Desmercantilização do trabalho da perspectiva do movimento sindical (Brasil,
1950-2000)
INTRODUÇÃO
A história do movimento sindical tem revelado duas disposições desse ator no
quese refere à relação entre capitale trabalho. De um lado a tentativa, via
ação coletiva, de estabelecer condições favoráveis à vendada força de trabalho,
impedindo que seu preço seja determinado pelo intercâmbio entre os capitalistas
e os trabalhadores individuais exclusivamente por meio do mercado. De outro,
também via ação coletiva, a luta pelo estabelecimento de limites à conversão
plena da própria força de trabalho em mercadoria, por sua desmercantilização,
através de políticas regulatórias, compensatórias, preventivas e
redistributivas1. Nesse caso, o que se busca é reduzir o despotismo do capital,
seja mitigando o poder de que dispõem os empresários em relação ao uso da força
de trabalho, seja retirando da esfera do mercado aspectos diversos da
reprodução da força de trabalho, incluindo os que afetam as condições de
existência das diversas modalidades de superpopulação relativaque acompanham as
diferentes trajetórias de desenvolvimento capitalista.
No limite, a utopia do mercado autorregulado corresponde à imagem de uma
sociedade capitalista totalmente mercantilizada. Esse momento fugaz e
improvável não envolveria qualquer tipo de interferência política no mercado.
Por seu turno, a presença de direitos sociais, que tanto regulem as condições
da venda e do uso da força de trabalho quanto assegurem a fruição de bens
relacionados à saúde, educação, habitação, alimentação, através do provimento
público, além de garantir uma renda mínima às pessoas, quando o mercado falha
ou não as absorve, representaria a utopia da completa desmercantilização ainda
nos marcos da ordem capitalista.
Neste artigo, o objetivo é rastrear as condições em que o movimento sindical
brasileiro buscou assegurar a desmercantilização da força de trabalho na
trajetória do capitalismo no país, conectando-as à atitude que desenvolve em
relação às diferentes modalidades de superpopulação relativa que são
engendradas em meio àquela trajetória. A abordagem centra-se nas décadas de
1950, 1980 e 1990, períodos nos quais, dada a natureza aberta do sistema
político, a ação sindical ganha visibilidade e os sindicatos são levados a se
pronunciar sobre variados temas, inclusive acerca da política social.
As variáveis consideradas fio condutor da pesquisa que originou esta abordagem
são: 1) a estrutura do mercado de trabalho; 2) as formas de organização
prevalecentes no meio sindical; 3) e o ambiente político no qual os sindicatos
atuam e fazem suas escolhas. A primeira porque, ao mesmo tempo que registra as
bases estruturais do poder de classe dos trabalhadores, salienta a natureza e a
dimensão da super população relativa em cada período. A segunda porque registra
a moldura institucional da organização e da expressão da identidade dos
trabalhadores, afetando o modo como eles seveem como ator social e a percepção
que desenvolvem em relação a outros atores. Por fim, o ambiente político
registra a presença (ou não) de outros atores que interferem nas formulações do
movimento sindical e sua relação com o Estado.
Contudo, antes de passarmos à identificação da postura sindical e desses
fatores em cada período, cumpre tecer algumas considerações a respeito da
trajetória de formação das políticas sociais tal como apresentada pela
literatura pertinente, buscando aquilatar a importância da organização dos
trabalhadores na fixação de tais políticas, bem como a relevância dessas
políticas para a desmercantilização da força de trabalho.
DIREITOS SOCIAIS, AÇÃO COLETIVA E DESMERCANTILIZAÇÃO
Desde Marshall (1967), a conquista dos direitos sociais tem sido tratada como
corolário do processo de construção da cidadania. Assim compreendidas, as
políticas sociais são consideradas pressuposto da democracia e, em certos
casos, revelam-se um requisito fundamental para a estabilidade democrática. A
ampliação da participação política que acompanha a instalação do regime
democrático suscita, entre as camadas menos favorecidas da sociedade,
expectativas de bem-estar. Nesse sentido, é essencial a presença de uma
contrapartida institucional capaz de sistematizar essas expectativas e
canalizá-las para o sistema político. Do contrário, tende a se estabelecer um
quadro de instabilidade em função da ausência de resposta institucional às
expectativas de bem-estar engendradas pelo processo de ampliação da
participação política. Em outros termos, a ausência de políticas sociais
amplamente aplicadas dificulta a formação do consenso em torno da democracia,
introduzindo desafios importantes para a consolidação do regime democrático2.
Do ponto de vista dos trabalhadores, as políticas sociais são essenciais,
ainda, por promoverem a desmercantilização da força de trabalho. Nessa medida,
elas representaram uma inflexão, na trajetória das sociedades capitalistas, que
conduziu à mercantilização do trabalho, de sorte que a sobrevivência e o bem-
estar das pessoas passavam a depender progressivamente de relações monetárias3.
A organização dos trabalhadores cumpriu um papel crucial na formulação de
demandas direcionadas à fixação de políticas sociais e, por conseguinte, à
desmercantilização da força de trabalho, em um processo que culminou com a
afirmação do Estado de Bem-Estar Social em países da Europa Ocidental no pós-
Segunda Guerra.
Em formulação que se tornaria clássica, Polanyi (1980) destaca a natureza
fictícia do mercado de força de trabalho, o caráter utópico do liberalismo e a
reação social suscitada pela transformação do trabalho em mercadoria.
Historicamente, a utopia liberal seria superada com o advento e o
desenvolvimento das políticas sociais, e o subsequente afrouxamento do caráter
de exclusiva mercadoria que o desenvolvimento capitalista, em bases liberais,
conferia à força de trabalho. Considerado um dos principais expoentes da
abordagem institucional,Polanyi não atribuía centralidade ao papel desempenhado
pelos agentes sociais no desencadeamento das políticas sociais e do Welfare
State.Noentanto, estudiosos de diferentes matizes enfatizaram a presença da
organização dos trabalhadores no processo de formação do Estado de Bem-Estar
Social, seja porque estes foram capazes de pressionar o poder público em
direção à implementação de tais políticas, seja porque o Estado, em antecipação
a uma suposta radicalização da ação ideologicamente enraizada dos
trabalhadores, assegurou-lhes direitos sociais a fim de inibir uma mobilização
que pudesse pôr em risco as bases do desenvolvimento capitalista4.
Atestando a importância dos trabalhadores na instituição de políticas sociais,
Przeworski (1989) indica que a montagem do Welfare Statena Europa Ocidental se
deve à orquestração de um compromissoentre trabalhadores e empresários, no qual
os primeiros renunciam à pretensão de subverter os fundamentos da economia
capitalista-e mesmo à perspectiva de ganhos imediatos - a fim de garantir a
continuidade da expansão econômica. Os empresários, por seu turno, admitem a
instalação de uma ampla rede de benefícios e de serviços sociais assegurados
pelo Estado, desde que garantidas a intocabilidade da propriedade capitalista e
a preservação de ganhos adequados à manutenção de um ritmo de investimento
elevado5. De sua parte, Esping-Andersen (1990) ressalta a importância da
atuação dos trabalhadores não apenas no desencadeamento das políticas sociais
mas também na formatação dos diferentes modelos de Estado de Bem-Estar Social,
que, nos termos do autor, se condicionam, entre outros, ao grau de
desmercantilização do trabalho que são capazes de promover. Trazendo a
discussão para o Brasil, Santos (1979) destaca que os trabalhadores, ao se
organizarem e reivindicarem direitos sociais, denunciam os caracteres mercantil
do capitalismo e falacioso do contratualismo liberal, "determinando o
desmascaramento de sua expressão mercantil e jurídica e revelando o seu
conteúdo de exploração" (ibidem:23). A implementação de políticas sociais e a
desmercantilização do trabalhocaminharam, pois, lado a lado na construção do
Welfare State, a despeito da forma que este tenha adquirido.
De todo modo, a fixação de políticas sociais produz o efeito, nem sempre
desejado, de reduzir a dependência do trabalhador em relação ao empregador e
termina por se transformar em fonte potencial de poder (Heimann apudEsping-
Andersen, 1990:89), desencadeando um círculo virtuoso que tende a alimentar o
processo de construção da cidadania baseada em direitos sociais e na
desmercantilização da força de trabalho. Em outros termos, a desmercantilização
fortalece o trabalhador e enfraquece a autoridade absoluta do empregador. Os
direitos sociais, a igualdade e a erradicação da pobreza que um Estado de Bem-
Estar universalista busca constituem pré-requisitos importantes para a força e
a unidade necessárias à mobilização coletiva de poder (Esping Andersen, 1990:
95). Na presença de mecanismos de proteção referentes ao conjunto da sociedade,
tais como seguro-desemprego, velhice, doença, acidente etc., trabalhadores
emancipados em relação ao mercado se habilitam com mais facilidade à ação
coletiva, fortalecendo a solidariedade de classee ampliando as chances para o
estabelecimento de uma sociedade menos desigual. Ao contrário, quando os
trabalhadores se encontram em situação de inteira dependência em relação ao
mercado, o custo da adesão à ação coletivas e eleva ,inibindo o potencial
mobilizador das organizações do trabalho. Nos termos de Esping-Andersen
(ibidem:103), uma vez que os recursos dos trabalhadores espelham as
desigualdades do mercado, surgem divisões entre os de dentroe os de fora,
dificultando a constituição de movimentos reivindicatórios. Os trabalhadores
constituem, dessa perspectiva, por mais de uma razão, a força mais interessada
na implementação de políticas sociais universalistas e na desmercantilização do
trabalho por elas induzida.
Portanto, as políticas sociais operam não apenas como instrumentos
redistributivos; do ponto de vista dos trabalhadores, asseguram também a
solidariedade de classenecessária à preservação de uma forte presença política
desse ator.
De sua parte, a ação estatal, na regulação das relações de trabalho, dos
processos de dispensa, bem como na proteção àqueles que se encontram fora do
mercado de trabalho, por meio da legislação trabalhista e securitária, é, pois,
fundamental para aumentar a segurança do trabalhador, o poder sindical e,
assim, desonerar a participação na ação coletiva. Consideremos um instituto
como o seguro-desemprego. Ao garantir condições de sobrevivência àqueles
trabalhadores que são expelidos do mercado em suas variações cíclicas - ou
mesmo como retaliação patronal pela participação em ações coletivas, ou ainda
como estratégia para o rebaixamento dos salários -, ele dificulta que operem os
elementos de desagregação na solidariedade dos trabalhadores provocados pela
presença do que Marx designou pela noçãode exército industrial de reserva,
constituído a partir das inovações tecnológicas verificadas com o esgotamento
da acumulação extensiva do capital. Assim, se a presença de um excedente de
força de trabalho permanece indispensável para a continuidade do investimento
capitalista, sua capacidade de afetar negativamente o comportamento dos
salários é mitigada diante da redução da pressão que o desempregado exerce na
disputa por vagas no mercado de trabalho6.
O mesmo se poderia dizer de outros benefícios sociais promovidos pelo Estado e
assegurados universalmente àqueles que, por alguma razão - doença, acidente,
velhice, invalidez para o trabalho, carência de vagas -, se encontram fora do
mercado de trabalho. A presença de vastos contingentes fora do mercado e sem
proteção assegurada por políticas sociais aumenta a insegurança dos de dentro,
tornando-os mais suscetíveis às imposições do capital, cuja lógica tende a se
pautar pelas condições do mercado. Grosso modo, pode-se dizer que, quanto maior
for a abrangência das políticas sociais, menos mercantilizada será a força de
trabalho. Dessa forma, no processo de desmercantilização, são importantes não
apenas as leis trabalhistas mas também as políticas sociais em geral. Em outros
termos, a desmercantilização ocorre quando a prestação de serviços é concebida
como um direito social, ou seja, quando tais serviços não precisam ser
adquiridos no mercado. Isto é, quando a sobrevivência e o bem-estar das pessoas
não estão condicionados à venda de sua força de trabalho no mercado.
Por outro lado, a realização de um Estado de Bem-Estar supõe um vasto
contingente inserido no mercado de trabalho, tanto para reforçar um mercado
interno de consumidores quanto para assegurar um volume de contribuições - a
despeito do formato que estas venham a assumir -, capaz de proporcionar a
oferta de serviços de boa qualidade.
Um mercado de trabalho amplo e inclusivo fortalece a ação coletiva direcionada
à obtenção de benefícios universais, o que tende a contribuir para a redução de
manifestações corporativistas e individualistas. Ao contrário, quando a massa
de desempregados atinge um volume crítico, acentua-se a pressão do exército de
reservasobre os trabalhadores em atividade, fragilizando a proteção a esses
setores, com impacto sobre a maneira de se defender dos assalariados. A parcela
protegidado mercado de trabalho tende a se desestabilizar na presença de um
vasto contingente de desempregados, gerando, nos termos de Brunhoff (1991:93),
atitudes de "salve-se-quem-puder" que atentam contra as formas coletivas de
organização e ação. Desse modo, políticas de geração de empregos configuram uma
contrapartida importante das políticas sociais no plano da economia,
contribuindo para aumentar a disposição para agirdos trabalhadores e para a
obtenção de novas conquistas sociais. Em boa medida, políticas de pleno emprego
e compensações pelo funcionamento inadequado do mercado, assegurando níveis
elevados de solidariedade entre os trabalhadores, revelaram-se instrumentos
cruciais nos arranjos que possibilitaram a compatibilização entre expansão
industrial e ampliação da rede de proteção social nos países de economia
central; entre capitalismo e democracia, portanto.
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DO CASO BRASILEIRO
Tomando por base as considerações anteriores, cumpre indagar em que medida essa
situação é diversa quando têm peso na estrutura social contingentes de pessoas
que se ligam marginalmenteao mercado de trabalho, pressionando os trabalhadores
nele ocupados, sem que sua presença resulte da exaustão da acumulação extensiva
do capital, isto é, sem que apareçam como um fenômeno cíclico da operação do
mercado capitalista. Tal indagação se revela crucial para o estudo das relações
estabelecidas entre o movimento sindical e as políticas sociais no âmbito da
industrialização retardatária e periférica, em que os processos de inovação
tecnológica guardam pouca relação com o esgotamento da reserva de força de
trabalho, antes se efetuando pela aquisição de equipamentos no mercado mundial.
No Brasil, a transição rural-urbana, pelo menos em suas fases iniciais,
realiza-se constituindo amplos contingentes ocupados em pequenos serviços, na
medida em que o crescimento de postos de trabalho gerados no mercado formal não
é capaz de absorver tais segmentos da população7. Nesse contexto de acelerada
transição demográfica, configura-se um quadro dicotômico em que um restrito
mercado formal contrasta com um volumoso mercado informal; o trabalho
organizado, protegido e estável contrasta com o desorganizado, desprotegido e
instável, tendência que parecia reverter-se nos anos 1970 e 1980, mas que
findou por acentuar-se na década de 1990, como destacou Mattoso (1995). Nesse
quadro, políticas compensatórias, como o seguro-desemprego, podem revelar-se
insuficientes para assegurar a desmercantilização do trabalho, porque dizem
respeito apenas àquelas pessoas queseencontram temporariamentefora do mercado
formal.
Na presença de um vasto contingente de pessoas que se ligam marginalmente ao
mercado de trabalho, os trabalhadores podem ser levados a formular
reivindicações, em torno de medidas regulatórias e preventivas, que sejam
capazes de ampliar o acesso ao mercado formal e, por conseguinte, à proteção
social vinculada à formalização do trabalho, ainda que tais demandas sejam
motivadas pelo desejo de ampliar a segurança no emprego dos próprios
trabalhadores formais e o poder do trabalhoem face do capital.
Nesse ponto, cumpre lembrar que as políticas sociais no Brasil foram
vinculadas, desde os anos 1930, à inserção do indivíduo no mercado formal de
trabalho, configurando um estado de bem-estar ocupacional(Sposati, 1995), sob o
imperativo da cidadania regulada(Santos, 1979), assertiva que deve ser
adicionada como ingrediente básico especialmente quando analisamos a postura do
movimento sindical nos anos 1950, momento em que o mercado formal esteve longe
de abranger a totalidade da População Economicamente Ativa (PEA) nacional e a
política social se limitava, por conseguinte, a uma pequena parcela da
população, de modo que a desmercantilização da força de trabalho no Brasil
supunha, em boa medida, a superação da cidadania regulada.
Partindo dessas considerações, buscaremos indicar, doravante: 1) em que medida
a estrutura do mercado de trabalho e a presença de contingentes que não se
engajam no mercado formal afetam a percepção dos setores protegidosacerca das
políticas sociais - sua extensão e natureza - nas condições brasileiras; 2)
qual é a influência que a estrutura organizacional dos atores exerce nesse
processo e em que medida os trabalhadores organizados buscam superar a
estrutura corporativa para além dos aspectos organizacionais, elegendo pautas e
definindo agendas que extrapolem os interesses diretamente relacionados à
categoria profissional da qual fazem parte, traçando estratégias mais
abrangentes, que digam respeito ao conjunto dos setores populares, inclusive os
queseencontram fora do mercadodetrabalho; 3) em quemedidao ambiente político
nacional afeta as escolhas do movimento sindical.
MERCADO, SINDICATOS E POLÍTICA NOS ANOS 1950
Na década de 1950, verifica-se um intenso crescimento da economia nacional, que
repercute no perfil da população brasileira. Segundo divisão proposta por
Baltar e Dedecca (1992), esse período corresponde à terceira etapa da formação
do mercado de trabalho no Brasil8, quando o padrão de acumulação resultante da
industrialização pesada induz à consolidação do mercado de trabalho urbano.
No entanto, a imagem otimista que se tinha acerca do potencial de absorção do
mercado de trabalho era embaçada pela presença de um volume crescente de
trabalhadores informais, tendo em vista que o ritmo de crescimento da população
urbana era sensivelmente superior à criação de vagas no mercado formal de
trabalho. Quanto à criação de vagas na indústria de transformação, mola
propulsora do crescimento econômico no período, o quadro apresentava-se ainda
mais severo: se a PEA ocupada nesse setor correspondia a 1.608,3 milhão de
pessoas em 1950, em 1960 esse número aumentava para apenas 1.954,1. Em termos
percentuais, verifica-se um decréscimo da parcela da PEA ocupada na indústria
de transformação, de 9,4% em 1950 para 8,6% em 1960 (Lobo, 2005). Assim, a
criação de novos empregos nos anos 1950 ficava a cargo, especialmente, do setor
de serviços e, mais particularmente, do subsetor de serviços pessoais e do
pequeno comércio, que cresciam em bases precárias, com baixa densidade de
capital, baixa rentabilidade, nível inadequado de desenvolvimento legal e
institucional, instabilidade ocupacional e baixos salários (Faria, 1986).
Esse quadro se reflete nos indicadores de formalização do mercado de trabalho,
que apresenta trajetória declinante entre 1950 e 1960. Tomando por base o
número de contribuintes ativos para a Previdência Social em 1950 e 1960, e
contrastando-o com os indicadores referentes à PEA urbana, constata-se que em
1950 havia 45,63% da PEA urbana inserida no mercado formal de trabalho, ao
passo que em 1960 essa taxa declina para 42,76%9.
Tendo em vista a modernização da indústria tradicional, somada à baixa
capacidade revelada pelas indústrias dinâmicas de absorver força de trabalho na
proporção em que esta é gerada, forjam-se, nos principais centros industriais
do país, massas desempregadas ou subempregadas desprovidas de direitos sociais,
de capacidade adequada de consumo e, fundamentalmente, de tendência
associativa10.O que se verifica é, pois, a formação de uma população excedente
para além do exército industrial de reserva, cuja presença tende a acentuar a
ação despótica do capitalsobre o trabalhoe a definição, pelo mercado, das
regras de contratação e uso do trabalho. É provável que isso tenha contribuído
para que os trabalhadores priorizassem uma agenda direcionada à preservação de
seus direitos e à manutenção do poder aquisitivo dos salários, em detrimento de
ações direcionadas à superação da cidadania regulada.
No que diz respeito ao ambiente político, o período que se estende de 1946 a
1964 foi, durante muito tempo, tratado como um simulacro de ordem democrática,
seja pela interdição à presença na cena política nacional de forças como o
Partido Comunista Brasileiro (PCB), seja pela preservação da estrutura sindical
corporativa, seja pela fragilidade do sistema partidário e da representação
política. Essa imagem, entretanto, tem sido revista. Não obstante a exclusão do
PCB, efetivamente uma medida não democrática, o sistema partidário brasileiro
de 1946 a 1964 parecia seguir uma trajetória de crescente consolidação
(Lavareda, 1991), enquanto a estrutura corporativa cumpria papel ambíguo para a
mobilização dos trabalhadores (Lobo, 2005). De qualquer forma, apenas durante o
governo Dutra o Estado recorreu de maneira intensa à prerrogativa de intervir
nos sindicatos, de modo que a ação destes, na maior parte do período, foi
marcada de razoável e progressivo grau de autonomia e combatividade11.
Todavia, nos anos 1950, os sindicatos dispunham de visibilidade crescente em um
cenário político marcado pela ausência - ou pelo caráter ainda muito incipiente
- de outros movimentos sociais12. Em face da ausência, na cena política, de
outros atores de extração popular com os quais os trabalhadores pudessem se
aliar, é possível indicar que não havia incentivos de natureza política para
que os trabalhadores formais reivindicassem medidas orientadas para a superação
da cidadania regulada, por meio da extensão da política socia laos segmentos
situados à margem do mercado formal de trabalho, diferentemente dos anos 1980,
como veremos adiante. Por outro lado, também não havia constrangimentos à
adoção de uma pauta restritiva, voltada para a defesa do aprimoramento de
políticas para o universo inserido no mercado formal, tal como, de certa forma,
se verifica nos anos 1990.
Nesse ponto, o papel desempenhado pelos atores na constituição da cidadania
adquire relevo e nos remete às análises de De Swaan (1988). O autor sugere que
as modernas políticas sociais se desenvolvem dentro de uma figuração de quatro
ladosenvolvendo o Estado, os trabalhadores assalariados, o empresariado e os
pequenos proprietários. A ação do primeiro depende das coalizões que o
sustentam, enquanto os trabalhadores assalariados seriam a principal força para
reivindicar as modernas políticas sociais. A perspectiva empresarial, por seu
turno, seria balizada pelo impacto das políticas sociais para o desempenho das
empresas, o que confere peso à forma como as economias nacionais se inserem no
mercado mundial e ao tipo de tributação que sustenta os aparatos públicos de
política social13. De sua parte, os pequenos proprietários, especialmente
trabalhadores autônomos em atividades craft, seriam, segundo De Swaan, uma
força que opõe resistência à instalação das modernas políticas sociais, por
verem nelas uma forma de recompensa que desconsidera o mérito. Seu peso na
estrutura social francesa, por exemplo, teria representado um fator relevante
para explicar o ritmo relativamente lento da implementação do Estado de Bem-
Estar Social naquele país.
É pouco provável que tal papel - de interdição política e ideológica à
instalação das modernas políticas sociais - fosse cumprido pela grande massa de
trabalhadores autônomos ocupados em pequenos serviços urbanos ao longo do
processo de industrialização brasileira. Ao contrário dos pequenos
proprietários assinalados por De Swaan, no caso europeu, eles não constituíam
um contingente representativo de atividades tradicionais que a dinâmica
capitalista fez erodir progressivamente. De fato, ocupavam atividades precárias
no setor de serviços, criadas com o processo de industrialização, dado o
caráter desigual deste, conforme mencionamos. Dessa forma, aspiravam às
ocupações modernas inclusive para alcançarem os benefícios à disposição das
pessoas que estavam dentro do mercado formal e da cidadania regulada. Para os
trabalhadores assalariados, contudo, sua incorporação poderia representar um
rebaixamento dos benefícios percebidos, mantidas as formas de custeio das
políticas sociais. Assim, propugnavam, fundamentalmente, que o acesso do
contingente situado à margem do mercado formal às políticas sociais se
processasse por sua incorporação ao próprio mercado formal, por meio do
incremento do processo de industrialização.
Do ponto de vista organizacional, é possível indicar que, na democracia de
1946, embora os trabalhadores estivessem organizados a partir da estrutura
sindical corporativa e jamais tenham logrado - ou mesmo buscado - derrubar
efetivamente os pilares que sustentavam a instituição, como a unicidade e o
imposto sindical14,estasedespiudecertos traços impressos em sua origem. Dessa
forma, se no contexto autoritário do Estado Novo os sindicatos da estrutura
oficial constituíam instrumentos de controle do Estado sobre os trabalhadores,
a partir de 1943, quando a ditadura estadonovista começa a se dissolver, os
trabalhadores se apropriam progressivamente da estrutura montada pelo Estado e
a transformam em locusde formulação de demandas e de mobilização15. Assim, em
que pesem os efeitos acomodativosque a unicidade e o imposto tendiam a provocar
entre as lideranças sindicais (Lobo, 1995), os sindicatos oficiais tornavam-se
organismos que, mesmo que não dispusessem de forte enraizamento nas bases, eram
capazes de mobilizá-las para a ação coletiva na defesa de seus interesses, como
atestam os indicadores de participação em atividades grevistas16.
Além disso, ainda que o sindicato oficial fosse o único canal de intermediação
de interesses reconhecido pelo Estado, no ambiente democrático dos anos 1950, a
estrutura sindical já não era capaz de encapsular a ação coletiva, cada vez
mais intensa no período. Com efeito, organizações de base e experiências
intersindicais, que escapavam ao formato verticalizado da estrutura
corporativa, começavam a despontar, dividindo com os sindicatos a tarefa de
mobilizar os trabalhadores. Contudo, durante o governo Kubitschek, a presença
do formato corporativo, inclusive no que diz respeito aos benefícios
previdenciários, ainda segmentava a ação coletivados trabalhadores por
categoria profissional, ao mesmo tempo que se preservava o hiato entre os
interesses dos trabalhadores formais e informais, ainda que, particularmente no
início dos anos 1960, as greves de massa motivadas pela defesa de temas mais
abrangentes, que afetavam inclusive os que estavam fora do mercado formal,
adquirissem relevância.
Portanto, na década de 1950, não havia incentivos nem pelo lado da economia nem
pelo lado da política para que o movimento sindical formulasse pautas
inclusivas, orientadas para a superação da cidadania regulada. Da ótica
sindical, a desmercantilização do trabalho supunha, sobretudo, a intensificação
do processo de industrialização para aumentar o acesso ao mercado formal de
trabalho e, por conseguinte, aos benefícios da cidadania. Embora o tema da
previdência fosse central na agenda sindical, os trabalhadores tendiam a adotar
uma postura defensiva, orientada para a manutenção dos benefícios conquistados
pelos segurados dos institutos. Em alguns casos, reivindicava-se a isonomia de
direitos dentro desse universo, conquistada com a promulgação da Lei Orgânica
da Previdência Social no fim da gestão presidencial de Kubitschek e início da
década seguinte. A partir daí, intensifica-se a defesa de reformas mais
abrangentes, a exemplo da Reforma Agrária, a qual poderia conter o crescimento
de uma população urbana que não se integrava ao mercado de trabalho e que, em
um ambiente de crise, pressionaria para baixo os salários, com a subsequente
deterioração do padrão de vida dos trabalhadores urbanos com vínculos formais,
tal como aparece de modo explícito em diversos documentos sindicais publicados
no período (Lobo, 2005).
MERCADO, SINDICATOS E POLÍTICA NOS ANOS 1980
Nos anos 1980, o cenário se modifica. A transição rural-urbana da população
brasileira já se havia completado, e o mercado urbano de força de trabalho se
revela mais inclusivo. A conclusão do processo de transição demográfica, bem
como o sucesso dos processos de industrialização - dentro do paradigma fordista
- e de modernização do campo, reduzia a presença dos contingentes
marginalizados da população urbana.
Não obstante a interrupção que se verifica no processo de crescente
assalariamento e de formalização da estrutura ocupacional, o desemprego aberto
só foi expressivo no período recessivo do início da década. No fim dos anos
1980, o mercado de trabalho brasileiro apresentava taxas de desemprego aberto
bastante reduzidas (Baltar, Dedecca e Henrique, 1996), alcançando em 1989 o
menor índice do decênio. Aelevada capacidade de absorção do mercado de trabalho
decorria de fatores como: redução do ritmo de crescimento da PEA urbana, em
contraste com o período precedente, tornando possível sua absorção nas
atividades urbanas; elevação do emprego no setor público, particularmente em
atividades sociais; resistência dos principais agentes econômicos às reformas
liberalizantes, que se processariam no Brasil apenas na década seguinte
(ibidem; Fiori e Tavares, 1993; Mattoso, 1995). Por outro lado, a não
ocorrência de uma ampla reestruturação do aparelho produtivo possibilitou, nos
períodos de retomada da atividade econômica, o reemprego da força de trabalho
que havia sido expelida do mercado no ciclo recessivo (Baltar, Dedecca e
Henrique, 1996).
O mercado de trabalho no período notabiliza-se, pois, por elevados indicadores
de formalização, os quais, combinados ao processo de transição política,
transformavam a década perdidaem uma conjuntura de certo otimismo nos meios
sindicais, em que se desenvolvia a expectativa de superação do caráter
fortemente mercantilizado que assumira a força de trabalho no país e da
cidadania regulada, já mitigada pela universalização de certas políticas
sociais.
Por outro lado, uma das características mais marcantes do mercado de trabalho
nos anos 1980 é a rotatividade de mão-de-obra, a qual se revela extremamente
elevada não apenas em um contraste com países de industrialização mais antiga,
mas mesmo em comparação com outros países do subcontinente17. A despeito de
suas causas, há de se salientar que índices elevados de rotatividade, além de
serem indicativos de uma legislação incapaz de impor freios às demissões
arbitrárias, provocam uma extrema fragilização do trabalhador em face do
empregador. Em outros termos, elevada rotatividade conduz à precarização dos
postos de trabalho e reduz o poder de barganha do trabalho diante do capital.
Werneck Vianna há muito salientou, com base na visão dos próprios empresários,
que a "estabilidade no emprego aumenta o passivo trabalhista das empresas,
diminuindo suas possibilidades de ação" (1999: 344). A elevada rotatividade, ao
contrário, subtrai poder do trabalhoe tende a reduzir a capacidade de
mobilização dos sindicatos, configurando, assim, um fator de peso que tende a
reforçar o caráter mercantilizado do trabalho.
Contudo, a despeito das elevadas taxas de rotatividade, o tempo de espera por
novo emprego era reduzido nos anos 1980, sobretudo quando contrastado com os
indicadores dos anos 1990. Além disso, na ausência de reestruturação
industrial, o retorno à categoria de origem era bastante provável, poupando-se
assim as bases sociais dos sindicatos. Dessa forma, não obstante a elevada
rotatividade contribuir sobre maneira para acentuar o caráter mercantil da
força de trabalho, avasta oferta de vagas, ao permitir um rápido retorno ao
mercado de trabalho, anulava, ainda que parcialmente, o impacto da rotatividade
no processo de mercantilização, favorecendo a difusão de disposições
universalistas nos meios sindicais.
Em outras palavras, a superpopulação relativa, presente na estrutura
capitalista da economia brasileira dos anos 1980, já não corresponde a um vasto
contingente que o desenvolvimento econômico é incapaz de absorver, como nos
anos 1950; menos ainda a um grupo de pessoas permanentemente expelidasdo
mercado de trabalho, por força de um processo de acumulação regido pela
reestruturação das empresas e pela emergência de um novo paradigma tecnológico,
que se vale cada vez menos de trabalho vivo, como nos anos 1990. Trata-se de um
contingente que pertence às fileiras assalariadas e que delas se ausenta
ciclicamente, contribuindo para que a agenda sindical contemple os interesses
dos excluídos do mercado formal de trabalho.
Na política, o cenário é marcado pela efervescência social, expressa no
surgimento dos novos movimentos sociais, parceiros potenciais do movimento
sindical. Com efeito, em meio ao processo de transição política, a mobilização
social não se restringiu ao trabalho. Segundo Boschi (1987), dos campos, dos
bairros, das favelas, organizavam-se e lançavam-se à cena política outros
movimentos, populares ou de classe média, muitos deles apoiados por entidades
da sociedade civil egressas de setores da Igreja Católica ou por agrupamentos
ecumênicos, intelectuais etc. Por seu turno, entre os assalariados, a
mobilização ultrapassou as fronteiras do movimento operário, atingindo a classe
média, conforme atesta a organização de profissionais liberais e funcionários
públicos.
Quanto às demandas dos grupos que compõem esse renascimento da sociedade civil,
que marca a saída do último ciclo autoritário, verifica-se uma conjugação de
questões especificamente relacionadas aos interesses particulares de cada
segmento com a pressão por liberdade e igualdade, ponto que unificava os
diversos movimentos. A mobilização desses setores contribuirá para que, na
década de 1980, a sociedade brasileira abra uma série deoportunidades à
democracia tanto em seu aspecto político quanto no campo mais substantivo da
superação do abismo socioeconômico que separa o país em duas realidades. A
forte mobilização em torno da campanha pelas eleições diretas para presidente,
a articulação de demandas direcionadas ao Congresso Constituinte, a mobilização
em torno da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, em 1989,
simbolizam algumas dessas oportunidades (Rodrigues, 2001). Em todos esses
episódios, a institucionalização da democracia dividia espaço com as
expectativas de superação das profundas divisões socioeconômicas que marcavam
desde sempre a sociedade brasileira. Era essa combinação que suscitava novas
organizações e articulações que revitalizaram a cena política do período, em um
círculo virtuoso no qual mobilização e institucionalização pareciam alimentar-
se mutuamente.
Segundo Rodrigues (ibidem), a organização e a ação desses grupos se davam,
pois, nos marcos de um campo ético-político que combinava a rejeição ao
autoritarismo, que havia marcado o regime que combatiam diretamente, com a
negação do padrão corporativo-clientelista queteria predominado no período
anterior. É nessa perspectiva que os novos atores buscam superar os limites da
competição intraelites e reinstaurar o eixo da participação,mas também
alutapela redistribuição18.Nos termos de Mota (1995:151),
o horizonte ideológico e político dessas lutas é o da autonomização
das condições de reprodução do trabalhador diante da esfera da
reprodução econômica do capital. No plano material, o horizonte dessa
luta projeta-se na esfera do consumo coletivo de bens e serviços não
mercantis, cujo acesso, pelos trabalhadores, não dependeu,
exclusivamente, do tempo de trabalho fornecido ao capital, pelo fato
de muitos desses bens não se vincularem ao poder de compra dos
salários [...]. No plano jurídico-político, a mediação daquele
processo se fez pela institucionalização dos direitos políticos e
sociais, fundados nas necessidades do trabalho e não nas necessidades
da venda da força-de-trabalho.
Assim, nos anos 1980, havia incentivos tanto pelo lado da economia quanto pelo
lado da política para que os trabalhadores organizados assumissem um discurso
orientado para a proteção aos excluídos do mercado formal de trabalho por meio
da universalização da cidadania.
Quanto à organização sindical, a despeito do retorno ao ordenamento corporativo
que as antigas oposições sindicaiselegerão como estratégia no momento
imediatamente posterior ao recrudescimento do sindicalismo, a autonomia que
marca seus primeiros passos será fundamental para a aproximação que busca
estabelecer com os novos movimentos sociaise para a definição de suas escolhas
e de sua agenda19. Essa disposição para uma luta conjunta existe desde a
formação da CUT e teria sido, de certo modo, determinante do ritmo que assumia
a transição paraademocracia, ao mesmotempo quetornava oquadropleno de
incertezas, sobretudo no que tange à questão social20.
Por outro lado, conquanto permanecesse em aberto a solução para o secular
problema das desigualdades sociais - o que de certa forma implicava a superação
da cidadania regulada por meio da inclusão dos setores que até então vinham
sendo mantidos à margem dos direitos sociais, os quais, na clássica formulação
marshalliana, constituem o corolário do processo de universalização da
cidadania -, na política avançava-se firmemente em direção à democracia21.
Na esfera do sistema político, a reforma de 1979 abria caminho para a
organização partidária dos trabalhadores22, permitindo o estabelecimento de
vínculos mais consistentes entre o movimento sindical, demais movimentos
sociais e a representação parlamentar. Em certa medida, o PT buscava cumprir,
na esfera institucional, o papel de representante dos interesses dos
trabalhadores, assumindo progressivamente a função de dissolver os interesses
corporativos e de organizar pautas mais abrangentes, que correspondessem a
reivindicações comuns a várias categorias (Mota, 1995:153). Além disso, o
partido buscava tornar-se interlocutor também dos demais setores populares,
fixando uma agenda que extrapolava demandas referentes especificamente aos
trabalhadores formais e refletindo os interesses definidos pelos diversos
setores organizados em suas bases, sob a forma de núcleos demoradia,
de"minorias"etc.23
No campo estritamente sindical, a emergência e a afirmação das centrais
sindicais aumentavam a visibilidade das correntes presentes dentro do
sindicalismo e de certo modo homogeneizavam as demandas, favorecendo um
tratamento não corporativo das questões que afetavam o conjunto dos
trabalhadores e também os outros setores populares. Segundo Mota, os
trabalhadores teriam logrado ampliar significativamente seu campo de
reivindicações, inclusive "por meio de propostas encaminhadas pelas centrais
sindicais e pelos partidos políticos, de natureza mais universal, e que abriam
espaço para a institucionalização de novos direitos políticos e sociais"
(ibidem:151), ao mesmo tempo que, nos contratos coletivos de trabalho, obtinham
benefícios específicos relacionados às condições de trabalho, produtividade e
benefícios sociais junto às empresas.
De certa maneira, como que em uma divisão de tarefas, os sindicatos oficiais,
reapropriados pelos trabalhadores, realizavam greves localizadas e se
concentravam nas campanhas salariais, no âmbito das quais defendiam interesses
específicos dos empregados de uma empresa ou dos membros de determinada
categoria profissional, enquanto as centrais - ou a central, para ficarmos no
âmbito da CUT24- e os partidos - mais precisamente o PT, mas não apenas25-
selançavam nalutapolítica pela extensão das conquistas obtidas pelas categorias
mais organizadas ao restante dos trabalhadores e pela extensão de conquistas
que historicamente eram atribuídas apenas aos trabalhadores com vínculos
formais ao conjunto dos setores populares. Essa perspectiva se reflete na
defesa da fixação constitucional de direitos aos trabalhadores domésticos,
rurais, pescadores e avulsos, ponto essencial no embate que se trava, durante a
Constituinte, entre os partidos progressistaseo chamado centrão26.
De todo modo, o que importa marcar até aqui é que, nesse contexto, a emergência
política de novos atores, associada à renovação do movimento sindical, força o
estabelecimento de um novo campo ético-político que permite a constituição de
redes sociais a partir das quais emanam discursos e práticas que pressionam não
apenas pela abertura à participação política dos de baixo(Rodrigues, 2001) mas
também pelo debate em torno da questão social. Da mesma formaque na política se
apontava para a superação não apenas da ordem autoritária mas também da
institucionalidade corporativa que antecede o regime militar, na questão
social, buscava-se a ruptura com a segmentação e a exclusão que marcam a
política social desde sua instauração, entre as décadas de 1930 e 1940, e que
as alterações subsequentes não lograram superar.
Assim, a defesa da incorporação à cidadania via inserção no mercado formal,
presente no discurso do movimento sindical nos anos 1950, será de
certomodoultrapassada no ocasododesenvolvimentismo, dando lugar a formulações
direcionadas à universalização dos benefícios previdenciários e à luta em favor
da adoção de políticas regulatórias e compensatórias, de geração de empregos e
de proteção ao desempregado, essenciais no processo de redução do caráter
mercantilizado das relações de trabalho. No limite, pois, o que se buscava nos
anos 1980 era a superação da cidadania regulada, e não mais seu alargamento,
como nos anos 1950.
MERCADO, SINDICATOS E POLÍTICA NOS ANOS 1990
As expectativas geradas nos anos 1980 dissolvem-se na década seguinte, diante
do aparecimento do desemprego estrutural e de longa duração. No fim dos anos
1990, após uma década de políticas econômicas de estabilização monetária, o
Brasil notabilizava-se por sua posição de país campeão mundial de desigualdades
sociais e com uma economia marcada por reduzidos níveis de crescimento. Tal
condição era inimaginável nos anos 1950, quando o país parecia apontar para a
prosperidade e a inclusão social, via crescimento econômico e ampliação do
mercado formal de trabalho. De certa forma, esse quadro era impensável também
em meados dos anos 1980, quando a Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe (Cepal) prognosticava que o Brasil dispunha de grandes chances de
recuperar bons ritmos de crescimento (Soares, 1999:158) e as políticas sociais
caminhavam em direção à universalização.
Na década de 1990, o desemprego, que já vinha se transformando em um problema
mundial desde pelo menos os anos 1980 - quando os ciclos de crescimento das
economias nacionais já não se faziam acompanhar da reposição de postos de
trabalho, em função da reestruturação produtiva adotada de modo generalizado
pelas empresas -, atinge em cheio a sociedade brasileira, alcançando mais de 10
milhões de pessoas em todo o país (Mattoso, 1995). O emprego com registro em
carteira, por seu turno, que em 1989 correspondia a 59,5% do total de ocupados
no país, caiu para menos de 45% em 1999 (idem, 1999).
O fato é que o descontrole da inflação e o forte endividamento externo, dois
aspectos centrais que o desenvolvimento mantido à marcha forçadaenvolvia,
suscitavam a necessidade de redefinição das fontes de financiamento para a
retomada do desenvolvimento industrial da nação. Quanto a isso, não parecia
haver objeções relevantes entre os economistas. A percepção de que o país vivia
uma profunda crise de ordem macroeconômica e um esgotamento do padrão
desenvolvimentista era consensual27. A terapia adotada, contudo, foi objeto de
controvérsias na medida em que tendia a produzir efeitos colaterais de monta
sobre a sociedade brasileira, agravando celeremente o problema do desemprego no
país.
Com efeito, a ênfase atribuída a uma agenda econômica centrada na estabilização
monetária, que envolvia políticas recessivas, acabou conduzindo à deses
truturação do setor produtivo e, por conseguinte, ao aumento do desemprego e da
informalidade, enquanto permaneciam elevados os indicadores de concentração
derenda e de riqueza. A absorção do receituário do Fundo Monetário
Internacional (FMI) e de outros organismos multilaterais - receituário expresso
no chamado Consenso de Washington - lançou o país em uma rota que terminou por
tornar mais significativo o fenômeno da exclusão social. Por outro lado, como
parte de um conjunto de medidas de desregulamentação e redução do Estado, o
Executivo federal empenhou-se na defesa da flexibilização das relações de
trabalho, reduzindo direitos e proteções aos trabalhadores formais.
No agregado, essas medidas resultaram na precarização do trabalho, fenômeno
que, somado ao crescente desemprego, atingiu os sindicatos e o movimento
sindical de diferentes maneiras, não apenas por causa da redução de suas bases
- fator que, além de subtrair poder de barganha e pressão dos sindicatos,
diminui as receitas sindicais -, mas também pela insegurança que o desemprego
proporciona entre aqueles que permanecem empregados, com a subsequente redução
da disposição para a participação em ações coletivas, cujos custos se elevam
com a dilatação do contingente de desempregados. Ademais, a reestruturação
produtiva e organizacional das empresas, chamadas a aumentar sua
competitividade em função da abertura comercial, ao instituir os chamados
programas de qualidade, força a lealdade do trabalhador em face da empresa, em
detrimento do sindicato28, ao mesmo tempo que o fenômeno da terceirização
pulveriza a força de trabalho, dificultando uma ação concertada desses
trabalhadores, com impacto sobre a capacidade de mobilização dos sindicatos e
também sobre sua agenda.
Quanto à presença de outros atores de extração popular na cena política, com os
quais o movimento sindical pudesse estabelecer alianças em nome de uma pauta
que extrapolasse demandas orientadas especificamente pelo interesse dos
trabalhadores formais, o que se verifica nos anos 1990 é que, não obstante a
mobilização de movimentos de diferentes matizes dispostos a reagir ao
desemprego e à acentuação da exclusão, esses movimentos não chegaram a acumular
forças que os habilitassem a pressionar o redirecionamento das políticas
públicas, ainda que, em certos momentos, tenham logrado vetar certos projetos
de contrarreformada política social. Nesse período, a principal novidade
política e social do cenário brasileiro foi o aparecimento do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (Linhares e Silva, 1999), cujo impacto
sobre a agenda governamental se exprime nos inúmeros assentamentos promovidos.
No discurso do MST, estavam presentes a rejeição ao neoliberalismo, a defesa de
uma maior intervenção do Estado na economia e a "integração de uma parcela dos
excluídos ao processo de cidadania", que só seria alcançada por meio do acesso
à terra (ibidem:207). De imediato, defendiam uma reforma da estrutura agrária
capaz de promover rápida e sistematicamente o assentamento das famílias de
trabalhadores sem terra. Quanto à relação com o movimento sindical, o MST
mantinha uma "proximidade crítica" com a CUT, repelia o"engajamento na
cooperação como governo da Força Sindical" e divergia da postura moderadada
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura(Contag), que defendia
a"vialegal e institucional para conquistas sociais para os trabalhadores rurais
e agricultores" (Nogueira, 2000:9).
Na cena nacional dos anos 1990, observam-se, ainda, formas variadas de
protesto, sobretudo na segunda metade da década. Embora já não se verifique a
efervescência social que marcou o período de transição política na década
anterior, destacam-se manifestações diversas relacionadas ao tema do desemprego
e da exclusão social. O Grito dos Excluídos, aMarchados Cem Mil, oGrito da
Terra Brasil, a Marcha Zumbi dos Palmares, a Marcha da Educação são exemplos de
manifestações destinadas a protestar contra os efeitos da política
governamental e a pressionar o governo no sentido de incluir na agenda a
questão social. O movimento sindical, particularmente a CUT, envolveu-se
diretamente em todas essas manifestações. Na perspectiva de uma CUT Cidadã29,
tratava-se de empreender uma "resistência propositiva ao neoliberalismo e da
necessária vinculação dos interesses dos trabalhadores assalariados do 'setor
formal da economia' com os interesses mais amplos da classe trabalhadora e do
povo oprimido" (CUT, 2000:9). O Fórum Nacional de Lutas, frente social que
congregava movimentos de moradia, partidos políticos, sindicatos etc., foi
resultado de um esforço conjunto que resultou na realização daquelas
manifestações, as quais, contudo, dispunham de um caráter mais pontual do que
permanente.
De qualquer forma, essas ações conjuntas resultavam da constatação de que
enfrentar capitale governoexigia um esforço de todos os movimentos populares no
sentido de aliar-se para combater e alterar "o modelo econômico excludente"
(Stédile apudNogueira, 2000:9). Nos termos da CUT (2000:9), tratava-se de
combinar a "luta institucional às lutas de massa", agregando à pauta sindical
"elementos essenciais para a conquista da plena cidadania [...], construindo
uma política de aliança com o movimento social [...] para forjar uma
alternativa ao governo neoliberal e suas políticas". Havia, portanto, por parte
das lideranças dos movimentos sociais, exata noção das dificuldades a serem
enfrentadas e da necessidade de se empreender uma ação concertada, passando da
resistência - que aquelas manifestações a que aludimos acima exprimiam - à
proposição de um projeto nacional que viabilizasse a consecução das diretrizes
impressas na Constituição em matéria social e as aprofundasse.
No entanto, o discurso desregulamentador emanadodo governo federal e de
organismos empresariais enfatizava as divisões entre os trabalhadores inseridos
no mercado formal e os de fora, além deacentuara cisão no interior do próprio
movimento sindical. Ao insistir na tese de que o desemprego era tributário do
elevado custoda contratação formal e de que a solução se vinculava à supressão
de direitos aos trabalhadores formais, o discurso governamental lançava água no
moinho da remercantilização da força de trabalho no país. Por outro lado, a
presença pontual daqueles movimentos inibia a efetivação de alianças mais
persistentes e a fixação de um elenco de políticas sociais que permitissem a
construção de laços amplos de solidariedade capazes de garantir os
contramovimentosde autodefesa da sociedadediante do acentuado processo de
desestruturação do mercado de trabalho.
Portanto, o desafio era de monta e enfrentá-lo implicaria estender a ação
sindical para além do mundo do trabalho, de certo modo recobrando o papel que o
sindicalismo exerceu nos anos 1980, ao transformar-se em protagonista do
processo de aprofundamento da democracia e de transformações sociais, em
direção à universalização da cidadania30. No entanto, isso dependia não só da
mobilização de outras forças que oferecessem sustentação a tal projeto mas
também de uma ação combinada no interior do movimento sindical. Todavia, além
das condições adversas que a crise de emprego suscitava, da necessidade de
mobilizar outros setores da sociedade, do aumento e diversificação da população
marginalizadae da impermeabilidade do poder público às proposições do
sindicalismo mais combativo, o movimento sindical encontrava-se cindido entre
duas correntes que, conquanto tenham sido capazes de empreender ações conjuntas
em torno de demandas tópicas31, passaram boa parte da década buscando marcar
suas diferenças. Tais diferenças se expressam tanto na forma de atuação da CUT
edaForça Sindical, em sua relação com o Estado e o empresariado, quanto na
postura diante das mudanças que se verificam no mundo do trabalho.
Essa divisão nos meios sindicais se reflete no conjunto dos movimentos sociais.
Em que pesem as manifestações genéricas e unificadas contra a exclusão e o
desemprego, pelo menos em um aspecto a divergência era clara, dificultando a
constituição de alianças mais consistentes entre o movimento sindical mais
combativo, representado pela CUT, e os demais atores. O discurso
desregulamentador que se fortalece nos anos 1990 tem respaldo na sociedade na
medida em que a desmercantilização da força de trabalho vista do ângulo da
preservação dos direitos atribuídos ao trabalhador formal interessava, segundo
aquele discurso, apenas a um grupo cada vez mais reduzido de pessoas, ao passo
que o crescente e heterogêneo contingente situado à margem do mercado formal de
trabalho desenvolvia expectativas que se distanciavam progressivamente da
perspectiva dos trabalhadores formais, tendênciaque será reforçada pelo
discurso governamental que atribuía aos direitoso caráter de privilégios.
Em outros termos, em contraste com os anos 1980, na década de 1990 a defesa dos
interesses dos de dentrojá não se revela plenamente compatível com a
perspectiva dos de fora. O protesto contra a política econômica, contra o
desemprego e contra a exclusão unifica os diversos movimentos, mas a formulação
de projetos alternativos que contivessem o processo de remercantilização foi de
certo modo obstada por essa dicotomia.
Em síntese, se no cenário nacional os problemas a serem enfrentados pelo
movimento sindical se tornam complexos, na cena sindical a divisão e a disputa
entre duas tendências bem delineadas impedem uma ação concertada no combate ao
desemprego, à crescente exclusão dele resultante e à reconversão do trabalho em
mercadoria. São observadas, pois, formulações direcionadas ao enfrentamento
tópico de determinadas questões, seja reagindo às iniciativas estatais, seja
ratificando-as, em geral por meio de uma ação que, porquanto desconexa, se
revelou incapaz de redefinir as regras do jogo, obtendo-se, no máximo, o
adiamento de certos lances. Isso não é pouco se considerarmos aquela conjuntura
extremamente adversa de crise do trabalhoe de forte ofensiva governamental e
empresarial em direção à transformação do trabalho em mercadoria, mas é
insuficiente para conter tal tendência.
Assim, na presença de um mercado de trabalho em retração, de um ambiente
político pouco permeável à ação reivindicativa dos trabalhadores e de um
sindicalismo cindido, a estratégia de confronto predominante nos anos 1980 e a
agenda salarial serão substituídas por uma ação mais defensiva, centrada na
garantia do nível de emprego. Tendo como preocupação primordial o desemprego, o
movimento sindical amplia sua agenda e, de certo modo, sofistica suas
formulações, adquirindo uma noção mais integral dos mecanismos que conduzem ao
desemprego, agora estrutural e de longa duração. Dessa forma, adota uma agenda
orientada por um amplo espectro de demandas, que ora configura uma reação ao
processo de remercantilização da força de trabalho, ora expressa uma tentativa
de adaptação às novas condições do mercado de trabalho, ora exprime uma
rendição à acepção da força de trabalho como mercadoria32.
Em outros termos, o movimento sindical foi levado a postular medidas em várias
frentes, buscando conter o processo de remercantilização do trabalho impresso
nas investidas empresariais e governamentais em direção à flexibilização das
relações de trabalho, ao mesmo tempo que assumia funções que correspondiam às
expectativas do mercado, procurando atender às novas exigências dos processos
de produção reestruturados33.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer da República Trabalhista, o movimento sindical brasileiro alcançou
conquistas expressivas no sentido da desmercantilização da força de trabalho
incluída no universo da cidadania regulada. O elenco de direitos assegurados
pela Previdência Social brasileira aos trabalhadores formais era bastante
amplo, ao passo que a presença de um mercado de trabalho em expansão e a
operação de institutos como a estabilidade no emprego, se não chegavam a
eliminar, ao menos esmaeciam o despotismo do capital nos processos de
contratação e demissão. Tais dispositivos, contudo, não alcançavam a parcela da
população situada à margem do mercado formal de trabalho. Sua inclusão no
sistema de direitos existente era apoiada de forma tênue pelo movimento
sindical, organizado sob aégide da estrutura corporativa, seja pela ausência de
expressões políticas relevantes daquele segmento na cena política, seja pelo
temor de que a extensão dos direitos pudesse acarretar a precarização dos
benefícios atribuídos aos trabalhadores formais, em função do modelo de
financiamento prevalecente. Assegurada por contribuições incidentes sobre a
folha de pagamentos das empresas e sobre os salários, corrigidos desde 1954, a
estrutura dos benefícios concedida aos trabalhadores do mercado formal era
custeada pelo conjunto dos consumidores, incluindo a população marginal,
despida de qualquer tipo de proteção assegurada pelo Estado (Delgado, 2001).
Assim, as formulações do movimento sindical apontavam a continuidade do
desenvolvimento econômico como o mecanismo por excelência de inclusão daquela
população no mercado de trabalho e na cidadania. No fimdoperíodo,quandosereduz
oritmo de crescimento da economia nacional, demandas como a reforma agrária
ganham relevo. Esta é entendida como um mecanismo de retenção da população
rural no campo a fim de não afetar, por meio do aumento da população marginal
nas cidades, o poder de barganha dos trabalhadores urbanos e reduzir a pressão
sobre a estrutura de benefícios prevalecente. Nesse período, o tema do
desemprego não chegou a suscitar formulações que apontassem para a instalação
efetiva do seguro-desemprego, antes revelando a perplexidade diante de um
fenômeno recente na trajetória do capitalismo brasileiro.
Nos anos 1980, o país parece reunir condições ótimaspara o alcance de formas
avançadas de desmercantilização da força de trabalho. É expressivo o
contingente de trabalhadores no mercado formal de trabalho; o avanço do
capitalismo no campo contribui para fomentar a organização dos trabalhadores
rurais; ganham relevo diferenciadas expressões políticas da população urbana;
emerge o sindicalismo dos assalariados de classe média; aparecem as centrais
sindicais, especialmente a CUT, que favorecem o desenvolvimento de uma
percepção ampla dos dilemas do mundo do trabalho. Irrompem no proscênio
identidades políticas que interpelam os trabalhadores como classe, ao passo que
o ambiente de transição política sugere que o Brasil se encontra em um momento
de refundação, o que estimula a disposição de inscrever na ordem institucional
dispositivos que corrijam a trajetória de desigualdade que marcou o
desenvolvimento capitalista no país. A Carta de 1988 é o desaguadouro da imensa
corrente de participação política que marcou a década de 1980. Elaborada por um
Congresso majoritariamente conservador - que chegou a mitigar diversos
dispositivos sociais aprovados -, a Constituição incorporou um elenco
considerável de medidas que apontavam para a desmercantilização da força de
trabalho no país e para a superação da segmentação entre os de dentroe os de
foraao dissociar o acesso aos direitos sociais da participação no mercado
formal de trabalho. Dos meios sindicais, emanavam reivindicações que
expressavam a compatibilidade entre os interesses daqueles dois segmentos, como
a defesa da universalização da política social, que viria a alargar o escopo da
cidadania no país; a reforma da estrutura fundiária; a luta pela redução da
jornada de trabalho, que ampliaria a capacidade de absorção do mercado de força
de trabalho; a regulamentação e o incremento do programa de seguro-desemprego,
que protegeria o trabalhador expelido do mercado em suas variações cíclicas.
O passado, entretanto, "pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos". O peso das
escolhas anteriores criou dificuldades, por assim dizer, para a implementação
plena dos dispositivos da Constituição de 1988, que não encontrou, ademais, nos
diversos governos que se instalaram sob sua égide, a sintonia e a disposição
necessárias para torná-la efetiva. Assim, se tomarmos a política de saúde como
exemplo, não obstante os avanços reais representados por sua universalização
enquanto prerrogativa, acabou por se materializar uma estrutura dual em que o
sistema público atende fundamentalmente-e deforma precária-os pobres, ao passo
que os estratos médios e superiores da pirâmide social buscam serviços privados
que se haviam ampliado com iniciativas tomadas ainda sob o regime militar. Por
seu turno, importantes conquistas, como a redução da jornada de trabalho,
tiveram seus efeitos sobre o mercado de trabalho mitigados em face da opção
empresarial pelo recurso ao trabalho extraordinário, cuja supressão foi
abordada de maneira extremamente tímida pelo movimento sindical. A premência na
busca individual poruma renda adicional que compensasse a escalada
inflacionária, em um quadro de intensa rotatividade da força de trabalho -
ainda, parcialmente, um legado do período militar -, realçava no movimento
sindical a luta pela recomposição dos salários e adiava o tratamento de temas
como aqueles a que acabamos de aludir. A própria CUT, principal central
sindical na época, viu-se diante da dificuldade de combinar a proposição de
redução da jornada de trabalho com a eliminação da hora extra. De todo modo, os
anos 1980 correspondem ao momento em que as formulações do movimento sindical
mais se aproximam da superação da dicotomia entre os interesses dos de
dentroedos de fora.
Na década de 1990, sopram fortes os ventos gerados pelo moinho satânicodo
mercado. A crise de refundação dos anos 1980 desembocou em uma solução
bonapartistaque levou Fernando Collor de Mello ao poder. Inaugurou-se no país
um período de desregulamentação e de abertura da economia, acelerando os
procedimentos de reestruturação das empresas, afetando a estrutura do mercado
de trabalho e contribuindo para a redução do poder de barganha do movimento
sindical, que, cindido, opera em um ambiente adverso, marcado pela hegemonia
neoliberal. O incremento do desemprego e da informalidade elevou os custos da
participação na ação coletiva, afetando a disposição para agirdos
trabalhadores, bem como reacendeu a segmentação entre os de dentroe os de
forano mercado de trabalho. Aconsolidação das centrais sindicais será
contrabalançada pela pulverização na base da estrutura sindical, efeito
perversoda autonomia conquistada em 1988. Além disso, os diferentes governos
revelaram-se pouco propensos a acolher as demandas sindicais. Assim, o
movimento sindical foi levado a adotar uma postura de certa forma defensiva.Por
um lado, a contínua presença, na pauta sindical, de propostas orientadas para
aredução da jornada de trabalho revela a perda de confiança em um papel
exclusivo do crescimento econômico para a geração de empregos e a permanência
da disposição de lutar pela inclusão social por meio de uma medida que
aprofunda a desmercantilização. Por outro, o giro que se verifica no período em
direção à qualificação profissional revela como a realidade avassaladora da
década neoliberal cobra seu preço, orientando o movimento sindical para as
tarefas de preparação dos indivíduos, e não mais por intermédio da ação
coletiva, para a renhida disputa das escassas vagas criadas pelo
desenvolvimento capitalista na era do desemprego estrutural.
Se, como afirmamos no início, a desmercantilização da força de trabalho
constitui um passo importante na conquista da cidadania e, por conseguinte, na
consolidação da democracia - uma vez que reduz o desequilíbrio na correlação de
forças entre capital e trabalho, fortalecendo as organizações do trabalho e
facilitando a adesão à ação coletiva direcionada a novas conquistas sociais, em
um círculo virtuoso que, ao cabo, tende a produzir resultados de soma positiva
-, a década de 1990 pode ter significado uma inflexão na trajetória de
consolidação da democracia no Brasil. A remercantilização da força de trabalho
aprofundou o desequilíbrio de forças entre capitale trabalho, onerando a
participação na ação coletiva, que outrora se revelou fundamental para a
conquista de diversos direitos ancorados na ideia de cidadania.
As expectativas de romper com esse círculo vicioso que a eleição de Luiz Inácio
Lula da Silva suscitou em variados setores da sociedade brasileira,
particularmente entre os trabalhadores, até o momento não obtiveram do governo
uma resposta que indicasse que um novo cenário estaria por se descortinar. Em
que pese a adoção de importantes medidas no campo social, os indicadores ainda
permanecem distantes da perspectiva de uma sociedade mais igualitária. A crise
política que marcou parte do primeiro mandato do presidente petista adiou o
tratamento de questões substantivas que, ao lado da retomada do crescimento
econômico verificado nos últimos anos, poderiam fazer a sociedade avançar mais
rapidamente em direção à inclusão. A discussão em torno de uma tímida reforma
sindical não veio acompanhada de medidas como, por exemplo, a redução da
jornada e a supressão do trabalho extraordinário, capazes de promover,
efetivamente, uma significativa ampliação do mercado de trabalho que o
crescimento da economia per sejá não é capaz de assegurar. A forte capacidade
demonstrada pelo governo Lula no sentido de superar crises políticas, a
retomada do crescimento da economia nacional e os elevados índices de aprovação
do governo e do presidente revelam condições razoáveis para a adoção de
iniciativas que, a exemplo da redução da jornada de trabalho e da eliminação do
trabalho extraordinário, poderiam reinaugurar o círculo virtuoso que nos anos
1980 conteve os ventos da remercantilização que já sopravam em outras partes do
mundo.
NOTAS
1. Para uma tipologia das políticas sociais, conferir Santos (1979:58 e ss).
2. A relação entre bem-estar social, democracia e estabilidade política foi
estabelecida por diversos autores, a exemplo de Przeworski (1989). Aceitar tal
acepção não implica, naturalmente, ignorar a validade de proposições que
vinculam estabilidade política também a contextos autoritários, tal como em
Huntington (1975). Trata-se aqui apenas de compreender que a estabilidade de
regimes democráticos em geral supõe, para além dos direitos políticos, direitos
sociais, tais como concebidos por Marshall (1967).
3. É provável que jamais a força de trabalho tenha assumido integralmente a
condição de mercadoria, uma vez que, mesmo no apogeu do liberalismo, se
verificam traços de relações de proteção pré-capitalistas, ao mesmo tempo que
formas modernas de proteção começavam a se desenvolver (Esping-Andersen, 1990:
37).
4. A política bismarckiana é paradigmática desse modelo.
5. Melo lembra que, fundado no princípio da seguridade social, da proteção ao
trabalho e da redistribuição, o Welfare Stateaparece como corolário do processo
de desmercantilização. Segundo o autor, "a emergência do WS é indissociável da
constituição histórica de atores coletivos, como burocracias públicas, e
trabalhadores mobilizados em formas organizacionais específicas, como
sindicatos e partidos - e sua subseqüente incorporação à vida política. Estes
atores realizaram escolhas estratégicas que tiveram fortes implicações sobre a
formação dos WS" (1991:265).
6. Na clássica formulação de Marx, a população excedenteconstitui um exército
industrial de reservaque "pertence ao capital de maneira tão absoluta como se
fosse criado e mantido por ele" (1975:733). Essa percepção tem respaldo na
literatura sobre exclusão no Brasil dos anos 1950, a exemplo de Kowarick
(1981), mas sustentamos que o volume da população excedente naquele período é
superior às reservasde força de trabalho necessárias à reprodução do
capitalmesmo nas condições particulares do desenvolvimento brasileiro, para as
quais chama a atenção Oliveira (1981).
7. Em texto clássico, Oliveira (1981) indaga acerca da relação de causalidade
estabelecida entre a incapacidade de retenção da mão-de-obra pelo setor
primário e de absorção desta pelo setor secundário e o inchaçodo terciário. O
autor sugere que o crescimento do terciário no Brasil, expresso na crescente
absorção de força de trabalho, tanto em termos relativos quanto em termos
absolutos, é inerente à forma como se processou a acumulação capitalista no
país. Desse modo, o incremento do setor terciário "faz parte do modo de
acumulação urbano adequado à expansão do sistema capitalista no Brasil; não se
está em presença de nenhuma 'inchação', nem de nenhum segmento 'marginal' da
economia" (ibidem:31). Assim, o crescimento do setor de serviços não é
contraditório com a forma de acumulação nem com a expansão global da economia,
já que "os serviços realizados à base de pura força de trabalho, que é
remunerada a níveis baixíssimos, transferem permanentemente, para as atividades
econômicas de corte capitalista, uma fração de seu valor, 'mais-valia' em
síntese" (ibidem:33). Por seu turno, Kowarick (1981) indica que a transição
rural-urbana se realiza constituindo amplos contingentes ocupados em pequenos
serviços, já que o crescimento de postos de trabalho gerados direta ou
indiretamente na indústria não é suficiente para absorver tais segmentos da
população. Esses contingentes apresentam volume superior ao necessário para que
o exército industrial de reserva cumpra seu papel de reprodução do capital,
criando-se um segmento populacional permanentemente marginalizado. De um modo
ou de outro, o que cumpre ressaltar é que, a despeito do lugar que ocupam ou do
papel que desempenham no desenvolvimento capitalista nas condições brasileiras,
tais segmentos, ocupados em pequenos serviços, situam-se à margem da cidadania,
uma vez que, associados a um setor tipicamente informal, não têm acesso à
política social, atribuída no Brasil apenas aos trabalhadores formais.
8. O primeiro momento constitutivo do mercado de trabalho brasileiro
corresponderia à fase de expansão acelerada do complexo cafeeiro, quando se
desenvolvem relações diferenciadas nas relações de trabalho agrícolas
(colonato, parceria, assalariamento etc.) e nas relações de trabalho
assalariadas (avulsas ou não) nas atividades urbanas. O segundo se desenvolve a
partir da crise de 1929, quando o trabalho vinculado a atividades urbanas ganha
expressão cada vez maior, apesar da preservação do elevado peso do trabalho
agrícola (Baltar e Dedecca, 1992:4-5).
9. O número de contribuintes do sistema previdenciário foi publicado
regularmente entre 1948 e 1966 (implementação do Instituto Nacional de
Previdência Social - INPS). Diante da dificuldade de semensurar o mercado
formal de trabalho no Brasil dos anos 1950, optamos por contrastar os números
de contribuintes da Previdência com os números da PEA a fim de obtermos uma
aproximação com a proporção real de empregados no setor formal em relação à PEA
urbana (cf. Lobo, 2005).
10. As associações de trabalhadores não inseridos no mercado formal é recente
no país, com exceção dos rurais. Contribui para isso, além da propalada
dificuldade de organização de autônomos, domésticos, eventuais - em função da
própria natureza dessas ocupações -, a presença de uma estrutura sindical
oficial que só permitia a criação de sindicatos por categorias reconhecidas
pelo Ministério do Trabalho.
11. Cf. números e natureza das greves em Sandoval (1994).
12. Os movimentos sociais existentes nos centros urbanos, naquele período, em
geral se destinavam à defesa de interesses bastante específicos, a exemplo dos
Comitês Pró-Melhoramento, que representavam moradores de bairros de periferia,
e das Uniões de Defesa Coletiva, agrupando habitantes de vilas e favelas. Esses
movimentos se proclamavam a políticos e portavam reivindicações relacionadas às
condições de moradia, como saneamento e transporte (Moisés et alii, 1978;
Somarriba et alii, 1984). De sua parte, os trabalhadores rurais começam a sair
da passividade política a partir de meados dos anos 1950, mas é só a partir do
fim da década que suas organizações adquirem peso na cena nacional, a exemplo
das Ligas Camponesas. O mesmo se verifica em relação aos estudantes, que
começam a se constituir como ator coletivo nos anos 1950, mas só ganham
visibilidade no cenário político na passagem para os anos 1960, quando,
paralelamente à defesa de interesses específicos, assumem bandeiras "macro",
como a Reforma Agrária.
13. O estudo da participação empresarial, dessa perspectiva analítica, na
gênese e na trajetória da política social brasileira, particularmente a
Previdência Social, de 1930 a 1998, foi feito por Delgado (2001).
14. Para os comunistas, por exemplo, a unicidade era válida para evitar a
fragmentação. O imposto sindical, embora dividisse opiniões, era considerado
instrumento útil para subsidiar a ação mobilizadora dos sindicatos (cf., por
exemplo, Santana, 2001).
15. A estrutura sindical corporativa parece ter sido a fórmula encontrada pelo
governo Vargas para facilitar o processo de acumulação nos anos 1930. O
processo de industrialização desencadeado a partir dali, seja enquanto
"industrialização restringida", seja na industrialização pesada dos anos 1950,
não opõe os setores agrários aos industriais (Mello, 1984; Oliveira, 1981).
Para os primeiros, assegurava-se a preservação das formas de dominação já
existentes no campo brasileiro, como uma espécie de compensação à reorientação
das ações do Estado no sentido da industrialização, clara a partir de 1937. Já
o movimento operário, submetido à estrutura corporativa, deixava de existir
como ator autônomo. O caráter retardatário da formação do capitalismo no
Brasil, ao lado de exigir uma forte presença do Estado e a transferência de
recursos gerados no polo exportador - via confisco cambial -, implicou também a
contenção dos salários dos trabalhadores industriais. Para garanti-la, tornava-
se necessária, na perspectiva do getulismo, a interdição da ação operária
autônoma. Tal papel caberia à estrutura sindical, tal como foi montada no
Brasil. Com sua imposição, buscava-se criar um hiato entre as duas gerações do
movimento operário, que no Estado Novo é submetido à passividade e/ou à
participação tutelada. Subjacente a essa política havia a intenção de suprimir
os conflitos entre as classes e substituí-los por uma estrutura que
possibilitasse a cooperação entre os diversos setores sociais a fim de
facilitar a implementação da política de industrialização nacional em bases
legítimas, isto é, assentada em certo consenso entre camadas sociais envolvidas
no processo. Nessa medida, o modelo corporativo de intermediação de interesses
apresenta-se como uma terceira via, situada a meio caminho entre as formas
autoritárias e a democracia pluralista (Lobo, 1995).
16. A participação nas greves foi aferida por Sandoval (1994). Para um período
mais recuado, Simão (1966) oferece dados referentes ao Estado de São Paulo.
17. A elevada rotatividade empregatícia não é uma novidade dos anos 1980. A
introdução do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS),ao suprimir certos
encargos associados aos processos de dispensa previstos na vigência do
instituto da estabilidade, favoreceu a rotatividade de mão-de-obra, em um
contexto em que já era significativa a oferta de força de trabalho para uso do
capital(Werneck Vianna, 1999:336 e ss). Nos anos 1980, a acentuação desse
processo pode ser creditada às flutuações da economia nacional no período e à
adoção de estratégias de ação empresariais nesse ambiente de instabilidade
macroeconômica.
18. "Participação" e "redistribuição", tais como concebidos, respectivamente,
por Dahl (1988) e Santos (1993).
19. A disposição de aproximar-se de outros movimentos populares está
explicitada em diversos documentos da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
(Lobo, 2005), em formulações que partem da compreensão de que "a exploração do
trabalhador não se dá só no local de trabalho, mas também no seu dia-a-dia"
(CUT, 1988:48). No Caderno de Resoluçõesdo terceiro congresso nacional da
Central, assinala-se que "a população vem resistindo e se organizando [...], os
movimentos populares (mutuários, sem-terra,lutas de transporte, moradia, saúde,
educação, favelas, cortiços,etc.) e entidades compõem hoje uma força de pressão
sobre [a]aliança entre o Estado e o capital [...], os vários movimentos,
sindicatos e entidades da sociedade civil vêm buscando a unificação de suas
bandeiras de ação" (ibidem:53). No congresso anterior, a CUT ressaltava a
importância de "apoiar, incentivar e contribuir para a organização das lutas
populares por transporte, moradia, saúde, educação e abastecimento e outras,
desenvolvendo a sua unidade com o movimento sindical" (CUT, 1986:21).
20. Ainda segundo Boschi (1987:138), "a intensificação das práticas
associativas de natureza politizada certamente não estava incluída nos planos
governamentais. Quando muito o projeto de abertura tinha por objetivo uma
sociedade domesticada, com grupos de interesse atuando dentro de estreitos
limites [...]. Ainda que a politização de segmentos organizados da sociedade
não tenha ameaçado o projeto de transição gradual para a democracia, ele
certamente afetou o seu ritmo".
21. Obviamente que não se pretende defender aqui, contrariamente a todas as
evidências, que o processo tenha sido linear, ao modo marshalliano. Obedeceu a
uma trajetória pendular, ou mesmo espiralar, que do ponto de vista das elites
era fundamental para a preservação de suas posições de mando; e para os "de
baixo" representava certa garantia de que não haveria retrocessos políticos ou
qualquer espécie de contrarreforma. A despeito de o processo de afirmação da
democracia formal não ter sido linear, do descompasso entre os eixos de
institucionalização e de participação, da instabilidade permanente que tal
descompasso ocasiona e da persistência de procedimentos autoritários no
processo de democratização, não parecia haver espaço para um eventual retorno
ao ordenamento autoritário que marcara o regime militar. É precisamente nesse
sentido que estamos afirmando que, na política, a sociedade brasileira avançava
firmemente em direção à democracia. Uma boa análise acerca do compasso
democratização/política social e do caráter não linear desse processo encontra-
se em Melo (1990:447 e ss).
22. A Reforma Partidária (Lei nº6.767/79) fez-se à luz da expectativa de cindir
a oposição e, segundo Meneguello (1989), de "garantir a representação das
classes trabalhadoras sob uma sigla confiável - o renascido Partido Trabalhista
Brasileiro". O surgimento do PT, combase napropostade tornar-se uma agremiação
com forte enraizamento nas bases sociais e uma atuação voltada para o reforço
dos laços com as lutas populares, representou, pois, uma novidade do ponto de
vista organizacional e também um imprevisto em meio à liberalização conduzida
de cima.
23. Em que pese a forte presença de sindicalistas na formação do PT, este
recebeu, ao longo de seu processo de organização, a adesão de lideranças de
variados movimentos sociais, tais como grupos de negros, feministas, amigos de
bairro, movimentos libertários etc., além de membros da ala progressista da
Igreja (Meneguello, 1989:64).
24. Importante lembrar que a CUT, em que pese sua afirmação como ator relevante
na cena política e sua hegemonia no ambiente sindical, não dispunha da
prerrogativa de participar das negociações coletivas, competência dos
sindicatos de base (Cardoso, 2003). Tal impedimento pode ter determinado a
ampliação do escopo de sua pauta e ação para além dos interesses dos
trabalhadores sindicalizados ou inseridos no mercado formal de trabalho.
25. A atuação das bancadas partidárias na Constituinte é elucidativa da postura
dos partidos em face das matérias de interesse dos trabalhadores. Nesse ponto,
além do PT, cumpre indicar o Partido Democrático Trabalhista (PDT), o Partido
Socialista Brasileiro (PSB), o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e o
Partido Comunista Brasileiro (PCB) como partidos que votaram sistematicamente a
favor dos interesses dos trabalhadores. Outros, como o Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), também abrigavam parlamentares portadores de
projetos favoráveis aos trabalhadores e que votavam sistematicamente a favor
das referidas matérias, mas constituíam exceções. No caso do PMDB, muitos
parlamentares compunham o centrão,articulação conservadoraformada pelo Partido
Democrático Social (PDS), Partido da Frente Liberal (PFL), Partido Liberal
(PL), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e vários parlamentares do PMDB (cf.
DIAP, 1988).
26. No caso dos avulsos, por exemplo, os partidos de esquerdadefendiam que
dispusessem de igualdade de direitos em relação aos trabalhadores com vínculo
empregatício, enquanto o centrãopretendia limitar a isonomia apenas aos
direitos concernentes à área previdenciária. Quanto aos domésticos, as
correntes progressistasdefendiam que a Constituição assegurasse explicitamente
uma série de direitos, ao passo que o centrãoremetia, de forma vaga, a situação
dos empregados domésticos à legislação ordinária. Quanto aos trabalhadores
rurais, o centrãonegava-lhes uma série de direitos defendidos pelos
progressistasdiante do entendimento de que a fixação de direitos deveria
condicionar-se às peculiaridades de sua atividade (cf. Lobo, 2005:161).
27. Naquele período, a crise financeira do Estado, derivada do forte
endividamento interno e externo, inviabilizava que se processassem novas fugas
para frente,impondo reajustes estruturais na economia nacional (Soares, 1999:
153).
28. Segundo Cardoso (2003:41), "os sistemas de qualidade são canais
institucionais por meio dos quais problemas de produção podem ser diretamente
negociados entre trabalhadores e gerência, sem a interferência sindical.
Queixas não devem exceder os portões da fábrica [...], o 'novo local de
trabalho' caracteriza-se por parcerias e cooperação entre os agentes".
29. Projeto que começa a ser construído a partir das resoluções políticas do IV
e do V Congresso da CUT.
30. Cumpre mencionar que, a despeito da fragilização do movimento sindical e da
adesão de parte do sindicalismo ao projeto de contrarreformaque o Estado e o
capitalbuscam empreender nos anos 1990, que tem como fundamento a tensão que se
reacendeu entre política social e necessidades do mercado, não se obteve um
consenso passivo das classes em torno desse projeto. Nos termos de Mota (1995:
64), "apesar das crises gerarem impactos negativos sobre os empregos, salários
e mecanismos de seguridade social, elas não criam, mecanicamente, as condições
para a burguesia operar sitiamentos nas práticas sociais e nos comportamentos
dos trabalhadores". Assim, o movimento sindical, particularmente o sindicalismo
cutista, preserva, ainda que em um contexto demasiadamente adverso, algumas
chances de capitalizar os descontentamentos e canalizá-los para o apoio ativo
em torno de um projeto alternativo que tenha em vista a integração à cidadania
sem que esta tenha de se associar à subtração de direitos, mas, ao contrário, à
sua universalização.
31. A exemplo da luta pela redução da jornada de trabalho e do aperfeiçoamento
do programa de seguro-desemprego.
32. Em Lobo (2005), verificamos que, enquanto a CUT alterna entre a primeira e
a terceira perspectiva, a Força Sindical pratica um sindicalismo que pode ser
enquadrado na segunda e na terceira. O tratamento direcionado à qualificação
profissional é elucidativo. Para a Força Sindical, o envolvimento em políticas
de formação aparece como estratégia desde o início, como meio de adequar a ação
sindical à conjuntura dos anos 1990. Já no âmbito da CUT, o tema sempre foi
fonte de controvérsias entre as tendências que atuam no interior da Central,
encontrando resistência nas correntes de esquerda orientadas pela noção de que
a qualificação profissional é uma exigência do mercado, e não uma função do
sindicato, e que, ademais, qualificar mão-de-obra não gera vagas no mercado de
força de trabalho. No entanto, no fim da década, a entidade parece ter
despendido esforços cada vez maiores em direção à qualificação profissional e à
intermediação de mão-de-obra. Para além das possibilidades de esses
procedimentos estarem orientados pelos interesses dos trabalhadores -
empregados e desempregados -, o que parecia estar em jogo era a própria
sobrevivência da entidade, uma vez que, nesse contexto adverso para a ação
coletiva, a adesão a programas de treinamento e a intermediação de mão-de-obra
talvez configurassem uma estratégia dos sindicatos e das centrais de
aproximação com os trabalhadores, tornando-se, assim, fonte de legitimação, bem
como de captação de recursos. Por outro lado, a ação voltada para a formação
profissional exprime certa rendição aos imperativos domercado eaodiscursoda
empregabilidade, em uma admissão tácita à própria mercantilização da força de
trabalho, colidindo, dessa maneira, com a perspectiva que se tornou hegemônica
nos anos 1980.
33. Convém adiantar que a qualificação por meio dos sindicatos dispensa os
empresários de investir no treinamento de trabalhadores que serão contratados
por um curto espaço de tempo. Além disso, o tipo de formação que as empresas
exigem para seus funcionários "permanentes" é de outra natureza, que não está
ao alcance dos sindicatos, de modo que o problema não é o investimento em
programas de qualificação, fundamental nesse período de mudança de paradigma
produtivo. O que está em questão é a substituição de uma postura reivindicativa
mais ampla por uma ação limitada, voltada para a qualificação profissional, por
um lado, e a compreensão de que o mercado exige, para compor seu quadro mais
estável, trabalhadores com formação regular sólida. A qualificação oferecida
pelos sindicatos e centrais não forma trabalhadores caros ao mercado, apenas
amplia a oferta de trabalhadores a serem selecionados, absorvidos e expelidos
pelo mercado de acordo com seus critérios, necessidades e prerrogativas mais
imediatas. Por outro lado, a oferta de programas de qualificação parece atender
simultaneamente às expectativas dos trabalhadores em busca de qualificação,
servindo também de alento ao desempregado, trazendo novos elementos para a
discussão.