Regras e contexto: as reformas da Constituição de 1988
INTRODUÇÃO
Por que mudam as instituições e por que, como e em que matérias ocorreram
mudanças na Constituição de 1988? Explicar mudanças institucionais tem sido
reconhecido como uma das questões empíricas e teóricas mais complexas. Ademais,
constituições são consideradas instituições (regras) desenhadas para serem
duradouras, estáveis e pouco suscetíveis a mudança. A Constituição brasileira
de 1988 e suas 62 emendas (56 emendas constitucionais e seis de revisão)
oferecem ao pesquisador a rara oportunidade de analisar por que e em que
direções ocorreram tantas mudanças nesses vinte anos de vigência, ou seja,
desde sua promulgação, a Constituição foi emendada a uma taxa média anual de
3,1 emendas.
Este artigo busca respostas para essa questão analisando-a por meio de um
partido analítico que conjuga as contribuições da literatura sobre mudança
institucional com hipóteses de uma teoria sobre emendas constitucionais. Do
ponto de vista empírico, os testes de hipóteses sobre por que ocorrem mudanças
institucionais e sobre emendas às constituições ainda são escassos e apresentam
conclusões divergentes. No caso das reformas à Constituição de 1988, ainda
existem poucos estudos de cientistas políticos1. Essa lacuna começa a ser
preenchida neste ano em virtude da comemoração dos 20 anos da promulgação da
Constituição, que tem atraído a atenção de pesquisadores de diversas áreas2.
Embora este artigo não compare as mudanças na Constituição brasileira com as de
outros países, apesar de a eles fazer referências, a análise de apenas um caso
- o do Brasil - não significa a defesa de sua peculiaridade. Pelo contrário, há
muito pouco de singular ou de marcadamente atípico no caso brasileiro. Nesse
sentido, busca-se contribuir para preencher a lacuna sobre como e por que
ocorreram mudanças na Constituição de 1988, na tentativa de trazer informações
e análises mais detalhadas que permitam futuras comparações. Dado esse
objetivo, não são analisadas questões como os conflitos políticos causados
pelas propostas de reformas, a importância ou não dos pontos de veto do sistema
político brasileiro, tampouco são mensuradas as conseqüências políticas e
econômicas das reformas constitucionais.
São testadas duas hipóteses, uma institucional e uma de causalidade. A hipótese
institucional assume que as regras da Constituição de 1988 refletem as
incertezas dos constituintes, naquele "momento crítico", sobre temas como
modelo econômico, políticas fiscais e políticas sociais. Essas incertezas
tiveram duas conseqüências: 1) os requisitos para emendas à Constituição são
relativamente fáceis de serem cumpridos; 2) com a ampliação da competência
privativa da União para legislar, os constituintes delegaram ao Legislativo e
ao Executivo federais a determinação das preferências sociais futuras e a
tarefa de tornarem efetivos os direitos sociais constitucionalizados em 1988. A
segunda hipótese remete à causalidade das mudanças, ou seja, a
constitucionalização de inúmeras matérias (tributárias, direitos sociais e
modelo econômico) foi seguida de mudanças nos contextos macroeconômico e
político. Essas mudanças foram iniciadas e/ou consolidadas nos mandatos dos
presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Das 56
emendas constitucionais já promulgadas, 52 ocorreram no decorrer dos mandatos
desses dois presidentes. Essas emendas redesenharam o sistema tributário e o
modelo econômico, e viabilizaram a transformação de alguns direitos sociais em
políticas e ações.
Para responder à questão da pesquisa e testar suas duas hipóteses, a taxa de
"emendamento" da Constituição de 1988 é tratada como variável dependente, sendo
variáveis explicativas o ano de promulgação das emendas; emendas por
presidente; iniciativa; número de palavras; constitucionalização; e contexto/
conjuntura política e econômica. Taxa de "emendamento" é um indicador proposto
por Lutz (1994) para investigar a probabilidade de a Constituição ser
totalmente ou muitas vezes refeita, ou a probabilidade de que mudanças estejam
ou tenham sido feitas por meios extraconstitucionais, como controle de
constitucionalidade (judicial review). A taxa de "emendamento" é encontrada
pela divisão do número de emendas pelo número de anos da Constituição. Na
impossibilidade de quantificar todas as mudanças constitucionais, o desafio
neste estudo é analítico, ou seja, identificar e explicar seus principais
fatores e causas.
Argumenta-se que a Constituição de 1988 resultou do momento político marcado
pelo objetivo de tornar crível e de legitimar o novo sistema democrático, visto
que ela mesma foi desenhada antes do fim da transição. Por essa razão, os
constituintes fizeram três opções que, posteriormente, facilitariam a aprovação
das reformas constitucionais: 1) tornar as regras de "emendamento"
relativamente fáceis de serem cumpridas; 2) aumentar a constitucionalização de
muitas matérias; 3) aumentar o número de matérias de competência legislativa
privativa da União. Essas decisões, aliadas à mudança no contexto
macroeconômico e político a partir dos anos 1990, tornaram a Constituição de
1988, além da mais emendada Constituição brasileira, uma das mais emendadas do
mundo.
No entanto, a onda reformista não afetou toda a Constituição e, não por acaso,
das 62 emendas constitucionais, apenas duas (duração do mandato dos ocupantes
de cargos do Executivo e reeleição para o Executivo) mudaram as regras iniciais
aplicáveis ao sistema político. Já o desenho das políticas públicas caminhou na
direção oposta à da estabilidade. Isso porque, dado o objetivo dos
constituintes em legitimar a redemocratização, negociações e barganhas
referentes às políticas públicas e que encaminhassem alternativas para questões
que afetavam as condições sociais da população, o desempenho macroeconômico e o
modelo econômico do país foram marcados por incertezas e dificuldades de
negociação naquele "momento crítico" (Souza, 1997; 2001; 2005). As emendas
promulgadas a partir dos anos 1990 buscaram, então, mudar a rota das políticas
macroeconômicas, do modelo econômico e do sistema tributário, assim como pôr em
prática direitos sociais constitucionalizados. Contudo, e diferentemente do que
ocorreu com o sistema político, das 27 emendas que promoveram mudanças nas
políticas públicas, sobretudo fiscal e social, mais da metade, ou seja,
dezesseis (59%) têm vigência datada, total ou parcialmente.
Este artigo está dividido em duas partes. A primeira mapeia as contribuições da
literatura teórica sobre o tema das mudanças institucionais em geral e das
constitucionais em particular. Na segunda, são analisadas as 62 emendas
promulgadas entre 1992 e dezembro de 2008 (56 emendas constitucionais e seis de
revisão) à luz das variáveis listadas anteriormente. Em seguida, são
apresentadas algumas conclusões.
POR QUE MUDAM AS INSTITUIÇÕES?
No campo da análise institucional, muitos afirmam a inexistência de uma teoria
geral capaz de criar hipóteses sobre por que mudam as instituições (Rothstein,
1998:153), embora isso não elimine a possibilidade de que mudanças sejam
incorporadas às teorias sobre desenho institucional (Goodin, 1998). Mudanças
institucionais ocorrem e têm sido exaustivamente analisadas, em geral por meio
de tipologias que buscam explicar suas causas, as quais são traduzidas em
modelos: evolução (biológica, social), contratação/recontratação e liderança3.
Goodin (ibidem:24), inspirado em estudo anterior de Jon Elster (1983),
classifica as mudanças como decorrentes de acidente (contingência), evolução
(mudanças aleatórias, mas limitadas por mecanismos que selecionam aquelas com
melhor capacidade de adaptação) e intenção (intervenção intencional de um
indivíduo ou de grupos organizados).
A despeito das controvérsias teóricas e empíricas sobre mudanças
institucionais, existe consenso na literatura neo-institucionalista sobre
alguns pontos. O primeiro é que mudanças institucionais raramente decorrem de
apenas um modelo, mas de sua combinação. O segundo é que mudanças
institucionais são processos incrementais realizados por intermédio de
interações estratégicas. O terceiro é que o presente é marcado pelo passado,
condicionando as ações no presente e as escolhas futuras.
POR QUE E COMO MUDAM AS CONSTITUIÇÕES?
Questões teóricas e operacionais sobre mudanças constitucionais não são
triviais e implicam considerações normativas (qual é o grau ideal de mudança) e
empíricas (que fatores produzem mudanças, qual é a capacidade do governo de
implementar os dispositivos constitucionais, entre outras). Essas questões
geram tensões de várias ordens, inclusive entre regras sobre mudanças versus
regras que preservem princípios democráticos universais.
A literatura que discute se as constituições devem ser flexíveis ou rígidas em
relação a mudanças chega a conclusões divergentes. De um lado estão os que
advogam a rigidez com argumentos extraídos da literatura sobre escolha pública
como forma de impedir arbitrariedades do Executivo e a perpetuação de chefes do
Executivo, assim como impedir alterações abruptas que ameacem os interesses dos
agentes econômicos etc. (Buchanan e Tullock, 1962; North e Weingast, 1989;
Riker, 1982). De outro lado estão os que argumentam a favor da flexibilidade
porque mudanças são inevitáveis e ocorrem por várias razões, entre elas, como
forma de adaptação a novas circunstâncias; por necessidade de corrigir a
limitada capacidade do conhecimento humano; para remediar conseqüências
inesperadas; para não perpetuar injustiças; para não engessar as demandas das
gerações futuras. Por isso, as constituições escritas determinam, em seu
próprio texto, qual é o método para que mudanças ocorram. Se as constituições
representam compromissos críveis assumidos nos momentos fundadores ou
refundadores de uma nação, esses compromissos não eliminam imperfeições e, nas
palavras de Ferejohn (1997), regras sobre mudanças são formas de encontrar
acomodações práticas, embora sempre imperfeitas, para os conflitos políticos4.
Apesar do relativo consenso sobre a importância de mecanismos que corrijam as
imperfeições das constituições, existem também, em todas elas, determinações
sobre compromissos que não podem ser alterados, ou seja, as cláusulas pétreas,
ou as matérias excluídas do conflito político pacífico5.
Constituições podem ser modificadas por quatro meios: emenda; mudanças
periódicas de todo o texto constitucional; interpretação judicial; e revisão
legislativa. As mudanças podem resultar de exclusiva decisão legislativa ou da
combinação desta com a manifestação dos eleitores, de decisões do Judiciário ou
da completa substituição da Constituição. A adoção de um desses quatro métodos
faz diferença? A base dessa pergunta é saber se as regras definidas pelos
constituintes para as revisões constitucionais fazem diferença na probabilidade
de a Constituição ser alterada.
O teste empírico desses diferentes métodos, realizado por Lutz (1994), indica
que cada método implica maior ou menor número de mudanças, assim como também
reflete a visão dos constituintes sobre o texto constitucional, ou seja, se a
Constituição é um documento definidor de direitos e princípios ou se é, além
disso, reguladora de matérias que seriam objeto de legislação ordinária. As
hipóteses testadas por Lutz (ibidem), que as aplicou tanto às constituições
estaduais dos Estados Unidos quanto às constituições de 32 países, podem ser
assim resumidas:
- Quanto mais fácil o método para a revisão, maior a taxa de
"emendamento".
- Quanto maior o número de palavras, maior o número de emendas.
- Quanto maior a taxa de "emendamento", 1) menor a probabilidade de
que a Constituição tenha o papel do que os juristas chamam de Lei
Maior; 2) menor a probabilidade de que exista distinção entre
matérias constitucionais e de legislação ordinária; 3) maior a
probabilidade de que o texto constitucional seja um tipo de código de
regras; 4) maior a probabilidade de que o processo formal de emenda
seja dominado pelo Legislativo.
A tese defendida por Lutz é a de que, quando os constituintes escolhem um
determinado tipo de regra para emendar a Constituição, e quando optam por um
determinado "modelo" de Constituição - se estabelece princípios, regras e
direitos ou se também regula um amplo leque de políticas públicas, como é o
caso da Constituição de 1988, caracterizando o que Lutz chamou de código de
regras -, tais escolhas podem predizer o que ocorrerá com a Constituição.
Se a literatura sobre mudança constitucional privilegia o papel das regras para
suas emendas (quórum, tipo de processo legislativo, poder de iniciativa, formas
de aprovação), tamanho da Constituição e matérias constitucionalizadas como as
variáveis mais importantes para predizer o grau das mudanças constitucionais,
outros fatores também parecem assumir relevância, notadamente em países de
democracia recente e que reescreveram suas constituições como parte do retorno
ao sistema democrático. É o caso, por exemplo, do Brasil e dos países do Leste
Europeu analisados por Roberts (no prelo). Uma dessas variáveis é o número de
partidos representados no Legislativo, assumindo-se que menos partidos com
maiores bancadas teriam mais facilidade para atingir as maiorias qualificadas
exigidas para o processo de "emendamento". Outra variável pouco considerada na
literatura é a mudança de contexto ou de conjuntura. Embora essas mudanças
sejam sempre mencionadas, não são analisadas empiricamente, com raras exceções.
A variável número de partidos e tamanho de suas bancadas não será aqui
analisada, dado que, como se sabe, o Brasil tem, desde a redemocratização,
grande número de partidos representados no Legislativo e nenhum detém maioria
qualificada. Isso não impediu que a Constituição de 1988 fosse objeto de mais
de três emendas por ano. A variável mudança de contexto/conjuntura, a qual se
aplica tanto ao Brasil quanto aos países do Leste Europeu, será analisada
adiante6.
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E SUA REFORMA
Desde a promulgação da Constituição de 1988, sua reforma esteve na agenda de
vários organismos: governos, setores privados nacional e internacional e
organismos multilaterais. A decisão dos constituintes de 1988 de tornar a
revisão constitucional relativamente fácil, de constitucionalizar inúmeras
matérias e as mudanças de contexto/conjuntura permitiram que a Constituição de
1988 fosse, até agora, a mais emendada Constituição brasileira, como já
mencionado, registrando a maior taxa de "emendamento" em comparação com as
anteriores (ver Tabela_1 abaixo).
Os constituintes de 1988 optaram por dois dos métodos listados por Lutz (1994)
como forma para reformar a Constituição: revisão legislativa e emendas7. O
primeiro, com prazo determinado, foi utilizado em 1994 com base no que
estabeleceu o art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -
ADCT. O rito previsto na Constituição era voto da maioria absoluta, em sessão
unicameral e turno único. Já o segundo método requer quórum qualificado (três
quintos em duas votações nominais nas duas Casas legislativas), por meio do
qual 56 mudanças foram aprovadas entre 1992 e 20088. Além disso, os
constituintes de 1988 mantiveram a tendência das constituições anteriores de
inserir no corpo da Constituição um amplo leque de políticas públicas, muitas
detalhadas no corpo constitucional, ampliando, por exemplo, a lista de
disposições do título constitucional sobre a ordem social, assim como
detalhando mais do que as constituições anteriores o título constitucional
sobre tributação. Eles também promoveram uma inovação: a inclusão de um
capítulo sobre direitos sociais, inexistente nas constituições anteriores9.
Contudo, nisso também a Constituição de 1988 nada tem de peculiar. Como informa
Hirschl (2004:125), muitas constituições e/ou cortes constitucionais reconhecem
hoje direitos sociais, considerados positivos ou de segunda geração.
Dessas opções dos constituintes resultou a expansão das funções de governo,
particularmente do governo federal. No entanto, como assinala Lijphart (1999) e
relembra Melo (2007), constituições detalhadas são encontradas nos modelos
consociativos de democracia e tendem a ser a opção em vários países federais.
Como também mostram vários autores, existe tendência crescente para que
questões que seriam objeto de legislação ordinária estejam hoje cada vez mais
constitucionalizadas. A diferença é importante porque, uma vez
constitucionalizadas, essas matérias passam a ser objeto de regras especiais e
abrem espaço para decisões de conflito pelo Judiciário nos países que adotam o
controle da constitucionalidade10. O que ressalta no caso brasileiro é a
constitucionalização dos detalhes das políticas, notadamente as que transformam
alguns direitos sociais em políticas, opção que continuou a guiar as emendas.
Estão também constitucionalizados os papéis que cabem aos diferentes níveis de
governo na formulação e na implementação de políticas públicas. Em termos
comparativos, esse é o único aspecto peculiar do modelo constitucional
brasileiro, dado que, como afirmam vários autores (Congleton, Kyriacou e
Bacaria, 2003:169, por exemplo), a definição de autoridade sobre políticas
públicas raramente é matéria constitucional.
Na verdade, a Constituição de 1988 nasceu sob a égide de sua própria revisão,
prevista para ser convocada em 1993 (art. 3º do ADCT). O efeito prático desse
mandamento constitucional é que mudanças poderiam ser feitas pela maioria
absoluta, em turno único e em sessões unicamerais. No entanto, e diferentemente
do que previram os constituintes de 1988, a Constituição não foi inteiramente
revista e apenas seis emendas de revisão foram aprovadas. Dessas emendas, duas
merecem destaque: 1) a nº 5, que reduziu o mandato dos ocupantes de cargos do
Executivo de cinco para quatro anos, medida depois novamente modificada pela
Emenda Constitucional - EC nº 16, de 1997, que manteve o mandato de quatro
anos, mas permitiu a reeleição; 2) a que instituiu o Fundo Social de Emergência
- FSE, autorizando o governo federal a reter parcela de recursos
constitucionalmente vinculados, aprofundando, assim, as restrições fiscais e
tributárias aprovadas no ano anterior pela EC nº 3.
Para testar as duas hipóteses deste artigo, a taxa de "emendamento",
complementada pelo índice de dificuldade para aprovar emendas, é a variável
dependente, enquanto as variáveis seguintes, conforme já mencionado, são
explicativas: ano da emenda; emendas por presidente; iniciativa; número de
palavras; constitucionalização; mudanças no contexto/conjuntura política e
macroeconômica.
O Quadro_1 e o Gráfico_1 a seguir apresentam um quadro geral de todas as
emendas constitucionais e de revisão, agrupando-as por grandes objetivos.
Os dados do Gráfico_1 apontam para a inegável prevalência do tema fiscal na
agenda das reformas. No entanto, e como mostram as informações do Quadro_1, se
a reforma fiscal foi dirigida, em grande parte e nos primeiros anos, para o
aumento da receita federal e para restringir despesa dos três níveis de
governo, posteriormente muitas emendas também ampliaram as receitas das esferas
subnacionais, notadamente dos municípios, compensando-os pelas vinculações de
suas receitas determinadas sobretudo nas emendas sobre educação e saúde. Nesse
último caso, as emendas que vincularam receitas das três esferas de governo
tiveram o papel de tornar efetivos os direitos sociais que foram, pela primeira
vez, constitucionalizados, daí porque foram rotuladas, no Quadro_1, de emendas
cujo objetivo foi transformar direitos em políticas. Cabe destacar também a
importância das emendas que promoveram reformulações no modelo econômico, todas
dirigidas para a quebra de monopólios estatais e para a abertura ao capital
privado, inclusive estrangeiro, de atividades econômicas em que sua
participação era constitucionalmente proibida ou monopólio do setor público.
Embora mudanças do modelo econômico tenham conseqüências sobre a política
fiscal, pela possível redução de despesas públicas, as mudanças realizadas no
Brasil atenderam mais ao objetivo de reduzir o tamanho do setor público na
economia e da abertura de alguns bens e serviços ao capital privado, nacional e
estrangeiro, uma das demandas do paradigma da globalização, do que à redução de
despesas propriamente dita.
Taxa de "Emendamento"
A Constituição brasileira de 1988 apresenta alta taxa de "emendamento" em face
das constituições anteriores e de outros países pesquisados por Lutz (1994),
Melo (2007) e Roberts (no prelo), atingindo um índice de 3,1, como já
mencionado. Em comparação com outros países, essa é uma taxa alta. A taxa média
dos países pesquisados por Lutz (1994) foi de 2,54; a das constituições dos
estados norte-americanos, de 1,23. A média não ponderada dos países do Leste
Europeu medida por Roberts foi de 0,39. Esse autor também analisou
separadamente os artigos acrescidos, alterados ou excluídos, mostrando que,
embora naqueles países a taxa de "emendamento" tenha sido baixa, muitas emendas
promoveram mudanças significativas na quantidade de artigos e em outros, como
no caso da Romênia, em que uma única emenda alterou quase a metade dos artigos
da Constituição.
No entanto, a taxa de "emendamento" diz pouco sobre o tamanho e o significado
das emendas. A taxa também contém limitações temporais, dado que é encontrada
pela divisão do número de emendas pelo número de anos da Constituição, mudando,
portanto, a cada ano. Indica, porém, que a Constituição original apresenta
poucos obstáculos à mudança. Por essas razões, a taxa de "emendamento" é
complementada pelo índice de dificuldade determinado pela Constituição para que
ela seja modificada. Por esse indicador, a Constituição de 1988 é relativamente
fácil de ser emendada, pelo pequeno número de votos requerido para sua
aprovação em comparação com outros países - três quintos -, mas são exigidas
votações nominais em dois turnos nas duas Casas legislativas. Aplicando o
método de Lutz (1994) para medir o grau de dificuldade do processo de
"emendamento", Melo (2007) calculou que a Constituição de 1988 apresenta um
índice de 1,25, menor do que a de 1969, com índice de 1,5511. A redução deveu-
se à diminuição do quórum requerido para a aprovação de emendas, de dois terços
pela Constituição de 1967-1969 para três quintos12. Entre os 32 países
pesquisados por Lutz (1994), a Constituição de 1988 estaria em quinto lugar em
índice de dificuldade, tendo a média de todos os países alcançado 2,5013. Os
mais baixos índices de dificuldade encontrados por Lutz (ibidem) foram os das
constituições da Nova Zelândia (0,50), Papua Nova Guiné (0,77), Áustria e
Portugal (ambas com 0,80). Os índices mais altos são os das constituições dos
Estados Unidos (5,10), Suíça (4,75) e Austrália (4,65)14. Em comparação com
outros países da América Latina, o índice de dificuldade da Constituição de
1988 é o terceiro mais baixo (Melo, 2007). Quanto aos países do Leste Europeu
analisados por Roberts (no prelo), a maioria exige quórum de dois terços,
embora alguns países tenham outras exigências como referendo.
As regras para "emendamento" da Constituição de 1988 confirmam a hipótese de
que, quanto mais fácil o método para a revisão constitucional, maior a taxa de
"emendamento". Confirmam também a conclusão de Ferejohn (1997) de que, quanto
menos complexo o processo legislativo, mais fácil será remediar o que os atores
políticos identificaram como imperfeições ou lacunas na Constituição original.
Ano das Emendas
Essa variável - ano de promulgação da emenda - mostra que o maior número de
reformas ocorreu nos dois primeiros anos dos mandatos do presidente Fernando
Henrique Cardoso e dos legisladores; no caso do mandato de 1999 a 2002, o maior
número foi registrado em 2000. Já no mandato do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, o maior número de emendas - cinco - ocorreu no fim de seu primeiro
mandato, em 2006, mas a reforma tributária aprovada em 2003 (EC nº 42),
primeiro ano de seu primeiro mandato, foi a que promoveu maior mudança nos
artigos relativos ao sistema tributário (ver Quadro_1), tendo alterado vinte
artigos.
Os números acima, mais bem visualizados no Gráfico_2, confirmam a hipótese de
que os ocupantes dos cargos eletivos, respaldados pelo apoio eleitoral recém-
conquistado, aproveitam os primeiros dois anos de seus mandatos para
implementar sua agenda reformista. Confirmam também a hipótese
institucionalista, isto é, a relativa facilidade do processo de "emendamento",
a relativamente alta constitucionalização de matérias que seriam objeto de
legislação ordinária e o poder de iniciativa do presidente facilitam mudanças
constitucionais. No entanto, essas reformas foram motivadas, em sua maior
parte, por mudanças no contexto/conjuntura que foram incorporadas pelas elites
políticas de diferentes partidos à agenda reformista.
O Gráfico_3 identifica a existência ou não de tendência temporal, mostrando, de
forma agregada, a porcentagem e o número de emendas desde a promulgação da
Constituição. As reformas constitucionais, iniciadas em 1992, tomaram ímpeto
entre os cinco e os quinze anos da Constituição, diminuindo consideravelmente
após esses anos. Pode-se dizer, portanto, que as emendas seguiram um padrão
temporal, com as reformas fortemente concentradas entre os cinco e os quinze
anos após a promulgação da Constituição, quando começaram a se consolidar as
condições políticas e econômicas para a adoção de uma nova agenda
macroeconômica e de política social. Conseqüentemente, nos primeiros cinco anos
da Constituição, ainda não havia condições políticas e econômicas críveis para
a proposição de emendas, e nos últimos cinco anos a agenda reformista parece
relativamente estabilizada15.
Emendas por Presidente em Exercício
A variável emendas por presidente em exercício busca investigar se existe ou
não diferença na agenda dos presidentes em relação às reformas constitucionais,
além de discutir as principais hipóteses sobre a causalidade das mudanças -
mudança de contexto/conjuntura (modelo de evolução) ou intervenção individual
do presidente (liderança).
O Gráfico_4 demonstra que o ciclo das reformas constitucionais já está
arrefecido, mas que os dois principais presidentes do período tiveram agendas
que implicavam emendas à Constituição, mesmo que muitas delas significassem
tão-somente a renovação de emendas aprovadas anteriormente com período de tempo
determinado, isto é, várias emendas que apenas confirmavam ou ampliavam regras
aplicáveis às políticas fiscal e social.
No que se refere à agenda dos presidentes, o Gráfico_5 mostra o número de
emendas dos dois últimos presidentes por principais temas, ou seja, temas com
impacto no redesenho do modelo econômico e nas políticas fiscal e social. Ambos
os presidentes priorizaram a agenda fiscal, embora sob o mandato do presidente
Fernando Henrique tenha havido maior número de emendas na área fiscal, o que
era esperado diante da prioridade de seu governo concedida à política de
estabilização financeira. As emendas desse período redesenharam os sistemas
tributário e fiscal e serviram de ponto de partida para as emendas posteriores,
as quais prorrogaram ou aprofundaram as medidas adotadas.
A reforma do modelo econômico, sobretudo a abertura ao capital privado e a
quebra de monopólios, também recebeu do governo Fernando Henrique alta
prioridade, embora sob o mandato do presidente Lula duas emendas sobre o tema
tenham sido aprovadas, inclusive a EC nº 40/2003, que autorizou a participação
do capital estrangeiro no sistema financeiro nacional.
Ainda que, segundo afirmam, o presidente Lula tenha sido reeleito com a
plataforma da política social para os segmentos mais pobres, as principais
reformas constitucionais nessa área ocorreram durante o mandato do presidente
Fernando Henrique Cardoso, embora a segunda reforma do ensino fundamental tenha
expandido o escopo e os recursos da primeira, e o principal programa social do
governo Lula - o Bolsa Família - seja financiado por recursos de um fundo
proposto pelo Senado e com resistências iniciais do Executivo, como relatado
adiante.
Se as regras constitucionais têm papel importante na produção das emendas, como
será visto a seguir, não explicam sozinhas por que as reformas seguiram uma
direção, e não outra. As emendas à Constituição de 1988 alteraram regras de
políticas (fiscal, econômica e social) que demonstravam maior capacidade de
adaptação a uma nova conjuntura doméstica e internacional decorrente do
processo de evolução social, política e econômica em curso. A reforma dessas
três políticas respondeu às demandas de uma conjuntura macroeconômica e
política diferente da que guiou as decisões dos constituintes. Alguns
analistas, todavia, tendem a afirmar a ocorrência de apenas uma causa. Esse é o
caso de análises sobre as mudanças no marco das políticas públicas ocorridas no
Brasil de autores como Melo (2002; 2005), Samuels e Mainwaring (2004) e Stepan
(2000), que as creditaram à capacidade de liderança do presidente Fernando
Henrique Cardoso (modelo de liderança ou intencional). De acordo com esses
autores, o presidente Fernando Henrique foi capaz de contornar as restrições
impostas pelo sistema político, entre elas o presidencialismo, o voto
proporcional em lista aberta e o sistema federativo, o qual muitos vêem como
pontos de veto das reformas e da governabilidade no Brasil. Alguns autores,
como Kugelmas (2001), creditam as reformas ao retorno da tradição brasileira de
presidentes fortes (modelo de recontratação), e Falleti (no prelo), analisando
as reformas na área da saúde, a burocratas reformistas que gradualmente se
infiltraram no aparelho governamental (modelo de evolução combinado com o de
liderança de um grupo organizado).
O argumento que credita as reformas à liderança e às características pessoais
do presidente Fernando Henrique parece hoje, no mínimo, incompleto. Isso
porque, se a liderança pessoal pode, algumas vezes, exercer força
extraordinária sobre processos políticos, mudanças constitucionais também
ocorreram no governo do presidente Lula, que, do ponto de vista da liderança,
pouco se assemelha ao de seu antecessor. Ademais, das quatorze emendas no
mandato do presidente Fernando Henrique que incidiram, por exemplo, sobre a
política fiscal, cinco foram prorrogações da DRU e da CPMF. Isso não quer dizer
que a agenda de reformas esteja concluída, em especial a tributária, mas sim
que as reformas patrocinadas no mandato do presidente Fernando Henrique parecem
ter dado conta da demanda do redesenho do modelo econômico e das políticas
fiscal e social. Mais importante, no entanto, e como se está buscando
demonstrar, a capacidade pessoal dos líderes na promoção de mudanças depende do
contexto institucional (regras) e da conjuntura.
Iniciativa
A Constituição de 1988 adotou um modelo híbrido em relação à capacidade de
iniciativa, dado que, pelo art. 60, ela pode ser emendada por proposta de um
terço dos membros da Câmara ou do Senado, pelo presidente da República e por
mais da metade das Assembléias Legislativas16.
Deputados e senadores juntos propuseram quase 60% das emendas (ver Tabela_2
abaixo). Embora o formato da Constituição brasileira seja o da supremacia do
Legislativo, ou seja, emendas só podem ser aprovadas pelo Legislativo, a
própria Constituição prevê a possibilidade de iniciativa de três atores
políticos, distinguindo-se das duas constituições anteriores, as quais
conferiram poder de iniciativa apenas a dois atores17. Maior número de atores
com capacidade de iniciativa é outra variável que contribui para aumentar a
probabilidade de emendas e, pelo modelo de Lutz (1994), para diminuir o índice
de dificuldade do processo. Entretanto, e como será visto adiante, os
legisladores federais, embora concentrem a maior parte das iniciativas do ponto
de vista formal, têm sido pautados pela agenda de reformas do Executivo, com
raras exceções.
A maior participação dos legisladores na proposição de emendas não quer dizer
que essas emendas não tiveram o apoio do Executivo nem que este não tenha
optado pela estratégia de ceder a Proposta de Emenda à Constituição - PEC a um
parlamentar de sua base aliada ou mesmo aproveitar propostas antigas sobre o
tema e que já tivessem sido iniciadas por parlamentares. Na verdade, muitas
PECs iniciadas por parlamentares foram aproveitadas pelo Executivo. Esse foi o
caso, por exemplo, de reformas importantes, como a segunda reforma do ensino
fundamental, aprovada em 2006 pela EC nº 53, que derivou de uma PEC de 1997 do
deputado Valdemar da Costa Neto (Partido Liberal - PL-SP), assim como a reforma
do sistema público de saúde (EC nº 29), aprovada em 2000, que teve origem em
uma PEC de 1995 de autoria do deputado Carlos Mosconi (Partido da Social
Democracia Brasileira - PSDB-MG).
Algumas emendas resultaram do patrocínio de parlamentares ligados a grupos de
interesse, mas foram posteriormente endossadas e parcialmente modificadas pelo
Executivo. Esse foi o caso, por exemplo, da EC nº 49/2006, que quebrou um
monopólio da União, derivada de PEC apresentada em 2003 pelo senador Jorge
Bornhausen (Partido da Frente Liberal - PFL-SC), a despeito de seu autor ser um
oposicionista. A reforma do Judiciário, aprovada em 2004 (EC nº 45), também
teve trajetória semelhante: foi proposta em 1992 pelo jurista e então deputado
Hélio Bicudo (Partido dos Trabalhadores - PT-SP). O mesmo ocorreu com propostas
de Sérgio Arouca (EC nº 11/1996) e Jandira Feghali (EC nº 34/2001), que
defendiam interesses dos profissionais dos órgãos de pesquisa e dos médicos.
O Executivo também negociou com parlamentares a proposição de emendas
importantes para sua agenda tributária e fiscal: uma das reformas da
previdência (EC nº 47/2005) decorreu de PEC de uma senadora do partido do
governo (Ideli Salvatti, PT-SC), assim como várias prorrogações da CPMF. Nesses
casos, no entanto, os autores das iniciativas integravam a base partidária de
apoio ao Executivo.
Contudo, algumas PECs ou algumas mudanças acrescentadas a PECs do Executivo
nasceram no próprio Congresso, o que não significa que elas não contaram com o
posterior apoio do Executivo nem que este não tenha participado de sua
negociação ou proposto mudanças no texto original. Embora isso tenha ocorrido
em apenas algumas emendas, sendo, portanto, exceções, mostra que em algumas
poucas questões o Legislativo foi capaz de aprovar, total ou parcialmente, a
própria agenda. Isso aconteceu com um artigo que limita a edição de MPs (ECs
nos 7 e 6/1995), acrescentado pelo Legislativo no decorrer dos debates de duas
PECs do Executivo que definiam novas regras para a exploração de recursos
minerais e para o transporte de cabotagem. Foi também o caso da EC nº 48/2005
(diretrizes para um plano nacional de cultura) e da EC nº 26/2000, que incluiu
a moradia como um dos direitos sociais. Embora o conteúdo dessas duas últimas
emendas não parecesse constar da agenda do Executivo, elas não foram por ele
obstaculizadas, provavelmente em virtude de seu conteúdo mais normativo do que
operacional.
Por fim, uma emenda merece maior atenção por causa de sua trajetória. Trata-se
da PEC que criou o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, de iniciativa do
senador Antônio Carlos Magalhães, então presidindo o Senado, da qual resultou a
EC nº 31/2000. Pelas notícias vinculadas pela imprensa, essa PEC sofreu, no
início, forte rejeição do Executivo e desencadeou tensões entre o presidente do
Senado e o presidente da República. Várias foram as razões para o embate entre
Antônio Carlos Magalhães, de um lado, e o presidente e o Ministério da Fazenda,
de outro. Em primeiro lugar, ao propor a PEC, o senador já estava em conflito
com o presidente Fernando Henrique, conflito que logo depois resultou no
rompimento pessoal dos dois e, posteriormente, do PSDB com o PFL. Em segundo
lugar, estava sendo discutida na Câmara a PEC do Executivo sobre a reforma
tributária de 2001 (EC nº 33). A PEC de Antônio Carlos Magalhães ia em direção
oposta: incluía nos recursos do fundo 21 fontes de receita - sete
remanejamentos de verbas, criação de três impostos, aumento nas alíquotas de
três contribuições (a da CPMF, por exemplo), uma contribuição voluntária e sete
novas fontes de renda. A primeira reação do presidente Fernando Henrique veio
por intermédio do porta-voz do Planalto, afirmando, conforme publicou o jornal
A Notícia, de 28/7/1999, que, no entender do presidente, "o lugar certo para se
discutir o conjunto de propostas de ACM é a Câmara dos Deputados, dentro da
emenda da reforma tributária".
Em outro momento, Fernando Henrique afirmou "que apenas um conjunto de
políticas sociais renovadas - aliada à aprovação da legislação complementar da
reforma da Previdência - poderá melhorar a transferência de recursos para as
classes sociais menos favorecidas" (Jornal do Brasil, 3/8/1999). Antônio Carlos
Magalhães contra-atacou afirmando que "propôs a criação de um fundo de combate
à pobreza porque a turma de FHC estava olhando só para a elite" (Veja, 5/4/
2000). ACM também ameaçou declarando que, se não houvesse colaboração do
presidente Fernando Henrique Cardoso para criar o fundo, o Congresso o criaria.
A intermediação do Ministério da Fazenda e a presença do ministro Pedro Malan
na audiência pública de discussão do fundo parecem ter sido cruciais não só
para acalmar os ânimos dos dois líderes como também para adequar as fontes de
recurso do fundo à política do governo18. No entanto, se a criação do fundo
pode ser classificada como uma mudança causada por uma liderança do Congresso
(modelo de liderança), sua aprovação só foi possível pelas regras do processo
legislativo - dado que a designação do relator obedece à proporção das
representações partidárias - e pela intermediação do Executivo. As regras do
processo legislativo tornaram possível que o relator da emenda fosse um senador
do PSDB, Lúcio Alcântara, o qual negociou com o Ministério da Fazenda e com
Antônio Carlos Magalhães a elaboração de um substitutivo, garantindo a
aprovação do fundo, mas mudando completamente suas receitas, tal como propunha
o Ministério da Fazenda.
Ainda no que se refere à iniciativa, a Tabela_3 mostra que, no primeiro mandato
do presidente Fernando Henrique e no segundo mandato do presidente Lula, as
iniciativas do Executivo representaram o dobro das iniciativas do Legislativo,
enquanto nos demais anos as iniciativas do Legislativo sempre superaram, de
longe, as do Executivo.
Por conteúdo das iniciativas, todas as importantes reformas realizadas no
primeiro mandato do presidente Fernando Henrique - previdência, administrativa,
tributária e fiscal -, assim como mudanças no modelo econômico, foram de
iniciativa do Executivo, com exceção das prorrogações da CPMF. O mesmo
aconteceu no governo Lula com as duas emendas que alteraram questões
tributárias aprovadas em seu mandato (ECs nº 44/2004 e nº 42/2003), mas não com
a reforma da previdência (EC nº 47/2005).
Número de Palavras
O número de palavras das constituições é usado como uma proxy do grau de
constitucionalização. Quando promulgada, a Constituição de 1988 continha, no
corpo constitucional, 41.529 palavras e 8.151 no capítulo do ADCT, totalizando
49.680. Com as emendas, passou para 49.202 palavras no corpo da Constituição e
para 15.780 no ADCT, totalizando 64.982 palavras, um acréscimo de 13% incidente
principalmente sobre o ADCT19. A Constituição de 1988 também supera em número
de palavras as duas constituições anteriores: a de 1967-1969 continha 38.905
palavras; a de 1946, 22.395.
Quanto ao número de artigos, a Constituição continha, em 1988, 245 artigos mais
70 no capítulo do ADCT. Com as emendas, o corpo constitucional foi pouco
expandido, passando a contar com 250 artigos, mas o mesmo não ocorreu com o
capítulo do ADCT, que passou a ter 95 artigos20. O maior crescimento de emendas
incluídas no ADCT mostra que as reformas tendem a ser mais temporárias do que
permanentes, notadamente as incidentes sobre a política fiscal.
Esses números mostram a tendência dos constituintes brasileiros em diferentes
momentos políticos e históricos de constitucionalizar grande número de
matérias. Esse é um forte indicador da visão dos constituintes de que as
constituições brasileiras não regeriam apenas princípios e direitos, mas teriam
o papel de um código de regras. A Constituição de 1988 radicalizou essa visão,
assim como as emendas sobre política fiscal e políticas sociais. Para que tal
visão fosse possível, seria necessária a adoção de regras relativamente fáceis
para reformar e/ou detalhar questões constitucionalizadas.
Constitucionalização
Ao lado do número de palavras, outra variável que permite predizer o que
ocorrerá com a Constituição é seu conteúdo, ou seja, a constitucionalização ou
não de matérias que seriam objeto de legislação ordinária, ou de maioria
simples, para sua aprovação21. Todavia, essa constitucionalização não é
incomum, dado que alguns países que reescreveram suas constituições nos anos
recentes apresentam tendência semelhante. A Constituição brasileira segue,
assim, a tendência mundial de constitucionalização de matérias que seriam
objeto de legislação infraconstitucional ou ordinária, como mencionado acima22.
No caso da Constituição de 1988, o aumento da constitucionalização manteve a
trajetória das constituições anteriores, iniciada com a de 1934, na qual, pela
primeira vez e por influência da Constituição de Weimar, foram incluídas
provisões sobre atividades econômicas e direitos individuais e coletivos,
inclusive sobre a família, direitos trabalhistas e servidores públicos. A
relativa novidade da Constituição de 1988 é que, ao lado de princípios, regras
e direitos - individuais, coletivos e sociais -, se ampliou a
constitucionalização das políticas públicas, notadamente por meio das emendas
que detalharam as políticas de educação e saúde. Aumentou também o número de
matérias de competência legislativa privativa da União de 21 itens na
Constituição de 1967-1969 para 29 na de 1988.
Mudanças de Contexto/Conjuntura
Embora as variáveis selecionadas tenham demonstrado capacidade explicativa
sobre como e por que ocorreram emendas à Constituição de 1988, o conteúdo das
emendas constitucionais (Quadro_1 e Gráfico_1) deixa claro que reformas no
sistema fiscal e no modelo econômico foram objeto das maiores mudanças, tanto
qualitativa quanto quantitativamente, apontando, portanto, para a importância
da variável mudanças de contexto/conjuntura. Isso significa que não apenas as
regras estabelecidas na Constituição de 1988 criaram os incentivos para as
mudanças, mas também que uma conjunção de fatores, notadamente a adaptação dos
mandamentos constitucionais a um novo contexto político e econômico, teve papel
decisivo nas reformas ocorridas a partir dos anos 1990.
A mudança de rota pode ser creditada às conjunturas macroeconômica e política
internacional e doméstica. Os fatores macroeconômicos criaram as condições para
a adoção de uma política mais próxima da agenda da globalização - abertura ao
capital privado, diminuição do papel e da intervenção do Estado na economia,
adaptação do país para sua inserção na economia mundial, entre outras. Aliadas
a esses fatores externos, as mudanças, tanto as iniciais quanto as
subseqüentes, foram mantidas e ampliadas dado o consenso entre as elites
políticas da importância da sustentabilidade da estabilização monetária
iniciada com o Plano Real. Posteriormente, e como conseqüência da estabilidade
monetária, as elites políticas encontraram as condições favoráveis para
transformar alguns direitos sociais constitucionalizados em políticas e ações.
Isso mostra que não apenas as regras, como afirma parte da literatura sobre
emendas constitucionais, mas também as mudanças de contexto/conjuntura explicam
as alterações constitucionais. Assim, os contextos político e macroeconômico
mostraram, no caso do Brasil, ter importância equivalente à das regras23.
Como argumentei em outros trabalhos (Souza, 1997; 2001; 2005), os constituintes
de 1988 concentraram seus esforços na criação de regras capazes de legitimar o
novo regime democrático, enquanto a agenda sobre questões de natureza
macroeconômica e fiscal refletia as incertezas daquele momento. No entanto,
essa agenda se tornou dominante nos governos a partir do início dos anos 1990
não só no Brasil, mas na maioria dos países. Assim, as emendas aprovadas a
partir de meados dos anos 1990 buscaram adaptar o país à mudança do contexto
internacional e doméstico reformando regras sobre questões que não estavam na
agenda nem dos constituintes nem da transição democrática, tais como a
globalização e o ajuste fiscal. A relativa facilidade do processo de
"emendamento" tornou possível a adaptação ao novo contexto/conjuntura.
Embora não seja objetivo deste artigo discutir as conseqüências políticas das
mudanças constitucionais, uma deve ser destacada: o fortalecimento da
capacidade de o governo federal formular políticas. Isso foi possível porque,
como argumentei em outros trabalhos (Souza, ibidem), a Constituição de 1988, em
seu formato original, adotou dois caminhos paradoxais: por um lado
descentralizou recursos e vinculou receitas da União a setores, políticas e
regiões (estima-se que cerca de 80% dos recursos federais são vinculados a
algum tipo de despesa, seja por determinação constitucional, seja decorrente de
lei); por outro, não só manteve mas também ampliou o rol de competência da
União, assim como a lista de matérias sobre a qual a União tem competência
privativa para legislar, o que significa competência exclusiva para determinar
preferências e definir o desenho das políticas públicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo foram analisadas as emendas constitucionais e de revisão
promulgadas entre 1992 e 2008 à luz de duas variáveis: 1) regras
constitucionais e conteúdo da Constituição, que indicam o grau de
previsibilidade de mudanças no texto original, e 2) causalidade das mudanças.
Fatores institucionais e não-institucionais explicam a alta ocorrência de
emendas constitucionais: regras de "emendamento" relativamente fáceis de serem
cumpridas; tamanho da Constituição; agenda dos constituintes concentrada na
restauração e na legitimação do sistema democrático; advento de uma nova
agenda, que requeria mudanças no modelo econômico e na política fiscal;
estabilidade monetária, que permitiu a transformação de direitos sociais em
políticas públicas, cedendo às esferas subnacionais, sobretudo às locais, sua
implementação.
Conclui-se que a Constituição de 1988 resultou do momento político marcado pelo
objetivo de tornar crível e de legitimar o novo sistema democrático, dado que
foi desenhada antes do fim da transição. Não por acaso, das 62 emendas, apenas
duas mudaram as regras iniciais aplicáveis ao sistema político. No entanto, o
desenho das políticas sociais e fiscais caminhou em direção oposta à da
estabilidade. Isso porque, em virtude do objetivo legitimador da Constituição,
negociações e barganhas referentes às políticas públicas e que encaminhassem
alternativas para questões que afetavam as condições sociais da população e o
desempenho macroeconômico do país foram marcadas por incertezas quanto a suas
possibilidades.
As emendas promulgadas a partir dos anos 1990 buscaram, então, desenhar novas
políticas macroeconômicas, implementar um modelo econômico mais próximo do
paradigma mundial vigente e pôr em prática mandamentos constitucionais
relativos às políticas sociais (descentralização, participação,
universalização) que não puderam ser negociados durante a transição.
Todavia, e diferentemente do que ocorreu com as regras do sistema democrático e
do sistema político, várias políticas públicas aprovadas por emenda
constitucional têm uma marca pouco estudada: elas são datadas, isto é, requerem
novas emendas constitucionais e o retorno ao Congresso para sua continuidade24.
Dessa forma, o Legislativo não delegou ao Executivo - tampouco o Executivo
propôs - a decisão sobre o tempo de duração de algumas políticas públicas,
fazendo-as retornar ao debate nacional e ao conflito político periodicamente, o
que requer, portanto, novas emendas à Constituição.
A alta taxa de "emendamento" da Constituição de 1988 em relação à de outros
países, no entanto, não confirma vários temores de parte da literatura. O
primeiro seria o de que mudanças constantes nas regras do jogo trazem
incertezas aos atores econômicos. Na verdade, as mudanças no modelo econômico
abriram mais oportunidades para os investidores, tanto nacionais quanto
estrangeiros. O segundo é o de que mudanças poderiam fortalecer o Executivo e
prorrogar indefinidamente o mandato de seus dirigentes, o que seria perigoso em
países de democracia recente, pela possibilidade de estimular abusos de poder e
limitar conquistas democráticas e direitos individuais e coletivos. No caso
brasileiro, a emenda da reeleição dos ocupantes de cargos no Executivo foi
limitada a mais um mandato e não ocasionou, até o momento, ausência de
rotatividade partidária nos Executivos dos três níveis. Ademais, as conquistas
democráticas e os direitos individuais, coletivos e sociais não foram
limitados, sendo que as emendas foram as que tornaram efetivos alguns direitos
sociais. O terceiro seria o de que a Constituição brasileira, por sua extensão
e conteúdo (constitucionalização de políticas e direitos), impediria a
governabilidade. Não só isso não ocorreu, como as regras constitucionais
permitiram a adaptação do país a uma nova agenda doméstica e internacional.
Dessa forma, pode-se concluir que, ao desenharem uma Constituição que refletia
a agenda política e econômica do país na fase da redemocratização, os
constituintes brasileiros "desataram as mãos" dos futuros parlamentares e do
Executivo, autorizando-os a fazer mudanças e adaptações no que não foi possível
negociar naquele "momento crítico".
NOTAS
1. Algumas exceções: Melo (2002; 2005; 2007), Gomes (2006) e Souza (1997;
2005), por exemplo. Até onde tenho conhecimento, Cláudio Couto e Rogério
Arantes são os únicos cientistas políticos que desenvolveram uma linha de
pesquisa sistemática sobre as mudanças da Constituição de 1988 aplicando um
método próprio de análise constitucional para explicar suas inúmeras reformas.
Ver Couto e Arantes (2003; 2006) e Arantes e Couto (2008).
2. Motivados pelos 20 anos da Constituição de 1988, vários cientistas políticos
e instituições de pesquisa analisaram ou estão analisando o processo
constituinte e/ou temas constitucionais relacionados ao sistema político e a
políticas específicas. Ver, por exemplo, Oliven, Ridenti e Brandão (2008),
Limongi (2008), Pilatti (2008) e Praça e Diniz (2008). O Centro de Estudos de
Cultura Contemporânea - Cedec desenvolve um projeto de pesquisa intitulado A
Constituição de 1988: Teoria e Prática.
3. Sobre o tema das mudanças sociais à luz da teoria da escolha racional e da
economia política, ver, entre outros, Knight e Sened (1995).
4. Como mostra Ferejohn (1997), a literatura da ciência política que trata de
constituições defende o argumento de que o remédio para essas tensões e dilemas
é tornar o processo de emendas relativamente fácil. No mesmo veio, a teoria de
desenho institucional advoga que as instituições devem conter mecanismos de
revisão para poder responder às transformações relevantes (Goodin, 1998:40) e
para preservar a própria estabilidade (Offe, 1998).
5. No caso da Constituição de 1988, as cláusulas pétreas listadas no parágrafo
4º do art. 60 são a forma federativa; o voto direto, secreto, universal e
periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Na
Constituição de 1967-1969, a única cláusula pétrea era a forma federativa do
Estado; na de 1946, a forma federativa e a República.
6. Ferejohn (1997) chama a atenção para a importância do contexto histórico nas
análises sobre desenho constitucional porque só assim será possível explicar
por que as constituições estão cada vez mais incorporando matérias de
legislação ordinária. Para uma análise dos contextos histórico, político,
social e econômico das sete constituições brasileiras, ver, entre outros, Souza
(1997; 2001; 2002).
7. Pelo modelo de Lutz (1994), constituições que requerem ratificações por
Estados ou referendo popular seriam as menos emendadas. Ferejohn (1997), no
entanto, reviu o sistema de pontuação de Lutz e contestou essa conclusão. Para
Ferejohn, apenas os procedimentos do processo legislativo - supermaiorias,
maioria em mais de uma sessão legislativa e bicameralismo - afetam a taxa de
"emendamento", e não as ratificações ou os referendos.
8. Em 1993, ocorreu o plebiscito, previsto na própria Constituição, para que os
eleitores decidissem sobre a forma de governo (república ou monarquia
constitucional) e o sistema de governo (parlamentarista ou presidencialista).
Como as mudanças não foram aprovadas, o plebiscito não gerou nenhuma emenda
constitucional.
9. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a
assistência aos desamparados (art. 6º).
10. A questão sobre a divisão "ótima" entre o que deve ou não ser
constitucionalizado é matéria de amplo debate, sobretudo entre juristas e
economistas da área fiscal. Sobre esse debate entre juristas norte-americanos,
ver Valente et alii (2001). Para uma análise sobre o crescimento da
constitucionalização de direitos - individuais, coletivos e sociais -, a
maioria por meio de reformas nas constituições, gerando sua judicialização, ver
Hirschl (2004). Para uma discussão sobre a chamada judicialização da política
ou do papel do Judiciário como ator político no Brasil pós-1988, ver Sadek
(2008), Taylor (2007) e Werneck Vianna (2002), entre outros.
11. A Constituição brasileira de 1969, e não a de 1988, foi incluída na lista
dos 32 países analisados por Lutz (1994).
12. A Constituição de 1946 determinava a regra da maioria absoluta em duas
sessões ordinárias e consecutivas nas duas Casas legislativas. Se a emenda
fosse aceita em uma das Casas por dois terços de seus membros, seria logo
submetida à outra e aprovada pelo mesmo trâmite, caso atingisse igual maioria.
13. Nos países do Leste Europeu, os testes de Roberts (no prelo) mostraram que
o índice de dificuldade foi significante no número de emendas, mas não em seu
tamanho.
14. A Constituição da Venezuela, que também obteve índice alto de dificuldade
pelo sistema de Lutz (4,75), foi completamente modificada, como mostrou Melo
(2007).
15. Essa interpretação diverge de Melo (2007:253) e de Arantes e Couto (2008:
60), que creditam a diminuição do número de emendas à maior dificuldade do
presidente Lula, em comparação com o presidente Fernando Henrique, de formar
maiorias qualificadas no Congresso.
16. Como se sabe, a prerrogativa das Assembléias Legislativas ainda não foi
exercida.
17. Na Constituição de 1967-1969, o presidente e os membros do Congresso tinham
poder de iniciativa. Na de 1946, o poder de iniciativa era restrito ao
Legislativo: Congresso e Assembléias Legislativas; estas podiam propor emendas
por um período de dois anos após a promulgação da Constituição.
18. O Ministério da Fazenda chegou a divulgar uma nota pública elogiando a
criação do fundo, mas expressando suas preocupações e sugerindo mudanças. Ver
http://_www.agenciabrasil.gov.br.
19. Usando outro método, Arantes e Couto (2008:59) estimaram um crescimento de
25% ou mais da Constituição.
20. Como nos ensinam os constitucionalistas, as disposições transitórias de uma
Constituição têm por objetivo regulamentar o período de transição entre normas
jurídicas. São, portanto, afeitas ao direito intertemporal. Há algumas
características do ADCT que o diferencia do resto da Constituição. Entre essas,
a mais marcante é a de que os dispositivos do ADCT são feitos para durar por
período determinado, sendo, portanto, efêmeros. Isso não significa, todavia,
que todo o conteúdo do ADCT seja transitório, mas sim que tende à efemeridade,
o que talvez signifique que a "boa" técnica constitucional não esteja sendo
seguida.
21. Sartori classificou a Constituição brasileira de 1988 como uma "novela do
tamanho de uma lista telefônica" (1994:199), eivada de "temas triviais,
promessas inalcançáveis e provisões quase suicidas" (ibidem). Para uma
discussão dessas e de outras sombrias previsões de Sartori, ver Melo (2007).
22. Para descrições e análises sobre as características constitucionais de
alguns países federais, ver Kincaid e Tarr (2005).
23. Roberts (no prelo) argumenta que os contextos político e social assumiram
maior importância nas reformas constitucionais dos países do Leste Europeu do
que as regras. A mudança de contexto foi por ele creditada à dinâmica da
transição política e a pressões internacionais.
24. Em seus diversos artigos, Cláudio Couto e Rogério Arantes propõem um
argumento diverso, ou seja, cada governante se vê diante da necessidade de
emendar a Constituição de 1988 para implementar suas plataformas de governo ou
suas políticas públicas (policies).