A modernidade do Cristo Redentor
A monumentalidade do Cristo Redentor, estátua localizada no alto do morro do
Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro, instiga-nos a problematizá-la por meio
de questões de amplitude igualmente gigantesca. Daí a opção, neste artigo, por
um debate que envolve as relações entre modernidade e religião. Pareceu-me que
alguns aspectos ligados ao monumento apontavam exatamente nessa direção. A sua
construção, marcada pela inauguração no ano de 1931, oferece a principal
referência para o levantamento de dados, que atinge fontes primárias e
secundárias. Mas foi necessário ainda recuar e avançar no tempo; primeiro, para
recuperar um aspecto da definição das relações entre Estado e religiões no
Brasil que vai se expressar na concepção da estátua; depois, para acompanhar
certas iniciativas recentes que ocorrem em torno da imagem do Cristo Redentor.
A principal personagem nesse trajeto é a Igreja Católica, e interessa-me
sobretudo mostrar como, em meio a outros discursos e agentes, seus
representantes, líderes e mandatários acionam e incorporam elementos que estão
associados à modernidade. Trata-se, portanto, de compreender como se faz e
quais as implicações dessa articulação entre religião e modernidade realizada
pela Igreja Católica.
Cada uma das seções deste texto explora essa articulação a partir de um
componente específico da relação estabelecida entre religião e modernidade.
Inicio com o princípio da liberdade religiosa. É difícil ignorar a importância
que, na história que se faz da modernidade, se concede a esse princípio quando
se considera o seu atrelamento com a liberdade de associação, a de crença e a
de consciência. Há quem trace um vínculo genético, traduzindo com isso a
precedência (em termos temporais) e antecedência (em termos de fundamento) da
liberdade de crer sobre a liberdade de não crer (Baubérot, 1993:85). Ao mesmo
tempo, evidencia-se o fato geral de que a liberdade de crença foi conquistada
com o enfraquecimento de uma religião dominante. Existiria, portanto, uma
contrapartida, que consiste na autonomia do político. A religião dominante
seria desalojada do poder e atribuída a um campo compartilhado com outras
religiões. A essa equalização dos agentes religiosos, privados de influência
estatal, corresponde o princípio da liberdade religiosa. Insere-se, assim, em
um arranjo que possui uma tradução jurídica e que tem como correlato a
separação entre Estado e religiões.
O segundo ponto refere-se ao significado mais geral e por isso mesmo mais vago
da noção de modernidade. Nesse sentido, o moderno equivale ao contemporâneo.
Sob a banalidade da expressão há, contudo, a instauração de uma assimetria,
como sugere Latour (1994:15): o pressuposto de uma passagem que foi capaz de
superar o passado, colocando o presente em um novo regime de tempo. A idéia de
vanguarda está comprometida com essa concepção sobre o tempo, dependente que é
da noção de uma ruptura. Mas há ainda implicações em outro plano, pois a
pretensão de toda vanguarda é produzir uma novidade não apenas no conteúdo mas
também na forma. Nesse plano, ficam ainda mais claras as contraposições com o
religioso, dada a associação que o vincula às formas do tradicional. É possível
contar a história da modernidade como uma sucessão de iconoclasmos (Gamboni,
1997) ou de sacrilégios (Taussig, 1997). Mas para não ficarmos apenas com
formulação tão genérica e para aproximarmo-nos de um contexto localizado, cito
a polêmica em torno da capela da Pampulha, em Belo Horizonte, parte do complexo
construído nos anos 1940 sob inspiração modernista. Terminada a obra, as
autoridades católicas recusaram-se a consagrar a capela. Para Fabris (2000b), a
principal razão para tal recusa estaria na aversão à arte moderna, que se
explicitou na sugestão de que outro prédio, de arquitetura mais tradicional,
fosse erigido para abrigar um templo.
O terceiro ponto envolve uma concepção societária que é freqüentemente
associada à modernidade. Novamente, a religião oferece um termo de contraste;
diz-se que, "antes da modernidade", que o religioso se impunha como referência
geral e pervasiva, marcando presença nas diversas dimensões da vida humana,
inclusive naquelas que extrapolavam fragorosamente a "espiritualidade". Com a
modernidade, consolida-se uma visão segmentada da sociedade (Dumont, 1985),
passando a vida humana a ser concebida e experimentada em esferas
diferenciadas1. O religioso, antes uma espécie de valor capaz de organizar
todas as dimensões, torna-se agora, ele mesmo, uma dessas esferas. Pode variar
o sentido dessa compartimentação, ainda que não seja difícil reconhecer a
expectativa de uma privatização. Ela seria mesmo correlata da autonomia do
político e sua condição de garantia. De todo modo, mesmo variando o sentido da
compartimentação, acredita-se que possamos imaginar o que seria "propriamente"
religioso. Em outras palavras: mesmo que com a modernidade não se tenha
conseguido extirpar a crença religiosa ' se é que se pretendeu fazê-lo ', é
nela que se desenvolve a crença de que a religião é algo específico e que essa
especificidade corresponde a um lugar delimitável na sociedade.
Como já foi anunciado, cada uma das três seções do texto se constrói a partir
de um desses pontos, mas sempre na direção que procura evidenciar como algo de
moderno está presente nas iniciativas e nos argumentos católicos. Assim, na
primeira seção, mostro como a Igreja Católica se coloca a favor da liberdade
religiosa nas discussões que sucederam a proclamação da separação entre Estado
e religião no Brasil recém-republicano. A liberdade serviu para afirmar os
direitos à construção de um monumento como o Cristo Redentor, símbolo das
pretensões eclesiásticas de se erigir como representante da nação, e também
para instaurar certo regime jurídico para as instituições religiosas no Brasil,
regime inclinado a uma abertura ao pluralismo. Na segunda seção, acompanhando
alguns aspectos de sua concepção e construção, argumento que o Cristo Redentor
assinala uma modernidade tanto no campo das devoções religiosas quanto no campo
artístico e tecnológico. Ou seja, em vez de se colocar apenas como afirmação do
passado, procura situar-se no contemporâneo. A terceira seção, que foca o
período recente, trata das iniciativas católicas que buscam "recuperar o
sentido religioso" do monumento, partindo do reconhecimento de que esse sentido
se dissolveu desde a sua fundação. Essas iniciativas articulam o argumento
moderno do "propriamente religioso" com uma tentativa de garantir a um símbolo
católico lugar privilegiado no espaço público. Nas conclusões, procuro pensar
exatamente sobre uma maneira interessante de entender uma articulação desse
tipo.
A IGREJA A FAVOR DA LIBERDADE
Lucia Grinberg (1999:63), que publicou, pelo que consegui apurar, uma das
únicas análises historiográficas especificamente sobre o monumento ao Cristo
Redentor, aponta que a imagem serviu ao seguinte argumento: "À liberdade
republicana a Igreja contrapõe a redenção católica, disputando o significado de
liberdade". Logo antes, cita trechos dos versos de um padre, referindo-se à
estátua como "um símbolo verdadeiro a desmentir um outro símbolo negativo: o
Cristo dos Andes é sempre o Cristo da Liberdade, em desmentido solene àquela
estátua, que também olha para o oceano às portas catedralescas da metrópole
newyorkina" (apud ibidem:62-63)2. Vê-se que o poema sugere um paralelo entre a
Estátua da Liberdade e outro exemplar do Redentor, erigido na fronteira entre
Argentina e Chile e inaugurado em 1904, fazendo de Cristo o arauto e o suporte
da verdadeira liberdade. Outra ocorrência da associação entre o monumento no
Corcovado e a liberdade aparece no artigo de D. João Becker, também
eclesiástico, quando prevê que o Brasil, ao abrigar o Cristo Redentor, "será o
guia das nações [...], o mentor das democracias pela legítima interpretação do
lema republicano de liberdade, igualdade e fraternidade" (Soares, 1934:96)3.
Nessa outra ocorrência, embora o tom da disputa persista, o que o discurso
católico reivindica em relação aos lemas republicanos é menos uma contraposição
do que uma apropriação que desvendaria um significado mais "legítimo".
É verdade que a liberdade não foi a imagem preponderante para descrever o
sentido do monumento ao Cristo Redentor. Ao contrário, o que predomina é um
vínculo essencial entre catolicismo e nacionalidade, de modo tal que a presença
de Cristo (na versão católica) na vida dos brasileiros não era questão de
escolha. Cristo Redentor, portanto, deveria ser visto como rei, tendo os
brasileiros como seus súditos, mesmo que o regime terreno fosse republicano e
que as leis tivessem projetado a disjunção entre Estado e religião. Enfim, não
seria difícil encontrar afinidades entre os discursos que sustentaram a ereção
do monumento e o que é apontado na literatura sobre a história das idéias no
Brasil como conservadorismo e autoritarismo4. Mas essa segunda constatação, em
vez de invalidar a anterior, apenas reforça a questão: como foi possível que,
entre os ideólogos de uma Igreja conservadora e autoritária, pudéssemos
encontrar a presença e a reivindicação da liberdade?
Para tratar dessa questão, será necessário recuar no tempo para acompanhar os
debates que se configuraram acerca do princípio da "liberdade religiosa" no
momento em que o Estado, proclamada a República, se desvincula da Igreja
Católica. A separação entre Estado e Igreja Católica no Brasil tem como marcos
uma lei de 1890 e alguns dispositivos da Constituição de 1891, que se seguem à
proclamação da República em 1889. Entre os comentaristas do tema (Della Cava,
1975; Bruneau, 1974; Mainwaring, 1989; Azevedo, 1981), esse período, que se
encerra definitivamente em 1934, na segunda Constituição republicana, é
caracterizado por uma orientação laicista ou separatista, responsável por uma
crise nas relações entre o Estado e a Igreja Católica. Em uma leitura mais
sociológica (Mariano, 2002), os mesmos marcos são apresentados como os
produtores de uma configuração estrutural que teria definido os parâmetros
próprios de um mercado religioso ' em outros termos, uma situação na qual o
Estado, por causa do regime de separação, não tem mais prerrogativas de
intervenção no jogo de relações entre os agentes religiosos, reduzindo a Igreja
Católica a um competidor entre outros nesse mercado. O que há de comum a essas
visões é que provocam a subsunção do princípio da liberdade religiosa sob o
tema da separação, dispondo Estado e Igreja Católica como agentes contrários de
um mesmo processo.
Aposto, ao contrário, que seria produtivo operar uma disjunção analítica entre
separação Estado/igrejas e liberdade religiosa. Essa disjunção permitiria,
primeiramente, qualificar o regime de separação inaugurado pela República. É
verdade, por um lado, que ele se apresentou como abrangente e sistemático não
apenas através de disposições que proibiam a interferência do Estado sobre a
religião e consagravam os princípios da liberdade e da igualdade extensivos a
todos os cultos, mas também através de medidas que inauguravam cerimônias e
registros civis, ensino leigo e cemitérios secularizados. No entanto, isso não
impediu a cada um desses pontos estar sujeito a interpretações que abriam algum
espaço para vínculos, compromissos e cumplicidades entre autoridades e aparatos
estatais e representantes e instituições religiosas, quase sempre católicas e
em detrimento de outras confissões. Em texto do início do século XX, um médico
católico apresentava vários indicadores: "novas capelas em quartéis [...]; as
exéquias solenes e as bênçãos são indispensadas nas comemorações públicas e
oficiais [...]; muitas constituições estaduais foram proclamadas em nome de
Deus; a República mantém estreitas relações diplomáticas com a Santa Sé; [...]
os dias santificados ainda se guardam por tolerância oficial" (apud Lustosa,
1990:106 e 109). O próprio monumento ao Cristo Redentor, a coroar a capital
republicana, concebido, construído e inaugurado no período "separatista", serve
como exemplo, ainda que paroxístico, das relações estabelecidas.
Outro resultado daquela disjunção é permitir acompanhar os debates e definições
que se estabeleceram a propósito especificamente da noção de "liberdade
religiosa". Ao fazermos isso, notamos uma implicação para o delineamento da
configuração da relação entre Estado e agentes religiosos, que, paradoxalmente,
é menos visível sem aquela disjunção. Veremos como as soluções que foram dadas
para certas questões formuladas a propósito do princípio da liberdade
envolveram uma determinada concepção sobre o papel e a atuação do Estado. Essa
perspectiva procura demonstrar como todo regime de separação não deixa de se
constituir como uma modalidade de relação, e o que está em jogo são as
condições sob as quais, com a modernidade, essas relações são estabelecidas. A
Igreja Católica teve um papel fundamental nessas definições e por isso se torna
tão importante acompanhar suas posições. Suas lideranças no Brasil, no final do
século XIX e nas primeiras décadas do século seguinte, jamais esconderam a
frustração com a separação e nunca desistiram de reivindicar, se não a união,
algum tipo de reconhecimento formal que a atrelasse novamente ao Estado. Mesmo
assim, seus representantes colocaram-se a favor da liberdade religiosa, e isso
nos ajuda a compreender sua defesa mesmo no contexto posterior em que se dá a
inauguração do monumento ao Cristo Redentor.
Como, então, se delineou esse debate sobre a liberdade religiosa que continuou
a envolver o Estado e a Igreja Católica no Brasil?5 Curiosamente, algo que
articulava dimensões políticas e espirituais dependeu de uma formulação
econômica, cristalizada na expressão "leis concernentes à propriedade de mão-
morta". O decreto 119A, de 1890, que estabelece o novo regime de separação,
utiliza a expressão para qualificar a capacidade civil de igrejas e confissões
religiosas, sobretudo no atinente à aquisição, administração e alienação de
bens. As "leis concernentes à propriedade de mão-morta" não circunscreviam, até
então, um domínio claramente delimitado de dispositivos; no debate que se
seguiu, apareceram para compilar os variados procedimentos que, antes de
proclamada a República, eram aplicados para sustentar as prerrogativas que o
Estado possuía em relação a diversos coletivos religiosos católicos (estruturas
paroquiais e diocesanas, ordens monásticas, confrarias de leigos etc.).
Autorizações, tomada de contas, cobrança de tributos e conversões em títulos
públicos conformavam a maioria desses procedimentos. Para sustentá-los, havia,
em primeiro plano, uma justificativa econômica que visava evitar uma excessiva
imobilização de bens nas mãos de certos agentes, como tenderia a acontecer com
as instituições religiosas.
Durante o processo que levou ao texto da primeira Constituição republicana,
fizeram-se notar as oposições à limitação sugerida pelo decreto de 1890. No
projeto definitivo proposto por uma comissão governamental, figurava novamente
a expressão "observados os limites postos pelas leis de mão-morta" para
qualificar a capacidade civil das associações religiosas. No entanto, as
discussões e votações durante a Constituinte suprimiram essa condição, e o
texto final ficou com a seguinte redação: "Todos os indivíduos e confissões
religiosas podem exercer publicamente o seu culto, associando-se para esse fim
e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum" (Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil, 1891, Art. 72, §3º). Esse resultado
deveu-se em boa parte a uma aliança (em outros assuntos, tão difícil) entre
posições católicas e positivistas, que circunstancialmente estiveram juntas em
nome da defesa da liberdade religiosa. No caso da Igreja Católica, essa
reivindicação estivera expressa na primeira Pastoral Coletiva dos Bispos
Brasileiros, divulgada em 1890. Nela, ao mesmo tempo em que se lamentava a
separação, reconhecia-se que o novo regime "assegura à Igreja Católica uma soma
de liberdades como ela nunca logrou no tempo da monarquia" e pedia-se aos
"homens de Estado" que deixassem "o que pertence à religião" "sob a exclusiva
alçada dos pastores da Igreja".
Para alguns, o dispositivo constitucional teria sido suficiente para
estabelecer um regime de completa liberdade econômica para as associações
religiosas. Mas um debate ainda em 1891, opondo um funcionário governamental a
um funcionário eclesiástico, demonstraria a persistência de possíveis
indefinições. O ministro da Justiça fundamenta a intervenção de seu órgão em
algumas transações envolvendo irmandades e conventos com o argumento de que
seus bens voltariam ao tesouro público quando seus detentores deixassem de
existir. Ele recorria, assim, a uma doutrina administrativa segundo a qual as
instituições católicas tinham apenas o usufruto de bens cujo domínio real cabia
ao Estado. Já o núncio apostólico no Brasil pensava diferente, pois pedia que o
governo se limitasse a reconhecer a validade do direito canônico para reger as
capacidades e as relações entre os vários coletivos católicos. Segundo seu
entendimento, esses coletivos estabeleciam-se como meras administradoras não de
um patrimônio estatal, mas de um patrimônio que pertence de direito à
organização comandada pelo Sumo Pontífice e seus representantes. Havia,
portanto, divergências no papel que caberia ao Estado e no estatuto que
adequaria a personalidade jurídica das associações religiosas.
Um marco decisivo no debate que acompanhamos ocorre com a promulgação da Lei nº
173, em 1893. A iniciativa nasce no Senado, ainda em 1891, com um projeto de
lei que visava regulamentar o artigo constitucional sobre a liberdade
religiosa, citado anteriormente, na direção que confirmava a inexistência de
limitações específicas para o funcionamento econômico das igrejas. As
discussões, no entanto, dão origem a um projeto mais detalhado, confirmado
quase na sua totalidade no texto final da lei. Essa lei define que uma
associação religiosa adquire personalidade jurídica pelo registro público de
seus estatutos, sem necessitar de autorização prévia. Reconhece ainda a esses
estatutos soberania para definir seu regime de funcionamento e a relação entre
seus membros. Ocorrendo dissolução, o patrimônio seria partilhado entre os
membros ou transferido para outra entidade de acordo com os estatutos. A única
situação em que o Estado figura como sucessor imediato dos bens de uma
associação é quando esta deixa de existir pela perda de todos os seus membros.
Outra diferença em relação ao projeto original, voltado apenas para as igrejas:
o projeto substitutivo e a lei aplicam-se a regular, indistintamente, as
associações "de fins religiosos, morais, científicos, artísticos ou de simples
recreio" (Coleção de Leis do Brasil, Lei nº 173, 10/9/1893).
A importância da Lei nº 173 fica evidente pela instituição de um modelo que é
ratificado no primeiro código civil republicano, concluído em 1916. Nele, as
associações religiosas são agrupadas juntamente com outras sociedades civis
definidas por fins "não-econômicos" (por oposição às "sociedades mercantis").
As condições de reconhecimento jurídico e as prerrogativas limitadas do Estado
seguem a mesma diretriz. Os partidários da liberdade, e entre eles os
católicos, portanto, saíram ganhadores da disputa com aqueles que reivindicavam
maiores prerrogativas para o Estado diante das igrejas e confissões. É
importante atentar para as implicações da configuração vencedora. Ela não
incidiu apenas sobre as capacidades civis das associações religiosas, que não
precisariam de autorização prévia para funcionar nem teriam, em princípio,
regime diferenciado em relação à matéria fiscal e à administração e transação
do patrimônio. Envolveu ainda a recusa em providenciar para as associações
religiosas um estatuto próprio, que as distinguisse de outras entidades não-
mercantis. Ao mesmo tempo, consagrou a atribuição de um fim desinteressado (por
oposição ao lucro das sociedades mercantis) a essas associações. Tem-se, como
resultante, um Estado com um reduzido poder imediato de intervenção e um campo
religioso que se vê estimulado a zelar, ele próprio, pela realização dessa
finalidade.
Nesse ponto, reencontramos a Igreja Católica, cujas lideranças atuaram no
sentido de conciliar a adequação à lei com um determinado modelo eclesiástico.
Nesse modelo, a Igreja é vista como um corpo orgânico e hierarquizado, cujas
partes estão todas submetidas à autoridade do papa e de seus representantes
diocesanos. Isso mobilizou disputas em dois flancos: por um lado, com agentes
estatais que pretendiam defender supostos interesses públicos sobre bens
geridos por coletivos religiosos; por outro, com suas próprias entidades,
sobretudo ordens monásticas e congregações leigas, convidadas ou forçadas a se
adequarem àquele modelo eclesiástico. Mesmo que esse modelo estivesse pautado
por valores opostos à liberdade e ao voluntarismo, as autoridades eclesiais
estimularam, para realizá-lo, a conformação das associações católicas às regras
estipuladas pela Lei nº 173. Assim, os estatutos dessas associações declaravam
subordinação às instâncias diocesanas e continham dispositivos quanto à
transferência de bens de modo a impedir que estes acabassem nas mãos do Estado.
Paralelamente, foi-se consolidando uma jurisprudência que considerava a
inalienabilidade de certos patrimônios religiosos e reconhecia a
responsabilidade civil de autoridades eclesiásticas.
Na verdade, toda a discussão sobre liberdade religiosa que acompanhamos aqui
estava pautada na referência do catolicismo eclesial, o que poupou aos
envolvidos um debate sobre a noção mesma de "religião". Esse debate, na mesma
época, vai desenvolver-se a propósito dos cultos mediúnicos, assolados pelo
Estado a partir de parâmetros dados pela defesa da saúde e da credulidade
pública que acionavam as autoridades sanitárias e policiais (Giumbelli, 1997).
Para esses cultos, será preciso demonstrar que se trata mesmo de uma "religião"
para reivindicar a liberdade que se atribuía a ela. É possível então argumentar
que a liberdade consagrada nesse processo de definições históricas ensejou um
sistema de regulação cujos controles não atuavam no plano da criação e do
gerenciamento das instituições religiosas, mas apenas em outros níveis ' nos
quais atuavam, por exemplo, as autoridades policiais. A resultante permitia,
assim, um certo pluralismo, ao mesmo tempo em que o sujeitava a diferentes
arranjos hierárquicos que conseguiram preservar a hegemonia católica.
Quanto à Igreja Católica, procurou fazer na passagem do século o que a Pastoral
de 1890 recomendava aos seus fiéis: "usar da liberdade que nos reconhece o
governo atual" (apud Lustosa, 1990:36). E vimos como as autoridades católicas
apoiaram o arranjo jurídico derivado do princípio da liberdade para garantir um
modelo hierárquico e orgânico de igreja, o qual terá, ironicamente, mais
condições de se realizar no regime republicano da separação do que no regime
monárquico da união. Mas era ainda possível do lado da liberdade ir além, pois,
na interpretação expressa na mesma Pastoral, o catolicismo merecia um
tratamento especial: como "ofender [...] a liberdade de consciência do país,
que é, na sua quase totalidade, Católico Apostólico Romano" (ibidem:57)? Ou
seja, criava-se, com esse argumento, uma continuidade entre o princípio
republicano, que serviria para delimitar o espaço religioso, e a reivindicação
católica sobre a essencialidade cristã da nação brasileira, que baseava
pretensos direitos sobre a sociedade como um todo.
VANGUARDA RELIGIOSA, ARTÍSTICA E TÉCNICA
O monumento ao Cristo Redentor foi proposto exatamente para expressar o
reconhecimento de que o Brasil era essencialmente um país católico. Mesmo com
esse argumento, não se recusavam os recursos republicanos, pois a noção de
maioria aparecia nos discursos católicos. Um exemplo é a Pastoral de 1890, que
já reclamava direitos para o catolicismo em virtude do "princípio, tão
proclamado pelo liberalismo moderno, da soberania do número" (ibidem:27)6. Mas
é verdade que são metáforas mais orgânicas e hierárquicas que dominarão os
discursos que acompanham a concepção, a construção e a inauguração do
monumento. Um exemplo relevante é a imagem da unidade, que só o cristianismo
católico seria capaz de garantir. Outro é a totalidade, concebida em relação ao
Brasil, que também só o catolicismo seria capaz de representar. Se o Estado
recusara a religião, diziam os intelectuais católicos, tratava-se então de
relembrar que a nação, por sua história e por seu povo, estava imersa no
cristianismo. A data originalmente planejada para a inauguração do monumento ao
Cristo Redentor era 1922, para acompanhar as comemorações da independência.
Contudo, só ocorreu em 1931, e o dia foi escolhido para celebrar a chegada de
Colombo às Américas como marco da cristianização do continente. Na solenidade
no alto do Corcovado, diante de Getúlio Vargas e de várias autoridades, os
bispos católicos abençoaram a imagem proclamando Cristo como rei e solicitando
que ele salvasse o Brasil7.
A liberdade se transfigurara então em unidade e totalidade ' e, se quisermos
apreender de que maneira se mantém um diálogo com a modernidade no
empreendimento católico, teremos que olhar para outras dimensões que cercam o
Cristo Redentor. A marca da contemporaneidade se instala no estilo e no
material da estátua, como logo veremos. O curioso é que isso resultou não de
uma consecução do projeto original, mas foi-se estabelecendo ao longo de
redefinições que propiciaram uma convergência entre visões que representavam o
contemporâneo na arquitetura acadêmica e o que Grinberg nomeou como "católicos
modernos" (1999:66). A contemporaneidade do monumento aparecerá também quando
observamos seus significados estritamente religiosos. O Cristo Redentor fica
associado a uma devoção que sinaliza as mudanças que ocorriam no universo
católico, lançadas, paradoxalmente, pelas autoridades que existiam para
cultivar sua eternidade. Tocamos aqui no ponto crucial desta seção do artigo.
Se o monumento busca uma restauração e aparece como fundador de uma
"neocristandade", é sob formas e conteúdos modernos que o faz. A tradição e a
continuidade são celebradas por meio de várias inovações que apontam para o que
o Cristo Redentor já tinha de contemporâneo.
Vejamos, primeiramente, como o Cristo Redentor pode ser tomado como emblema de
uma modernidade religiosa. A imagem foi solenemente consagrada ao Coração de
Jesus, uma devoção relativamente recente na história da Igreja Católica
Apostólica Romana. Embora se possam encontrar registros sobre um culto ao
Coração de Jesus na Idade Média e mesmo nos primeiros séculos do cristianismo,
o marco para sua oficialização pela Igreja são acontecimentos que datam da
segunda metade do século XVII. Trata-se das visões que Marguerite Marie
Alacoque ' religiosa do Mosteiro da Visitação, de Paray-le-Monial, interior da
França ' descreveu, em 1673, sobre um encontro com Jesus e seu coração
ensangüentado e as promessas que ele lhe fez se um culto em seu louvor fosse
instituído. Se uma primeira capela dedicada ao Coração de Jesus é inaugurada em
1688, o culto encontrou resistências nas esferas eclesiásticas. Apenas em 1765
é que se dá uma manifestação papal benévola em relação à nova devoção; e só na
segunda metade do século XIX que uma elevação lhe é reconhecida, culminando com
a consagração do mundo ao Coração de Jesus por Leão XIII na passagem para o
século XX. Ainda assim, apenas em 1929 sua celebração foi promovida à categoria
ritual de primeira classe, o que se seguiu à canonização de Marguerite Marie
nove anos antes8. Ou seja, a consagração do Cristo Redentor ao Coração de Jesus
acompanha e participa, contemporaneamente, da consolidação desse culto.
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, ao longo desse período que vai do final
do século XVII ao início do século XX, sempre manteve um sentido político.
Primeiramente, no contexto francês, a reação ao jansenismo; em seguida, dentro
e fora da França, uma defesa da Igreja diante de um mundo que se afastava dos
ideais católicos. Sem desconsiderar essa faceta politicamente restauradora,
torna-se muito interessante constatar que a própria devoção ao Coração de Jesus
continha uma dimensão religiosamente moderna. No contexto brasileiro, isso é
claramente demonstrável. Azzi (1986) afirma que essa devoção, "a partir de
meados do século XIX, se introduz no Brasil trazida por diversas congregações
religiosas européias que se implantam no país visando a colaborar com o
episcopado na reforma católica do clero e do povo cristão" (ibidem:223)9. Essa
reforma tinha como alvo uma religiosidade controlada pelos leigos e centrada na
figura dos santos; contra isso propunha-se uma espiritualidade voltada
diretamente para Cristo e comandada pelos agentes eclesiásticos10. O resultado,
ainda segundo Azzi, buscava o seguinte: "Na devoção ao Sagrado Coração de
Jesus, era enfatizada a responsabilidade pessoal de cada cristão no desígnio
salvífico de Deus, ao mesmo tempo em que se ressaltava a necessidade de reparar
com obras espirituais os pecados cometidos pelos hereges e maus cristãos"
(ibidem). Articulava-se, assim, um vetor de individualização espiritual com um
impulso voltado para a intervenção social, do mesmo modo que o Coração de Jesus
manifestava sofrimento e prenunciava glória. Esse moderno estilo de devoção,
proposto para as massas pela hierarquia eclesiástica no Brasil, tem no
monumento ao Cristo Redentor sua expressão mais espetacular.
Uma segunda dimensão na qual se manifesta a modernidade do monumento ao Cristo
Redentor está presente no diálogo que sua concepção e construção estabelecem
com a técnica e a arte de vanguarda. Acompanhando os discursos que saúdam a
presença da imagem, nota-se a recorrência de formulações que procuram expressar
uma síntese entre várias dimensões. São exemplos lapidares: "milagre da fé,
prodígio da técnica", "verdadeiro monumento de fé, de engenharia e de arte",
"monumento de ciência, arte e religião"11. Enquanto eclesiásticos declaram
estar maravilhados pelo porte e pela beleza da escultura, engenheiros pretendem
ver nela uma "divina geometria" e o "arroubo de uma fé, grandemente
persistente"12. O revestimento, em pedra-sabão, elogiado por suas propriedades
técnicas e estéticas, foi montado em forma de mosaico por paroquianas que
escreviam em algumas peças os nomes de seus familiares13. Heitor Levy, o
encarregado geral das obras no Corcovado, presta um depoimento sobre as
dificuldades materiais que tiveram de ser superadas ' em vista sobretudo das
várias tormentas que isolavam e ameaçavam os operários ', que é também um
testemunho e um agradecimento aos cuidados da Divina Providência, que teria
garantido que nada de anormal acontecesse "aos obreiros desta tarefa do
Senhor"14. Deixemos, enfim, que Heitor da Silva Costa, responsável pelo projeto
original e pela obra, expresse a síntese cujos elementos estamos analisando:
"Não erra quem disser que, no alto do Corcovado, acha-se erguido talvez o maior
monumento da arquitetura da época, maior pela altura em que se acha edificado,
pelas dificuldades técnicas resolvidas, pelas inovações artísticas que
apresenta e por sua significação moral e religiosa" (Costa, 1931b:28).
Sobre a dimensão artística da obra, limito-me a chamar a atenção para sua
feição reconhecidamente art déco. Embora o grau da sua participação na
concepção da estátua seja motivo de controvérsia, sem dúvida o aspecto final
contou com a intervenção decisiva do escultor Paul Landowski, que mantinha
ateliê em Paris, onde os estudos sobre o projeto tiveram continuidade a partir
de 1924. O que merece destaque é o fato de a imagem que começa a ser construída
em 1926 no Rio de Janeiro seguir, na sua estilização e simetria feitas de
linhas claramente definidas, os parâmetros que então se consolidavam em vários
pontos do mundo e que tiveram como marco a Exposição Internacional de Artes
Decorativas e Industriais Modernas, ocorrida em Paris, em 1925. Portanto, o
Cristo Redentor participa e testemunha a própria consolidação de um estilo que
pretendia encarnar os índices da suprema modernidade. No quadro da arquitetura
brasileira e carioca, a estátua figura como uma das obras pioneiras do art
déco15. Heitor da Silva Costa descreve a participação de Landowski de modo
significativo: "sem exagerado modernismo, [...] mas marchando na vanguarda dos
grandes mestres da estatuária moderna" (1931a:15).
Outro elemento de vanguarda encontra-se na estrutura do monumento, que foi
construído em concreto armado. A armação metálica foi cogitada, mas uma das
razões que levou à opção pelo concreto armado, segundo o mesmo Silva Costa,
privilegiou "o novo material ' que é hoje empregado com base científica ' e é
encarado como expoente representativo da nossa época" (ibidem:14). O material e
a técnica estavam, naquele momento, servindo para o povoamento das primeiras
metrópoles com edifícios de grande porte, e no Brasil o Cristo Redentor foi uma
das construções pioneiras do gênero. A solução requisitou a manutenção de uma
verdadeira fábrica de concreto no cume do Corcovado e beneficiou-se da
existência da estrada de ferro, aliás, também apontada como obra que se
destacava, ainda no século XIX, por várias proezas técnicas e que se tornou, já
no século XX, a primeira ferrovia eletrificada na América do Sul16. A posição
de vanguarda estava novamente assumida pelos que saudaram o monumento, como
demonstra o trecho de um comentário sobre o concreto armado, "solução pela
primeira vez aplicada a um monumento dessa natureza" (Lisboa, 1931: 23).
Outro aspecto técnico grandioso do monumento ao Cristo Redentor foi a sua
iluminação, concebida como elemento essencial do projeto, pois a visibilidade
era uma exigência fundamental. O que seria garantido pela localização, pelo
formato e pelas dimensões do objeto durante o dia viria graças à luz elétrica
durante a noite. A iluminação teve ainda lugar destacado nas cerimônias de
inauguração, constituindo espetáculo em si, por causa de seu acionamento,
previsto para ser realizado desde a Europa por Marconi, a quem se atribui a
invenção do telégrafo sem fio ' o cientista e a técnica foram convocados para
dar a luz ao rei cristão. Outro exemplo da presença da técnica na concepção do
monumento vem de terreno próximo. Em 1922, a companhia Westinghouse instalou no
alto do Corcovado uma antena e uma estação experimental de radiotransmissão17.
Isso motivou protestos dos partidários da construção da estátua, preocupados em
perder o lugar de seu destino; mas também serviu de inspiração, segundo o
relato de Silva Costa, para a definição do formato final da imagem: esta, como
a antena, ganharia a disposição de uma cruz. O detalhe lembrado por Machado
acrescenta ainda outro elemento nesse jogo de espelhos: "em alguns anúncios, a
então nascente radiodifusão se fez presente pela imagem de ondas hertzianas
irradiando' da cabeça da estátua" (1997:94, ênfase no original).
Outra imagem forte da conciliação entre tecnologia e espiritualidade é sugerida
por uma das fotografias que retratam a inauguração do monumento: enquanto aos
pés do Cristo se desenrola a cerimônia religiosa, no alto, em torno da estátua,
pairam três aviões. Mas, para retornarmos à síntese entre técnica, arte e
religião antes evocada, é indispensável a referência ao texto do engenheiro
Felipe dos Santos Reis. Intitulado "Os Símbolos do Monumento" e publicado entre
outros que saudavam o empreendimento na sua inauguração, ele nada fala sobre a
teologia que inspiraria a estátua; prefere tratá-la como obra de arte e
destacar dois elementos materiais da sua construção: "A grande estátua se
resume na robustez interna da estrutura de concreto armado sob leve roupagem de
esteatita" (Reis, 1931:26). Reis nota que o concreto é o material de construção
mais sofisticado proporcionado pela ciência e que a estrutura do Cristo lembra
a grandeza dos arranha-céus. Já sobre a pedra-sabão, tece várias associações
com a doutrina cristã, pois o material, como a religião, sugere doçura,
humildade, pequenez; reunida para formar o mosaico, revela, de longe, um "todo
único" e harmônico. Penso que a formulação que melhor resume a síntese
entrevista na imagem através de seus materiais vale ser ainda transcrita: "Pelo
concreto armado, é a grandeza máxima da época erguendo-se em homenagem à
grandeza da religião que vem cultuada através dos séculos" (ibidem).
Vê-se que o Cristo não apenas era uma imagem monumental, como era o foco de
outras imagens poderosas por parte dos discursos católicos que desejavam vê-lo
como guia da nação. Mas Cristo não era monopolizado pelos católicos apostólicos
romanos. Oswald de Andrade, por exemplo, escrevera no Manifesto Antropófago,
publicado em 1928, que "nunca fomos catequizados", fazendo alusão em seguida à
letra de um samba que muito sucesso fizera na época: "Cristo nasceu na Bahia,
meu bem/E o baiano criou" (apudVianna, 1995:26). Fazer Cristo nascer na Bahia,
possivelmente em meio a um candomblé ou a uma lavagem da escadaria da Igreja de
Nosso Senhor do Bonfim, era também uma imagem veemente para sugerir a proposta
oswaldiana da antropofagia, apresentada como um modernismo brasileiro. Diante
disso e do que vimos nos parágrafos anteriores, talvez faça algum sentido '
lançando uma idéia a ser aprofundada ' voltar aos partidários do Cristo
Redentor para enxergá-los como proponentes de um outro modernismo. Nele, uma
obra de vanguarda técnica e artística foi erigida para defender o lema que
poderia estar inscrito no pedestal da estátua: no Brasil, "Cristo vence, Cristo
reina, Cristo impera!"18. Longe de serem apenas os representantes de uma
restauração, os partidários do Cristo, naquele momento da história brasileira,
insinuavam uma outra modernidade.
EM BUSCA DO PURAMENTE RELIGIOSO
Amândio Soares, então chefe da estação de partida da Estrada de Ferro do
Corcovado, aproveitou o momento da inauguração do monumento ao Cristo Redentor
para lançar uma compilação de textos de autoria e procedência variadas a
propósito da obra, compilação a qual intitulou O Rio Maravilhoso. Collectanea
Litteraria e Turística da Cidade do Rio de Janeiro. Nela está transcrita uma
passagem publicada no Jornal do Commercio, no dia seguinte à inauguração, que
nos fornece outro exemplar da fusão de imagens que inspirava a estátua:
A paisagem incomparável do Rio tem agora um complemento sem par. No
alto da montanha de recorte tão original, que domina o quadro lindo
que é a paisagem do Rio, a imagem do Cristo, para certos aspectos,
não dá apenas a impressão de um monumento, de uma obra humana, de uma
obra de arte. Há como uma beleza maior, que emana daquela estátua,
que bem simboliza o que há de mais profundo no íntimo da consciência
brasileira, a adoração pelo Salvador, a piedade diante de seus
ensinamentos. Essa beleza, artística, provém da própria colocação da
maior estátua do mundo (apud Soares, 1934:80).
O interessante nessa formulação é que ela apresenta os elementos em torno dos
quais oscilará o sentido predominante do monumento, que, de religioso, a
revelar que "Jesus zela por nós" (ibidem:82), passará a componente da paisagem
da cidade. Isso já era prenunciado pelas pretensões "turísticas" de Soares em
sua coletânea, que abria, aliás, com um capítulo sobre o "Rio atual" no qual
elogiava as reformas modernizantes de Pereira Passos.
Recorra-se a uma referência atual para registrar aquela passagem, a mesma que
pode ser percebida nas músicas de Tom Jobim que citam o Corcovado e seu
monumento: "Aos poucos, o monumento foi sendo dessacralizado e integrado à
imagem de uma cidade tolerante e liberal" (Menezes, 2001:22). E ainda: "Os
cariocas e, em certa medida, todos os brasileiros acostumaram-se a ter o Cristo
como seu ícone. Folhetos e cartazes turísticos da Embratur passaram a adotar a
figura da estátua, cartunistas e publicitários se apropriaram de sua imagem"
(ibidem). Além de Fabris (2000a), outro texto que nota a transformação é o de
Cabral, que escreve: "o Cristo do Corcovado pode não ser objeto de devoção, mas
é merecedor de grande estima por parte do povo carioca", que o converteu no
"seu monumento mais espetacular e mundialmente conhecido" (1997:9). Tanto
Menezes quanto Cabral, e ainda Machado (1997), constatam que o sítio não se
tornou objeto de uma devoção religiosa popular expressiva. Como afirma o
primeiro, "poucos são os que visitam o Cristo em peregrinação ou por conta de
seu simbolismo católico" (Menezes, 2001:22). Enquanto, no momento da
inauguração do monumento, os bispos católicos entregaram a imagem ao país com a
incumbência de salvá-lo, é significativo que a campanha, encabeçada pela
Fundação Roberto Marinho e pela Shell do Brasil, que garantiu em 1990 uma
importante reforma da estátua, tenha se dirigido à cidade com o slogan "Salve o
Cristo" (Semenovitch, 1997).
O sentido religioso, misturado a outros aspectos igualmente destacados, como
vimos, foi sustentado com veemência e convicção pelos partidários do Cristo
Redentor na ocasião da sua concepção, construção e inauguração. No entanto,
creio ser possível apontar alguns elementos que facilitaram que esse sentido
fosse deslocado e atenuado por outros. Para tanto, é necessário que recuperemos
alguns aspectos que participaram da definição do formato do monumento. Quando a
idéia foi lançada, em 1921, não havia certeza nem sobre o local nem sobre o
modelo da estátua. Após se formar um consenso sobre o Corcovado, houve um
concurso de projetos entre três propostas apresentadas. Um dos projetos
derrotados, de autoria de Adolfo Morales de los Rios, trazia características
que conferiam ao monumento uma funcionalidade dirigida para uma devoção
massiva. A estrutura mais grandiosa desse projeto era "uma vasta capela aberta
formada por quatro altos e longos arcos" (Rios, 1922:14), capaz, portanto, de
abrigar uma grande concentração de pessoas. Além disso, a proposta previa que a
estrada de acesso ao monumento fosse crivada das referências próprias a uma
"via sacra". Explica o autor: "o meu projeto foi o de converter o Corcovado no
Monte Sagrado da Capital brasileira" (ibidem:8).
No projeto vencedor, a capela situava-se no interior do pedestal da estátua,
com pequenas dimensões e cerrada para o exterior; e o monumento não se
esparramava pela montanha, contentando-se em incorporá-la como seu suporte.
Depois da inauguração, chegou a receber algumas romarias, mas, mesmo contendo
uma réplica da imagem da padroeira nacional, a capela não demorou muito a ficar
fechada e sem atividades regulares. Das romarias, que Machado afirma terem sido
"muitas" (1997:95), não encontrei registros, ao contrário do "beija-mão" que
chegou a ocorrer durante a construção da imagem19. Há ainda outro ponto
importante: justamente a capela foi o único elemento do projeto originalmente
vencedor do concurso em 1921 que não foi alterado no formato final que o
monumento adquiriu. Neste, Cristo, desenhado com linhas que lembravam um estilo
barroco e que o tornavam parecido com as imagens que se podia encontrar no
interior das igrejas, tinha sua cabeça voltada para o alto e suas mãos ocupadas
em segurar, em uma delas, um globo, na outra, uma cruz. Depois de criar
polêmicas e receber diversas intervenções, chegou-se ao modelo definitivo. O
projetista original explicava que os atributos que eram representados
"materialmente" no primeiro modelo tornaram-se "simbólicos" no final: a cruz
foi formada pelo próprio corpo da imagem, e o globo passou a estar sob os pés
da estátua. Falou-se também de "simplificação" para dar conta da transformação,
nesse caso, para fazer referência aos traços que caracterizam o art déco,
estilo ao qual o aspecto definitivo da estátua ficou associado. Enfim,
simbolização e simplificação renderam uma imagem, creio eu, que estava mais
sujeita a reapropriações de sentido que o projeto original, ajudando assim a
conceber a atenuação de sua conotação religiosa.
Isso registrado, solicito que se preste novamente atenção à atuação da Igreja
Católica, agora em um período mais recente. Constatar-se-á que o esvaziamento
da dimensão religiosa, especificamente católica, do monumento ao Cristo
Redentor vem sendo contraposto por esforços na direção contrária. É difícil
precisar um marco temporal para tais esforços, mas é possível apontar alguma
relação deles com a distância que a hierarquia católica consegue enxergar entre
os seus parâmetros morais e a tolerância e a liberalidade da sociedade que
abriga o monumento. Talvez se possa tomar como emblemática a controvérsia
ocorrida no carnaval de 1989, quando a Arquidiocese da Cidade do Rio de Janeiro
acionou a Justiça para proibir a presença de uma reprodução do Cristo Redentor
em um dos carros alegóricos da escola de samba Unidos da Beija-Flor. A
alegoria, apelidada de "Cristo mendigo", apareceu no desfile coberta com um
plástico preto e uma faixa com os dizeres "Mesmo proibido, olhai por nós". Há
registros de episódios de conflito com publicitários, que foram alertados pela
Arquidiocese carioca em 2000 a pedirem aprovação formal da autoridade religiosa
para o uso da imagem do Cristo Redentor. As intervenções colocam-se
invariavelmente no sentido de resguardar a conotação espiritual da imagem20.
Na mesma direção, procedem medidas que atingem diretamente o monumento. Em
2005, a Arquidiocese divulgou que desde dezembro daquele ano, em toda primeira
sexta-feira de cada mês, tradicionalmente dedicada ao Sagrado Coração de Jesus,
um bispo auxiliar conduziria atividade devocional na capela do Corcovado. O
próprio arcebispo encarregar-se-ia de dar início à programação, que seria ainda
transmitida por uma rádio católica (O Testemunho da Fé, jornal da Arquidiocese
do Rio, 27/11/2005, p. 3). No momento em que o monumento completou 75 anos da
sua inauguração, em 2006, fez-se o anúncio oficial da transformação do sítio em
"Santuário do Cristo Redentor", o que permitiria a realização de casamentos e
batizados na capela e criava a expectativa de que ela se tornasse ponto de
peregrinação. Prometeu-se ainda a reforma da capela a fim de permitir a nova
utilização e a realização de celebrações religiosas diárias para atender os
turistas. Pode-se ainda mencionar a reforma recente de outra capela, próxima a
uma estação intermediária na estrada de ferro que leva ao Corcovado. A
cerimônia de comemoração aos pés da imagem foi conduzida pelo arcebispo, que
fez questão de ler uma mensagem de congratulação enviada pelo papa. Ou seja,
assiste-se a um esforço de equipamento em torno do monumento ao Cristo Redentor
que visa retomar agora o objetivo, embora previsto em sua concepção, fracassado
décadas atrás. Os jornais locais ajudaram a destacar tal esforço em manchetes
do dia 13 de outubro de 200621.
A comemoração dos 75 anos do monumento ao Cristo Redentor foi ainda marcada
pela Arquidiocese carioca com a publicação de um livreto (Arquidiocese, 2006)
que, na sua contracapa, afirma desejar "esclarecer o significado religioso e a
história da imagem mais conhecida do país". O livro está dividido em duas
partes: "mensagem religiosa", que desenvolve interpretações e fornece
referências sobre a espiritualidade associada à estátua que coroa o Corcovado;
e "história da construção da imagem", que segue desde o século XIX as idéias de
um monumento naquele sítio, dando especial atenção para o período entre 1921 e
1931, até chegar ao presente saudado com um gosto pela eternidade: "Desde sua
inauguração e para sempre, o Cristo Redentor do Corcovado simbolizará o Amor de
Deus, que veio ao mundo para nos salvar" (ibidem:27). Na introdução, o leitor é
lembrado do principal propósito da publicação: "[...] apesar da mensagem do
monumento ao Cristo Redentor ter sido conclamada a todo o povo brasileiro na
época de sua inauguração, e embora sejamos em maioria cristãos, muitos o
admiram apenas como obra de arte ou como um símbolo de significados dos mais
diversos, sem qualquer sentido religioso" (ibidem:6).
Vejamos, agora, como em cada uma das partes do texto esse "sentido religioso" é
estabelecido. A primeira delas é dividida em cinco itens, cada um dos quais
tomando um aspecto da imagem do Cristo Redentor para propor "reflexões" que
traçam conexões entre aqueles aspectos e temas espirituais. O estilo é o de uma
interpelação à consciência do leitor22. As margens estão preenchidas por
citações bíblicas que procuram dialogar com as reflexões propostas no interior
do texto. Um dos itens refere-se especificamente à capela, ressonando os
esforços antes descritos. Em geral, o propósito é mostrar, como precisa o texto
na contracapa, que "a imagem do Cristo do Corcovado pode representar um
importante instrumento para a evangelização"23. Já a segunda parte, dedicada à
dimensão histórica, privilegia o momento que precede e culmina com a
inauguração do monumento. Dessa vez, nas margens, há excertos de
pronunciamentos e textos daquela época. A visita de João Paulo II ao monumento,
ocorrida em 1980, recebe apenas uma frase de comentário. O passado que parece
interessar é exatamente aquele em que o "sentido religioso" é mais veemente, e
há trechos em que se manifesta o desejo de que o presente siga suas promessas,
como esse na introdução do livro: "O Morro do Corcovado? Ele é o altar do
Brasil" (ibidem:8).
Ainda na introdução aparece um tema que, embora não se possa dizer que não
evoque aspectos longevos da Igreja Católica, esteve ausente nos debates que
acompanharam a inauguração do monumento ao Cristo Redentor. Após mencionar a
existência de outras representações do Redentor, no Brasil e mesmo em Portugal,
o texto aceita travar uma polêmica: "Milhares, no entanto, manifestam-se
contrários à presença de imagens nas tradições da Igreja Católica" (ibidem). Em
resposta, três argumentos são levantados: o primeiro apela para citações
bíblicas que autorizariam o culto às imagens; o segundo lembra a distinção
doutrinária que existiria entre adoração e veneração; o terceiro faz
referências às tradições populares no Brasil e sua forte conexão com as
imagens. Embora não haja citação explícita no texto, não é difícil perceber o
interlocutor nessa polêmica: os evangélicos, cujas discordâncias com os
católicos passam, em primeiro plano, pela questão das imagens e de seu culto.
Nesse tema, vemos ainda outra ressonância entre texto e espaço, pois
recentemente (não antes de 2002) foram instaladas, ao lado da estrada de ferro
que dá acesso ao Corcovado, perto de seu destino final, cinco estátuas de
santos católicos, acompanhados ainda de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida,
todas com quase dois metros de altura. O lugar está identificado por uma placa:
"Jardim de todos os santos"24.
O mais interessante, penso eu, nesses esforços que reivindicam um sentido
especificamente religioso para a imagem é que eles se pautam por um princípio
moderno. Afinal, é com a modernidade que se acredita ser possível fazer essa
distinção entre o religioso e outras esferas. Agora, para a Igreja Católica,
não fascina mais aquela interpenetração de dimensões que vimos acontecer no
momento da concepção e inauguração do monumento. Apesar de sua modernidade, a
atitude católica não vem atrelada a qualquer movimento de privatização.
Acabamos de ver como transparece, a propósito de comentários atuais sobre a
imagem do Cristo, a disputa com os evangélicos, que se afirmaram como a
principal força inovadora no campo religioso brasileiro contemporâneo. E essa
disputa, se tem facetas teológicas, como a que cerca a legitimidade do culto às
imagens, espraia-se por esferas nada restritas ao religioso. O discurso
católico sobre o Cristo pode ser visto como parte dessa ampla disputa por
espaços públicos.
MODERNIDADES OUTRAS
Algumas das questões em jogo naquilo que cerca o monumento ao Cristo Redentor
podem ser mais bem definidas com a ajuda de dois textos que se dedicam a
situações bem diferentes. Mas eles são úteis na medida em que permitem precisar
a noção de modernidade que parece mais adequada ao sentido aqui utilizado. O
trajeto desenhado pelo texto insinua uma certa decomposição. A modernidade
aparece, em cada seção, sob diferentes facetas, cada uma das quais enfocando
aspectos cujo ponto em comum é seu vínculo inegável com a noção central:
liberdade, contemporaneidade, compartimentação (derivada da diferenciação
societária). É possível reencontrar, íntegro, o ponto do qual partimos? '
questão crucial, que coloca em jogo a idéia de uma modernidade original ou
modelar. Os textos aos quais me referirei em seguida conduzem a essa mesma
questão. Mas o seu efeito mais imediato é instigar-nos a aprofundar a impressão
de uma convivência de contrários. Afinal, liberdade, contemporaneidade e
compartimentação, tais como se revelam na história que seguimos sobre o Cristo
Redentor, estão acompanhadas ' se quisermos usar novamente algumas palavras-
chave ' de totalização, tradição e publicização. Recapitulando: a liberdade
religiosa apóia a reivindicação católica de representação nacional; a novidade
devocional, artística e técnica vem associada a um ícone da restauração; a
diferenciação contida no esforço de "recuperação do sentido religioso" da
imagem reafirma sua presença no espaço público. Como conceber essa convivência
de contrários?
Começo pelo texto de Chakrabarty (1997), que ilustra seus argumentos com uma
análise sobre a noção de "domesticidade burguesa", tal como aparece em debates
que ocorrem entre 1850 e 1920 em Bengala, região da Índia na época em que
aquele território fazia parte dos domínios britânicos. No século XIX eram
comuns, em textos escritos por britânicos, apreciações negativas sobre a
situação das mulheres na Índia. Em resposta a isso, surge uma mobilização
nativa que busca uma reforma da condição feminina, mobilização que incorpora
exigências ocidentais e ao mesmo tempo se afina com campanhas nacionalistas.
Chakrabarty observa, em primeiro lugar, que as noções de disciplina e de
higiene são destacadas do conjunto de exigências ocidentais para se aplicarem
aos lares indianos. Outras noções que faziam parte do ideal doméstico moderno '
liberdade e privacidade individuais ' foram ressignificadas. Isso ocorreu
sobretudo no debate sobre o que deveria ser o ideal de esposa. Em uma família
moderna, afirmava a literatura nativa, esperava-se que a esposa fosse uma amiga
de seu marido. Isso, no entanto, não deveria anular a assimetria entre eles. A
verdadeira liberdade, nessa literatura, conciliava-se com a "capacidade de
servir e obedecer voluntariamente" (ibidem:235, tradução do autor). Daí as
freqüentes críticas àquelas que se aproximavam demais de seus maridos,
condenáveis por parecerem "mais européias" do que as mulheres ocidentais.
Chakrabarty conclui que se opera, nesse discurso afinado com o nacionalismo
indiano, uma conjunção entre três vetores: o ideal de uma mulher como esposa
educada e submissa, certas imagens religiosas que reproduzem expectativas
tradicionais de gênero e o arranjo, também tradicional, da família extensa.
Pode-se perceber uma similaridade entre o que ocorre na Índia e no Brasil com a
noção de liberdade. A domesticidade burguesa em Bengala incorpora a noção de
liberdade, a princípio desafiadora, para integrá-la a um quadro que apresenta
continuidade com princípios tradicionais. A Igreja Católica no Brasil
posiciona-se a favor da liberdade para produzir uma institucionalidade orgânica
e hierárquica e garantir sua expressão pública. O que Chakrabarty sugere para a
Índia parece se aplicar também ao Brasil: "A história colonial indiana é
repleta de exemplos de indianos arrogando-se como sujeitos para si mesmos
precisamente pela mobilização, no contexto de instituições modernas' e às
vezes em nome do projeto modernizante do nacionalismo, de dispositivos de
memória coletiva que são anti-históricos e antimodernos" (ibidem:239, tradução
do autor). Note-se que, ao ser própria ou diferente da européia, essa
modernidade outra não é vivida necessariamente como algo inautêntico. De todo
modo, percebe-se como mesmo a liberdade, essa que não se opõe à submissão, pode
ser vista como "a mais verdadeira".
Outro texto que parece oportuno trata de algumas transformações em festas
religiosas na Bahia (Sansi, 2003). O argumento do autor pode ser acompanhado
com a análise que propõe sobre a Festa do Nosso Senhor do Bonfim, embora o
texto enfoque ainda outro caso. A festa inicia-se no século XVIII, em torno de
uma imagem, sob os auspícios de uma confraria que erige um templo no início de
1800. Na segunda metade do século XIX, já se falava da "Lavagem do Bonfim", e
suas características levaram a uma reação por parte da Igreja Católica local,
que recorreu aos poderes civis na tentativa de reprimir as festividades. Em
clima de romanização, buscavam-se evitar as devoções associadas à religiosidade
popular e ao sincretismo com referências africanas. Apesar disso, a festa não
acabou; apenas foi mantida do lado de fora do templo. Em seguida, a própria
Igreja organizou um cortejo voltado para as classes médias, procurando
novamente intervir no evento. O cortejo, no entanto, constituiu-se no espaço
para uma inédita sintonia entre a elite política local e o povo, agora
transfigurado em representante de uma "cultura afro-baiana". O que sela essa
transformação é a apropriação que a festa sofre por parte da agência oficial de
turismo, que passa, nas décadas recentes, a se responsabilizar pela organização
do cortejo.
Sansi resume seu argumento sobre as transformações na Festa do Bonfim
referindo-se a dois momentos: "um primeiro momento de ruptura, quando a Igreja
rejeita a festa; e um segundo momento de recuperação e aliança da festa com
intelectuais e políticos" (ibidem:166). Apesar da rejeição eclesiástica, Sansi
caracteriza o primeiro momento como celebração religiosa popular; isso em
contraste com o que ocorre depois, quando o cortejo, com referências a uma
"cultura afro-baiana", convertido em evento turístico oficial, freqüentado por
políticos locais, se torna o centro simbólico da festa. Há aí algo parecido com
a passagem que constatamos no caso do monumento ao Cristo Redentor, que se
transmuta de "imagem religiosa" a "ícone cultural". É isso que se depreende do
lamento católico sobre "a perda de sentido religioso"; e é isso que se consagra
na campanha pela inclusão do monumento entre as "novas sete maravilhas do
mundo"25. No caso do Cristo Redentor, no entanto, não houve um deslizamento da
imagem para um evento. A própria imagem foi sendo investida de sentidos que não
estavam previstos na concepção original. Além disso, os esforços recentes por
parte da Igreja para "recuperar o sentido religioso" do monumento demonstram
que essa significação não está apagada; e o mais paradoxal é que a operação que
procura revelá-la se valha de um argumento moderno.
Essa conclusão remete-nos à análise que José Murilo de Carvalho faz sobre a
construção da imagem de Tiradentes como herói nacional (Carvalho, 1990). Seu
estudo mostra como essa imagem ' inclusive literalmente, em seus traços físicos
' vai absorvendo elementos associados a Jesus Cristo. Essa conjunção entre o
cívico e o religioso parece crucial para entender o que se passa com o Cristo
Redentor. Nesse caso, é algo inverso que ocorre: o religioso vai absorvendo o
cívico de modo tal que se recusa a separação que a modernidade parecia exigir
das duas dimensões. A absorção consolida-se também no âmbito propriamente
religioso. Há registros que testemunham a existência de oferendas ("despachos")
nas encostas do Corcovado e que notam a associação entre a imagem do Cristo e a
figura de Oxalá26. Mesmo os evangélicos, apesar de suas críticas à idolatria,
convivem com a imagem, organizando cultos a seus pés e apropriando-se dela para
suas pregações27. Ou seja, o que se esperaria com a modernidade é que cada
confissão erigisse seus locais de culto e seus símbolos de devoção. Isso
corresponderia ao princípio da segmentação aplicado ao interior da esfera
religiosa. Contudo, no caso do Cristo Redentor, apesar das reivindicações
católicas e da contrariedade evangélica, até o momento ele foi capaz de
demonstrar polivalência em seus sentidos.
Polivalência semelhante atrela-se aos sentidos da modernidade. Sentidos mesmo
contraditórios, como insistem aqueles, a exemplo de Mignolo (2004), que se
recusam a dissociar as dimensões emancipatórias de outras que apontam para
cercamentos. Iluminismo e colonialismo, nessa interpretação, precisam ser
vistos como lados de uma mesma moeda. Em outra chave, que reflete sobre sua
constituição, a modernidade passa por uma multiplicação que nega origens
únicas. Em outras palavras, como argumenta, por exemplo, Kahn (2001), a
modernidade já nasce plural, ainda que apoiada em discursos que cultivam e
produzem a unicidade. Uma das maneiras de explorar essa idéia, como nos mostra
Van der Veer (2001), passa pelo acompanhamento dos processos de modernização em
múltiplos sítios, mesmo muito distantes entre si, no intuito de perceber e
destacar sua simultaneidade e implicação mútua. As análises apresentadas neste
texto podem ser vistas como um exercício de leitura da modernidade desde o
Brasil; e tendo como foco um monumento que sintetiza fortes imagens e agrega
múltiplos discursos. Os resultados contribuem para vislumbrar o que Otávio
Velho (2007) chama de "modernidades alternativas" para sublinhar o efeito desse
lugar de leitura: mais sentidos, mais ambivalências. Aliás, pode ser essa uma
das mensagens a tirar do resultado da escolha das "novas maravilhas do mundo",
pois, dos sete sítios, apenas um está na Europa; os demais se distribuem pela
assim chamada periferia do mundo.
NOTAS
1. Para apresentação e discussão desse argumento, ver Tschannen (1992), Beyer
(1994) e Casanova (1994).
2. Os versos foram publicados na revista O Malho, nº 1504, sem indicação do
ano, que provavelmente é 1931, data da inauguração do monumento. Seu autor é o
padre Assis Brasil, membro do Centro Dom Vital, um dos principais focos de
elaboração intelectual católica à época.
3. D. João Becker era arcebispo de Porto Alegre e foi um dos oradores na
cerimônia de inauguração do monumento.
4. Sobre o vínculo essencial entre cristianismo e nacionalidade no discurso
católico brasileiro, ver, por exemplo, Isaia (2003).
5. O que segue até o antepenúltimo parágrafo desta seção é uma síntese da
análise que apresentei em Giumbelli (2002:248-275).
6. Grinberg (1999:62) também chama a atenção para a presença da noção de
maioria.
7. Para uma visão mais detalhada sobre esses argumentos atrelados ao monumento,
ver Grinberg (1999) e Giumbelli (no prelo).
8. Para a construção dessa breve cronologia, recorri às indicações de Machado
(1997), Azzi (1986) e Mott (1993).
9. O caso de Rosa Egipcíaca, no século XVIII, cujo misticismo dedicado ao
Coração de Jesus é abordado por Mott (1993:318) ' que chega a sugerir que se
trata de uma "Margarida Maria afro-brasileira" ', demonstra que o culto no
Brasil é anterior ao século XIX. Mas a afirmação de Azzi continua válida quando
se trata de seguir a tentativa de ampliação da devoção ao Coração de Jesus a
partir de uma política clerical sistemática.
10. Essa oposição, como mostra Azzi (1986), encenou-se a propósito da própria
figura de Cristo: de um lado, o Jesus sofredor e suas conotações populares,
horizontalizantes e expiatórias; de outro, o Sagrado Coração e suas conotações
eclesiásticas, hierárquicas e triunfantes. Para outra leitura que enfatiza o
sentido modernizante das medidas romanizadoras no catolicismo brasileiro, ver
Sanchis (1997).
11. A primeira expressão é do padre Manoel Macedo, em artigo na Revista da
Semana de 29/6/1929, transcrito em Soares (1934:48); a segunda, de Arrojado
Lisboa, em artigo na revista O Cruzeiro (10/10/1931, p. 23); a última, do Conde
de Affonso Celso, em artigo na mesma revista (p. 13).
12. A primeira expressão é de Heitor da Silva Costa, engenheiro responsável
pela construção, em artigo na revista O Cruzeiro (10/10/1931, p. 15); a segunda
consta do laudo de uma comissão de técnicos de 1928, transcrita em Machado
(1997:67).
13. Sobre as propriedades do revestimento, elogiado ainda por ser uma solução
nacional (lembrando-se que se tratava da matéria-prima das esculturas de
Aleijadinho), ver o artigo de Arrojado Lisboa na revista O Cruzeiro (10/10/
1931, pp. 23-27); sobre o trabalho voluntário das senhoras católicas para
juntar as peças do mosaico, ver Machado (1997:74).
14. O depoimento está transcrito em Machado (1997:77-79). Várias fontes contam
que Levy, de origem judaica, teria se convertido ao catolicismo durante a
construção do monumento. Teria ainda juntado ao concreto que forma o coração
esculpido na imagem uma folha inscrita com sua árvore genealógica, fazendo ele
mesmo o que Cristo prometera a Marguerite Marie Alacoque: "As pessoas que
propagarem essa devoção terão seus nomes escritos indelevelmente em meu
coração".
15. No Guia da Arquitetura Art Déco do Rio de Janeiro, editado pela prefeitura
local, o monumento ao Cristo Redentor figura como a primeira referência.
16. Foi Pereira Passos, que depois seria protagonista da mais ampla reforma
efetuada na região central da cidade, o responsável pela construção da primeira
estrada férrea no Brasil com fins turísticos e que teve por modelo uma obra
suíça.
17. Devo a Jayme Aranha, em comunicação pessoal, as precisões sobre esse fato.
Há uma foto da antena em Rubinstein (1999:38).
18. A inscrição consta da última maquete do monumento e foi lembrada durante
sua inauguração (Rubinstein, 1999:56; Machado, 1997:86).
19. Refiro-me a uma foto que mostra fiéis católicos em torno de uma das mãos da
estátua, quando essa parte ainda era acessível pelos andaimes.
20. Em 1998, um fabricante de pneus utilizou montagem fotográfica que colocou
um afamado jogador de futebol no lugar da estátua de Cristo no Corcovado; outro
protesto ocorreu por conta de anúncio de marca de peças íntimas. Em 2001, a
apresentação de uma coleção de biquínis e maiôs trazendo a imagem do Cristo
Redentor também foi atacada pela Arquidiocese. Registros sobre essas imagens e
reações estão disponíveis no site Observatório da Censura: http://
observatoriodacensura.blogspot.com, acessado em 28/10/2006.
21. Dois exemplos: "Cristo, 75 anos, Vira Santuário" (O Globo) e "Santuário
para o Rio" (O Dia).
22. Um exemplo: "Quando olhamos para o alto e vemos a imagem do Cristo Redentor
diante do céu, além da singularidade da obra humana, o que isso nos inspira?
Você reconhece, através da imagem de Cristo do Corcovado, a presença de Deus em
sua vida?" (Arquidiocese, 2006:9).
23. Sugere-se que o livro possa servir em aulas de catequese e de ensino
religioso. É importante notar que o Estado do Rio de Janeiro adotou um modelo
de ensino religioso em escolas públicas que torna difícil sua distinção da
catequese. Trata-se do modelo confessional, que divide alunos, professores e
conteúdos de acordo com a religião declarada dos primeiros. Esse modelo, cuja
adoção vem gerando muita polêmica, foi proposto com o apoio explícito da
Arquidiocese carioca. Entende-se assim que a cerimônia de comemoração dos 75
anos do Cristo Redentor tenha incluído uma aula de catequese para crianças que
trouxeram uma réplica da imagem com a inscrição "Obrigado, Senhor, pelo ensino
religioso".
24. Observação no local.
25. A escolha das "novas sete maravilhas do mundo" foi promovida por uma
fundação privada com sede na Suíça; o processo iniciou-se em 2005, partindo de
200 monumentos; desde janeiro de 2007, uma relação que contava com cerca de
duas dezenas de candidatos se oferecia para votos pela internet e por telefones
móveis; o resultado foi divulgado em julho de 2007. A campanha pela vitória do
Cristo Redentor, de que participaram empresas e órgãos públicos, não deu
destaque à dimensão religiosa.
26. Para a primeira informação, ver relato referido aos anos 1960 registrado em
Semenovitch (1997); para a segunda, ver Machado (1997:96).
27. Um panfleto evangélico tem na sua fronte a imagem do monumento e a
inscrição "Conheça o Cristo Redentor". Ao examinar o contéudo, o leitor poderá
notar uma sutil contraposição: "No Corcovado, a estátua do Cristo Redentor
representa uma monumental obra da engenharia humana. Mas foi no Calvário que
Cristo mostrou ao mundo inteiro o que é o amor!". "Conheça o Cristo Redentor",
panfleto da Editora Elim distribuído por uma congregação evangélica.