Governança eleitoral: o modelo brasileiro de justiça eleitoral
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, parte-se do pressuposto de que as regras da competição
político-partidária no Brasil foram alteradas significativamente por decisões
judiciais. Defende-se que uma interpretação mais criativa sobre as regras do
jogo competitivo resulta em uma judicialização da competição política no país.
O pressuposto decorre de algumas decisões do Tribunal Superior Eleitoral - TSE
e do Supremo Tribunal Federal - STF que alteraram as práticas vigentes no jogo
competitivo. As regras pelas quais se jogava foram alteradas por interpretações
judiciais, e não pela via usual, no Parlamento. Exemplos dessas decisões são a
obrigatoriedade das coligações eleitorais, a redução do número de vereadores e
a fidelidade partidária.
O objetivo aqui não é detalhar a atuação do Judiciário nesses casos nem avaliar
os impactos políticos dessas decisões judiciais. Tratamos do modelo de
governança eleitoral adotado pelo Brasil, que, segundo é defendido, oferece um
ambiente institucional favorável para a judicialização nos moldes em que tem
ocorrido.
GOVERNANÇA ELEITORAL: DEFININDO O CONCEITO
Os estudos sobre governança eleitoral são recentes na literatura política
comparada. A electoral governance ganhou destaque a partir da preocupação com a
credibilidade dos resultados eleitorais das democracias nascidas da terceira
onda democrática (Huntington, 1994). A preocupação básica nesses novos regimes
era garantir que os resultados das urnas fossem justos, transparentes e
sobretudo aceitos pelos competidores políticos.
Na literatura norte-americana, após a decisão da Corte Suprema que definiu o
resultado das eleições presidenciais de 20001, a forma de administrá-las
tornou-se um tema em destaque. Mesmo em se tratando de uma democracia
consolidada, a credibilidade dos resultados das eleições foi colocada sob
suspeita. Para alguns autores (Mozaffar e Schedler, 2002; Pastor, 2004), grande
parte dos questionamentos decorria do modelo de governança eleitoral adotado no
país.
Essa recente literatura argumenta que a governança eleitoral - entendida como o
conjunto de regras e instituições que organizam a competição político-eleitoral
- foi uma variável negligenciada nos estudos sobre transição e consolidação
democrática em função de um predomínio do foco nas questões normativas, como os
sistemas de governo e as fórmulas eleitorais adotados (Elklit e Reynolds, 2000;
Mozaffar e Schedler, 2002).
Para Pastor (1999), a literatura política que se dedica aos estudos dos
sistemas eleitorais freqüentemente é conduzida pelos problemas dos "4Ps":
politics, parties, polling and the proportional (competição política, partidos,
voto e proporcionalidade). O autor ainda lembra que, mesmo em estudos
comparados mais amplos sobre o perfil dos regimes democráticos, a questão da
governança eleitoral foi negligenciada, como no caso de Lijphart (2003).
Alguns dos poucos pesquisadores que estudaram o tema tiveram suas pesquisas
reunidas em um número da International Political Science Review dedicado
exclusivamente ao assunto. Em sua introdução, Mozaffar e Schedler (2002:7)
definem o conceito de governança eleitoral desta maneira:
Governança eleitoral é um abrangente número de atividades que cria e
mantém o vasto arcabouço institucional no qual se realizam o voto e a
competição eleitoral. Opera em três diferentes níveis: 1) formulação
das regras [rule making], aplicação das regras [rule application] e
adjudicação das regras [rule adjudication] (tradução do autor).
O rule making seria a escolha e a definição das regras básicas do jogo
eleitoral. Nesse nível da governança eleitoral é que são determinados, por
exemplo, a fórmula eleitoral, os distritos eleitorais, a magnitude das
eleições, as datas em que serão realizadas e outras questões legais que
permitam aos concorrentes a segurança de como o jogo será jogado. Aqui também
são definidas algumas regras que pouca atenção recebem da literatura política,
como as regras da (in)elegibilidade e da organização dos órgãos responsáveis
pela administração das eleições.
No rule application, temos a implementação e o gerenciamento do jogo eleitoral;
por exemplo, o registro dos partidos, candidatos e eleitores, a distribuição
das urnas, os procedimentos a serem adotados no dia das eleições e outras
regras que garantam a transparência, a eficiência e a neutralidade na
administração do jogo. Podemos dizer que é o nível da administração do jogo
eleitoral.
Por fim, pelo rule adjudication temos a administração dos possíveis litígios
entre os competidores, o contencioso eleitoral. Ao dirimir e administrar as
controvérsias na disputa eleitoral, nesse nível se determinam os procedimentos,
executa-se a contagem dos votos e publicam-se os resultados finais da disputa
eleitoral.
Esses três diferentes níveis da governança eleitoral geralmente não são
atribuições de um órgão apenas. Por exemplo, o rule making está definido quase
sempre por normas constitucionais e pelo Código Eleitoral. Boa parte da
governança eleitoral, porém, fica sob a responsabilidade de um órgão específico
que trata, essencialmente, do rule application e do rule adjudication. Esse
órgão é normalmente tratado como Electoral Management Board - EMB, definido
aqui simplesmente como Organismo Eleitoral - OE. O esforço dessa recente
literatura é criar critérios para avaliar o desenho dos OEs e seu impacto sobre
o jogo eleitoral, incorporando-o como uma variável nas análises sobre a
consolidação dos regimes democráticos.
Evidentemente que a governança eleitoral não garante boas eleições,
isso por causa do complexo conjunto de variáveis sociais, econômicas
e políticas que pode afetar o processo, a integridade e os resultados
de eleições democráticas. Porém, boas eleições são impossíveis sem
uma efetiva governança eleitoral (ibidem:6, tradução do autor).
O argumento dos autores é que, em democracias recentes, a depender do desenho e
do perfil dos OEs, pode-se garantir maior ou menor estabilidade do regime. Uma
boa governança eleitoral conduzida por um OE adequado pode garantir a
credibilidade dos resultados eleitorais, estabilizando e pacificando as
disputas pelo poder político (Pastor, 1999; Schedler, 2002; Hartlyn, McCoy e
Mustillo, 2008).
Boa parte desses estudos teve a América Latina, o Leste Europeu e a África como
foco, muito em razão do histórico de rupturas com as regras eleitorais e pela
recente retomada de eleições em muitos desses países. Outros ganharam especial
destaque exatamente por provarem a tese de que uma governança eleitoral
adequada pode garantir a estabilidade democrática. É o caso de México e Costa
Rica. Os dois países reformaram seus modelos de governança eleitoral visando a
OEs mais independentes e transparentes, o que gerou, conseqüentemente,
credibilidade aos resultados eleitorais (Lehoucq, 2002).
Observadores e instituições internacionais também têm demonstrado interesse
sobre governança eleitoral. Um estudo de López-Pintor (2000), financiado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, levantou evidências
empíricas em 148 países sobre o perfil de seus OEs. O trabalho detalha o
funcionamento desses organismos em alguns países e sugere alguns elementos
universais para o bom funcionamento dos OEs.
Outro estudo sobre o perfil dos OEs foi realizado pelo International Institute
for Democracy and Electoral Assistance - Idea, uma organização
intergovernamental que atua desde 1995 como observadora e centro de estudos de
eleições realizadas por todo o mundo, sobretudo daquelas surgidas após o fim da
Guerra Fria, com o desmembramento da União Soviética2.
O estudo de López-Pintor (2000) e os estudos do Idea visam definir critérios
para a avaliação do perfil institucional dos OEs pelo mundo. Na próxima seção,
são trabalhados os critérios desenvolvidos pelo Idea (2007) para traçarmos os
diferentes modelos de OEs e, em seguida, compará-los com as peculiaridades do
modelo brasileiro.
MODELOS COMPARADOS DE GOVERNANÇA ELEITORAL
O estudo publicado pelo Idea (2007) traz uma análise do perfil dos OEs de 214
países; os dados coletados são referentes ao ano de 2006. Assim, é possível que
alguns organismos tenham sido reformados, sofrendo alterações em seu perfil
desde que o estudo foi publicado. É, porém, uma rica base de dados e, mais
importante, uma rara base de dados sobre um tema ainda pouco explorado pela
literatura política.
O critério básico para que o Idea incluísse um país em sua base de dados foi
simplesmente a existência do organismo eleitoral; não há qualquer outro filtro
para a inclusão do país na amostra. Isso incluiu desde países pequenos, como
São Cristóvão e Santa Lúcia, até países onde notoriamente não há democracia,
mesmo considerando conceitos minimalistas para defini-la, como Iraque, Cuba e
Laos. Por essas razões, utilizamos um critério um pouco mais rigoroso para
definir uma nova amostra: consideramos apenas os países independentes e
democráticos e, para isso, utilizamos a classificação do Polity IV para os
regimes políticos em vigência no mundo.
O primeiro passo foi selecionar, da base de dados do Idea, apenas os países
classificados pelo Polity IV; dos 214 países apresentados, restaram 162, isso
porque, como dissemos, o estudo incluiu Estados não-independentes e com
qualquer dimensão populacional.
Feita essa primeira filtragem, selecionamos apenas os países que foram
considerados democráticos pelo Polity IV no ano de 2006, mesmo ano em que o
Idea coletou os dados para a classificação dos OEs. Dessa maneira, nossa
amostra caiu para 93 países3. Utilizando os critérios do Polity IV, portanto,
definimos uma amostra de OEs apenas de países democráticos nos quais a
competição político-partidária é, de fato, relevante para a definição do
governo em exercício.
O Idea e, antes dele, López-Pintor (2000) definiram alguns critérios comuns
para que pudessem levar adiante um estudo comparado de OEs. Segundo eles, uma
função comum a todos os OEs é a prerrogativa de administrar, operacionalizar,
gerenciar e tomar decisões administrativas e logísticas para a realização das
eleições.
Nesse esforço de produzir critérios para o estudo comparado, podemos resumir em
dois os principais critérios utilizados para a classificação dos OEs: 1)
posição institucional: governamental, independente, duplamente independente ou
mista; 2) vínculo institucional: carreira, partidário, especializado ou
combinado.
A posição institucional de um OE diz respeito a seu estatuto jurídico, seu
posicionamento em relação às outras instituições do Estado. Um OE será
governamental quando estiver vinculado ao Poder Executivo, geralmente ao
Ministério do Interior ou da Justiça, como é, por exemplo, na Alemanha, na
Áustria, nos Estados Unidos, na Itália, no Reino Unido, na Suécia e na Suíça.
Será independente quando não vinculado ao Executivo; por exemplo, Austrália,
Canadá, Israel e quase todos os países latino-americanos analisados.
Há também aqueles duplamente independentes, ou seja, há dois organismos
eleitorais com prerrogativas próprias e específicas, mas ambos são
independentes. A regra comum é que um OE seja o responsável por administrar e
executar o processo eleitoral (rule application), e o outro tenha a
prerrogativa de decidir sobre o contencioso eleitoral (rule adjudication).
Dessa forma, os diferentes níveis da governança eleitoral seriam realizados por
diferentes organismos independentes. Esse é caso dos OEs de Peru, Jamaica,
Romênia e Moçambique.
Por fim, será misto quando o modelo de governança eleitoral incluir dois
organismos com funções distintas, sendo um deles governamental (com a
prerrogativa de monitorar, supervisionar e tomar decisões sobre o processo
eleitoral) e o outro independente (basicamente, atua na implementação do
processo eleitoral, sendo o responsável por sua logística). Adotam esse modelo
Espanha, França, Holanda, Japão, Portugal e Argentina.
O Quadro_2 a seguir resume as características dos diferentes modelos de
governança eleitoral de acordo com a posição institucional dos organismos
eleitorais.
O vínculo institucional diz respeito, basicamente, às origens e aos requisitos
básicos adotados para ser membro de um OE. Será de carreira quando todos os
seus membros forem, necessariamente, recrutados dentre os servidores vinculados
ao Executivo, ou quando seus membros forem selecionados dentre aqueles que
ocupam uma posição de chefia, ou cargo comissionado, no gabinete do Executivo;
por exemplo, um ministro da Justiça. Quando o vínculo exigido para o
recrutamento dos membros de um OE não estiver na esfera de um órgão do
Executivo, seu perfil poderá ser partidário, especializado ou combinado.
Quando os membros do OE mantiverem vínculos com os partidos e somente forem
indicados pela existência desse vínculo, será partidário. Os OEs com esse
perfil funcionam sob a lógica de que a competição político-partidária é mais
bem gerida pelo consenso produzido entre os principais atores envolvidos no
jogo. Esse é caso dos modelos adotados na Colômbia, na Eslováquia e em Israel.
Será especializado quando seus membros forem escolhidos por critérios não-
partidários, ou melhor, por critérios que vedam ao membro do OE qualquer
vinculação partidária. Por esse perfil, a escolha deve ser feita pelos
conhecimentos técnicos em matérias eleitorais, ou pelas qualificações
profissionais do indicado. Com esse perfil, pretende-se afastar os principais
atores envolvidos no jogo competitivo exatamente por estarem interessados em
resultados favoráveis a si e desfavoráveis a seus opositores. Argumenta-se que
a especialização dos membros do OE reforça o princípio da neutralidade do
processo eleitoral.
Pode-se exigir que esses membros especializados possuam vínculos em
organizações da sociedade civil ou em instituições especificadas pela lei, como
na administração pública, no Judiciário ou nas universidades. O princípio
condutor é não possuir vínculos partidários. Esse é o modelo majoritário em
países que adotam OEs independentes, como Austrália, Canadá, Índia e Coréia do
Sul.
Outra regra possível de vínculo institucional dos membros é o método combinado,
quando o OE é composto tanto de membros indicados pelos partidos quanto de
membros não-partidários. Seguem esse perfil os OEs de Bulgária, Equador, Rússia
e Uruguai.
No Quadro_3 a seguir, os modelos de governança eleitoral de acordo com o
vínculo institucional dos membros dos organismos eleitorais:
Considerando os 93 países selecionados, temos exatos 112 OEs, isso porque temos
de considerar a existência de mais de um OE em alguns desses países. No modelo
misto e no duplamente independente, por exemplo, temos no mínimo dois OEs em
atividade. Assim, combinando os dados de acordo com a posição institucional e a
origem dos membros dos OEs segundo os dados do Idea, temos o seguinte:
Entre os modelos de governança eleitoral selecionados do estudo do Idea, os OEs
que adotam o modelo independente-especializado são maioria, 24,1%. Em segundo
lugar, com 18,7%, vêm os de modelo independente-combinado. Já os modelos que
são governamental-carreira representam 16% dos OEs selecionados.
Como os modelos mistos são a combinação de um OE independente com outro,
governamental, era de se esperar que metade deles fosse misto-carreira. Já em
relação à parte independente do modelo, prevaleceu o perfil misto-
especializado.
Outra constatação dos dados comparados é que poucos OEs adotam a vinculação
partidária para a composição de seus membros. Apenas 7,1% dos OEs identificados
pelo estudo (5,3% independente-partidário e 1,8% misto-partidário) seguem esse
modelo.
Recentemente, vários países promoveram reformas para garantir uma governança
eleitoral baseada em OEs de modelo independente-especializado; muitos foram
estimulados por organizações intergovernamentais, como o PNUD e o Idea. Segundo
Lehoucq (2002), essa é uma tendência que rompe com os modelos de governança
tradicionais, nos quais a gerência das eleições era prerrogativa do Executivo,
permitindo uma forte influência dos partidos políticos. Para o autor, somente
quando os partidos delegaram a governança eleitoral para um organismo autônomo
é que os conflitos eleitorais deixaram de promover instabilidades políticas -
fato claramente constatado na América Latina.
Na América Latina, o único país que adota o modelo misto é a Argentina. Todos
os outros países possuem OEs independentes e nenhum adota o modelo
governamental. Além disso, a maioria desses OEs possuem membros com perfil
especializado. As exceções são Colômbia e Honduras, que adotam o perfil
partidário, e Uruguai, Equador e El Salvador, que adotam o perfil combinado.
Podemos dizer, assim, que na América Latina predominam OEs de modelo
independente-especializado. Afinal, como afirmou Sadek (1995:14), "a
experiência latino-americana tem demonstrado que esses organismos só conseguem
garantir um mínimo de confiabilidade aos resultados eleitorais quando possuem
autonomia frente aos conflitos partidários".
A classificação dos OEs pelos critérios da posição institucional e do vínculo
institucional de seus membros nos revelam um perfil importante, mas
insuficiente, para a compreensão que pretendemos dos modelos de governança
eleitoral. Por exemplo, o perfil majoritário encontrado foi o independente-
especializado, o que nos indica que o OE não possui vínculo com o Executivo e
que seus membros não podem manter vínculos partidários. No entanto, pouco
revela sobre quem são esses membros e por quais vias eles chegaram ao organismo
eleitoral.
Para tanto, acreditamos que podemos ir adiante quanto ao perfil dos modelos de
governança e de seus OEs conhecendo alguns métodos utilizados para a indicação
e a seleção de seus membros. Seguindo o modelo governamental-carreira, é
bastante provável que os métodos de indicação e seleção sejam prerrogativa
exclusiva do ministro ao qual o OE está vinculado.
Quando o modelo adotado for independente-partidário, sabemos que seus membros
representam seus partidos no OE, mas isso não significa que conhecemos o método
de indicação e seleção desses membros. A indicação e a seleção podem ser feitas
pela direção do partido ou apenas entre aqueles que receberam um mandato
parlamentar.
Sabemos menos ainda quando o modelo adotado for independente-especializado.
Quem define o que é ser um especialista capaz de exercer a governança
eleitoral? Quem o seleciona? Há uma pluralidade de regras em vigência nos
diferentes países? Sabemos apenas que o selecionado não pode manter vínculos
partidários.
Para desenvolver uma classificação mais detalhada, tornou-se imperativo um
aprofundamento nas regras específicas de cada país. Dessa maneira, decidimos
comparar os diferentes métodos de indicação e seleção dos membros de um OE
apenas entre os países latino-americanos presentes no estudo. Para esse fim,
consideramos os seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,
Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela4 (Quadro_4).
Em primeiro lugar, devemos separar esses países pelos critérios da posição
institucional dos OEs e do vínculo institucional de seus membros; afinal, por
esse critério, já é possível revelar algumas pistas sobre os distintos métodos
de indicação e seleção.
Adotando o modelo independente-partidário, os membros dos OEs na Colômbia e em
Honduras são indicados e eleitos sob a influência dos partidos políticos.
Geralmente, considera-se o tamanho das bancadas de cada partido no Parlamento
para atribuir pesos distintos na votação que elege o membro do OE.
No modelo independente-combinado, a indicação e a seleção dos membros do OE
seguem duas lógicas distintas. A primeira considera interesses e vínculos
partidários, a segunda objetiva selecionar especialistas capazes de garantir a
neutralidade para a atuação do OE.
Na Argentina, único país na América Latina que adota o modelo misto-
especializado, uma parte da governança eleitoral é realizada por um OE
vinculado ao Ministério do Interior e outra parte é prerrogativa de um órgão
independente. Pela parte governamental funciona a Direção Nacional Eleitoral -
DNE; suas funções restringem-se, basicamente, à administração e execução do
processo eleitoral (rule application). Seu diretor geral é selecionado pelo
ministro do Interior.
Pelo lado independente, funciona a Câmara Nacional Eleitoral - CNE, tratando do
contencioso eleitoral (rule adjudication). Como suas prerrogativas envolvem
questões jurídicas, seus membros são eleitos com base em seus conhecimentos
jurídicos especializados. As regras para indicação e seleção de seus membros
são bastante semelhantes às que regem a composição da Corte Suprema de Justiça.
Para cada vaga o Conselho de Magistratura oferece ao presidente da República
uma lista com seis indicados; este seleciona um nome e o submete ao Senado.
Sendo aprovado, assume uma das três vagas de titular da CNE por cinco anos.
Dos dezoito países latino-americanos analisados aqui, doze seguem uma mesma
natureza e perfil, independente-especializado. Há, porém, diferentes métodos
para indicação e seleção desses especialistas. Avançando sobre esses diferentes
métodos, pretendemos demonstrar como o modelo de governança eleitoral pode ser
fortemente impactado pelas diferentes regras de composição de seu OE.
Três países seguem um modelo de dupla independência: Chile, Peru e México.
Nesses, a governança eleitoral é realizada por dois OEs independentes, um
geralmente com funções administrativas e executivas (rule application) e outro,
também independente, com a prerrogativa de julgar o contencioso eleitoral (rule
adjudication).
No México, o Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário julga os contenciosos
eleitorais de todo o país. Seus sete membros são indicados pela Suprema Corte e
selecionados pelo Senado Federal. A administração e a execução dos
procedimentos eleitorais são de responsabilidade do Instituto Federal Eleitoral
- IFE. Esse OE é composto de nove membros, sendo todos eleitos pela Câmara dos
Deputados, não podendo manter vínculos partidários; membros com essa ligação
possuem assentos no OE, mas não têm direito a voto; suas funções são
consultivas.
Já no Peru, o Juizado Nacional de Eleições - JNE trata do contencioso eleitoral
e serve de consultor para possíveis reformas na legislação eleitoral, tendo,
inclusive, iniciativa legislativa sobre o tema. Outro órgão, o Escritório
Nacional de Processo Eleitoral - ENPE, organiza e executa todo o processo
eleitoral.
O JNE é composto de cinco membros eleitos por cinco instituições distintas. São
elas a Corte Suprema, o Ministério Público, a entidade de representação dos
advogados do país e as faculdades de direito privadas e públicas. Cada uma
dessas instituições deve eleger um membro para ocupar uma vaga no JNE para um
mandato de quatro anos.
Regra que merece destaque no Peru é a que determina que esses membros devem ser
eleitos apenas dentre os próprios membros da instituição em questão, ou seja,
se estivermos falando da vaga a que tem direito a Corte Suprema, ela só poderá
ser ocupada se o selecionado for um membro ou ex-membro dessa Corte. O mesmo
vale para as outras instituições. A essa exigência, que denominamos "regra da
interseção", um membro só poderá ser selecionado para o OE se já for membro de
outra instituição específica.
O ENPE, o outro OE independente no Peru, é administrado por um único diretor,
eleito para um período de quatro anos, que conta com um corpo fixo e estável de
funcionários. A incumbência de selecionar esse diretor fica a cargo do Conselho
Nacional de Magistratura.
Por fim, no Chile, o Tribunal Qualificador Eleitoral trata quase que
exclusivamente do contencioso eleitoral. O Tribunal é composto de cinco
membros, todos eleitos pela Corte Suprema, seguindo a "regra da interseção".
Três membros devem ser selecionados dentre os próprios membros da Corte
Suprema, e, dos outros dois, um deve ser eleito dentre os ex-presidentes da
Câmara ou do Senado, e o outro dentre os advogados do país. A execução e a
administração do processo eleitoral ficam a cargo do Serviço Eleitoral, órgão
independente cujo diretor geral é selecionado pelo presidente da República.
Os nove outros países que adotam o modelo independente-especializado contam com
uma governança eleitoral que concentra em seus OEs as atividades
administrativa/executiva e de solução do contencioso eleitoral.
Entre eles, há países que permitem a participação de órgãos externos na
indicação e na seleção dos membros do OE, como Conselhos de Magistratura e
universidades de Direito, e há países nos quais a indicação e a seleção são
prerrogativas exclusivas de uma instituição apenas.
O único país que concentra as atividades da governança eleitoral em um único OE
e que adota a "regra da interseção" é o Brasil, caso que analisamos adiante com
mais detalhes.
Na Figura_1, podemos identificar as instituições que participam da indicação e
da seleção dos membros de um OE nos países latino-americanos selecionados.
Argentina, Chile, Peru e México possuem mais de um OE para a governança
eleitoral. Dessa maneira, indicamos com "1" o OE responsável pelo contencioso
eleitoral e com "2" o responsável pela administração e pela execução do
processo eleitoral.
Os países que adotam o perfil partidário foram colocados no espaço exclusivo do
Legislativo porque em todos eles a indicação e a seleção são realizadas dentro
do Parlamento e considerando o tamanho da bancada de cada partido. Além disso,
quando o perfil é partidário, não significa que apenas os partidos selecionam
os membros do OE, mas tão-somente que esses membros possuem vínculos
partidários.
Podemos notar, na Figura_1, que o Legislativo é a instituição que mais
participa da indicação e da seleção dos membros dos OEs entre os países latino-
americanos analisados. O Legislativo não participa desse processo apenas em
Costa Rica, Brasil, Chile e Peru. Na Argentina, o Legislativo não participa da
indicação e da seleção apenas dos membros do OE vinculado ao Executivo. No OE
responsável pelo contencioso eleitoral, participam o Legislativo, o Executivo e
um órgão externo, nesse caso, o Conselho de Magistratura.
No Chile e no Peru, países duplamente independentes, o Legislativo não
participa da indicação e seleção dos membros de nenhum OE. No Peru, órgãos
externos aparecem com maior relevância na formação de seus OEs. Nesse país, há
a participação de universidades e do Conselho de Magistratura em ambos os OEs.
No Chile, a responsabilidade pela formação dos OEs é dividida: a que trata da
administração e execução é de responsabilidade exclusiva do Executivo; a que
decide sobre o contencioso eleitoral é de responsabilidade exclusiva do
Judiciário.
Os únicos países que concentram as atividades da governança eleitoral em um
único OE e que excluem o Legislativo da formação desses OEs são o Brasil e a
Costa Rica.
Na Costa Rica, a responsabilidade pela indicação e seleção dos membros do OE é
exclusiva da Corte Suprema de Justiça. O Tribunal Supremo de Eleições é
composto de três membros, com um mandato de oito anos. O requisito mínimo para
a seleção desses membros é que sejam bacharéis em Direito e possuam experiência
profissional.
Dois fatores devem ser destacados no caso da Costa Rica. O primeiro é que no
país não há a "regra da interseção", ou seja, os membros do OE não são membros
da Corte Suprema de Justiça. Outro destaque é sobre o perfil da Corte Suprema:
todos os seus ministros são eleitos pelo Parlamento para um mandato de oito
anos, contrariando o princípio republicano clássico, que não atribui mandato
para os membros de Cortes constitucionais.
Sendo assim, no Brasil, a governança eleitoral possui uma combinação de
elementos ímpar entre os países latino-americanos analisados: concentra as
atividades da governança em um único OE (rule application e rule adjudication),
possui a "regra da interseção" e exclui o Legislativo da indicação e da seleção
dos membros do OE.
Segundo o que defendemos, essa combinação atípica contribui fortemente para que
a judicialização da competição político-partidária seja possível. Para melhor
tratarmos disso, a seguir traçamos o perfil mais detalhado sobre a governança
eleitoral no Brasil e avançamos sobre a questão da judicialização.
O MODELO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA ELEITORAL
A Justiça Eleitoral brasileira é produto da Revolução de 1930, e, como tal, sua
fundação foi inspirada pelas bandeiras levantadas na época: críticas à
oligarquia competitiva, que se havia instalado ao longo da Primeira República,
e o evidente descrédito do processo eleitoral, marcado pelo poder dos coronéis
e pelo "voto de cabresto".
A combinação desses elementos denunciados pelos revolucionários de 30 atentava
contra a legitimidade da competição pelo poder político e a confiabilidade nos
resultados das urnas:
O movimento de 30 tinha entre suas bandeiras a moralização das
eleições, sumarizada no binômio cunhado por Assis Brasil,
"representação e justiça". Para isso parecia imprescindível afastar
os poderes Executivo e Legislativo da administração e do controle do
processo eleitoral, e retirar das Câmaras Legislativas a prerrogativa
da verificação dos mandatos. Através dessas práticas a máquina
majoritária assegurava sua perpetuação, manipulando todas as etapas
do processo eleitoral, e chegando mesmo a decapitar mandatos
oposicionistas (Sadek, 1995:30).
A governança eleitoral no Brasil nasceu com a missão de restringir a
participação dos interesses políticos na administração e na execução do
processo eleitoral. Lehoucq (2002) argumenta que esse modelo de governança
ganhou fôlego mundo afora apenas a partir da terceira onda democrática. Até
então, o modelo clássico de governança eleitoral seguia o modelo governamental,
vinculando o OE ao Executivo e permitindo maior participação dos interesses
político-partidários na organização do processo eleitoral. No Brasil, esse
modelo clássico foi banido muito antes.
O fato de o modelo brasileiro contar, há muito tempo, com um modelo que exclui
os partidos e os interesses políticos da governança eleitoral revela a
desconfiança em relação à política. Uma característica que merece destaque é
que, desde a criação da Justiça Eleitoral, contamos com a "regra da interseção"
para indicação e seleção dos membros do OE.
O Decreto nº 23.017, de 1933, e, posteriormente, a Constituição de 1934
determinaram que o Tribunal Superior da Justiça Eleitoral fosse composto de
sete ministros, sendo que três seriam selecionados dentre os ministros do
Supremo Tribunal Federal - STF, dois dentre os desembargadores do Distrito
Federal e dois indicados pelo Supremo e selecionados pelo presidente da
República dentre cidadãos com notório saber jurídico e reputação ilibada. A
presidência do OE estava condicionada à vice-presidência do STF.
Dessa maneira, nossa instância máxima da governança eleitoral foi criada em
interseção com o Judiciário, sobretudo com o Supremo Tribunal Federal. Além do
maior número de membros, o STF detinha a garantia de sua presidência e a
prerrogativa de indicar outros dois membros. A nosso ver, esse é mais um
indicativo da marca da desconfiança em nosso modelo de governança. Afinal, em
democracias como a nossa, o Judiciário é concebido para estar imune aos
interesses político-partidários, moderando, assim, as forças majoritárias.
Outra característica que merece destaque é que, desde seu surgimento, esse
modelo concentrou as atividades da governança eleitoral nesse OE judicializado.
Além das atividades administrativas e executivas do processo eleitoral,
conferiu-lhe a prerrogativa de decidir sobre os contenciosos eleitorais.
A Justiça Eleitoral teve seu funcionamento interrompido em 1937, com o Estado
Novo. A extinção do sistema partidário eliminou a competição política e tornou
desnecessárias suas atividades; seu retorno aconteceu somente em 1945.
A Constituição de 1946 adotou o mesmo modelo de governança eleitoral: "regra da
interseção" com o Judiciário, concentração das atividades da governança e
blindagem da interferência política. Desde então esse modelo persiste. Passamos
pelo período democrático de 1946 a 1964, pelo regime militar e pela
redemocratização, culminando na Constituição de 1988, e pouco desse modelo foi
alterado. Sadek (1995) argumenta que foi a manutenção desse modelo que permitiu
que a longa transição do regime militar para a democracia seguisse um caminho
menos tortuoso:
A justiça eleitoral desempenhou um papel fundamental no processo de
transição. Foi um ator mudo, porém decisivo, como fiador da lisura
dos resultados eleitorais. Sem uma instituição dessa natureza,
dificilmente haveria confiança na competição, ainda mais levando-se
em conta as restrições políticas e legais da época. O caminho para a
normalidade democrática teria sido muito mais tortuoso, para dizer o
mínimo, sem o respeito aos resultados saídos das urnas (ibidem:41).
De fato, a neutralidade adquirida pelo nosso modelo de governança eleitoral em
relação aos interesses políticos foi decisiva para os caminhos tomados pela
transição. Estando ausente esse modelo, dificilmente haveria impactos políticos
significativos em decorrência daquilo que Lamounier (1988) chamou de
"bipartidarismo plebiscitário", quando o bipartidarismo forçado revelava o
apoio ao regime, ou a falta dele, em função do desempenho eleitoral da Aliança
Renovadora Nacional - Arena (situação) e do Movimento Democrático Brasileiro -
MDB (oposição).
Entretanto, o que argumentamos aqui é que a persistência desse modelo ao longo
da consolidação democrática vem produzindo a judicialização da competição
político-partidária e, além disso, tem possibilitado o avanço do Judiciário em
atividades da governança eleitoral típicas do Legislativo, como a produção das
regras do jogo competitivo (rule making)5.
Como dito, o OE brasileiro muito pouco mudou desde que foi criado, em 1932. A
Constituição de 1988 definiu, em seu art. 118, que os órgãos da Justiça
Eleitoral são: 1) Tribunal Superior Eleitoral - TSE; 2) Tribunais Regionais
Eleitorais - TREs; 3) Juízes Eleitorais; 4) Juntas Eleitorais.
O TSE é o órgão superior para decisões sobre a administração e a execução do
processo eleitoral e a instância máxima para as atividades do rule application
na governança eleitoral brasileira. Além disso, é a última instância de recurso
do contencioso eleitoral (rule adjudication). É composto de sete membros: três
entre os ministros do STF, dois entre os ministros do Superior Tribunal de
Justiça - STJ e dois entre cidadãos com notório saber jurídico e idoneidade
moral indicados pelo STF e selecionados pelo presidente da República. Esses
membros externos são, majoritariamente, advogados que militam na área.
Os TREs têm sede na capital de todos os estados. Além de participar da
administração e da execução do processo eleitoral, é a segunda instância para o
contencioso eleitoral. Cada TRE é composto de sete membros: dois selecionados
dentre os desembargadores dos Tribunais de Justiça estaduais, dois juízes de
direito selecionados pelos Tribunais de Justiça estaduais, um dentre os juízes
do Tribunal Regional Federal e dois cidadãos de notório saber jurídico e
idoneidade moral indicados pelos Tribunais de Justiça e selecionados pelo
presidente da República.
O juiz eleitoral é selecionado pelos TREs dentre os juízes de direito dos
estados e sua jurisdição é a Zona Eleitoral. Participa também da administração
e da execução do processo eleitoral e funciona como primeira instância para o
contencioso eleitoral.
As Juntas Eleitorais são órgãos temporários e servem apenas para a execução do
processo eleitoral. Sessenta dias antes das eleições, os TREs selecionam um
juiz de direito e de dois a quatro cidadãos com notório saber jurídico e
idoneidade moral. Assim, a Junta auxilia o juiz eleitoral a executar os
procedimentos necessários para o processo eleitoral em determinada Zona.
Não há, na governança eleitoral brasileira, um OE com um corpo de direção
próprio e exclusivo. Apesar do TSE, dos TREs e dos Cartórios Eleitorais, em que
atuam os juízes eleitorais, serem permanentes e, portanto, contarem com um
corpo funcional próprio e estável, os juízes e ministros que se tornam membros
da Justiça Eleitoral não são obrigados a se desligar das outras atividades que
desempenham nos outros ramos da Justiça, nem mesmo os advogados selecionados
são obrigados a interromper suas atividades profissionais6.
Tal perfil pode até criar dificuldades para que a Justiça Eleitoral atenda a
todas as demandas das atividades que assume por lei. Exemplo disso são as
auditorias que o corpo funcional da Justiça Eleitoral deve realizar sobre os
gastos de campanha, uma possível deficiência estrutural que pode comprometer a
qualidade do controle (Taylor, 2008).
Além do mais, todas as instâncias da governança eleitoral brasileira contam com
a "regra da interseção" para a composição de seus membros, acompanhando a
estrutura do Judiciário. A instância eleitoral máxima possui interseção com as
últimas instâncias judiciais; as instâncias eleitorais inferiores possuem
interseção com as instâncias judiciais inferiores. Aliás, podemos dizer que a
instância eleitoral máxima possui mais do que uma interseção com as últimas
instâncias judiciais, pois tem uma forte interseção com a Corte Constitucional
(STF), e essa característica será fundamental para a sustentação de nossos
argumentos. Antes de avançarmos nessa questão, vale uma rápida análise sobre o
funcionamento institucional do TSE.
É possível afirmar que o TSE é um órgão do STF para matérias eleitorais - não
de direito, mas de fato. Como vimos, são sete os membros do TSE: três deles têm
origem no Supremo, outros dois são advogados indicados por ele, produzindo uma
forte influência sobre esses membros. No mínimo, podemos dizer que esses
advogados serão indicados de acordo com um perfil projetado e esperado pelos
ministros da Corte Constitucional. Os dois outros ministros têm origem no STJ.
Entretanto, é preciso observar que esses ministros exercem menor influência
sobre o perfil do TSE do que os ministros do STF. O que nos leva a essa
afirmação? A questão do tempo do mandato. Todos os membros da Justiça Eleitoral
possuem um mandato de dois anos, podendo ser prorrogado por mais dois. Uma
regra interna no STJ, porém, eliminou a possibilidade de que seus membros
pudessem ocupar o cargo de ministros do TSE por mais de um biênio. Já entre os
ministros oriundos do STF e entre os advogados, o mandato de quatro anos
transformou-se em prática comum.
A razão para que os ministros do STJ passem menos tempo no TSE decorre da
quantidade de ministros que o compõem e pela intenção de que ocorra um rodízio
entre eles. O STJ é composto de 33 ministros; para que todos os ministros
tenham a oportunidade de serem membros do TSE, há uma regra informal de que
nenhum deles exerça as funções por um segundo biênio. Já os membros do STF são
onze, e não há regra interna que imponha ao ministro a necessidade de se tornar
membro do TSE. Os procedimentos de escolha são bastante informais e dependem
fundamentalmente da disposição manifesta do ministro para exercer essas
funções.
Temos então que, do primeiro semestre de 1989 até o final do segundo semestre
de 2007, passaram pelas vagas de membro titular do TSE 21 ministros do STJ,
enquanto do STF foram 16 ministros diferentes. Outra observação importante é
que nenhum ministro do STJ que tenha ocupado a vaga no TSE por um biênio voltou
a ocupar essa vaga anos depois. Já entre os ministros do STF, não é incomum que
um ministro ocupe uma vaga por dois biênios e retorne alguns anos depois para
mais dois biênios. De 1989 até o final de 2007, esses foram os casos dos
ministros Néri da Silveira, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio
Mello.
É inegável que o tempo que um ministro passe no TSE lhe garanta experiência em
relação à matéria, ainda mais quando falamos de um organismo que não possui um
corpo exclusivo de ministros. Dessa maneira, podemos dizer que a capacidade de
influenciar o perfil a ser adotado pelo TSE nos julgamentos dos litígios e nas
decisões administrativas do processo eleitoral é maior quanto aos ministros do
STF do que quanto aos do STJ.
É preciso considerar que treze dos 21 ministros do STJ que ocuparam vagas no
TSE já tinham passagens pela Justiça Eleitoral como ministros dos TREs ou como
juízes eleitorais. Mesmo considerando essa experiência, o menor período que
passam no TSE em relação aos ministros do STF reduz o poder de influência
desses ministros no perfil da instituição.
Além desse predomínio do STF entre os membros que compõem o TSE, a presidência
e a vice-presidência do organismo são cargos exclusivos dos ministros da Corte
Constitucional; assim sendo, a pauta e a orientação para o funcionamento
administrativo do próprio organismo são determinadas pelo perfil do ministro do
STF que ocupe o cargo. É por isso que podemos afirmar que o TSE é um organismo
do STF para matérias eleitorais. Afinal, o poder de influência dos ministros do
STF sobre o OE é inegavelmente superior em relação a seus outros membros. Uma
das possíveis implicações desse perfil é que as regras do jogo competitivo
passem pela interpretação de um conjunto mais abrangente de normas, inclusive
as normas constitucionais.
Essa característica adiciona mais um fator à já atípica combinação de elementos
da governança eleitoral no Brasil. Além das mencionadas combinações -
concentração das atividades da governança em um único OE (rule application e
rule adjudication), exclusão do Legislativo da indicação e da seleção dos
membros do OE e "regra da interseção" -, elevamos a governança eleitoral ao
nível constitucional. Comprovação disso é que, por vezes, o TSE, na publicação
das regras do jogo eleitoral, as altera interpretando o texto constitucional.
Por outras vezes, o STF, na interpretação do texto constitucional, decide
alterando as regras do jogo eleitoral; e não há qualquer sinal de conflito
interpretativo entre essas instituições. Ao contrário, não há registro de
nenhuma decisão do TSE que, ao ser levada ao STF, tenha sido reformada. Na
maior parte das vezes, o Supremo nem mesmo conhece do recurso por entender que
a interpretação do TSE é a última palavra em matéria eleitoral. Quando o STF
decide sobre um tema acerca do qual já recebeu interpretação do TSE, não há
divergência entre suas decisões; elas acabam se reforçando7.
O parágrafo único do art. 22 do Código Eleitoral diz que as decisões do TSE são
irrecorríveis, salvo aquelas que declararem a invalidade de lei ou ato
contrário à Constituição Federal e as denegatórias de habeas corpus ou mandado
de segurança, quando está autorizado recurso ordinário para o STF. É verdade
que essas três hipóteses abrem uma larga avenida entre o TSE e o STF, sobretudo
quanto ao mandado de segurança.
Isso não representa, porém, um enfraquecimento do TSE como última palavra em
matéria eleitoral. Se as regras eleitorais são elevadas ao nível constitucional
(Taylor, 2008), isso tem mais a ver com o perfil de nosso OE do que com a
possibilidade de recursos ao STF. Afinal, é esse perfil que abre a
possibilidade para que o TSE decida sobre as regras do jogo eleitoral
interpretando o texto constitucional.
Na medida em que a competição político-partidária se consolida e alguns temas
desse jogo ganham maior destaque, o modelo de governança eleitoral adotado pelo
país tem se tornado cada vez mais relevante. Uma comprovação da crescente
importância desse modelo sobre o jogo competitivo está na evolução dos
processos que chegaram ao TSE entre 1989 e 2006.
Ao longo da primeira metade dos anos 1990, os processos distribuídos e julgados
não ultrapassavam as centenas. A partir da segunda metade dos anos 1990, esses
processos passaram a ser milhares e, pelo que a tendência aponta, continuarão a
crescer. Somente em 2006, ano de eleições para presidente, governadores,
senadores, deputados federais e estaduais, foram cerca de sete mil processos
distribuídos.
Interessante notar que a busca pelo TSE aumentou logo após a conclusão de um
ciclo que reformou a base legal da competição político-partidária no Brasil. As
principais modificações vieram com as leis da inelegibilidade (LC nº 94/90);
dos partidos políticos (9.096/95) e das eleições (9.504/97), levando ao TSE, a
partir da segunda metade da década de 1990, um maior número de litígios.
A despeito do aumento das ações que provocaram o TSE, o Tribunal demorou em
conseguir atendê-las com a mesma velocidade com que cresciam. Somente a partir
de 2000, ano de eleições municipais, o TSE entrou em sintonia com o aumento da
demanda e tem sustentado seu fôlego para julgar o máximo de processos
distribuídos a cada ano, evitando que muitos deles completem mais de um ano nas
mãos do Tribunal. Boa parte dessa celeridade veio após uma reforma no processo
eleitoral, em 2004, que permitiu um maior número de decisões monocráticas.
A maioria dos processos que chegam ao TSE diz respeito ao contencioso
eleitoral, sejam os referentes a pedidos de cancelamento do registro de
candidatos, sejam os que envolvam crimes eleitorais, como abuso de poder
econômico e político durante a campanha. Entre esses processos distribuídos e
julgados, porém, devemos chamar a atenção para um instrumento que não está
relacionado ao contencioso eleitoral e que nem sequer representa a maioria dos
julgamentos do TSE, mas certamente foram os que causaram maior impacto no jogo
competitivo. Referimo-nos ao instrumento da consulta.
A consulta é prevista no art. 23 do Código Eleitoral, que detalha as
competências privativas do TSE. Esse artigo é dedicado a detalhar algumas
funções administrativas que cabem apenas ao Tribunal, como elaborar seu
regimento interno; fixar as datas das eleições quando a legislação não o fizer;
enviar lista tríplice ao presidente da República para seleção dos membros
externos; aprovar a criação de Zonas Eleitorais; e expedir as instruções que
julgar convenientes para o cumprimento do Código Eleitoral nas eleições.
O item XII desse artigo dita o seguinte: "responder, sobre matéria eleitoral,
às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal
ou órgão nacional de partido político". O objetivo deste item foi, claramente,
a introdução de um instrumento que pudesse sanar qualquer dúvida entre os
competidores políticos e seus administradores - como as instâncias inferiores
da Justiça Eleitoral - sobre as regras do jogo antes mesmo que tivesse seu
início. Aliás, o entendimento pacificado no TSE é que, com o início do processo
eleitoral, não há mais a possibilidade de que as consultas sejam respondidas,
revelando seu caráter essencialmente instrutivo e preventivo. Instrutivo por
aclarar aos participantes do processo eleitoral as possibilidades e vedações
das regras eleitorais; preventivo por evitar que os competidores cometam
irregularidades por desconhecimento ou por má interpretação das normas.
A consulta é, portanto, um instrumento administrativo que visa sanar dúvidas
sobre matéria eleitoral. Dessa forma, para que uma consulta seja proposta e
aceita pelo TSE, não é necessária a existência de um litígio, nem mesmo partes
distintas envolvidas. É preciso que exista apenas uma dúvida sobre a legislação
e que ela seja formulada ao TSE por autoridade com jurisdição nacional ou por
órgão nacional de partido político. Por essas características, a resposta dada
pelo TSE é feita sempre em tese, afinal não existe nem sequer o caso concreto,
mas apenas uma dúvida sobre como a legislação deve ser interpretada, caso ela
venha a existir. A consulta pode servir de orientação ao juiz na decisão de um
caso concreto que venha a ocorrer no futuro, mas não há obrigatoriedade de
vinculação da resposta dada em consulta com a decisão judicial. Em outras
palavras, quando diante do caso concreto, a decisão pode ser diferente daquela
indicada pela resposta à consulta (Respe nº 23.404/04).
Este instrumento, tão precário do ponto de vista jurídico, acabou ocupando uma
posição central no cenário político-partidário brasileiro. Através dele o TSE
promoveu (re)interpretações até mesmo do texto constitucional. Sublinhe-se que,
por meio de um instrumento que possui funções administrativas e que
juridicamente carece de força, o TSE alterou as regras do jogo político
avançando até mesmo sobre o texto constitucional.
Na preparação do processo eleitoral, o TSE edita resoluções que, geralmente,
reproduzem as leis em vigência e possíveis interpretações judiciais já
consolidadas na jurisprudência. Através dessa prerrogativa de produzir
instruções para o processo eleitoral, o TSE acabou incorporando suas respostas
proferidas em tese quando respondeu a consultas. O resultado foi que questões
centrais do jogo competitivo foram alteradas pelo TSE sem que o caso concreto
nem ao menos existisse. A resposta em tese pôde ser transformada em regra a
partir de sua incorporação nas instruções eleitorais que edita. Mais do que
isso, a resposta que foi transformada em regra eleitoral pôde fundar-se em
interpretações do texto constitucional. A nosso ver, tal fato é conseqüência do
modelo de governança eleitoral adotado, que tornou possível a nosso OE decidir
sobre as regras do jogo competitivo interpretando o texto constitucional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que a judicialização da competição político-partidária no
Brasil é possível em virtude de um ambiente institucional favorável e
resultante do modelo de governança eleitoral adotado. Além da combinação
atípica de alguns elementos - concentração das atividades da governança em um
único OE (rule application e rule adjudication), exclusão do Legislativo da
indicação e da seleção dos membros do OE e adoção da "regra da interseção" -, a
força do STF sobre o TSE o coloca como um organismo da Corte Constitucional em
matéria eleitoral.
Esse desenho institucional torna possível que as decisões sobre as regras do
jogo competitivo sejam alteradas por meio de interpretações judiciais. Afinal,
tendo o apoio da Corte Constitucional, essas interpretações ganham uma força
normativa que talvez estivessem ausentes se fossem definidas por um organismo
com outro perfil.
Adição importante a essa força é o fato de o modelo de governança adotado
oferecer condições institucionais para que as regras do jogo competitivo sejam
interpretadas a partir do texto constitucional. Resultado disso é que a
competição político-partidária pode ser alterada por interpretações judiciais
respaldadas por uma interpretação da Constituição. Isso é possível ainda que o
instrumento jurídico utilizado para a provocação do OE seja um instrumento
bastante precário, como o instrumento da "consulta".
NOTAS
1. A polêmica nas eleições presidenciais de 2000 foi a seguinte: o sistema
eleitoral norte-americano segue a regra do colégio eleitoral, ou seja, o
vencedor é aquele que obtém o maior número de delegados no colégio eleitoral. A
controvérsia se deu quando, na Flórida, a diferença entre os dois principais
candidatos, Al Gore (democrata) e George W. Bush (republicano), foi de pouco
mais de trezentos votos, com vantagem para Bush. A Flórida tinha direito a 25
delegados e naquele momento a vitória no estado decidiria a corrida
presidencial. A lei da Flórida define que, se a diferença entre os candidatos é
inferior a 0,5%, os votos devem ser recontados. Entretanto, dada a pequena
margem de diferença, o candidato Al Gore ingressa com um pedido na Justiça
estadual para que os votos sejam contados manualmente, já que todo o processo é
mecanizado. A partir de então, por quase um mês a disputa presidencial foi
transferida para as diferentes instâncias judiciais, chegando até a Suprema
Corte. O resultado final confirmou a apertada vitória de Bush na Flórida,
dando-lhe o maior número de delegados no colégio eleitoral. Dois fatores
ganharam destaque com o caso: 1) em função das regras eleitorais nos Estados
Unidos, Bush obteve maioria no colégio eleitoral, mas não recebeu o maior
número de votos populares; 2) a dificuldade administrativa das eleições devido
à grande descentralização e autonomia dos organismos eleitorais.
2. A sede do Idea é na Suíça, mas ela também mantém escritórios na América
Latina, na África e na Ásia. Em 2005, a instituição contava com 23 países-
membros: Austrália, Barbados, Bélgica, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Finlândia,
Índia, Holanda, Noruega, Portugal, África do Sul, Espanha, Suíça, Botsuana,
Canadá, Cabo Verde, Alemanha, Ilhas Maurício, México, Namíbia, Peru e Uruguai.
3. A lista completa produzida pelo Idea pode ser acessada em http://
www.idea.int/_elections/emd/index.cfm.
4. A Venezuela foi classificada como anocrática (nota 5,0) pelo Polity IV em
2006, o que a desclassificou de nossa amostra inicial. Entretanto, dados sua
relevância para a região e seu histórico democrático, foi incluída em nossa
análise nesta etapa.
5. Sabemos que na atividade de rulemaking estão incluídas as resoluções
administrativas como, por exemplo, resoluções e instruções emitidas pelo TSE. O
que argumentamos, entretanto, é que algumas decisões podem produzir efeitos
para além da função administrativa, gerando regras novas e ingressando na
atividade legiferante, típica do Legislativo.
6. Essa permissão decorre da decisão do STF na Adin nº 1.127/94, interpretando
o estatuto da advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB (Lei nº 8.906/
94). Nessa lei, há o impedimento para o exercício da advocacia a "membros de
órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de
contas, dos juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como
de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva
da administração pública direta e indireta". A interpretação do STF abriu uma
exceção para o caso da Justiça Eleitoral.
7. Em poucas ocasiões o STF ao menos conhece recursos que envolvam matéria
eleitoral. Um importante precedente aberto foi a decisão tomada na Adin nº
4.018, de fevereiro de 2008, quando o Supremo decidiu pela
inconstitucionalidade de uma resolução do TRE-GO.