimétricas entre economia internacional e Estado latino-americano:
ao acompanhar a evolução dos dispêndios com a dívida externa, nos anos 1990, no
Uruguai, Brasil e Honduras, constata-se um substancial aumento do montante
revertido para as mãos dos credores internacionais (implicando, em decorrência,
cortes de verbas que seriam destinadas a fins considerados socialmente mais
legítimos, aos olhos da população). Em outras palavras: com as reformas
estruturais do Estado latino-americano, aprofundou-se a dívida externa dos
países, sem haver, no entanto, a esperada contrapartida social. No caso
brasileiro, os pagamentos executados com a dívida externa chegaram a dobrar, em
valores absolutos, no espaço de 10 anos (1990-2000). Na média do subcontinente
latino-americano, a história não foi muito diferente: partindo-se de um
montante de US$ 435 bilhões, para o ano de 1990, chegou-se a desembolsar, com a
dívida externa, cerca de US$ 750 bilhões, no ano de 2001 ' um incremento da
ordem de 70% nas despesas. A Tabela_6 exemplifica o que o sociólogo alemão
Ulrich Beck chamou de a "brasilianização" do mundo: o agravamento de uma
situação de extrema concentração da renda nos países da OCDE ' os países mais
ricos do mundo ' durante os 20 anos de reformas estruturais na América Latina
(1980-2000). Nos anos 1980, enquanto a América Latina aumenta o seu PIB em 1,1%
a. a., os países da OCDE incrementam o seu produto interno à ordem de 3,0 % a.
a. ' quase o triplo do crescimento econômico médio latino-americano.
A deterioração das relações trabalhistas também é percebida. A escalada do
desemprego urbano na América Latina acentua-se na década de 1990, atingindo
patamares recordes no início deste milênio. O problema do desemprego, apesar de
não adstrito à região da América Latina, ganha contorno de dramaticidade em
face da fraqueza da rede de proteção social aqui disponibilizada. Em Honduras,
onde cerca de 80% da população total vive em condições de pobreza e miséria, a
situação de desamparo é "preocupante" (PNUD, 2002). No Uruguai, que viu os seus
índices de desemprego urbano duplicarem no intervalo de uma década, alega-se
até a "perda de capital cívico" (idem, 2001). No Brasil e por todo o
subcontinente, a questão do emprego ocupa o topo da lista de prioridades
políticas para governados e governantes (idem, 2004b). A informalidade do
trabalho, efeito colateral da degradação das relações trabalhistas, chega aos
45% da massa economicamente ativa na América Latina ' ou seja: a economia do
Estado latino-americano parece ter-se desmembrado em "oficial" e "paralela".
Quase 80% dos que têm emprego sentem-se "preocupados" ou "muito preocupados"
com a manutenção deste. Com a globalização das estruturas produtivas e a
necessidade dos ganhos de competitividade das economias nacionais, muitos dos
ajustes têm-se dado pela via do chamado downsizing, ou seja, as demissões em
massa e/ou reduções de jornadas e salários. A rigor, os dados ainda apontam
que, durante os 20 anos em que se concentraram as reformas (1980-2000), se
elevou a porcentagem de pobres (40,5%, em 1980; 43,8%, em 1999) e se manteve a
de indigentes (cerca de 18,5%) na América Latina. Além disso, cresceu a
população absoluta de pobres e de indigentes, no campo e na cidade. Se, em
1980, havia 136 milhões de pobres no subcontinente latino-americano, em 1999,
eles passavam de 211 milhões. Durante o mesmo período, o número absoluto de
pobres urbanos cresceu mais de 100% na América Latina (idem, 2004b).
Apesar das melhorias na distribuição da riqueza neste subcontinente, ao longo
dos últimos anos, a desigualdade social continua elevada, com a maioria dos
países a ostentar índices de Gini superiores a 0,5 ' a média dos países latino-
americanos é de 0,544 (em 1999). O Uruguai tem sido o melhor exemplo de
distribuição de renda (índice de aproximadamente 0,4) para o Brasil. Por sua
vez, os índices de desigualdade socioeconômica do Brasil superam-se
negativamente, aferição após aferição: no fim da década de 1990, os 10% mais
ricos da população tiveram o seu quinhão da riqueza nacional acrescido em 9,3%.
Os 10% mais ricos passaram a deter, em 1999, mais de 41 vezes a riqueza dos 10%
mais pobres da população. Em um país considerado "socialmente justo", esse
quociente não costuma ultrapassar o número de 10 vezes (no Uruguai, essa
proporção é de 7,5 vezes). Honduras ' país de pobreza reinante ' tem evoluído
positivamente nesse quesito em anos recentes, apesar de os seus 10% mais
opulentos ainda concentrarem cerca de 22,5 vezes a riqueza dos 10% mais
miseráveis.
AS RAÍZES DO ISOMORFISMO INSTITUCIONAL
Por que as relações econômicas internacionais têm presidido o ritmo e a
natureza das reformas estruturais do Estado latino-americano? Ou, antes: por
que países tão diferentes entre si ' Uruguai, Brasil e Honduras ' convergiram
para um mesmo telos institucional, no tocante a suas reformas estruturais?4
Muitas opiniões há a respeito. Entre os que reputam à dinâmica doméstica dos
estados as razões preponderantes para as reformas, Naim (1993) entende que a
crise por que passou o Estado na América Latina foi severa a ponto de não
deixar aos líderes políticos nacionais outra escolha além da adoção das
reformas neoliberais ' ainda que elas também trouxessem consigo os seus riscos
(Weyland, 1998). Para Przeworski (1994), os políticos teriam optado pelos
ajustes estabilizadores da economia como estratégia eleitoral, a fim de se
manterem em seus cargos. Conaghan e Malloy (1994) atribuem à competição
doméstica entre os capitalistas o desenvolvimento das reformas neoliberais.
Sachs (1989) fala em uma "estratégia de choque" implementada pelos governos
latino-americanos ' as reformas neoliberais ' como meio mais eficiente de se
retomar o crescimento econômico. Veltmeyer, Petras e Vieux (1997) concebem as
reformas como o movimento dirigido pelo Estado para defender os interesses da
classe capitalista.
Entre os que reconhecem na cena internacional a principal força motriz para as
mudanças estruturais do Estado latino-americano, as opiniões também divergem. A
teoria neo-institucional refere-se ao exercício de pressões homogeneizadoras
por estados e outros atores políticos relevantes como isomorfismo coercivo. A
coerção internacional ocorre se "atores internacionais poderosos influenciam,
de forma direta, as escolhas políticas dos governos, ou quando tais atores
alteram os resultados da dinâmica política interna de um país ao intervirem na
formação de coalizões domésticas" (Henisz, Zelner e Guillén, 2004). A coerção
direta implica que os grupos ou partidos domésticos simplesmente aquiesçam às
pressões internacionais ' as condicionalidades impostas por bancos
multilaterais de crédito internacional enquadrar-se-iam nessa categoria. Vasta
literatura sobre a coerção internacional aponta que o papel de agências
multilaterais ' controladoras dos recursos financeiros de que carecem muitos
dos países pobres da América Latina ' goza de legitimidade, e até do apoio, dos
estados ricos ' os que mais contribuem para o seu sustento. Ao estudar as
barganhas entre "emergentes" e o Fundo Monetário Internacional ', no início dos
anos 1980, Kahler constatava:
"Para o FMI, os win-sets eram freqüentemente definidos por fórmulas;
mas por trás dessas fórmulas estão os interesses dos principais
integrantes do Fundo, os países industrializados [...] por um lado,
durante os anos 1980, um acordo que fosse percebido como muito
'frouxo' em suas condicionalidades dificilmente sobreviveria ao
escrutínio da direção do FMI. Por outro lado, países específicos,
como os Estados Unidos da América, também tentariam modificar os
programas [de reformas estruturais do Estado] que fossem vistos como
excessivamente duros com os seus clientes favoritos" (Kahler, 1993:
389-390, tradução do autor).
A coerção indireta presume a existência de mais de uma alternativa política à
maneira como se proceder com as reformas neoliberais. Se os grupos políticos em
enfrentamento no interior de um determinado país manifestarem posições
diversas, então a intervenção de uma terceira parte ' uma parte alienígena '
poderá operar como o fiel da balança (Henisz, Zelner e Guillén, 2004; Cardoso e
Faletto, 2004:37-52).
As constrições internacionais a que estão sujeitos os países da periferia
internacional são variadas. Choques econômicos, anota Haggard (1990), costumam
ter efeitos deletérios para as economias orientadas para fora, e efeitos
ambíguos para as voltadas para dentro. O tamanho do país é fundamental nessa
equação, argumenta Ricupero: "países monstros", como Brasil, Índia e Rússia,
têm uma inserção na economia internacional difícil de coordenar; ao passo que
"países de intermediação", como Bélgica e Cingapura, se inserem naturalmente, e
têm no comércio exterior parte expressiva de seu PIB (Ricupero, 2002). Para
Lijphart, no entanto, essa relação é ambivalente: os países grandes têm um
poder maior nas relações internacionais ' que pode ser usado na obtenção de
benefícios econômicos para os seus cidadãos; por outro lado, maior influência
internacional significa maior responsabilidade, materializada, muitas vezes, em
maiores despesas (especialmente, as de propósito militar) (Lijphart, 2003:293-
308). As contingências do poder na cena internacional também se mostram
decisivas: Haggard percebe que, enquanto o leste asiático era compelido a
desenvolver-se após a Segunda Guerra Mundial, a América Latina, geograficamente
próxima do "grande arco de contenção americano", não constituía ameaça
estratégica e, portanto, não gerava estímulos para o aporte desenvolvimentista
da potência capitalista (Haggard, 1990:31-32).
Sobre o papel que os Estados Unidos devem desempenhar na economia internacional
contemporânea, há visões discrepantes: Robert Gilpin entende que,
historicamente, sempre que houve crescimento sustentado da economia mundial, se
observou a liderança de uma grande potência (Pax Britannica no pré-Primeira
Guerra; Pax Americana no pós-Segunda Guerra). Gilpin adverte que, se quisermos
um mundo economicamente próspero, deveremos nos submeter à "hegemonia benigna"
dos Estados Unidos; estes, por seu turno, também devem estar dispostos a arcar
com a liderança econômica global. Gilpin percebe, não obstante, que, a partir
dos anos 1970, o caminho tomado pelos americanos foi a deserção: o abandono do
padrão-ouro (1971) e as crises do petróleo (1973, 1979) redundaram em abalos na
capacidade (e no ânimo) estadunidense de liderar e coordenar a economia
globalizada. Por isso, temos assistido, com tanta freqüência, às crises de
liquidez mundo afora ' em particular, na América Latina (Gilpin, 2004). Outro
economista, Dani Rodrik, rejeita a versão. Alega, acompanhando o curso
evolutivo da economia internacional, que o Welfare State de estilo europeu
dominou a cena nos anos 1970; o Japão tornou-se o modelo a ser emulado nos anos
1980; e que os anos 1990 favoreceram o capitalismo livre e desregulado da
matriz anglo-saxã. Logo, "A evidência da segunda metade do século XX é a de que
nenhum desses modelos domina claramente os outros. Seria um erro alçar o
capitalismo de estilo norte-americano como modelo para o qual o resto do mundo
deve convergir" (Rodrik, 2002:75).
O raciocínio emulatório é considerado, por alguns estudiosos da temática, como
a principal chave explicativa para as reformas neoliberais na América Latina. O
isomorfismo mimético refere-se à "tendência de os atores buscarem legitimidade
pela emulação do comportamento ou das práticas de outros atores" (Henisz,
Zelner e Guillén, 2004). A emulação (ou mimetismo) se dá quando há incerteza
acerca da efetividade de certas práticas e/ou políticas, ou quando o leque de
alternativas possíveis torna-se tão amplo, que é difícil para o agente racional
apreender as variáveis necessárias para a tomada de decisão. Assim, costuma-se
recorrer à imitação dos "bem-sucedidos". Além disso, a própria estrutura social
pode induzir o comportamento mimético (idem). No âmbito das relações
internacionais, é razoavelmente freqüente a imitação, por parte de estadistas,
das opções políticas feitas por seus homólogos. Estudando o caso do
sindicalismo brasileiro e as relações trabalhistas firmadas durante os anos
1990, Adalberto Cardoso pondera: "Não foi a política, sob Fernando Henrique
Cardoso, a 'arte do possível'? Não estavam os fins dados de antemão pela
globalização? Então a política do possível restringiu-se à otimização dos meios
e, em lugar de ser o momento da elaboração e negociação de projetos de
sociedade, limita-se ao mimetikós adaptativo" (Cardoso, 2003:26).
North reivindica que a mera transferência de regras formais, políticas e/ou
econômicas, das bem-sucedidas economias ocidentais de mercado livre para o
Terceiro Mundo, não é condição suficiente para o desenvolvimento. Antes, as
instituições e os sistemas de crença precisam mudar conjuntamente para que as
reformas surtam efeito, uma vez que são os modelos mentais dos atores que
modularão as suas escolhas (North, 1998:255). Mas não se pode desconsiderar,
ainda assim, o fascínio que as visões de mundo, as teorias intelectuais e os
referenciais simbólicos (em oposição aos aspectos materiais) forjados nos
centros culturais do mundo desenvolvido costumam exercer sobre os tomadores de
decisão latino-americanos (Campbell e Pedersen, 2001:264).
Há os que preferem abordar a questão das reformas do Estado latino-americano de
uma perspectiva estritamente racionalista5. Os teóricos da barganha,
reconhecendo, no que respeita às reformas estruturais na América Latina, a
similaridade de rotas adotadas pelos países ao longo dos anos 1980-2000, e,
ainda assim, alegando a persistência de diferenças institucionais (formais e
funcionais) entre eles, postulam que a "assimetria de recursos entre os atores
envolvidos em dado contexto social determina, por meio das repetidas interações
entre eles, a resultante modelagem institucional" (Knight, 2001:42, tradução do
autor). Esse modelo de interações reiteradas entre os atores políticos,
geralmente pensado para o ambiente doméstico, é transplantado para a arena
política internacional. A assimetria de recursos entre os países do Norte
capitalista e os do subcontinente latino-americano ajudaria a compreender o
andamento do processo reformista. A similaridade de rotas seguidas por Uruguai,
Brasil e Honduras seria, portanto, o subproduto do hiato de forças entre países
desenvolvidos e países pobres, dotados de menos recursos.
Os teóricos contratualistas valem-se das tradicionais premissas da
racionalidade econômica, na tentativa de prover explicações para as reformas
estruturais da América Latina. Ao identificarem incentivos econômicos
internacionais (minimização dos custos transacionais) à adoção de um
determinado padrão competitivo (liberalização econômica), atores estatais
(racionais) confluiriam, voluntariamente, para as reformas neoliberais (Knight,
2001). Hall e Soskice (2001:41) concedem que as molduras institucionais das
economias liberais de mercado proporcionam às empresas capitalistas melhores
condições para a inovação radical. Logo, a busca por "vantagens institucionais
comparativas" poderá ser a força a propelir os estados no rumo dos esforços de
reforma. North, ao discorrer sobre as mudanças institucionais, afirma que a
forma como se concretizarão as organizações de um dado contexto social tenderá
a refletir as oportunidades propiciadas pela matriz institucional. Consoante
seu raciocínio, se uma determinada matriz institucional recompensa a prática da
pirataria, por exemplo, as organizações orientadas para a pirataria abundarão
(North, 1998:249).
Ao final, parece, entretanto, que mesmo os que focalizam preferencialmente os
aspectos domésticos da política latino-americana para explicar as reformas
neoliberais não escapam de um olhar internacionalista. Ikenberry resume, sobre
o movimento maciço de privatizações: "programas de privatização em países
desenvolvidos e em desenvolvimento podem ser entendidos apenas com uma
apreciação do contexto internacional" (Ikenberry apud Henisz, Zelner e Guillén,
2004, tradução do autor). Mesmo os que não percebem na globalização corrente
qualquer traço revolucionário (Gilpin, 2004; Grahame e Hirst, 1998) convêm em
que, pesados os fatores, se afigura ingenuidade crer na mera autodeterminação
reformista dos países latino-americanos. Condicionantes internacionais
concorreram para a nova moldagem do Estado latino-americano de fins do século
XX. Concordar com tal asserção não implica a crença no "fim do Estado", no "fim
da política", no "fim da história", no "fim da diversidade cultural" ou em
outros tipos de fatalismo. Muito pelo contrário. Em primeiro lugar, condicionar
não quer dizer determinar. Afirma-se que as relações econômicas internacionais
têm sido o condicionante de maior peso ' mas não o único ' para a reforma do
Estado na América Latina. A economia internacional é o elemento comum aos três
Estados ' Uruguai, Brasil e Honduras ' que mais provavelmente pode explicar a
concertação dos seus movimentos reformistas ' apesar das diferenças históricas,
geográficas, étnicas, demográficas, culturais, sociais e econômicas que
ostentam entre si. Mas seria um erro apostar na irrelevância do Estado
contemporâneo em face da economia internacional, ou na irreversibilidade do
atual quadro político internacional. Estados têm reagido, de diferentes
maneiras, aos desafios com que são defrontados ' isso talvez esclareça, para
alguns, as diferenças nas formatações institucionais que têm resultado do
processo de reformas neoliberais ' na América Latina e no mundo.
Em segundo lugar, é bastante provável que todo o alarde dos que apregoam o
excepcionalismo desta globalização corrente não encontre arrimo na história.
Como Gilpin (2004) assinala, em vários de seus aspectos, a atual onda
mundializante da economia não supera aquela ocorrida em fins do século XIX. O
mesmo Gilpin reconhece que o sistema econômico internacional sempre teve uma
estrutura muito hierárquica. Não é novidade de nossos tempos. Em se tratando de
América Latina, quando se analisam as estatísticas socioeconômicas concernentes
às suas duas últimas décadas, vem à tona o lugar relativamente periférico
ocupado pelo subcontinente nas relações internacionais. É nítida a estreiteza
da margem de manobra dos líderes latino-americanos na cena internacional. Ao
expormos tal posição, não estamos, por assim dizer, descobrindo a roda (ou a
América!).
Finalmente, em terceiro lugar, qualquer que seja a hipótese adotada para tentar
explicar a origem das reformas neoliberais na América Latina (coerção não-
resistida, emulação ou estratégia racional adaptativa), importante é notar que
todas remetem para fora dos limites do território nacional. Corroborar com a
nossa primeira hipótese (a de que as reformas neoliberais na América Latina se
submeteram à lógica das relações econômicas internacionais) requer a percepção
de que os Estados nacionais ' quaisquer que sejam ' ocupam um lugar no mundo '
ou seja, são as partes integrantes de um todo bastante amplo ' e que, portanto,
não estão imunes às forças que operam no seu entorno.
A QUALIDADE DA DEMOCRACIA LATINO-AMERICANA
A lógica que estrutura as relações econômicas internacionais, como já debatido
em linhas pregressas, tem-se mostrado, na maior parte dos casos, um entrave à
consolidação da democracia latino-americana. Como é sabido, o movimento de
redemocratização, na maioria dos países da América Latina, deu-se em
concomitância com as reformas estruturais do Estado ' sob a égide de forças da
economia internacional. E, conforme se sustenta, a lógica que flui das relações
econômicas internacionais tem ocasionado déficit de legitimidade social do
Estado na América Latina. Tem-se batizado o referido fenômeno de "déficit
democrático".
Pergunta-se: se, em regimes democráticos, o demos (povo) é quem escolhe como e
onde alocar os recursos públicos, por que o déficit de legitimidade social do
Estado persistiu ' e até se agravou ' no contexto das últimas duas décadas ' já
redemocratizadas ' na América Latina? Por que as classes populares não puderam
' pelo exercício de suas prerrogativas democráticas ' concretizar anseios
básicos, respeitantes à cidadania e ao bem-estar?
Para seguir adiante com a argumentação ' que visa desnudar a relação
estabelecida entre as forças econômicas internacionais e a democracia na
América Latina ', submete-se ao crivo do interlocutor a segunda hipótese que
estrutura o estudo. Convém, antes, observar como o PNUD tem avaliado a
progressão histórica da democracia na América Latina. Adicionalmente,
interessa-me conhecer a posição dos cidadãos latino-americanos em relação à
democracia no subcontinente.
A Tabela_7 mostra a evolução de um quadro generalizado de autoritarismo na
América Latina, na segunda metade dos anos 1970, para a democratização (quase)
absoluta, atingida já no início da década de 1990 e perpetuada até os dias que
correm, em Uruguai, Brasil e Honduras. A ascendência da curva é hiperbólica:
segundo o PNUD, a América Latina ostentava, em 1977, um Índice de Democracia
Eleitoral ' IDE médio de 0,28; 25 anos mais tarde, em 2002, esse mesmo índice
galgou o 93º percentil da escala ' e, não fossem alguns episódios ou
configurações pontuais em Chile, Colômbia, Equador e Venezuela, estaríamos, os
latino-americanos, muito próximos do IDE máximo. A Tabela_8, por sua vez,
sugere a aprovação majoritária do regime democrático ' em oposição ao regime
autocrático ' pelo povo da América Latina. Quarenta e três por cento dos
entrevistados declararam-se democratas convictos, enquanto apenas 26,5%
assumiram a posição reversa, a de não-democratas. Em Uruguai, Brasil e
Honduras, os democratas voltaram a superar os não-democratas.
A primeira impressão a ser retida pelo interlocutor desavisado é a de um quadro
democrático extremamente animador. Já um segundo olhar nas referidas tabelas
pode revelar detalhes perturbadores. O IDE, índice empregado pelo PNUD na
confecção da Tabela_7, refere-se tão-somente à dimensão eleitoral da
democracia. Isto é: à concepção de democracia schumpeteriana; à capacidade de
formar governos pela via do sufrágio universal, sem pressões que venham
distorcer os resultados dessa prática. O IDE atém-se à análise das formalidades
eleitorais que envolvem os pleitos democráticos na América Latina. Não é pouca
coisa, alguns dirão ' especialmente, se contrastamos os anos 1970 e os anos
2000. Mas fique bem claro: os indicadores do PNUD não levam em conta as
variadas dimensões do fenômeno democrático. O IDE/PNUD é um índice
unidimensional ' e, por isso, bastante limitado. No que respeita à Tabela_8, é
importante notar que o espectro do comportamento político do cidadão latino-
americano abrange não apenas os democratas e os não-democratas. Há espaço
também para os ambivalentes, ou seja, aqueles que não nutrem preferência
específica por um determinado tipo de regime político, interpolando-se aos
democratas e não-democratas. Cerca de 30% de toda a população latino-americana
diz-se ambivalente quanto à modalidade do regime político a se exercer em seu
país. O dado denota a progressiva despolitização (na via institucional) da
política na América Latina. Os índices de ambivalência ultrapassam os 37% em
Honduras e atingem um teto de 42% no Brasil6. Atinente aos indicadores de
maioria democrática, cumpre notar que, à exceção do Uruguai (cuja maioria
democrática é cerca de 2,5 vezes maior do que o somatório das minorias não-
democráticas/ambivalentes), todos os demais países latino-americanos
pesquisados ou fazem maiorias democráticas estreitas (x < 1,2; casos de
Argentina, Costa Rica, México, Peru e Venezuela), ou não conseguem constituir
maiorias democráticas absolutas (x < 1,0; casos de Bolívia, Brasil, Colômbia,
Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai e
República Dominicana). Isso se reflete no indicador de maioria democrática da
América Latina, de 0,76 ' ou seja: o número de "democratas" declarados no
subcontinente é cerca de três quartos do número de "não-democratas" +
"ambivalentes" declarados. Em outras palavras: não somos um subcontinente cuja
maioria simples da população externe a preferência pela democracia como regime
político.
Se, em termos quantitativos, não fazemos maioria democrática simples na América
Latina, em termos qualitativos, o cenário não é mais promissor. Quase 30% da
população latino-americana não soube responder ou não respondeu à pergunta "o
que significa a democracia?"; em Honduras, esse número chegou a 35%; e, no
Brasil, a 63% da população entrevistada. "Uma grande quantidade de latino-
americanos não tem clareza sobre o significado da democracia. Para muitos
latino-americanos, a democracia não significa algo que possam expressar em
palavras" ' analisa Zovatto (2002:31-33, tradução do autor). De acordo com
levantamento feito pela instituição chilena Latinobarómetro, em 2002, metade da
população latino-americana não se incomodaria com o fato de um governo "não-
democrático" (concebido em oposição a um governo "democrático") ascender ao
poder. Em Honduras, registra-se uma maioria de 53% de cidadãos indiferentes a
uma eventual ascensão de não-democratas ao poder. No Brasil, 62% dos
entrevistados alegaram não se importar se governos autoritários, em algum tempo
futuro, retornassem ao poder. Contribuem para a fragilização da noção de
democracia latino-americana os dados apresentados, na seqüência, pelo PNUD
(2004b): 58,1% dos cidadãos latino-americanos concordariam se, em algum
momento, o presidente desrespeitasse o imperativo da lei (rule of law), o
fundamento do Estado democrático de direito; e 56,3% acreditam que o
desenvolvimento toma precedência sobre a democracia ' o que não constitui
grande surpresa ', mas 54,7% afirmaram que chegariam a apoiar regimes
autoritários que trouxessem o desenvolvimento ' aqui, sim, temos configurada
uma ameaça à integridade democrática na América Latina, tendo-se em vista os
insatisfatórios indicadores econômicos das duas últimas décadas, já
exaustivamente mencionados neste artigo. Aproximadamente 40% da população crê
possível prescindirmos de partidos políticos e do Congresso nacional em
democracias, e 36% concordaria se o presidente viesse governar sem partidos
políticos e o Congresso ' o que não deixa de traduzir a baixa estima dos
cidadãos para com tais instituições da democracia representativa na América
Latina; 37% apoiaria atitudes presidenciais que lhes tolhesse a liberdade de
expressão, impondo a censura, bem como 37% da mostra concordaria com o recurso
presidencial à força para a manutenção da ordem7. Por fim, um dado que
denuncia, se nada mais, certo apelo ideológico da relação entre democracia e
desenvolvimento: apenas 25,1% da mostra acredita possível o desenvolvimento
socioeconômico apartado da democracia. O restante, três quartos da mostra,
entende que a democracia é indispensável para o desenvolvimento. Pergunta-se:
de onde vem essa convicção dos 75% da amostragem? De quais indícios formais?
O descompasso existente entre a idéia de democracia e as instituições
democráticas na América Latina ajuda a minar a noção de "democracia latino-
americana". Muito embora 43% dos cidadãos latino-americanos se digam cultores
da democracia, os níveis de confiança da população nas instituições
democráticas são, em aparente paradoxo, baixos. A média aritmética dos níveis
de confiança nas três principais instituições da democracia representativa
latino-americana ' a Presidência, o Congresso e os partidos políticos ' foi de
apenas 19%, em 2002. E esses índices são declinantes: entre 1996 e 2002, a
Presidência ficou 14% mais desacreditada; o Congresso, 4%; os partidos
políticos, 6%. Instituições tipicamente não-democráticas, como a Igreja, a
televisão e as Forças Armadas, gozam de um relativamente alto prestígio entre
os cidadãos latino-americanos, atingindo percentuais de confiabilidade
expressivos (entre 1996-2002: 75%, 46% e 40%, respectivamente). O exemplo
hondurenho é eloqüente: ainda em 2001, a confiança nos militares excedia ' e
muito ' os índices de confiança nos políticos e nas instituições-chave da
democracia (PNUD, 2001:51). Recentemente, no entanto, o quadro deu mostras de
reversão (PNUD, 2004b).
A Tabela_9 ilustra o que Susan Stokes batizou de policy switches, isto é, o
não-cumprimento de promessas de campanha durante o exercício de mandatos
eletivos, na América Latina (ou, simplesmente, "violações de mandato"). Quase
65% dos cidadãos latino-americanos crêem que os políticos mentem para ganhar as
eleições ' 58% no Uruguai; 61% em Honduras; 78% no Brasil. E quantos são os que
afirmam que os políticos realmente cumprem as suas promessas de campanha? Na
média latino-americana, 2,3% da população (4% em Honduras, 1,3% no Brasil).
Stokes entende que as violações de mandatos não acarretam maior dano à
democracia representativa, uma vez que continuarão a existir formas auxiliares
de accountability por meio das quais o cidadão poderá fazer o seu controle
democrático. Agarrar-se ao conjunto de promessas eleitorais não é a única forma
de um político fazer representar os interesses da população ' diz Stokes.
Mandatos têm sido violados na América Latina porque os políticos antecipam "a
prestação de contas do fim do mandato" (Stokes, 1999:126, tradução do autor).
Stokes conclui: "Violações de mandato não são inconsistentes com a
representação em sentido estreito. Mas devem causar preocupação no tocante à
qualidade das democracias em que elas se fazem endêmicas" (idem:128, tradução
do autor). Diferentemente, entendo ser a implicação dessa postura assumida por
políticos latino-americanos bastante grave: o voto do cidadão médio, na América
Latina, passa a ser concebido como destituído de valor prático, por não ser
ele, o cidadão, quem definirá os rumos efetivos da ação governamental. E o
pior: o cidadão ganha plena consciência desse processo. A tendência, em médio/
longo prazo, é de que os níveis de desconfiança política se elevem, até o
limite do que é necessário para a manutenção da coesão social. Após esse
limite, de duas, uma: ou se muda a forma de fazer a política8, ou a democracia
representativa latino-americana estará correndo sério risco (Paramio, 2002b:
11).
Algumas hipóteses são aventadas por Paramio para explicar a desvalorização de
nossa política democrática: (a) na América Latina, apenas os resultados
práticos de um governo são levados em conta na avaliação da democracia, e não o
seu mérito como regime político. Sendo assim, quando não se vêem os resultados,
contesta-se a democracia; (b) a crescente personalização da política na América
Latina ' o que alguns chegaram a considerar como o renascimento do caudilhismo;
(c) o peso da tradição latino-americana de patrimonialismo e clientelismo,
obstando o florescimento da cultura democrática; (d) a percepção generalizada
da crise na América Latina e a associação com o processo de redemocratização;
(e) a percepção de que, diante das forças da globalização, pouco podem os
governos nacionais; (f) a enorme frustração dos cidadãos com os resultados das
reformas estruturais na América Latina, que prometiam ser a tábua de salvação
do subcontinente (idem:5-9).
Investiga-se, adiante, a percepção da justiça social na América Latina. Em um
espectro que vai de 1 (muita injustiça social) a 4 (muita justiça social), a
média latino-americana foi de 1,82. Ou seja: percebemo-nos um subcontinente
socialmente injusto. A autopercepção da injustiça social na América Latina é
consistente com os altos coeficientes de Gini registrados no interior dos
países. Importante, contudo, é notar que em Honduras, país em que 80% dos
habitantes sobrevivem com renda menor que US$ 1/dia, a percepção da justiça
social é 10% mais positiva do que no Uruguai, a "Suíça subtropical"9. Indagados
sobre as possibilidades de um pobre fazer valer os seus direitos no seu país,
78% dos uruguaios, 79,5% dos brasileiros e 75,8% dos hondurenhos abordados
responderam negativamente. No Brasil e em Honduras, a assertividade da denúncia
de desigualdade legal por parte da população entrevistada foi maior:
respectivamente, 49% e 44% dos entrevistados afirmaram que um pobre nunca faz
valer os seus direitos no seu país (contra 25% dos uruguaios) (PNUD, 2004b)10.
Entre 1996 e 2002, apenas um terço da população se disse "satisfeita" ou "muito
satisfeita" com o regime democrático. Mas o desvio-padrão é alto: no Brasil, o
índice de aprovação caiu para 22%; no Uruguai, elevou-se a 60%. É bastante
possível que, para a configuração desse quadro, interfira fortemente o vetor da
cultura política de cada país, assim como as questões referentes à conjuntura
socioeconômica. A tendência se manteve mais ou menos constante no agregado de
países latino-americanos: entre 1999 e 2002, declinou a satisfação com a
democracia, de 35% para 32% ' exceção feita a Honduras, onde os níveis de
satisfação com a democracia se ampliaram em 17 pontos percentuais no referido
período (idem).
Apesar de professarem fé no ideal da democracia, os latino-americanos acabam
por enjeitar a sua encarnação prática. Inquiridos sobre quais seriam os grupos
que mais exerceriam poder em seus respectivos países, uruguaios, brasileiros e
hondurenhos responderam: empresas e mercado financeiro. Em 2001, esse índice em
pouco ultrapassava os 42% nos três países. Contudo, em 1996 ' portanto, no
"olho do furacão" das reformas estruturais ', 52,2% dos uruguaios, 63,4% dos
hondurenhos e 65,5% dos brasileiros apontavam as forças do mercado como as
dominantes na cena política doméstica ' logo, responsáveis, em larga medida,
por todo o movimento reformista naqueles países. Confrontados pela mesma
pergunta, líderes políticos latino-americanos não divergiram de seus
governados: quase 80% afirmaram que os grupos econômicos e o setor financeiro
são quem exerce o poder fático na América Latina. Dentre os poderes
constitucionais, apenas 36,4% dos cidadãos entrevistados citaram o "Poder
Executivo"; só 12,8% responderam "Poder Legislativo" e 8%, "Poder Judiciário".
Dentre os fatores externos, os Estados Unidos da América mereceram maior número
de menções (quase 23% dos entrevistados elegeram essa resposta). Se os dados
apresentados em defesa da primeira hipótese que estrutura o corrente trabalho
já sugeriam que a política na América Latina é constrangida pelas relações
econômicas (internacionais), a percepção dos cidadãos comuns e dos governantes
não difere muito da nossa (idem).
GLOBALIZAÇÃO, ONDA DEMOCRÁTICA E AUTONOMIA DO INDIVÍDUO
Algumas questões restam. Por que a democracia latino-americana é formalista,
pouco substanciosa? Por que a abordagem procedimentalista da democracia '
aquela em que as liberdades e prerrogativas do indivíduo (transformadas em
"procedimentos democráticos") têm primazia sobre as questões de democracia dita
substantiva (por exemplo: solidariedade, igualdade, justiça social) ' encontrou
terreno fértil neste subcontinente? Por que, do embate clássico entre a
cidadania civil e a cidadania social, a primeira concepção tem saído vitoriosa,
na América Latina?
Sobre a controvérsia entre procedimentalistas e substantivistas, Przeworski
apresenta a versão de que, se a democracia é um sistema em que os resultados
parecem sempre incertos, nenhum "conteúdo social" lhe pode ser incorporado como
objetivo ' sob pena de que compromissos prévios com valores, como a busca da
igualdade, da justiça ou do bem-estar coletivo, acarretem a perda da "incerteza
ex ante", elemento constitutivo dos regimes democráticos (Przeworski, 1994:54).
O que escapa à formulação de Przeworski é o fato de que uma abordagem
procedimentalista também faz, necessariamente, compromissos com valores ex
ante. Ao priorizarem práticas como o sufrágio universal, direitos como a livre
concorrência e a livre expressão, além da proteção do indivíduo contra a
violência arbitrária, os procedimentalistas nada mais fazem do que "empalhar"
os seus valores, tornando-os procedimentos. A inferência lógica: enquanto tais,
procedimentalistas são substantivistas. Ao transformarem os seus procedimentos
em meios, eles não escapam de um compromisso normativo prévio, uma vez que, na
política, não há meios neutros. Não há meios que não sucedam princípios, que
não antecedam fins.
Na interface da economia e da política, Assies, Calderón e Salman (2002:57)
sustentam que a perspectiva focalizada no Estado e em aspectos formais e legais
constitui uma camisa-de-força que obscurece aspectos importantes do problema,
distorcendo a realização de uma cidadania plena. Patrício Silva, por sua vez,
defende que a orientação ao livre-mercado, que se imprimiu às reformas
estruturais latino-americanas, vai de mãos dadas com o conceito procedimental
de democracia, em que a tomada de decisões no nível macro é delegada a um grupo
de tecnocratas especialistas, em sintonia com os seus pares das agências
multilaterais de crédito (apud Assies, Calderón e Salman, 2002). O que Silva
propõe é a visão de que a tecnocracia e a plutocracia são formas degenerativas
em que se tem metamorfoseado a democracia (procedimentalista) latino-americana.
Vista sob o prisma da tríade marshalliana dos direitos cidadãos, as reformas
neoliberais privilegiam os direitos civis, designando um papel operacional para
a sociedade civil. Em contraposição, os direitos políticos são encampados de
forma restrita e procedimental, como uma abreviação dos direitos sociais.
Privilegia-se a responsabilidade do indivíduo para com o seu bem-estar e de
seus dependentes. Não só os mercados se desregulamentam, senão as próprias
políticas sociais se restringem e se subsumem à lógica dos mercados (idem).
Zovatto, investigando o conteúdo que se associa aos signos democráticos na
América Latina, encontrou que o conceito de democracia que têm os cidadãos
latino-americanos está centrado nos valores da liberdade e das eleições. Ao
indicarem os conteúdos mais significativos embutidos na idéia de uma
democracia, 35% associaram-na à liberdade; 10%, à igualdade/justiça; 6%, ao
direito ao voto; e 5%, ao governo para o povo. No tocante às práticas mais
importantes do regime democrático, 27% apontaram as eleições regulares, limpas
e transparentes; 16%, uma economia que assegure a dignidade; 15%, a igualdade
legal; e 15%, a liberdade de expressão. Ainda, latino-americanos tendem a
conceber a democracia de uma maneira "churchilliana" ' isto é, como o menos
ruim dentre os sistemas políticos conhecidos. Sessenta e oito por cento dos
entrevistados declararam que, apesar de todos os problemas, a democracia é o
melhor sistema de governo; e 75%, na contramão, afirmaram que a solução dos
problemas de seus países não depende da democracia (Zovatto, 2002:31). Pelo que
se pode observar, a configuração procedimentalista e civilista da cidadania
latino-americana, com priorização das liberdades e direitos individuais, também
parte, em boa medida, dos desejos e crenças dos seus próprios cidadãos.
Há cabimento falarmos de um indivíduo politicamente autônomo na América Latina?
O tema da autonomia é abordado nos escritos de Reis (2000) e encerra dois
sentidos: (a) uma afirmação espontânea do "eu", em que o ideal envolvido é o de
dar vazão de forma irrefletida a impulsos e motivações de qualquer sorte; e (b)
o autocontrole, em que o principal elemento é a reflexividade com respeito aos
motivos e objetivos próprios e suas relações com objetivos outros. As noções de
autonomia expostas são, em larga medida, incompatíveis entre si. Reis entende a
reflexividade e a lucidez como componentes indispensáveis para a expressão
autêntica do "eu"11. O indivíduo individuado opõe-se ao indivíduo não-
reflexivo, completamente imerso na sociedade. A ação racional é prerrogativa
desse indivíduo individuado ' e não poderá ser experimentada pelo indivíduo
não-reflexivo. O verdadeiro democrata é, nesse sentido, o indivíduo "autônomo",
na segunda acepção fornecida por Reis (idem) ' pois é quem poderá identificar
os valores que permeiam a política de seu tempo e, só então, tomar partido,
fazer as suas escolhas. Em face do postulado e à luz dos dados resgatados e
discutidos neste artigo, há motivo para duvidar da autonomia política do
"cidadão médio" latino-americano12.
E, afinal, o atual estágio das relações internacionais contribui para a
afirmação ou para o malogro das práticas democráticas na América Latina? Qual a
relação mais provável que se estabelece entre a globalização ora em curso e o
processo de democratização latino-americana?
Os ajustes da mutante ordem global incluem a absorção de algumas das funções do
Estado por mecanismos transnacionais. Estreitam-se, em decorrência, as
possibilidades de ação política para a construção de alternativas democráticas.
Estados nacionais periféricos estão submetidos à dinâmica mundializante das
relações internacionais, e aparentam não poder fazer muito para resistir a ela.
Faliu o estritamente "interno"; sobrepôs-se o "internacional" ' sem anular o
Estado, contudo. Não restou na política internacional uma Albânia dos anos de
Guerra Fria, uma comunidade política que possa permanecer hermeticamente
fechada às relações internacionais. E os problemas dessa integração global não-
resistível acumulam-se. Hopenhayn (1998) destaca a contradição entre a
crescente integração simbólica, pelos novos sistemas de comunicação, e a
exclusão de muito daquilo que prometem os meios de massa. Os benefícios
concentram-se em poucas mãos. Calderón (2002) percebe que as promessas não
cumpridas da globalização exercem fortes pressões destrutivas sobre a
democracia. Chega a falar em uma "bomba de tempo", ou seja, a inconsistência
das promessas de políticos (democraticamente eleitos) e a frustração das
expectativas materiais dos eleitores provocariam a hostilização das
instituições e práticas democráticas. Falk (2000) argumenta que as elites
estatais adotam uma perspectiva cada vez mais desterritorializada, o que
contribui para o debilitamento do sentido de identificação nacional ' a perda
de cultura cívica. Por outro lado, a resistência oferecida por civilizações
não-ocidentais aos valores tipicamente ocidentais da democracia e da cidadania
pode impedir a livre difusão desses ideais. Falk vislumbra, para além das
formas democraticamente regressivas de apropriação da globalização, formas
progressivas também: a formação de uma agenda política do "Sul"; a formação de
alianças internacionais de países em desenvolvimento; a atuação concertada de
países pobres em foros multilaterais (todos os três movimentos descritos
indicam o fortalecimento da lógica democrática no plano internacional, a
despeito da globalização) (Assies, Calderón e Salman, 2002; Paramio, 2002a;
2002b).
Boschi tem propugnado que o contexto internacional pouco contribui para a
consolidação da democracia na América Latina ' principalmente a partir da
conjuntura de violência, terrorismo internacional e intervencionismo unilateral
que se instaurou no cenário internacional desde o início da era George W. Bush
(Boschi, 2004a; 2004b). A visão é compatível com aquela oferecida pelo PNUD
(2004a) sobre a democracia na América Latina ' que, apesar de poupar a gestão
do presidente Bush de críticas diretas, traça a mesma correlação entre a
proliferação da violência na cena internacional e a diminuição dos graus de
liberdades de que desfrutam os cidadãos após o episódico 11 de setembro. Em um
outro diapasão, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos pondera que a
globalização corrente reforça a imagem do "dever ser" democrático (Assies,
Calderón e Salman, 2002). Na mesma direção vai Ruggie (1998), que reconhece no
mundo atual o "liberalismo incrustado" (embedded liberalism) e a democracia
"tipo exportação", de moldes ocidentais, sendo propagada em escala global ' as
novas "democracias" iraquiana e afegã podem servir de ilustração para o
argumento. David Held comenta que, no pós-Segunda Guerra, uma nova concepção do
direito internacional passou a dar mais legitimidade às formas democráticas de
governo (Held, 2004:129)13.
Os indícios levantados até aqui, a respeito da relação entre o processo de
globalização e a (re)democratização latino-americana, são mistos ou
ambivalentes. Stark tenta resumir, argüindo ser a globalização um amálgama de
formas democratizantes e antidemocratizantes (apud Assies, Calderón e Salman,
2002). E é provável que, no caso latino-americano pelo menos, esteja com a
razão. Se, por um lado, as forças internacionais, no pós-Guerra Fria,
mostraram-se receptivas à proliferação da democracia eleitoral, do Estado
democrático de direito e dos direitos civis, pareceu evidente também, por outro
lado, o recuo do Estado em suas funções sociais e a mercantilização de várias
de suas estruturas públicas (particularmente na América Latina). A lógica das
relações econômicas internacionais, a um só tempo, avançou sobre alguns espaços
públicos, e fez concessões estratégicas em outros tantos. Remodelaram-se as
esferas do público e do privado, do interno e do internacional.
Por fim, como explicar a tibieza da noção de democracia no ideário dos cidadãos
latino-americanos? Por que, afinal, há tamanha confusão sobre o conceito de
democracia na América Latina? O que leva os cidadãos a abraçar a idéia de
democracia e, ao mesmo tempo, rejeitar práticas e instituições democráticas ao
seu redor?
Talvez seja esse o mais complicado feixe de questões que aqui tentarei atacar.
Nohlen tem entendido que a tibieza do conceito de democracia na América Latina
advém da falta de uma alternativa não-democrática no subcontinente. Explico: a
grande diversidade de caracteres atribuídos ao conceito de democracia na
América Latina acaba conduzindo à perda de identidade do próprio conceito (apud
Zovatto, 2002:31). Dagnino (1994) e Doimo (1996) apontam no histórico dos
movimentos sociais bons motivos para que o conceito de democracia na América
Latina tenha tomado uma forma frouxa: a partir dos anos 1980, a noção de
"cidadania" foi apropriada, com rapidez e voracidade, por um amplo espectro de
atores sociais e políticos, na luta pela "democracia", contra os regimes
autoritários. Com a transição democrática, cada distinto grupo tratou de dar
uma acepção singular a noções como "democracia" e "cidadania". Outras noções
afins, como a "participação" e a "capacitação", também ganharam novas
conotações políticas ' sendo ressignificadas no discurso governamental. Desse
entrecruzamento de idéias, emergiu no debate político um conceito de democracia
polissêmico; e, por isso, insegurança acerca de sua significação (Assies,
Calderón e Salman, 2002:57-60)14.
Para O'Donnell (2004), a inconsistência da noção de democracia latino-americana
tem outras raízes. O'Donnell prescreve um padrão mais ambicioso, em bases
antropológicas: os cidadãos na América Latina tendem a reduzir a democracia à
mera função de legitimar governos, sem a capacidade de conduzir ' pela via
representativa ' a política. É o que se chamou, na literatura, de "democracia
delegativa" ' de acordo com Susan Stokes, um "subtipo democrático
normativamente inferior" (Stokes, 1999:100).
Acerca do descompasso entre ideais democráticos e práticas/instituições
democráticas em território latino-americano, DaMatta constatava o funcionamento
de uma "dupla lógica". O professor registra um estranho padrão de convivência
entre discursos incompatíveis sobre os direitos e a cidadania: ainda que os
pronunciamentos oficiais e as leis do Estado garantam os plenos direitos a todo
cidadão, nega-se à grande maioria da população o acesso a esses direitos no
cotidiano. Segundo Roninger e Herzog, na construção do discurso
"racionalizador", a ausência de tais direitos assume uma forma parcialmente
verbal, entremeando-se a ideologias. Justificativas e autojustificativas se
mesclam, buscando delimitar "raios de ação", no marco de um universo discursivo
socialmente estruturado, com espaços para as ambigüidades (apud Assies,
Calderón e Salman, 2002). A "dupla lógica", de DaMatta, e a construção do
discurso "racionalizador" (uma espécie de jogo de linguagem), de Roninger e
Herzog, ajudam a enxergar a difícil coexistência, na América Latina, de
condutas e conceitos democráticos incoerentes entre si. Boa parte dos direitos
(especialmente os políticos e sociais), na América Latina, serve mais como
imagem do que propriamente como ferramenta (idem:63). O ideal democrático
latino-americano raramente se faz conduta, raramente está esculpido nos
procedimentos "democráticos". Antes: não passa de uma intenção moral, de um
fetiche, de uma referência legitimadora do discurso político (cf. Roniger e
Herzog, 2000).
DEMOCRACIA, MERCADO E A SAÍDA SALOMÔNICA
Reiterando o que se vem defendendo ao longo deste texto, há conexões bastante
concretas entre as relações internacionais contemporâneas (especialmente, as de
natureza econômica, comercial e financeira), as reformas estruturais do Estado
latino-americano nos anos 1980 e 1990 (via de regra, orientadas pelos ditames
do mercado internacional) e a democracia praticada na América Latina
(formalista e pouco substanciosa, não constituindo obstáculo à orientação ' em
diversos aspectos, antidemocratizante ' dos agentes do mercado).
O ordenamento internacional deveria ser respeitoso para com a diversidade dos
países ' entre eles e dentro de cada um deles. Mas o próprio PNUD alerta: "as
práticas de poder reinantes nas relações internacionais não tendem a levar em
conta essa necessidade" (2004a:197, tradução do autor). Esse impasse é
vivenciado, dia após dia, pelos estados da América Latina. Paradoxalmente, a
mesma globalização que erodiu a capacidade de ação dos governos, em particular
a efetividade dos instrumentos de regulação econômica, demanda desses Estados a
tarefa de manter a coesão social, com margens reduzidas para a manobra dos
governantes. Mais ainda: como resultado do peso crescente das condicionalidades
impostas por bancos internacionais de crédito e a grande mobilidade
transfronteiriça do capital financeiro, vêem-se reduzidos os espaços para a
construção de modelos sociais e econômicos ' esta, em tese, uma prerrogativa
assegurada pelo regime democrático (PNUD, 2004a).
Para O'Donnell, responsável pelo marco conceitual do informe do PNUD (2004c),
um Estado que se encontre submetido às condições vigentes na América Latina de
hoje, ineficiente burocraticamente e "colonizado" economicamente, não pode
cumprir a sua dimensão de legalidade. Oferece, quando muito, uma legalidade
truncada. Esse Estado é incapaz de filtrar e moderar as desigualdades sociais;
torna-se reprodutor ativo das desigualdades já existentes, facilitando-as
inclusive, não resistindo às mais devastadoras conseqüências da globalização.
O'Donnell dá o seu veredicto: "se existe um Estado ineficaz burocraticamente,
truncado legalmente e colonizado economicamente, há então muito pouco Estado"
(O'Donnell, 2004:50, tradução do autor). Ou, como pondera Alain Touraine,
citado no mesmo documento do PNUD (2004c): "Na realidade, os Estados que não
são verdadeiramente nacionais são aqueles que têm resistido com mais
dificuldade à globalização" (:51, tradução do autor). Porém, o reconhecimento
das constrições existentes na cena internacional não impõe aceitar qualquer
fado com resignação. A reconquista (de parcela perdida) dos graus de liberdade
dos estados nacionais é, hoje, em face das forças que emanam das relações
econômicas internacionais, um desafio maior da política democrática ' aquela
que se propõe à construção e à expansão da cidadania, frisa o informe.
Sugeriu-se também, no curso desta exposição, a existência de uma lógica
plutocrática (e tecnocrática) ' cujo centro de dispersão está nos países ricos
' a disputar espaços com a lógica democrática interna, estruturante da
autoridade do Estado-nação latino-americano ' ou do "Estado-para-a-nação" ,
como quer O'Donnell (2004:51). Em verdade, no que respeita às relações entre
mercado e democracia, costuma ocorrer um debate polarizado entre duas
correntes: de um lado, os que crêem na convivência harmônica entre os dois
elementos, mercado e democracia; de outro, os que acreditam impossível qualquer
convivência. Aparenta equivocada a dicotomização do debate, nos termos
anteriormente expostos, porque demasiado simplista, reducionista do fenômeno em
voga. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra ' é o que se sugere, para uma
abordagem mais equilibrada. Como reconhece o PNUD (2004c) há um "trade-off
autêntico" entre democracia e mercado. Isso porque os mercados se balizam por
razões financeiras, de curto prazo, e são excessivamente voláteis. Existe uma
tensão inescapável entre o individualismo e a desigualdade que tendem a
resultar do funcionamento dos mercados, e a igualdade que consagra a cidadania
democrática e a conseguinte necessidade da existência de um espaço público para
a tomada de decisão ' evitando-se, assim, a privatização dos juízos, como
querem certas forças do mercado. A tensão entre os princípios associados ao
mercado ' acumulação de renda, desigualdade econômica, elitismo ' e à
democracia ' igualdade política, igualdade jurídica, capacidade de
autodeterminação do "demos" ' é dinâmica (idem, 2004a). Ao longo da história,
vários foram os padrões de relacionamento que se firmaram entre as duas razões,
a do mercado e a do Estado. Hanson (1999) alega, na perspectiva da teoria
política, que a democracia foi constantemente apropriada como a ideologia de
uma classe ' em oposição, portanto, a outras classes, quais sejam, os
aristocratas e os plutocratas. "A política era amplamente compreendida como um
tipo de solução de compromisso entre as classes, o que levava a democracia e a
plutocracia a viverem uma situação de paz tensa" (idem:85, tradução do autor).
Essa "paz tensa" entre as forças plutocráticas e democráticas, retratada por
Hanson, marcaria o princípio do século XX, período em que o filósofo espanhol
Ortega y Gasset avistou uma "revolução das massas". Ocorria a "democratização
consumista": "Conotações classistas da democracia foram gradualmente eliminadas
em favor de uma concepção mais 'universal', baseada em um grupo social
inclusivo de todos ' os consumidores. À medida que as classes passam a ser
entendidas em termos de [capacidade de] consumo, em vez da referência às
relações de produção, a imagem de uma sociedade dividida em classes começou a
desaparecer da retórica política dos Estados Unidos" (ibidem, tradução do
autor).
A harmonia entre democracia e mercado era apenas aparente. A escassez de
riqueza material, que sobreveio à crise internacional dos anos 1970, tornou
inviável, para um Estado norte-americano endividado, satisfazer a demanda dos
seus cidadãos por direitos e prerrogativas. Neoconservadores propuseram o recuo
do Estado, alegadamente "sobrecarregado", como antídoto para o "destempero
democrático" (Huntington) que se aliava às crescentes expectativas da
população. Veio a "Revolução Econômica de Reagan". Przeworski concede:
"O dilema tradicional da Esquerda tem sido que até mesmo
procedimentos democráticos [considerados] perfeitos podem manter uma
plutocracia: o governo dos ricos sobre os pobres. A experiência
histórica tem mostrado que a democracia é compatível com a pobreza e
a desigualdade na esfera social e com a opressão nas fábricas, nas
escolas, nas prisões e nas famílias. E o dilema tradicional da
Direita tem sido o de que a democracia pode transformar-se no governo
da maioria dos pobres sobre a minoria dos ricos. Os procedimentos
democráticos podem ameaçar a propriedade, o poder político, na forma
do sufrágio universal e do livre direito de associação, podem ser
exercidos para limitar os direitos de propriedade" (Przeworski, 1994:
56).
O equilíbrio precário entre a forças mercadológicas e democráticas, como o
observado presentemente na América Latina, não constitui uma novidade
histórica, conforme se pode facilmente constatar. São restritas as condições
dentro das quais a democracia se torna um estado de equilíbrio entre as
estratégias descentralizadoras de forças políticas autônomas (idem). Assim,
contrariando uma crença grassante no senso comum, afirma-se que podem, sim,
concorrer, no tempo e no espaço, as lógicas "de mercado" e "do Estado
democrático". É justamente essa a característica do conceito historicamente
forjado de democracia ' uma forma de resistência à racionalidade plutocrática.
Não cabe aqui negar a tensão natural existente entre mercado e Estado
democrático; tampouco postular a incompatibilidade entre as duas instituições.
A lógica em que operam os mercados é, se não contida, danosa à política
democrática. Não é à toa que a democracia pressupõe uma hierarquia entre a
política e a economia; e, no limite, a autonomia da sociedade para ditar a
forma como se organizará o seu mercado, pela via das eleições (PNUD, 2004a).
Bem entendido esse aspecto, emite-se aqui um parecer: conjugar mercado e
democracia, de forma percebida como justa pelos cidadãos nacionais, é outro
grande desafio das sociedades contemporâneas. Mercados e estados democráticos
podem e devem conviver. A democracia, em sua busca por limitar as exclusões que
o mercado provoca, aumenta a legitimidade do sistema econômico; o mercado, ao
limitar o poder do Estado sobre o cidadão, permite maior e melhor adesão à
democracia (idem)15.
Não obstante, essa queda-de-braço na América Latina tem sido, até o presente,
vencida pelas forças mercadológicas da economia internacional. A resultante
vetorial é uma democracia latino-americana "deficitária"; e uma economia
concentradora de renda. O que temos na América Latina é uma "democracia-
conduta" (nos termos definidos pelo PNUD) descolada da "democracia-conceito"
(ou seja, o ideal democrático)16.
Constatou Zovatto a vinculação direta, por parte dos cidadãos, da democracia
latino-americana aos valores da liberdade (35%) e das eleições (27% dos
entrevistados). Adiante, vimos como o conceito de democracia no subcontinente é
apropriado de forma imprecisa, geralmente reportado ao contexto das lutas
contra a ditadura e aos movimentos sociais. Guiou-se, por conseguinte, à
polissemia e à indefinição do conceito. Ora, pergunto: não seria a democracia,
para os cidadãos latino-americanos, um conceito "negativo", isto é, formulado
em oposição à autocracia dos militares? Ao pugnarem pelos valores da liberdade
e das eleições, não estariam os cidadãos latino-americanos tornando a
denunciar, de forma reiterada no tempo, os abusos, maus-tratos e censuras de
toda sorte, a que estiveram submetidos durante os anos de regime ditatorial?
Não é a democracia na América Latina, antes de uma "cultura", um instinto de
defesa? Estas, e outras tantas questões irrespondíveis, guardam possivelmente
alguma relação explicativa com a tibieza da democracia praticada no
subcontinente17.
No que tange à combinação de democracia e desenvolvimento socioeconômico
(binário pretendido por 75% dos cidadãos latino-americanos, segundo PNUD
(2004a; 2004b; 2004c)), sugerida por Seymour Lipset e canonizada em segmentos
do pensamento ocidental, alguma desmitificação faz-se útil. Pois, a rigor
empírico, o desenvolvimento socioeconômico de um país pode dar-se apartado de
uma concepção mais substantiva de democracia (e. g., uma "revolução dos
provimentos", com ênfase nas políticas do tipo supply-side, como a Revolução
Industrial inglesa); pode, ainda, observar-se a realização de uma concepção de
democracia mais "conteudista" sem o paralelo desenvolvimento socioeconômico (e.
g., a "revolução das prerrogativas", na França de fins do século XVIII ' para
ficar com terminologias e exemplos de Dahrendorf). Przeworski é taxativo sobre
o assunto: "o argumento de que a democracia só tem condições de perdurar se
produzir um desempenho econômico satisfatório não é uma lei objetiva e
inexorável" (1994:55)18.
Przeworski (idem) percebe que uma frase muita repetida nos novos países
democráticos é que "a democracia deve produzir, senão...". As reticências,
postadas ao final, acentuam o desfecho apocalíptico imaginado. Crê-se que a
crise econômica possa levar os civis a se voltarem contra a democracia, o que
aumentaria as possibilidades de uma subversão vitoriosa, da volta aos regimes
autoritários. O que escapa à percepção de jornalistas, acadêmicos e políticos
(fatalistas) é que a sobrevivência de uma democracia não depende unicamente do
desenvolvimento socioeconômico atingido, senão do concurso de condições e
instituições. A Grande Depressão é ilustrativa: a despeito das dificuldades
extremas que se abateram sobre os Estados Unidos da América, as suas estruturas
institucionais mostraram-se resistentes à crise econômica. Segundo O'Donnell,
"podem existir, em um Estado ineficaz, de legalidade truncada e baixo capital
cívico, estruturas democráticas" (2004:50, tradução do autor). Trata-se de dois
fenômenos distintos ' democracia e desenvolvimento ', que são presididos por
lógicas, em certas situações, incongruentes (Przeworski, 1994; Przeworski et
alii, 2000).
Em vista do desequilíbrio de forças entre mercado e Estado na contemporaneidade
(evidenciado na seqüência de dados disponibilizados pelo PNUD (2004a; 2004b;
2004c) e discutidos ao longo do artigo), não parece acaciano reafirmar que os
cidadãos latino-americanos, ao participarem de pleitos democráticos, limpos e
livres, são a fonte de toda autoridade exercida sobre eles pelo Estado e pelo
governo. Cidadãos não são ' nem podem ser ' meros portadores de direitos, em
uma postura passiva. São a justificativa da pretensão de mando e autoridade que
o Estado e o governo articulam, quando tomam decisões coletivamente vinculantes
' eis a característica peculiar à democracia (O'Donnell, 2004:39). Afora a
democracia, todos os outros tipos conhecidos de autoridade política derivam a
sua legitimidade para governar de instâncias não-democráticas: direito divino,
autoridade imemorial, conhecimentos privilegiados, posse de riquezas materiais.
A democracia contemporânea dificilmente se exerce diretamente pelo povo, mas
certamente provém do povo e, por isso, deveria ser para o povo. O que nos faz
chegar à conclusão inescapável: quando forças não-democráticas passam a
conduzir estados com regimes democráticos, vindo governar, não raramente,
contra as camadas menos privilegiadas da população, é sinal consistente de que
"algo de podre há no reino da América Latina"...
NOTAS
1. "Os fisiocratas, ardentes defensores do mercado livre, eram também adeptos
do despotismo esclarecido. Adam Smith, o pai da escola econômica inglesa,
considerava os políticos animais 'astutos e insidiosos'; David Ricardo, seu
maior sucessor entre os clássicos, era liberal, mas bem pouco democrata. Em
tudo isso, não se sente nenhum afeto pela natureza da democracia
representativa" (Merquior, 1982:133-134).
2. O índice global de reformas econômicas empregado pela CEPAL é de autoria de
Samuel Morley, Roberto Machado e Stefano Pettinato (CEPAL, 1999). Envolve a
aferição de cinco dimensões: abertura comercial, finanças domésticas, conta de
capitais, impostos e privatizações; oscilando entre 0 (zero) e 1.
3. O índice global de reformas econômicas empregado pelo PNUD decompõe-se em
cinco elementos: políticas de comércio internacional, políticas impositivas,
políticas financeiras, privatizações e contas de capital; indo de 0 (zero) a 1.
4. Uma ressalva é providencial: a convergência institucional para um mesmo
telos não significa, em nenhuma hipótese, instituições idênticas entre si. As
diferenças contextuais definirão a formatação precisa, bem como o funcionamento
das instituições. A rigor, a arquitetura institucional dos países pesquisados
mostra-se diversificada. Ver Knight (2001); e North (1998).
5. É importante sublinhar que, para boa parte dos teóricos racionalistas da
ciência política, a coerção irresistida e a emulação não constituem padrões de
ação/escolha racional. Racional é toda ação/escolha que, da perspectiva de um
agente (individualismo metodológico), busca mobilizar determinados meios para
atingir determinados fins, do modo mais eficiente possível (maximização).
6. Inferior apenas aos índices de ambivalência na Colômbia, El Salvador e
Nicarágua (PNUD, 2004b).
7. Um contra-senso em termos, já que o virtual apoio ("condicionado" ao
desenvolvimento econômico) que os latino-americanos esboçaram aos regimes
autoritários implica a aceitação da "imposição da ordem pela via da força", se
e quando necessário.
8. Possibilidade vislumbrada por Paramio (2002b), com as eleições brasileiras e
bolivianas de 2002.
9. Para fim de registro momentâneo: o coeficiente de Gini no Uruguai é de 0,44;
em Honduras, de 0,56; no Brasil, de 0,64. A média latino-americana é de 0,54.
10. Curiosamente, a percepção mais positiva de igualdade legal entre os países
que temos acompanhado registrou-se em Honduras, onde 23,5% dos entrevistados
acreditam que um pobre pode, sim, fazer valer os seus direitos naquele país '
contra 21,9% no Uruguai e 20,1% no Brasil. A noção de "grupo de referência"
pode ajudar a encontrar explicações para o fenômeno (PNUD, 2004b).
11. Processo também denominado pelo autor de individuação (em alusão a Jean
Piaget).
12. Cf. Weyland (2004) para uma defesa, por outro ângulo, do mesmo argumento.
13. É instigante perceber o apelo moral e ideológico das formas democráticas em
um mundo globalizado: travam-se guerras e intervenções militares pela deposição
de tiranos, cujos países são agrupados em um arbitrário "eixo do mal".
Associam-se regimes não-democráticos, não raro, à megalomania bonapartista, ao
culto ao terrorismo, à ganância nuclear ou à ineficiência econômica. Impõem-se
embargos e sanções às nações conduzidas por líderes autoritários. Ante o
exposto, como não ser democrata em um mundo regido por "leis morais" liberal-
democráticas? Não há de ser tarefa fácil ' que o digam os cubanos, para
ficarmos em um bom exemplo latino-americano.
14. Cf. Doimo (1996); e Dagnino (1994).
15. Sugere Rodrik (2002: 43-44): "a mera idéia de que os Estados e o mercado
são complementares [...] possibilitou a prosperidade sem precedentes vivida por
Estados Unidos, Europa Ocidental e parte do Extremo Oriente, na segunda metade
do século XX". Segundo o autor, a boa novidade do século XXI é que passamos a
perceber, com maior nitidez, as virtudes das economias mistas.
16. "Democracia não é só conceito; é, principalmente, uma conduta" (Merquior,
1982:114, ênfases do autor).
17. Convém resgatar Raymond Williams, segundo quem "se estamos confusos sobre o
sentido da democracia, então também estamos incertos se somos democráticos"
(Hanson, 1999:85-86).
18. Cf. Przeworski et alii (2000), para uma rica abordagem da relação entre
democracia e desenvolvimento econômico na segunda metade do século XX, em
perspectiva histórica comparada.