Empresariando o trabalho: os agentes econômicos da intermediação de empregos,
esses ilustres desconhecidos
A literatura da sociologia do trabalho tem sido relativamente farta em estudos
sobre os ambientes de trabalho, com ênfase especial nas formas como neles são
tecidas as relações entre trabalhadores e gerentes. Nesse sentido, essa
literatura emulou tanto com a reflexão da sociologia da empresa quanto com a do
emprego, domínios avizinhados, mas de fato tão reciprocamente irredutíveis
quanto socialmente enraizados em suas linhagens intelectuais e em seus
ambientes acadêmicos específicos.
Trabalho, emprego e empresa constituíram, assim, campos temáticos
independentes, remetendo, cada um deles, a dimensões próprias da vida social, a
saber: o processo de trabalho, o mercado de trabalho e a firma. Todas elas
dimensões pautadas pelo foco no comportamento institucionalizado em torno de
regras de tipo mercantil-capitalista, conquanto tratando mercados particulares,
como o mercado de trabalho e o de produtos.
Ao passo que o primeiro - o mercado de trabalho - foi tradicionalmente descrito
como o lócus por excelência do estabelecimento das trocas entre compradores e
vendedores de força de trabalho, o segundo era descrito como o âmbito da
interação entre compradores e vendedores de bens e serviços. Enquanto o mercado
de trabalho era o espaço em que contratante de trabalho (organizado
empresarialmente como firma) e vendedor de trabalho (figurado como o indivíduo
"livre e despossuído") se defrontavam em uma sorte de enfrentamento entre
Golias e Davi, o mercado de produtos supunha relacionamentos mais diversos,
envolvendo trocas entre firmas, assim como entre estas e os indivíduos.
Competição e alianças logo atraíram a atenção da literatura da sociologia da
firma. Desse modo, o mercado de bens e serviços cedo passou a ser tratado em
toda a complexidade que o caracterizava. Complexidade, de resto, imperiosa,
seja porque os limites entre manufatura e serviços passaram a se mostrar mais
tênues, seja porque as estratégias gerenciais tiveram de ser crescentemente
entendidas, em toda a sua complexidade, como estratégias de produção, de gestão
do trabalho, mas sobretudo de gestão de negócios, o que requeria ter também em
conta a gestão das imagens de marcas e de consumo.
Já o mercado de trabalho seguiu por muito tempo sendo um âmbito estudado mais
por seus resultados e configurações (para usar um termo caro aos economistas,
por sua "estrutura") do que pelos processos que nele tinham lugar. Tais
processos permaneciam pouco percebidos em sua complexidade social responsável
por dotar as relações de trabalho que ali se pactuavam de particular
estruturação em formas institucionalizadas.
A insuficiência desse olhar não deixaria, mais cedo ou mais tarde, de se fazer
sentir. Restavam por aclarar pelo menos dois aspectos cruciais a um olhar
sociológico: 1) por que, em face de uma pluralidade de possibilidades de troca
entre agentes, uma, e apenas uma, se tornava efetiva1?; 2) quais os mecanismos
mobilizados pelos agentes em seu esforço para transformar a infinidade de
trocas potenciais em um resultado final em que apenas uma dessas trocas se
consumava? O mercado por onde circulava a "mercadoria força de trabalho" por
certo não estaria livre do desafio analítico aberto por esse tipo de abordagem.
Os economistas habitualmente respondiam a esses desafios recorrendo a funções
de preço e de produtividade e ao cruzamento entre ambas, cuja condição de
possibilidade estava ancorada no suposto da racionalidade da conduta dos
agentes econômicos. Assim, o xis do problema estaria na convergência de
interesses em torno do preço pelo qual um trabalhador qualquer aceitaria vender
sua capacidade de trabalho (ou comprá-la, se considerarmos o ponto de vista do
empresário) dada a produtividade suposta (encarnada em um certo quantum de
capital humano) que possuiria (ou que necessitaria adquirir para incorporar a
seu negócio, tomando ainda o prisma do empresário que recruta).
Se as características das condições da concorrência perfeita, como
transparência, permeabilidade, homogeneidade, mobilidade, entre outras, têm
sido postas em questão pela moderna sociologia dos mercados, por certo elas são
de duvidosa prevalência e de escassa aplicação imediata, em especial nos
mercados por onde circula o trabalho (White, 1981; Granovetter, 1985; 1991;
Garcia-Parpet, 1986; Swedberg, 1994; Fligstein, 1996; Steiner, 1999; 2004).
Sabemos que são socialmente complexos os mecanismos pelos quais se entrecruzam
a oferta de trabalho e a procura de trabalhadores, e que tais mecanismos passam
por instâncias não-mercantis, tal como demonstrado por Granovetter (1973; 1974)
a propósito do papel das redes sociais.
Mais ainda: dificilmente o funcionamento do mercado de trabalho poderia ser
adequadamente descrito pela imagem da díade formada pelo empresário que recruta
e o trabalhador que se oferece no mercado. Esse funcionamento requer ser
representado por um modelo mais complexo, já que diferentes formas
institucionais hoje nele se apresentam. Tais formas, longe de convergirem
apenas para os extremos dessa relação de força em que estariam o contratante e
o contratado, distribuem-se por várias linhas de tensão que podem ser mais bem
representadas como convergindo para as extremidades de outra figura, a do
triângulo.
Qual seria, então, o terceiro elemento a intervir na antiga linha de forças que
antepunha nossos Davi e Golias? O intermediador. É ele que forja a dinâmica de
um "novo" mercado que se constitui no interior do próprio mercado de trabalho -
o "mercado de intermediação das oportunidades de trabalho". Desse modo, o tema
dos serviços (de intermediação) é posto no coração do entendimento dessa
mercadoria especial, a "força de trabalho", que teoricamente fora tratada
sobretudo do prisma de seu "consumo produtivo", para usar a categoria de Marx
(1985).
Neste artigo, pretendo evidenciar, à luz do caso do Brasil e, em especial, de
dados para a Região Metropolitana de São Paulo2, como se constitui e opera essa
complexa relação de forças não mais bipolar, mas tripolar. Pretendo sublinhar,
no desenvolvimento de meu argumento, como múltiplas formas institucionais
convergem para os três grandes pólos que descrevem hoje a organização do
mercado de trabalho: o pólo dos agentes que demandam emprego (os trabalhadores,
não necessariamente desempregados, ainda que majoritariamente o estejam); o
pólo das firmas que se utilizarão do trabalho a ser recrutado no mercado (que
não necessariamente são as firmas contratantes); e o pólo dos agentes que
disponibilizam vagas no mercado, tornando-as visíveis, transparentes, para os
demandantes, mas que também fazem o caminho de volta, triando e locando
trabalhadores potenciais (agentes que não necessariamente são firmas nem mesmo
simples recrutadores).
Dependendo de quem demanda trabalho e de que tipo de vaga se oferta, esse
triângulo pode se configurar em mecanismos e meios de encontro entre
demandantes e ofertantes tão variados quanto a moderna procura virtual por
trabalho que circula em sites na internet, ou quanto a veiculação de
oportunidades por meio de precários anúncios colados ao corpo de "homens-
placa". Afinal, os intermediadores são, eles próprios, empregadores e tecem
relações de trabalho complexas e muito diversas, que cabem ser desveladas para
melhor se entender como, entre as múltiplas "trocas potenciais", apenas uma
delas se converte em "troca efetiva", para usar os termos do argumento
weberiano.
Enfim, busco tratar do estatuto analítico que devemos outorgar aos agentes
econômicos da intermediação de empregos, aí compreendida a reflexão sobre os
mecanismos extra-econômicos que pautam sua conduta. Fazê-lo é condição
imperiosa para bem interpretar as formas pelas quais firmas e indivíduos se
relacionam nos mercados contemporâneos de trabalho. Mercados hoje tão
fortemente impactados pela dissolução de antigas normas do trabalho - de maior
ou menor difusão real, mas de elevada eficácia simbólica - e pela crescente
flexibilização das relações sociais e contratuais envolvidas na negociação da
cessão/aquisição do tempo de trabalho.
No entanto, fazê-lo é particularmente interessante quando refletimos à luz de
um caso como o do Brasil, em que a flexibilidade de contratos não se constitui,
como no figurino das expectativas teóricas mais usuais, em um resultado da
transição que ultrapassa um modo fordista de regulação do trabalho (Boyer,
1988; Boyer e Durand, 1997). Longe disso. Entre nós, certas características
estruturais propiciaram um padrão de flexibilidade numérica que tem estado na
base dos principais movimentos de nossa economia. Dentre tais características,
destacaria o peso das relações não formalizadas e a diferença não-desprezível
existente entre os nossos mercados regionais de trabalho, para não mencionar os
baixos níveis de qualificação dos trabalhadores e o escasso poder de fogo da
organização sindical para fazer face à intensa rotação nos empregos, com
destaque para o período autoritário, quando se extingue o instituto da
estabilidade e são regulamentadas as novas regras para rompimento de contratos
de trabalho. Entre nós, a produção em massa parece ter aportado livre das
contrapartidas sociais que caracterizaram o fordismo alhures, tais como uma
política de salários, que fazia do trabalhador um consumidor potencial, e uma
política de relações de trabalho, que fazia do sindicato o interlocutor capaz
de representar interesses coletivos.
Por último, mas não menos importante, cabe ressaltar que, se a ação direta e a
proteção do Estado (que hoje diríamos afirmativa, porque compensadora de
desvantagens de partida) foram parteiras do desenvolvimento econômico e de
benfeitorias ao empresariado nacional, foram também madrastas na parcimônia com
que concederam benefícios e definiram critérios de elegibilidade para triar
aqueles a serem incluídos no que seria um sistema público de proteção aos
trabalhadores. Sem ele - pude documentá-lo em outras oportunidades (Guimarães
et alii, 2004; Guimarães, 2006; Demazière, Guimarães e Sugita, 2006) - a
produção da sobrevivência se torna um empreendimento complexo, no qual o
domínio do privado ganha proeminência como celeiro das soluções. Estas demandam
recurso a redes pessoais (sobretudo familiares), a estratégias individuais e à
"viração" sistemática, que mitigam os efeitos de trajetórias ocupacionais
erráticas e respondem a um regime de welfare (Galie e Paugam, 2000) restrito em
seus benefícios e em sua capacidade de inclusão, além de muito recente em
internalizar institutos internacionalmente consagrados de proteção, como o
seguro-desemprego, a assistência ao trabalhador em sua busca de emprego ou o
apoio a suas necessidades de requalificação.
Quando o desemprego provê a notável massa de demandantes de trabalho que passa
a se concentrar em grandes metrópoles como São Paulo, quando as firmas enxugam
funcionários e externalizam funções, e quando se carece de um sistema público
de emprego e de proteção social ao trabalho solidamente institucionalizado,
triar multidões para uma nova vaga aberta torna-se uma tarefa
desproporcionalmente onerosa, seja para as empresas que contratarão, seja para
os trabalhadores que almejam o posto. Nesse vácuo, os agentes privados da
intermediação de empregos preenchem um espaço estratégico - de novo, para
empresas e trabalhadores -, que se mostra também economicamente viável para ser
explorado enquanto negócio, mesmo em um contexto social pobre e desigual como o
brasileiro.
Como tal mercado se estrutura e quem são os agentes econômicos da intermediação
de oportunidades de trabalho, esses ilustres desconhecidos para a sociologia
brasileira do trabalho, são o objeto de interesse das partes que seguem. Na
primeira, dialogo com a literatura internacional, já razoavelmente
significativa; na segunda, retraço as particularidades da construção
institucional desse mercado no caso brasileiro; na terceira, apuro ainda mais o
foco, buscando entender como, em um espaço particular, tal construção se
enraíza e quão mais diversos ainda podem se mostrar os mecanismos e os atores
envolvidos no processo de fazer circular (e obter) informações sobre as
oportunidades ocupacionais que se abrem aos indivíduos em um mercado de
trabalho como o da Região Metropolitana de São Paulo, sujeito a intensa
competição entre os demandantes de emprego.
DIALOGANDO COM A LITERATURA: OS INTERMEDIÁRIOS E AS REDES SOCIAIS NO
AGENCIAMENTO DO EMPREGO
A constituição de instituições de intermediação e, notadamente, daquelas
vocacionadas ao chamado "negócio do trabalho temporário" tem sido
crescentemente tratada por uma literatura ávida por descrever o papel de tais
intermediários na (re)inserção ocupacional. Se essa literatura não chega a ser
abundante, tampouco deixa de ser significativa. Análises recentes surgem nas
mais diferentes latitudes: Estados Unidos (Peck e Theodore, 1999; Benner, Leete
e Pastor, 2007), Europa (Kartchevsky e Caire, 2000; Forde, 2001; Beynon et
alii, 2002; Gray, 2002; Bergström e Storrie, 2003; Koene e Purcell, 2004) e
países da América Latina (Echeverría, 2001), inclusive o Brasil (Pamplona,
2003; Guimarães, 2004; Consoni e Bessa, 2007).
Em todos esses estudos, destaca-se uma nova figura que surge no mercado de
trabalho organizando a intermediação entre, de um lado, necessidades cada vez
mais flexíveis (em termos numéricos e funcionais) por parte das empresas e, de
outro, a busca de novas oportunidades ocupacionais por parte de trabalhadores
que, ou foram desligados depois de contratos duradouros em funções agora
reestruturadas, ou são (re)ingressantes no mercado de trabalho. Trata-se de
empresas organizadas com o fito de não apenas fazer circular informações sobre
oportunidades de trabalho mas também agenciar trabalhadores, ou seja, prover
pessoal para outras firmas, tanto intermediando trabalhadores para contratos a
serem firmados com outrem quanto contratando diretamente para uso por múltiplos
demandantes finais. Sendo o outro lado da moeda do movimento de reestruturação
das firmas, sua presença no mercado de trabalho é tão mais forte quanto mais
intensa e perceptível se mostra tal reestruturação. Nesse sentido, não são
apenas, ou necessariamente, agências de emprego, já que têm um espectro de
atuação bem mais amplo no que tange à intermediação de mão-de-obra. Parcela
significativa é formada por organizações que assumem a condição de empregadores
daqueles demandantes cuja colocação agenciam com respeito a um terceiro
(Echeverría, 2001).
Longe de se reduzirem à imagem simplificada e estereotipada que vulgarmente
mantemos com respeito ao trabalho temporário, chama a atenção, na literatura,
sua diversidade e, mais que isso, certa polarização que caracterizaria tais
intermediadores de empregos em mercados sob intensa reestruturação das firmas
e, logo, sob grande volatilidade no que concerne às oportunidades de trabalho.
Peck e Theodore (1999), analisando o caso de Chicago nos anos 1990, metrópole
em que mais crescia o trabalho temporário nos Estados Unidos no momento de seu
estudo, identificaram dois segmentos bastante distintos. De um lado aquele que,
a juízo dos autores, refletiria uma espécie de "via alta" (high road) no
processo de reestruturação econômica regional, sendo caracterizado por empresas
de grande porte que serviam a uma gama crescente de demandantes, fazendo-o de
maneira cada vez mais profissional e estabelecendo relações contratuais
progressivamente mais estáveis com seus clientes. Por isso, tenderiam a atender
a uma demanda por trabalhadores de maior qualificação, o que as obrigaria a
atentar para (e a desenvolver) suas próprias estratégias de recursos humanos.
De outro, haveria um segundo segmento de empresas de agenciamento e locação de
trabalho temporário. Essas, ao contrário das primeiras, tipificariam uma sorte
de "via baixa" (low road). Seriam sobretudo agências pequenas, de proprietários
locais e em cadeias também locais ou regionais. Estariam voltadas para atender
a mercados sensíveis ao valor dos salários e dispostos a recrutar trabalhadores
de baixa qualificação, notadamente nos chamados segmentos leves (embalagem,
transporte de materiais etc.). Seriam especializadas, portanto, no segmento
mais pobre do mercado (ibidem:138-139).
Diversidade foi também o que encontraram Benner, Leete e Pastor (2007) em
estudo no qual foram analisadas duas outras regiões dos Estados Unidos: uma no
Meio-Oeste, Milwaukee3, e outra na Califórnia, o Vale do Silício, situações
igualmente marcadas por intensa volatilidade econômica e amplo uso de
intermediários do trabalho dito flexível.
Já Koene e Purcell (2004) foram adiante explorando um argumento instigante à
luz de um estudo comparativo que envolveu Holanda e Reino Unido, dois dos
maiores mercados de intermediação privada na Europa. Esses autores estudaram a
modalidade de gestão nessas complexas relações tripartites de contrato e de uso
do trabalho. A forma de atuação dos intermediários privados nesses mercados
levou-os a reconhecer não apenas a heterogeneidade interna a esse segmento mas
também a sugerir um paradoxo em seu padrão de atuação. De um lado a
proliferação do trabalho temporário ocorre, corroborando importante literatura,
em um contexto de fragilização de contratos, de crescente precarização dos
empregos e de notável insegurança por parte dos trabalhadores sujeitos ao
desemprego recorrente (ver, por exemplo, o argumento eloqüente de Beck e Beck-
Gernsheim, 2003). De outro, Koene e Purcell (2004) encontraram que as agências
tenderiam, simultânea e paradoxalmente, a alimentar a estabilidade dos vínculos
que constituíam, quer seja com as empresas demandantes de seus serviços, quer
seja com os trabalhadores temporários que alocavam, uma vez que estes levavam
ao mercado o nome e a imagem do empreendimento que intermediara sua colocação.
Uma tensão entre precarização e fidelização marcaria, assim, o novo e paradoxal
mundo do trabalho temporário.
A complexidade do debate sobre o sistema de intermediação se mostra ainda mais
desafiadora quando nela incluímos outras realidades em que, pela configuração
dos sistemas de emprego e pela natureza dos regimes de proteção, o Estado
desempenha um papel também importante no movimento de colocação de
trabalhadores em oportunidades ocupacionais. Esse é o caso da França, onde a
força do sistema público de proteção cruza todo o longo período fordista,
chegando até os nossos dias. A cobertura e a amplitude dos benefícios que
concede, mesmo em um contexto de intensificação do desemprego de longa duração,
são notáveis em face de outras sociedades capitalistas modernas, fazendo do
sistema público francês de intermediação de empregos um ator central nas
estratégias individuais que lançam mão das instituições do mercado de trabalho
na busca de saída do desemprego. Nessas condições, abrem-se outras indagações
analíticas igualmente importantes, a principal delas relativa à especificidade
de um sistema público de intermediação de oportunidades, notadamente na maneira
como ele recebe e tria o indivíduo que busca trabalho (ver Benarrosh, 2000)4.
Conquanto se trate de um fenômeno visível nos vários quadrantes e em crescente
expansão, são consideráveis suas variações entre contextos sociais tanto no que
concerne às modalidades da intermediação quanto à seletividade social com que o
trabalho temporário se distribui entre grupos específicos, ou ainda aos modos
de gestão dessas novas relações de trabalho contratado mediante
intermediadores.
No entanto, o horizonte de indagações é ainda mais largo. Isso porque sabemos
que o acesso a oportunidades de trabalho com freqüência também se resolve por
meio de mecanismos que escapam à racionalidade das instituições especializadas
do mercado, fundando-se em outra razão, já que ancorados na estrutura e no
funcionamento de redes sociais tecidas no curso da vida cotidiana. Nesse
terreno, o debate sobre oportunidades no trabalho, em particular sobre a
circulação de informações no mercado de trabalho, é grandemente devedor das
formulações de Granovetter (1973; 1974; 1985; 1991).
Granovetter, seguindo pistas tão diversas quanto as de Polanyi (2000) [1944] e
White (1970; 1981), sugeriu - e documentou empiricamente - que a criação e a
evolução de um mercado (aí compreendido o mercado de trabalho) dependeriam de
certo número de condições sociais e políticas que contribuiriam igualmente para
seu funcionamento, o que Swedberg (1994) posteriormente denominaria "estrutura
social do mercado". No caso das oportunidades ocupacionais, ou da procura de
trabalho, por exemplo, seriam considerados os contatos a partir dos quais as
pessoas se tornavam sabedoras da informação ocupacional pertinente mesmo quando
não estivessem disponíveis no mercado, ou seja, em busca de uma ocupação.
Assim, ao entrevistar chefias e quadros mais altamente qualificados em seu
famoso estudo, Granovetter (1974) se deu conta de que o encontro entre
demandantes e ofertantes de trabalho se realizava por meio de três diferentes
mecanismos: procedimentos impessoais (anúncios e agências de emprego);
candidaturas espontâneas (via prospecção direta junto aos empregadores); e
contatos pessoais. Pouco mais do que cinco em cada dez indivíduos investigados
por ele reconheciam nos contatos pessoais, e não nos mecanismos mercantis, a
grande via para localizar oportunidades ocupacionais.
Convergindo com esse achado, em survey realizado em 2001, em São Paulo,
encontrei nada menos do que sete em cada dez indivíduos declarando que as
informações obtidas junto a familiares, amigos e conhecidos constituíam a forma
mais freqüente de buscar trabalho. Mais ainda: para mais da metade dos
entrevistados, essa foi a forma eficaz que lhes permitiu obter o último
emprego. Embora o peso dos mecanismos institucionais e dos circuitos impessoais
se mostrasse bem maior em Paris e em Tóquio (duas outras metrópoles igualmente
incluídas nesse estudo), a importância dos contatos pessoais não era
descartável nessas cidades, confirmando o argumento dos socioeconomistas no
sentido da importância do enraizamento social das formas mercantis. Entretanto,
era em São Paulo que os contatos pessoais adquiriam notável relevância
(Guimarães et alii, 2004), e não apenas os chamados "elos fracos", como
encontrados antes por Granovetter (1973; 1974) ou por Degenne e Forsé (1994),
mas também os circuitos de veiculação da informação marcados por sua maior
proximidade com respeito ao indivíduo em busca de trabalho (Guimarães e
Picanço, 2007).
Qual é a importância desses achados para estimular a reflexão sobre a operação
dos mercados de trabalho? Eles sugerem que a articulação entre ofertantes e
demandantes não se realiza por mecanismos unicamente mercantis de difusão da
informação, mas pode ser também um subproduto de outras relações sociais que
não têm uma dimensão mercantil. Nesse sentido, o funcionamento do mercado de
trabalho, assim como de outros mercados, demanda que outras estruturas sociais
subjacentes sejam examinadas para que se compreendam as formas de transmissão
de oportunidades. Esse é um processo que não se resume aos mecanismos usuais de
coordenação mercantil via sistema de preços; no caso, o preço pelo qual se
admite trabalhar ou, visto de outro ângulo, o preço pelo qual se aceita
recrutar um trabalhador.
Os achados até aqui referidos apontam que instituições do mercado e redes
sociais são mecanismos complementares para a promoção do encontro entre
ofertantes e demandantes de trabalho na busca por resolver o enigma weberiano
de como uma multiplicidade de possíveis relações de troca acaba por se
converter em uma única, que se efetiva no final como resultado. Entretanto,
esses estudos também permitem aventar a hipótese de que tal complementaridade
não se faz, seja de modo alternativo, em um modelo soma-zero, seja pela
especialização de alguns agentes em um ou outro desses mecanismos (assumindo,
por exemplo, que empresas usuárias recorreriam dominantemente às instituições
do mercado de trabalho, como os intermediadores, enquanto os demandantes
mobilizariam sobretudo seu capital de contatos). O recurso às redes é um
mecanismo importante para se entender a conduta das empresas ao recrutarem
diretamente, tal como Granovetter (1974) mostrou, para ocupações qualificadas e
de mando no coração do capitalismo, não sendo apenas o modo como demandantes de
trabalho perscrutam o mercado. No entanto, redes são decisivas também para se
entender a forma como opera o próprio mercado de intermediação, ou seja, como
os intermediários nele se localizam e se articulam entre si, com empresas
usuárias que os contratam e com demandantes de emprego que a eles acorrem.
MERCADO DE INTERMEDIAÇÃO DE EMPREGOS: UMA CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL
Por certo, dada a natureza deste artigo, a retomada de autores até aqui
empreendida foi rápida e, por isso mesmo, fortemente seletiva. Não obstante,
ela nos dá fôlego para seguirmos refletindo com respeito a um aspecto diante do
qual a literatura acadêmica ainda empreende seus primeiros esforços: qual é a
especificidade atual do mercado de trabalho quando o figuramos do ponto de
vista do "mercado de intermediação de oportunidades de emprego" que nele está
contido e que se torna crescentemente robusto e diversificado? Em outros
termos, como delimitar os contornos do mercado de intermediação se entendermos
que se trata apenas de um segmento do mercado de trabalho e que a ele não se
reduz, por mais que tenha no intermediador uma peça importante de seu
funcionamento contemporâneo?
Começaria dizendo que, como em todo mercado, ao mercado de intermediação de
oportunidades de emprego também acorrem demandantes e ofertantes; no caso,
demandantes e ofertantes de força de trabalho. Como em todo mercado, também
nele tal circulação está institucionalizada e é normativamente regulada5. Sendo
assim, qual seria, então, a novidade do mercado de intermediação de empregos? A
partir do momento em que ele se institucionaliza, a circulação da mercadoria
"força de trabalho" passa a estar mediada por um terceiro, um novo agente
econômico - o intermediário -, que não se confunde nem com o comprador nem com
o vendedor de força de trabalho, sendo especializado em promover a circulação
desta última.
A existência do intermediário de força de trabalho, institucionalizado e
operando em larga escala, constitui um evento recente na história dos mercados
capitalistas do trabalho. Sua presença evidencia o paradoxo de uma situação na
qual o aumento no número de agentes na transação de uma mercadoria pode ser um
fator que racionaliza sua circulação, reduzindo custos para vendedores e
compradores. Por outro lado, como veremos adiante, a multiplicação desses
agentes se fez à condição de se vencer uma construção simbólica de grande
vigência, a de que o trabalho não poderia ser pensado como uma mercadoria
qualquer, argumento que esteve na base da nova ordem internacional erigida no
âmbito do trabalho no pós-guerra.
Pensando, então, de modo simples e abstrato, três atores econômicos
configurariam o mercado de intermediação de empregos: o vendedor de força de
trabalho, o comprador de força de trabalho (agentes básicos em um mercado de
trabalho) e o intermediário na venda de força de trabalho. Quem seria este
último?
No contexto atual, o intermediário pode assumir duas formas institucionais
básicas, se continuarmos pensando de modo ainda ideal-típico: agência de
empregos ou empresa de trabalho temporário. No caso da primeira, faz circular
apenas a informação sobre vagas ofertadas e/ou sobre demandantes em busca de
trabalho. Seu negócio seria, então, reduzir a opacidade no mercado, tornando
mais transparentes as iniciativas dos dois agentes básicos pelo melhor acesso à
informação. No caso da segunda, realiza não apenas a circulação da informação
sobre oportunidades ocupacionais mas também a circulação da própria força de
trabalho mediante o agenciamento de trabalhadores, via contratação direta, para
atividades a serem desenvolvidas na empresa usuária.
É evidente que as fronteiras entre essas duas situações-tipo são tão mais
tênues quanto mais heterogêneo for o mercado de trabalho e quanto mais
complexas forem essas empresas de intermediação. Sendo assim, ao observarmos as
formas realmente existentes, há muito mais variantes, surgindo um caleidoscópio
de situações que se diferenciam segundo os tipos de demandante e de vaga
intermediados.
Ganhos de escala - conseqüentes à consolidação do negócio - são o caminho
virtuoso para realizar tal conjugação de linhas de atuação. Desse modo, à
medida que uma agência se expande e se consolida, fidelizando um grupo de
empresas clientes e ampliando seu banco de demandantes de trabalho, pode passar
a contratar diretamente parte desses trabalhadores para disponibilizá-los às
empresas a que serve. Dessa sorte, a relação de serviço entre elas se torna
mais duradoura e complexa, ultrapassando o mero trabalho de localizar no
mercado potenciais funcionários. O caminho nessa via de crescente complexidade
segue, assim, o rumo da transição da condição de simples (agência de empregos)
localizadora de contratados potenciais à de fornecedora regular de serviços de
recrutamento e seleção de funcionários (uma consultoria de recursos humanos), e
desta à de locadora e fornecedora de estoques de trabalho contratados (uma
empresa de trabalho temporário e terceirizado). O interessante é verificar que,
nesse curso, o movimento entre funções não suprime as mais simples à medida que
agrega as mais complexas; é mais propriamente um movimento cumulativo. As
trajetórias de várias das grandes firmas de intermediação no Brasil tende a se
aproximar dessa primeira via.
Contudo, não é apenas o caminho de crescimento prévio e de bem-sucedida
diversificação que leva à ampliação do portfólio. Muitas vezes é a busca de
nichos no mercado de intermediação, ou seja, é a focalização em itens do
portfólio a estratégia para vir a promover a consolidação e o crescimento da
agência, levando-a a conciliar a tarefa de circular informação com aquela
outra, mais desafiadora, de formar estoques de trabalhadores especializados em
ramos específicos do mercado, ofertando-os a possíveis empresas usuárias a fim
de fidelizá-las. O provimento de trabalho no ramo de teleatendimento parece um
bom exemplo dessa via de consolidação de negócios.
Casos há também em que empresas fornecedoras de trabalho altamente qualificado
já surgem como empresas de trabalho temporário, sem a necessidade de
experiência prévia como agências de emprego. Esse percurso parece ser mais
característico daquelas empresas que atuam em segmentos altamente
especializados, de trabalho intensivo em conhecimento; nessas condições, um
estoque de empregados presta serviços com regularidade a múltiplas empresas
"tomadoras de serviço", para usar o jargão nativo presente entre os empresários
do ramo e também na legislação brasileira sobre o trabalho temporário. É
justamente nelas que a fronteira entre o provimento de pessoal e a prestação de
serviço pode se tornar muito tênue, deixando entrever que alcançamos aquela
zona cinzenta na qual já não sabemos onde termina a prestação de serviços de
intermediação e onde começa a prestação de serviços produtivos. Creio que isso
tem mais chance de ocorrer justamente entre as empresas altamente
especializadas em trabalho temporário de elevada qualificação.
Finalmente, há também de se considerar, ao lado do porte, da escala de operação
e da complexidade do mix de serviços produzidos, a diversidade de propriedade
de capital e de enraizamento espacial desses agentes. De fato, eles envolvem
empresas em rede de calibre internacional - como a Manpower, mas não somente
essa no caso do mercado brasileiro -, junto às quais se perfilam grandes
empresas nacionais fortemente diversificadas em termos espaciais, inclusive na
rota de se expandir internacionalmente, como é o caso da Gelre. Contudo, ao
lado dessas, o mercado reserva espaço também para aqueles intermediadores
privados, de médio e pequeno portes, dispostos em agências unilocalizadas,
isoladas ou conglomeradas em condomínios. Por certo, seria impossível entender
a diversidade do portfólio de serviços veiculados se não fosse levada em conta
a diferença de escala de atuação. Tipo de ocupação intermediada, redes de
captura e fidelização (tanto de demandantes quanto de empresas clientes),
tamanho e perfil do quadro técnico, formas de gestão de seu trabalho e
mecanismos utilizados para veicular a informação sobre vagas e demandantes,
todas essas características variam conforme o porte, a escala de operação e as
formas de enraizamento espacial.
Seria esse terceiro agente uma particularidade do mercado de força de trabalho?
Nem de longe. Se considerarmos o moderno mercado de circulação da moeda, por
exemplo, fica evidente o papel que nele jogam os intermediários financeiros.
Talvez fosse possível dizer que, nesse caso, o coração do mercado pulsa
justamente ali onde se localizam os serviços de intermediação (financeira). Se
deixarmos o dinheiro e pensarmos as mercadorias em geral, veremos que desde
sempre sua circulação dependeu de intermediários, que constituíram o que se
entende por "comércio". De fato, o encontro entre produtores mercantis e
consumidores passou a requerer um agente intermediador que tornasse os produtos
acessíveis a quem os desejasse consumir.
No caso do trabalho, só mais recentemente os serviços de intermediação ganharam
a importância que hoje têm nos grandes mercados capitalistas6. Echeverría
(2001) destaca que foi apenas no pós-guerra que surgiram, inicialmente nos
Estados Unidos e posteriormente na Europa, as primeiras empresas dedicadas a
fornecer mão-de-obra - como mecanismos institucionalizados na operação do
mercado de trabalho - para fazer face tanto às dificuldades de inserção dos
retornados da guerra quanto às necessidades de provimento de trabalho para
empresas em processo de reconversão produtiva com o declínio da produção bélica
e a retomada de suas antigas linhas de produto.
Contudo, os contratos de prestação de serviços entre empresas locadoras e
empresas usuárias conviveram por certo tempo com a figura das agências privadas
de emprego, que cobravam diretamente dos demandantes pelo serviço de colocação
que lhes prestavam. A regulamentação internacional tratou de banir esse tipo de
conduta no marco regulatório internacional estabelecido pela OIT (Convênio 96
sobre Agências Pagas de Colocação). O crescimento importante dessas agências,
porém, não foi capaz de elidir as tensões em torno de seu estatuto e de seus
procedimentos7.
No Brasil, à diferença do que ocorreu nos Estados Unidos do pós-guerra e nos
países da Europa Ocidental em seguida, as empresas de trabalho temporário
encontraram seu nicho constitutivo não na demanda do setor empresarial, mas no
atendimento a necessidades de pessoal por parte do governo. Pressionado pelo
controle sobre os gastos com a máquina administrativa que se segue ao golpe
militar de 1964 e visando garantir a expansão de atividades burocráticas sem
honrar o que era visto como as "regalias" de que desfrutavam então os
funcionários públicos, o Executivo volta-se crescentemente para a
terceirização, argüindo o alvo de maior eficiência dos novos contratados
(Bicev, 2007).
Não por acaso, data desse período a legislação que regulamenta o funcionamento
do setor, a Lei nº 6.019, assinada pelo general Emílio Garrastazu Médici em 3
de janeiro de 1974 e poucos meses depois regulamentada através do Decreto nº
73.841, também assinado por ele, em 13 de março do mesmo ano8. A máquina
administrativa, contudo, necessitava de pessoal de forma duradoura, e os
contratos não podiam exceder o período de três meses, sob pena de se configurar
vínculo administrativo. Na disputa por direitos entre trabalhadores que
demandavam regularização de vínculo e contratantes pouco dispostos a fazê-lo, a
justiça brasileira, através do Tribunal Superior do Trabalho - TST, decide
criando norma. Por meio do Enunciado nº 331, o TST torna legal a prática que
denomina "locação de mão-de-obra", reconhecendo, por essa via, contratos
temporários de mais longa duração sob a forma de prestação de serviços entre
agentes com vistas ao fornecimento de trabalhadores terceirizados. É desse
momento também a constituição da organização coletiva dos empresários do setor,
pela Associação Brasileira das Empresas de Serviços Terceirizáveis e de
Trabalho Temporário - Asserttem, constituída em 17 de março de 1970, a partir
da arregimentação de donos de firmas nacionais fortemente mobilizados pela
conquista da regulamentação da atividade.
Vê-se assim que desde cedo se distinguem duas possíveis vias de incorporação do
trabalho temporário. Na primeira dessas vias estava o trabalho temporário de
curta duração, que se adequava ao instituto da legislação original e era
contratado por prazo restrito, seja diretamente pela empresa ou órgão usuário,
seja pelo intermediário. Na segunda, aquele de mais longo prazo, chamado de
"trabalho terceirizado", contratado de modo mais duradouro por meio de empresas
de intermediação e alocado nas empresas clientes com ônus e sob
responsabilidade das primeiras. Na senda dessa diferença, vê-se como estava
aberto o caminho para o florescimento das atividades de agenciamento e seleção
e para o crescimento das atividades de locação propriamente dita.
Nas décadas de 1970 e 1980, pouco a pouco as empresas privadas, notadamente as
multinacionais, mas também as grandes empresas nacionais que experimentavam
crescimento mais significativo - como no setor de construção civil -, passam a
aderir ao uso desses mecanismos para ampliar seus efetivos. O trabalho
industrial e relativamente pouco qualificado dava o tom no recrutamento. Nos
anos 1990, os serviços, sobretudo os mais modernos - bancos e intermediação
financeira, teleatendimento, entre outros -, passam a constituir o filão para o
setor de intermediação de mão-de-obra, se o observarmos pelo lado da demanda de
força de trabalho. O trabalhador jovem se torna seu grande cliente,
considerando o lado da oferta de força de trabalho.
Os anos 1970, contudo, foram também decisivos para assentar as bases de outra
parte do mercado de mão-de-obra no Brasil: aquele formado pelos agentes de
intermediação mantidos pelo recurso público. Pouco mais de um ano depois da
regulamentação do trabalho temporário, o regime militar institui o Sistema
Nacional de Emprego - Sine, por meio do Decreto nº 76.403, de 8 de outubro de
1975, como conseqüência da ratificação, pelo Brasil, da Convenção nº 88 da OIT,
que trata da organização do Serviço Público de Emprego.
A principal finalidade do Sine, na época de sua criação, era promover a
intermediação de mão-de-obra instalando serviços e agências de colocação em
todo o país. Além disso, previa o desenvolvimento de uma série de ações
relacionadas a essa finalidade principal, tais como organizar um sistema de
informações sobre o mercado de trabalho e fornecer subsídios ao sistema
educacional e de formação de mão-de-obra para elaboração de suas programações.
Para bem entender esse esforço regulador, porém, deve-se atentar para o fato de
que tal institucionalização vinha no bojo de um período de florescimento da
atividade econômica, quando oportunidades ocupacionais se haviam expandido na
esteira do chamado "milagre econômico", cuja crise apenas se esboçava em 1975,
momento em que essas novas iniciativas se institucionalizavam. De fato, elas
parecem mais próprias a dar conta de um mercado em expansão, recorrendo a
formas mais flexíveis de trabalho, cujas relações contratuais buscavam
contornar direitos estabelecidos, herança do projeto de inclusão e extensão de
cidadania do período populista. No que respeita aos chamados "postos de
atendimento" do Sine, eles seriam instalados em vários pontos do país, embora
ainda limitados por sua cobertura geográfica - circunscritos que estavam às
capitais - e pela porção do mercado que alcançavam, notadamente o trabalho
menos qualificado, em especial o serviço doméstico.
A feição atual do segmento público da intermediação só se estabeleceria com a
crise de crescimento aguda que se faz sentir nos anos 1980 e 1990. Assim, em
1988, o art. 239 da Constituição Federal cria o Programa do Seguro-Desemprego,
regulamentado posteriormente pela Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990, que
também instituiu o Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT. A partir dos anos
1990, alteram-se a natureza e a escala dos recursos para custeio e investimento
do Sine, que passam a ser provenientes do FAT, por intermédio do Programa do
Seguro-Desemprego. Do mesmo modo, já sob a égide da redemocratização, as normas
e diretrizes de atuação do Sine passam a ser definidas pelo Ministério do
Trabalho e Emprego - MTE e por um conselho tripartite, com presença de
trabalhadores, empresários e governos, o Conselho Deliberativo do FAT -
Codefat.
O desafio da conjuntura já era outro. Ganha importância a ação do governo no
que ele próprio classifica como "intermediação de mão-de-obra", no afã de
[...] (re)colocar o trabalhador no mercado de trabalho, [...]
realizar cruzamento da necessidade de preenchimento de um posto de
trabalho com a de um trabalhador que procura por uma colocação no
mercado de trabalho [...], [visando] reduzir o desemprego friccional,
contribuindo para que os postos de trabalho vagos não sejam extintos
ou que não venha a ocorrer agregação de ocupação por dificuldades no
preenchimento da vaga9.
A arquitetura institucional deixava claro o objetivo: "[...] o Sistema Nacional
de Emprego dispõe de informações acerca das exigências dos empregadores ao
disponibilizarem suas vagas junto aos postos de atendimento do SINE. Busca-se,
dessa forma, a redução dos custos e do tempo de espera tanto para o
trabalhador, quanto para o empregador"10.
Vários aspectos chamam a atenção na maneira pela qual o texto oficial enuncia
os objetivos da ação de intermediação pelo sistema governamental e deixa
entrever seus alvos. A temática do desemprego é agora o desafio explícito a
enfrentar: a atuação pública quer reduzi-lo acreditando poder atuar sobre sua
forma, que se entendia como apenas friccional. No entanto, o fantasma da
recorrência do desemprego parece ficar reconhecido no enunciado sobre o alvo de
"(re)colocar", que tanto pode conotar duas linhas de intervenção (em face dos
primodemandantes e dos desempregados) quanto o esforço por colocar e recolocar,
incessantemente, o trabalhador no mercado.
Outro aspecto importante da arquitetura do sistema que se consolida nos anos
2000 diz respeito à diversificação de agentes. As mesmas complexidade e
diferenciação que salientei ao descrever o segmento da intermediação movido
pelo recurso privado também podem ser reconhecidas no que concerne ao segmento
movido pelo recurso público do FAT. À diferença do que fora o Sine em sua
primeira fase de existência durante o período da ditadura militar, nos governos
da redemocratização, particularmente no governo Fernando Henrique Cardoso,
consolidam-se as experiências de gestão tripartite de fundos públicos (como
notado anteriormente, do FAT inclusive), que vão ser a pedra de toque para dar
acesso a agentes não-governamentais, como sindicatos e centrais sindicais, ao
mundo dos intermediários no mercado de trabalho.
De fato, sindicatos e centrais ingressam na gestão e na execução de políticas
públicas pela porta da qualificação profissional, por meio da experiência do
Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador - Planfor, concebido em 1995 e
implementado a partir de 1996, também com recursos do FAT (Guimarães, Comin e
Leite, 2000). Das ações em qualificação passam, em seguida, a atuar também na
intermediação de empregos, consolidando-se, juntamente com os postos de
atendimento do governo, como grandes intermediários no curso dos anos 2000.
Desse modo, foi formada a malha não-desprezível de agentes que se encontra hoje
instalada nos grandes centros urbanos brasileiros, constituindo um verdadeiro
mercado de intermediação de oportunidades ocupacionais. De um lado estão as
agências privadas de emprego, as consultorias de recursos humanos e as empresas
de trabalho temporário; de outro, vê-se uma rede de postos de intermediação
mantida pelo recurso público e gerenciada algumas vezes diretamente pelo
próprio governo, mas muitas vezes, indiretamente, por entidades ligadas ao
movimento sindical (sindicatos e confederações), a instituições religiosas
(especialmente a Igreja Católica) e a movimentos sociais organizados por
organizações não-governamentais.
Como opera essa malha de agentes? Para melhor responder a essa indagação, nada
como focalizar um caso empírico denso. Esse é o objetivo da seção seguinte.
Nela são analisados achados de uma pesquisa que vem sendo conduzida na Região
Metropolitana de São Paulo, principal mercado de trabalho brasileiro e que
reúne a maior concentração de intermediários. A observação privilegia o período
que se localiza a partir dos anos 1990, focalizando a região justamente no
momento em que esteve sujeita a intensa reestruturação econômica, sob taxas
recordes de desemprego, mas que foi também um momento em que surgiram
iniciativas governamentais de consolidação de um sistema público de emprego que
contemplava nova forma de institucionalizar a política para o desemprego,
constituindo mecanismos de proteção ao desempregado e de suporte à procura de
trabalho.
O MERCADO DE INTERMEDIAÇÃO DE EMPREGOS: UMA CONSTRUÇÃO TERRITORIALIZADA
O ponto de partida desta terceira seção é a convicção teórica de que, para bem
entendermos a construção social do mercado de intermediação de oportunidades de
trabalho, temos de observá-lo em suas formas específicas de enraizamento
espacial. Nesse sentido, a análise de um caso tem dupla utilidade. De um lado
permite dar concreção aos vários agentes de intermediação de que tratei
anteriormente sob forma ainda abstrata. De outro, e é o que mais importa nesta
seção, permite evidenciar os arranjos econômicos que se estabelecem em um dado
território e, assim, avançar em direção a identificar outros agentes a fim de
bem descrever como operam segmentos particulares do mercado de trabalho.
Em outra oportunidade (Guimarães, 2004), argüi que, nos anos 1990, a metrópole
paulista se consolidou como um verdadeiro mercado de intermediação, estando ali
instaladas todas as figuras-chave para esse mercado de serviços. Por quê? Do
ponto de vista dos demandantes de trabalho, o novo padrão de transições
ocupacionais, intensas e pautadas por um desemprego recorrente, encarregou-se
de prover, em escala notável, os indivíduos potencialmente agenciáveis (idem,
2006). Digo potencialmente porque, como também foi documentado em outra
oportunidade (Guimarães et alii, 2004), para uma parcela significativa dessas
pessoas, a procura de trabalho escapava à forma mercantil, resolvendo-se, no
mais das vezes, por meio de redes sociais enraizadas no mundo de suas relações
interpessoais, com elos mais ou menos fortes.
Já do ponto de vista dos intermediadores, foi também nos anos 1990 que
floresceu o negócio do trabalho temporário em São Paulo. As firmas (chamadas
por nossas estatísticas de "empresas de agenciamento, locação e intermediação
de mão-de-obra") proliferaram no período, estabelecendo-se nesse mercado
potencial e crescendo de maneira igualmente notável nessa década. Tal
crescimento constitui uma faceta ainda pouco estudada do processo de
reestruturação microorganizacional por que passaram as empresas brasileiras. No
curso do movimento de focalização de sua atividade produtiva, elas
externalizaram algumas das tarefas de gestão do pessoal até então habitualmente
exercidas por seus departamentos de recursos humanos; a principal delas, a de
triagem de potenciais recrutados. As novas empresas de intermediação passaram,
então, a se encarregar da captura do demandante, orientando-o em suas formas de
procura no circuito mercantil. Nutria-se, assim, o negócio da intermediação.
Tal atividade se tornou estratégica em uma conjuntura de enxugamento de postos
de trabalho e de crescente desemprego. Isto é, dada a escala em que a procura
de trabalho se exprimia em São Paulo nos anos 1990, deixava de ser trivial o
processo de recrutar, haja vista o investimento requerido em termos de tempo e
de trabalho; para as novas (e poucas) vagas então abertas apresentavam-se
verdadeiros exércitos de pleiteantes. Aos intermediários cabia realizar a
filtragem inicial, reduzindo o leque de alternativas a um pequeno grupo de
poucos (e bons) candidatos, que seriam finalmente avaliados pelos gestores de
recursos humanos sediados na firma contratante. Não sem razão, já em 2001, pude
verificar que um terço dos indivíduos entrevistados em uma amostra
representativa dos ativos de 16 anos ou mais, na Região Metropolitana de São
Paulo, referia, entre seus mecanismos habituais de procura de trabalho, o
recurso às empresas privadas de intermediação e agenciamento de colocações
(ibidem; Guimarães, 2006).
Tomando como exemplo a região do chamado ABC Paulista, coração da atividade
industrial na Região Metropolitana e palco do mais significativo enxugamento de
empregos nesse período (Cardoso, 2000), estudo realizado entre as empresas de
intermediação de trabalho ali atuantes, em 2002, mostrou a sincronia existente
entre a intensificação da chegada desses intermediadores e a intensificação do
processo de reestruturação das firmas na região11. Tal sincronia fica evidente
no Gráfico_1 a seguir: nada menos que 60% das empresas privadas de
intermediação que operavam no ABC em 2002 haviam sido fundadas a partir de
1995; quase três quartos delas se haviam estabelecido no curso dos anos 1990.
Mais ainda: georreferenciando os dados relativos à localização dessas empresas
no Estado de São Paulo12, vê-se que é na Região Metropolitana que está
concentrada sua parcela mais importante. Nesta, a distribuição se faz em alguns
aglomerados, que sugerem a provável existência de clusters de intermediadores,
identificáveis no mapa contido na Figura_1.
Conquanto São Paulo seja a região do Brasil que mais concentra os inscritos e
as vagas no sistema público de intermediação, a Figura_2 deixa entrever quão
menor é a densidade espacial dos intermediadores públicos (postos de
intermediação de emprego e agências mantidas pelo recurso do FAT) quando
comparados à densa rede de intermediadores privados (agências privadas de
emprego e empresas de trabalho temporário) retratada na Figura_1.
Os dados até aqui apresentados sugerem que o mercado de intermediação requer
uma escala mínima para sua constituição. Por isso, seu enraizamento em um
território reflete o grau de concentração com que demandantes e ofertantes se
apresentam no mercado de trabalho.
Outra importante característica dos serviços de intermediação de oportunidades
ocupacionais diz respeito ao fato de que essa sua escala de operação ganha
concreção de modo complexo e heterogêneo por meio de uma pluralidade de agentes
e de relações sociais de trabalho. Para melhor documentar esse aspecto, o
trabalho de observação empírica voltou-se, entre 2005 e 2006, para analisar em
maior profundidade os dois aglomerados que mais concentravam intermediadores,
privados e públicos, e para os quais afluíam os maiores contingentes de
demandantes na Grande São Paulo - as áreas de Santo Amaro e do Centro -,
recentemente transformados em verdadeiros territórios de intermediação.
Ademais, dada a escala com que ali se concentravam, os intermediadores dessas
duas localidades atraíam tanto demandantes dos respectivos bairros e
adjacências quanto do município (caso de Santo Amaro), e mesmo de outras
cidades da Região Metropolitana (caso do Centro).
A análise dos bancos de dados governamentais sobre o perfil de quem acorre a
suas agências nesses dois locais revela que se tratava de demandantes de
emprego com menor qualificação. Além disso, tal como observado em survey
realizado em agências de emprego em 2004, eles eram significativamente mais
jovens que a média dos que buscavam trabalho na metrópole paulista (Guimarães,
2004). Essas duas características permitem entender por que surge ali uma nova
gama de serviços especializados, conexos à procura de trabalho e de suporte
para efetivação da intermediação. Novos atores ganhavam, assim, visibilidade,
como resultado das observações realizadas nesses dois territórios de
intermediação. Quem eram eles e que tipo de serviço proviam? Vejamos em
seguida.
Uma parte era representativa de um primeiro tipo de serviços cuja especialidade
é, por assim dizer, "produzir a demanda", ou seja, transformar "indivíduos
necessitados de trabalho" em "verdadeiros demandantes de emprego" (Guimarães,
2008). A esses negociantes cabe dotar as pessoas das características
imprescindíveis à sua performance, enquanto demandantes de trabalho, para a
adequada apresentação de si como um "merecedor de uma oportunidade
ocupacional", notadamente aos olhos do intermediário privado. Alguns desses
serviços são gratuitamente providos pelo próprio governo em seus boxes de
atendimento; é o caso da documentação profissional (carteira de trabalho)13.
Outros são providos por agentes privados: como aqueles que confeccionam (e
reproduzem) o principal instrumento formal de apresentação de si, o currículo
do demandante de trabalho (Hirano, 2007). Agentes privados também proviam
outros documentos importantes e freqüentemente requeridos, como o atestado
médico. Finalmente, uma terceira ordem de serviços conexos ao desemprego e à
procura de trabalho se constitui ao redor do adiantamento dos valores que se
pensa poder vir a receber do programa de seguro-desemprego. Ilegal, trata-se de
antecipação de um benefício, na forma de empréstimo, promovida por quem não tem
qualquer responsabilidade sobre sua concessão; empréstimos (provavelmente
embutindo juros leoninos) sobre valores que o demandante de trabalho crê poder
vir a receber. Todavia, o adiantamento do seguro é, muitas vezes, condição para
seguir procurando trabalho. Ainda na fronteira da ilegalidade operam outros
agentes privados, produzindo as tão almejadas credenciais de qualificação
(diplomas de curso supletivo, por exemplo).
Um segundo tipo de serviços, igualmente próximo das necessidades de quem
procura, conquanto mais especializado e profissional, era constituído pelos
escritórios de advocacia trabalhista e cursinhos de treinamento profissional.
Ao lado desse rol de serviços conexos que preparavam o demandante, chamava a
atenção, especialmente no Centro, a enorme diversidade de formas de veicular a
informação sobre as oportunidades de trabalho. Por certo, parte substancial
dessa veiculação se faz nas próprias agências de emprego, seja em seu interior,
seja em quadros fixados à entrada. No entanto - e isso também resultou da
observação sobre o modo como operam os agentes em situações concretas,
territorializadas, de procura -, parte importante da veiculação das
oportunidades ocupacionais, notadamente nas agências de pequeno porte, faz-se
através dos braços móveis dessas firmas: os "plaqueiros" ou os "homens-placa"
(Vieira, 2007).
Sua presença nos remete a outra dimensão interessante na análise do tema: a
diversidade das relações de trabalho estabelecidas na execução do serviço de
intermediação. Os "plaqueiros" (o masculino não é casual nem uma forma
genérica) são trabalhadores empregados pelas agências (como o são as
recepcionistas e as selecionadoras, e o feminino aqui tampouco é casual); são
ambulantes que usam o próprio corpo para veicular os anúncios. Trabalhadores
"invisíveis", se observarmos o modo como se relacionam com os ansiosos
demandantes de trabalho, fazem circular, de maneira inusitada, a mercadoria-
chave para esse mercado, qual seja, a informação sobre oportunidade de
trabalho. Exercem sua atividade sob relações de trabalho que muitas vezes podem
ser de longa duração (cinco ou dez anos). Todavia, embora duradouro, esse
trabalho não supõe continuidade - podendo ser acionado em momentos de maior
animação no setor -, muito menos formalização e proteção (ou direitos),
conquanto os que ali se empregam sejam, em sua maioria, pessoas idosas.
Exatamente por isso, vários se disseram aposentados ou inativos quando livres
das "placas" que portavam14.
Esse tipo de trabalho complementa aquele que se desenvolve dentro da agência,
na qual outros trabalhadores se mobilizam. Algumas vezes o alvo de sua
atividade é o demandante de trabalho. É o caso da atuação das recepcionistas
(normalmente moças e jovens), encarregadas do recebimento dos currículos, da
triagem inicial e da armazenagem dos que parecem merecedores de convocação pela
agência. Quando isso ocorre, mobiliza-se o trabalho das selecionadoras (em
geral trabalhadoras de mais idade e/ou qualificação profissional e/ou
responsabilidade gerencial), que atuam na retaguarda (habitualmente invisível)
da agência, sendo responsáveis pelas entrevistas e/ou dinâmicas de grupo15.
Contudo, com muita freqüência, a atividade no interior da agência volta-se para
atender (ou capturar) a empresa cliente: contatos telefônicos para localização
de novos clientes, para encaminhamento de candidatos potencialmente recrutáveis
ou para (r)estabelecimento das relações comerciais com os tomadores de
serviços. Nesse trabalho, homens e mulheres são mobilizados; ambos tendem a ter
mais idade, responsabilidade na firma e/ou experiência/qualificação
profissional. Quanto mais bem-sucedida a firma, mais complexa sua retaguarda,
assim como mais variados seus clientes e mais diversificados e refinados os
mecanismos pelos quais ela acessa os demandantes de trabalho e os relaciona com
os ofertantes de vagas. Os sites de procura virtual dão uma boa medida de tais
complexidade e diversidade.
A descrição anterior permite vislumbrar uma terceira característica. Além de
ser um serviço movido à elevada escala de operação, que se territorializa e
produz uma gama de relações sociais de trabalho, pode-se arriscar outra
hipótese: esses conglomerados de intermediários, mais do que meros aglomerados,
devem ser entendidos como verdadeiros clusters voltados ao serviço de
intermediação. Algumas características inicialmente observadas parecem dar
sustentação a tal hipótese, a saber:
1) Tal como documentado anteriormente, são grandes a diversidade e a
intercomplementaridade de funções entre os tipos de agente. Longe de mera
justaposição, a interdependência entre os múltiplos tipos e funções de
empreendedores aponta para a existência de um tecido econômico complexo e
articulado.
2) Nesse sentido, foi possível observar a existência de cooperação entre as
firmas intermediadoras, que assumem formas capazes de articular tanto as
agências privadas entre si quanto estas com respeito às agências mantidas com
recurso público (governamentais ou sindicais). Tal cooperação é movida pelo
alvo comum de maximizar as colocações. Para as privadas, fazê-lo é condição
para manter a relação de serviço com o cliente contratante; para as públicas, é
condição para manter o fluxo do recurso do FAT, programa governamental que
subsidia sua atuação e aloca verbas acompanhando-lhes a produtividade, medida
por colocações efetuadas (isso ao menos era o que se passava no momento do
trabalho de campo).
3) Tomando-se o ponto de vista do comportamento do demandante, é também
possível reconhecer uma conduta que reforça a articulação entre os vários
elementos que compõem o tecido local. Assim, em sua circulação, a fim de
maximizar o tempo, ele multiplica os contatos com todos os intermediários
possíveis, especialmente aqueles tidos como eficientes, imagem que ajuda a
difundir. Por outro lado, em sua busca, reforça formas de cooperação com outros
que também estão à procura de trabalho. Desse modo, apóiam-se reciprocamente no
esforço por localizar novas agências, na montagem e partilha de roteiros para
procura, na sugestão de iniciativas ou estratégias que podem ser eficazes para
procurar trabalho.
Todavia, a articulação porventura existente nesses conglomerados de
intermediadores não deve obscurecer o fato de que sua operação os distingue em
pelo menos dois grupos principais: agências privadas e agências financiadas
pelo recurso público (sejam elas governamentais, sejam sindicais). Por
conseguinte, as situações de procura de trabalho variam quando observadas do
ponto de vista de um ou outro grupo16.
Agências governamentais e sindicais, particularmente as primeiras, são muito
bem-sucedidas em seu esforço por atrair e identificar aquele que necessita de
trabalho. Por isso, entre os que são financiados pelo recurso público (FAT), há
um notável ganho de qualidade com relação ao acesso e ao mapeamento dos
demandantes. O mesmo pode ser dito com respeito aos modos de acolhida e ao
tratamento conferido ao indivíduo em busca de trabalho. Ele se baseia em um
elevado investimento em infra-estrutura, alavancado por um sistema de
informação de excelente qualidade, que requer para sua operação um corpo de
funcionários capacitados (tanto no manejo do sistema quanto na condução da
entrevista para coleta de dados do demandante), além de espaço físico amplo e
de investimentos diversos no layout das agências. Tudo isso assegura a recepção
e o processamento das demandas dos desempregados em bases profissionais e
tecnicamente refinadas. Algumas agências do circuito sindical haviam chegado,
no momento do trabalho de campo, ao requinte de especializar espaços para
acolher demandantes de nível universitário, a fim de ajudá-los a ultrapassar a
vergonha associada não apenas à procura de emprego mas também às condições
socialmente humilhantes em que, geralmente, essa procura se faz - grandes
filas, formadas de madrugada, em busca de senhas.
Entretanto, de muito pouco adiantavam os avanços nessa direção se eles não se
complementavam com uma mobilização integrada das outras funções: a
(re)qualificação e sobretudo a captura das vagas, esteios da chance de
recolocação. Efetivamente, a rede de agências mantida com recurso público se
mostrava tão bem organizada para mapear o demandante quanto mal aparelhada para
localizar a vaga que poderia acolhê-lo.
Já os intermediários privados são movidos não tanto pelo intuito de fidelizar o
demandante, mas sim pelo de fidelizar a empresa usuária, que contrata seus
serviços para preencher vagas. Sua performance será tão mais bem-sucedida
quanto maior for o número de empresas clientes e quanto mais rápida e eficiente
for sua capacidade de encaminhar candidatos potencialmente recrutáveis ou de
prover, com trabalhadores terceirizados ou subcontratados, a empresa "tomadora
de seus serviços". A grande maioria desses intermediários, porém, notadamente
os de pequeno e médio portes, faz baixíssimos investimentos no que concerne à
captura de demandantes; estes lhes chegam por gravidade, dado o efeito inercial
do grande e recorrente desemprego.
À primeira vista, tal diferença de comportamento empresarial poderia levar a
uma relação de complementaridade entre agentes privados e públicos, já que um
deles captura demandantes com eficiência enquanto o outro captura vagas com
destreza. Na medida em que o critério para alocação do recurso público nas
diversas unidades, governamentais e sindicais, tinha (ao menos até então) a
eficácia na colocação como medida de sua eficiência - sendo o braço do sistema
mantido pelo recurso público débil em sua capacidade de captura de vagas -, ele
passa, para provê-las, a se valer das agências privadas, que, por sua vez, são
débeis na captura de demandantes.
O leitor mais apressado já poderia argüir se não estaríamos diante de um caso
potencialmente virtuoso, no qual poderia ser reconhecida uma cultura de
"eficiência coletiva", correntemente tida como virtuosa nas análises de
arranjos interfirmas. Entretanto, quando observamos o ponto de vista de cada um
dos atores, isso não parece ser exatamente o que ocorre. De um lado as agências
mantidas pelo FAT se ressentem de que os intermediários privados não lhes
prestam contas do destino dado a "seus candidatos" (isto é, aos inscritos que
lhes foram cedidos) depois que os alocam; sem isso eles não podem nutrir a
contabilidade do êxito nos registros mensais que encaminham ao MTE e que lhes
asseguram a continuidade do financiamento. Já as agências privadas se queixam
da ineficiência da triagem por que passam os candidatos nas agências
governamentais e sindicais, pondo em risco sua credibilidade em face da empresa
usuária à qual encaminham tais candidatos, em geral pouco aderidos ao perfil
por elas requerido, dado que haviam sido muito complacentemente selecionados
pelos funcionários das agências públicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo que até aqui se desenvolveu, quiçá tenha sido possível alinhar um rol de
elementos que permite retornar à figura do triângulo, que expressa a
especificidade do mercado de intermediação de oportunidades ocupacionais, com a
densidade que só a riqueza da análise empírica permite.
Abri este artigo argüindo serem múltiplas as formas institucionais que
convergiam para os três grandes pólos do triângulo que sintetiza uma nova
tendência na organização do mercado de trabalho, especialmente nas grandes
metrópoles; um mercado atravessado e de certo modo organizado pelo sistema de
intermediação que se sustenta em três pólos. Vejamos cada um deles:
1) Pólo dos agentes que demandam emprego. Vimos que, se eles são trabalhadores,
não necessariamente estão desempregados, ainda que majoritariamente o estejam.
2) Pólo das firmas que se utilizarão do trabalho a ser recrutado no mercado.
Vimos que não são necessariamente as firmas contratantes, dado o peso dos
locadores atuantes no mercado de intermediação.
3) Pólo dos agentes que disponibilizam vagas no mercado, tornando-as visíveis,
transparentes, para os demandantes, mas que também fazem o caminho de volta,
triando trabalhadores potenciais. Vimos que esses agentes - centro do interesse
neste texto - estão longe de ser simples recrutadores. Eles podem acumular um
portfólio complexo e variado de atividades, bem como se apresentar sob um sem-
número de formas, empresariais ou individuais, lícitas ou ilícitas, duradouras
ou aventureiras, que fazem desse mundo um mar de diversidade.
A importância de considerar essas novas formas presentes no mercado de trabalho
foi salientada na primeira seção deste artigo, recuperando recente literatura.
À luz da observação do que tem ocorrido sobretudo nos países capitalistas mais
avançados, essa literatura tem reiterado a estreita relação entre a
consolidação de um mercado de serviços de intermediação, notadamente do negócio
do trabalho intermediado e temporário, e o avanço no processo de fragilização
dos vínculos de emprego em direção a novas formas e estatutos institucionais
para o trabalho e sua contratualidade.
O que dizer, porém, de situações como a nossa, em que uma norma de emprego
duradouro e protegido jamais se universalizou? Como, nessas situações,
transcorre o processo de mercantilização da informação sobre oportunidades
ocupacionais? Como entender a emergência de tal processo em um contexto social
em que, pela ausência da proteção pública, é no espaço privado e por meio das
redes interpessoais, notadamente familiares e de vizinhança, que o acesso à
informação sobre chances de trabalho, para não dizer o acesso ao próprio
trabalho, se resolve?
Na segunda seção, busquei retomar a trajetória de construção institucional do
mercado de intermediação no Brasil a fim de mostrar os caminhos muito
particulares pelos quais tal atividade emerge. Inicialmente foi estimulada pela
demanda do Estado, significativamente do estado autoritário, cioso de quebrar a
espinha do trabalho protegido no único nicho em que ele teimosamente resistia,
no emprego público. Terceirizar atividades era o mecanismo para garantir a
expansão da máquina gestora com independência de compromissos com respeito aos
direitos dos trabalhadores que tivesse de empregar; movimento contrário ao que
se verificara nos países capitalistas mais avançados e mais flexíveis no uso do
trabalho, como nos Estados Unidos, onde foi pela demanda do setor privado que
os intermediadores de mão-de-obra se estabeleceram.
Contudo, em pouco menos de três décadas, a notável expansão do segmento denota
os novos rumos que presidiram, entre nós, a ampliação de seus negócios. Eles
foram alimentados, a partir dos anos 1990, por um duplo movimento. De um lado
as firmas em reestruturação externalizam atividades, inclusive algumas no campo
da gestão de recursos humanos. De outro, o enxugamento de postos faz saltar o
desemprego, tornando o mercado de trabalho um espaço crescentemente opaco para
os indivíduos em busca de emprego e fazendo, da tarefa de triar, um
investimento organizacional considerável, pois as poucas vagas abertas passavam
a atrair um sem-número de candidatos.
Na terceira seção, explorei, à luz dos dados para a Região Metropolitana de São
Paulo, como transcorre esse processo e como nele se constitui uma complexa rede
de intermediadores; diversos porque precisam fazer face a um mercado atraente
por sua escala, mas no qual o desempregado precisa ser capacitado, simbólica e
materialmente, para atuar como "um bom demandante" e "um competitivo
candidato". A pobreza e a desigualdade sociais que marcam o cenário brasileiro
deram régua e compasso para a proliferação de serviços e diversificação desse
novo negócio, que passa a ter as formas que recobrem a ampla assimetria social
brasileira, indo desde o precário serviço de preparo de currículo e o trabalho
do "homem-placa" até os sites virtuais e as modernas empresas privadas de
agenciamento e locação de mão-de-obra, algumas das quais já atuando em escala
latino-americana.
No bojo desse movimento, estabeleceu-se o novo segmento dos intermediadores, no
florescente tecido econômico dos serviços, notadamente nas grandes metrópoles;
um verdadeiro mercado no interior do mercado de trabalho, forjado não apenas na
esteira da reestruturação das firmas e da ampliação do desemprego mas também no
vácuo de um sistema público de emprego e de um regime de bem-estar que
assegurem proteção ao desempregado.
NOTAS
1. É notório que me inspiro no argumento de Weber (1961) sobre o encanto da
dinâmica dos mercados para a imaginação do sociólogo.
2. Espero demonstrar, adiante, que tal região constitui o principal mercado de
intermediação de oportunidades de trabalho no caso brasileiro.
3. Região que está na origem do trabalho temporário nos Estados Unidos e onde
se constituiu uma das empresas hoje emblemáticas do setor em escala
internacional, a Manpower.
4. Por isso mesmo, as etnografias em locais de seleção passaram a ser
estratégias de pesquisa de grande poder de fogo ao permitirem desvelar o modo
como a relação entre agentes públicos de recrutamento, por um lado, e
demandantes de trabalho, por outro, teciam suas relações na situação de
entrevista e triagem nas agências. Elas evidenciaram como preconceitos e
estereótipos tinham forte chance de se imiscuir, cerceando o acesso do
demandante de trabalho à via de saída do desemprego (ver Benarrosh, 2000;
2005).
5. Muito embora essa regulamentação varie grandemente entre países e se
caracterize por ser relativamente recente, difundindo-se nos anos 1990, como
veremos adiante.
6. Pode-se argüir que intermediários no provimento de trabalho existiram
anterior e episodicamente. Nesses contextos, eles foram tão mais centrais à
organização econômica quanto mais opacos e segmentados fossem os mercados, e
onde o provimento de trabalhadores se fizesse não pelo recrutamento de
voluntários, mas sim pela coerção, muitas vezes física. Tal foi o caso dos
antigos regimes escravistas ou das formas modernas de tráfico no chamado
"trabalho escravo". Não sem razão, a Declaração da Filadélfia, de 1944, que
constituiu a Organização Internacional do Trabalho - OIT, registra a recusa dos
signatários a considerarem o trabalho uma mercadoria, banindo as agências de
emprego da legalidade que então se instituía.
7. Basta lembrar o caso da Comunidade Européia (atual União Européia), por
exemplo, na qual a primeira diretiva sobre o contencioso ao redor das agências
privadas de trabalho temporário data de 1982 e, desde então, já vai quase um
quarto de século de negociações delicadas.
8. A ausência de um marco regulador é reconhecida como o fator que frustrou a
tentativa inicial da Manpower no sentido de penetrar no mercado de trabalho
brasileiro. A empresa chega ao Brasil em 1963, mas retira-se em 1969, só
retornando em 1978, quando o quadro normativo se completou, e ainda assim em
associação com outro grupo.
9. Conforme site do MTE: www.mte.gov.br/imo/default.asp.
10. Idem.
11. Para outros detalhes sobre os resultados desse estudo, ver Pamplona (2003)
e Guimarães (2004).
12.Tal georreferenciamento foi feito com base em dados do sistema Rais/Caged
para o ano de 2002, atualizados a partir de outras informações ou bancos de
dados tomados como mecanismos de controle, os mais importantes dos quais foram:
o recadastramento dos intermediadores promovido pelo governo federal, as listas
telefônicas, os anúncios classificados em jornais diários ou em panfletos
especializados regularmente distribuídos na cidade.
13. Muito importante, inclusive, para explicar por que justamente os
demandantes de menor idade acorrem em número relativamente maior às agências
governamentais. Nelas não apenas se obtém a carteira de trabalho mas também a
carteira de identidade, outro documento igualmente imprescindível, sem contar
que nelas ainda se oferecia, na época, inscrição em programas voltados para os
mais jovens.
14. Para uma descrição inicial bastante rica dessa figura e das relações
sociais no quadro das quais emerge, ver Vieira (2007).
15. Para descrições mais detidas sobre o funcionamento de pequenas agências
familiares ou de grandes organizações empresariais intermediadoras, ver,
respectivamente, Georges e Janequine (2007) e Pedro (2007).
16. Em outra oportunidade (Guimarães, 2004), busquei sistematizar
características que as diferenciariam. Para tal, combinei análise de dados
quantitativos secundários (do Sistema Integrado de Gestão das Ações de Emprego
- Sigae) e primários (de survey realizado em 2004 com demandantes em agências
de emprego) com dados qualitativos (oriundos de observações iniciais dos
cotidianos de um subgrupo de agências, retiradas dentre as amostradas no
survey).