Relações estado-sociedade no Brasil: representações para uso de reformadores
INTRODUÇÃO
Os grandes intérpretes da realidade brasileira têm salientado que as raízes de
nosso atraso, subdesenvolvimento, dependência, modernização periférica ou
inserção pouco competitiva no mundo globalizado estão plantadas em nossa
formação histórica, gerando uma série de determinantes que condicionam o
sistema político, o Estado e suas relações com a sociedade e a economia. Essas
peculiaridades constituem modos de ser, proceder ou pensar que caracterizam
nossas instituições, relações sociais e representações do mundo social e
político. Patrimonialismo, mandonismo, personalismo, formalismo, clientelismo,
cartorialismo, centralismo e autoritarismo são exemplos das "deformações" ou
"patologias" utilizadas para descrever aspectos de nossa realidade,
particularmente do Estado, do governo e da administração pública, que se
constituiriam nas causas da pouca efetividade da ação governamental. Alguns
desses "problemas" encontram variantes conceituais mais recentes em categorias
como democracia delegativa (O'Donnell, 1991), mundo estatofóbico e hobbesiano
(Santos, 1993), cultura paroquial (Carvalho, 1996), anéis burocráticos
(Cardoso, 1975), estadania (Carvalho, 1987) e neocorporativismo, utilizadas
para descrever a apropriação do público pelo privado, o compadrio, a
vassalagem, a barganha, a fisiologia, o "bacharelismo", a centralização e a
precariedade da democracia.
A persistência com que essas categorias continuam a ser resgatadas, criticadas
e atualizadas dá conta de sua importância para a compreensão do país e para a
construção da imagem que os brasileiros fazem de si mesmos. Elas revelam
apreciações sobre a realidade nacional que informam não só os julgamentos
irrefletidos e as atitudes cotidianas mas também as análises científicas e as
políticas públicas. A extensa produção acadêmica sobre esses temas não permitiu
chegar a conclusões definitivas sobre a natureza, extensão, duração,
cristalização ou superação dos fenômenos que descrevem. Não importa. Ainda que
esses conceitos não constituíssem elaborações nascidas de fatos e atos
verificáveis, eles têm existência estabelecida no mundo das representações,
acabando por produzir impactos sobre as práticas sociais e as instituições que
as regulam. São imagens simbólicas (Sfez, 1988) que veiculam e atualizam
representações1. Convém, portanto, mantê-los na agenda, pelo menos até que a
roda da história faça girar o círculo (não sequencial) das instituições,
práticas e representações.
A permanência dessas concepções não quer dizer que a realidade nacional seja
imutável. O Brasil, como, de resto, o mundo inteiro, tem sofrido profundas
transformações econômicas, sociais, políticas e mesmo culturais, sobretudo nos
últimos 75 anos. Durante o século XX, foi o país que mais cresceu em todo o
globo. Passou de uma economia primário-exportadora a um grande parque
industrial; de uma sociedade rural a um conglomerado de metrópoles densamente
povoadas; do particularismo local à cultura de massas. O país incorporou a suas
instituições e práticas sociais, sobretudo nas esferas do Estado e do mercado,
elementos da racionalidade prevalente nas economias centrais. O Brasil
modernizou-se.
Alguns desses intérpretes veem nas manifestações que esses conceitos expressam
justamente o modo pelo qual a sociedade brasileira incorporou os valores da
modernidade. Essa modernização, ainda que seletiva, não exclui a permanência de
formas particulares de acomodação de valores e instituições modernas à
ambiência tropical sem que a maior parte de suas interpretações deva ser jogada
na vala comum da sociologia da inautenticidade, quer dizer, que atesta a
inautenticidade do esforço de modernização brasileiro, segundo a crítica de
Souza (2000). Traços importantes do processo brasileiro que configuram um
percurso particular de modernização não constituem singularidades. Estão
presentes em inúmeros países latino-americanos e até em alguns países
mediterrâneos, para além da Península Ibérica. Como reitera DaMatta (1980), e
como foi possível identificar em um dos primeiros estudos sistemáticos sobre "o
jeitinho brasileiro" (Vieira, Lustosa da Costa e Barbosa, 1982), o que é
singular entre nós é o anseio de diferenciação, o desejo (ainda que
diversamente motivado) dessa singularidade e a valorização positiva de alguns
de seus aspectos - cordialidade, estabilidade, lealdade, esperteza,
flexibilidade etc.
Como amaioria das disfunções põe o Estado no centro do processo, seja como
agente, seja como paciente ou cenário, deve-se admitir que, quando se cogita
realizar reformas institucionais (no Estado, para o Estado ou com o Estado),
essas características devem ser devidamente consideradas, pois "as
circunstâncias políticas, o contexto social e cultural e a pluralidade dos
poderes e grupos de influência em que a administração está envolvida não
permitem a implementação de tiposideais isolados das realidades e do meio
envolvente" (Mozzicafreddo, 2001:19). Como lembra Claus Offe,
é bem possívelque o desnível entre o modo de operação interna e as
exigências funcionais impostas do exterior à administração do Estado
não se deva à estrutura de uma burocracia retrógrada, e sim à
estrutura de um meio sócio-econômico que [...] fixaa administração
estatal em um certo modo de operação [...]. É óbvio que um desnível
desse gênero entre o esquema normativo da administração e as
exigências funcionais externas não poderia ser superado através de
uma reforma administrativa, mas somente através de uma "reforma"
daquelas estruturas do meio que provocam a contradição entre
estrutura administrativa e capacidade de desempenho (1984:219; ênfase
no original).
Estamos, assim, diante de uma série de aspectos diversificados, complexos e
inter-relacionados da realidade brasileira que condicionam o funcionamento do
Estado e a ação e o desenvolvimento da administração pública, e continuam a
desafiar os cientistas sociais. As proclamadas "mazelas" brasileiras têm sido
examinadas ora como "dados da realidade" ou "parte da nossa cultura", ora como
condicionantes estruturais, ora, ainda, como resíduos do passado colonial e das
estruturas oligárquicas que estão desaparecendo "naturalmente".
Vistos como traços culturais, esses atributos podem ter dois tipos de
tratamento, como variável independente ou como variável dependente, de acordo
com uma visão mais ou menos instrumentalizada que se tenha da cultura (Harrison
e Huntington, 2002:13). Se for tratada como variável independente, a cultura-ou
a cultura política-ajuda a entender e a explicar a organização e o
funcionamento do Estado, a conformação do sistema político e o padrão de
democracia (DaMatta, 1980). Se a cultura for definida como variável dependente,
trata-se de identificar os obstáculos culturais à modernização do Estado
easformas de ação política que permitem removê-los (Beltrão, 1984).
Analisados como determinantes de disfunções do Estado, os fatores estruturais
do contexto brasileiro passam a requerer profundas transformações econômicas,
sociais e políticas para que possam produzir efeitos sobre a ação estatal
(Santos, 1993; Motta, 1987). Amodernização do Estado seria, assim, consequência
de mudanças sociais de maior envergadura. Considerando, entretanto, que essas
transformações dependem, em grande medida, da própria ação estatal, a reforma
do Estado poderia ser caracterizada como a mãe de todas as reformas. Em um ou
em outro caso, a reforma do Estado - ou a grande transformação - passa a
constituir um empreendimento de tal magnitude que se torna difícil de ser
concretizado.
Percebidos apenas como sobrevivências do passado, os problemas brasileiros
estão fadados a desaparecer por causa do processo natural de evolução da
sociedade (Souza, 2000) em sua marcha progressiva para o racional. Nesse
sentido, a reforma do Estado pode contribuir para acelerar esse processo
(Bresser-Pereira, 2001).
As diversas atitudes intelectuais podem aparecer de forma isolada ou combinada
e informar diferentes estratégias de reforma, mas não logram estabelecer
relações diretas entre constatações e propostas de mudança. Em todos os casos,
põem em primeiro plano o caráter normativo da discussão sobre reforma do
Estado.
Aqui, procede-se, mais uma vez, ao exame de três das características mais
recorrentes nas interpretações do Brasil - o patrimonialismo, o mandonismo e o
personalismo (ou pessoalidade) -, evocando-se outras disfunções a elas
relacionadas - o clientelismo e o autoritarismo e seus efeitos sobre o
exercício dos direitos de cidadania. Essas características foram escolhidas em
função da frequência de seu aparecimento na literatura e dos alegados impactos
mais diretos, que essa mesma literatura indica, sobre o funcionamento do
aparelho do Estado, sobretudo em suas relações com a sociedade.
Tomadas separadamente, em conjunto ou combinadas de diferentes maneiras, essas
linhas interpretativas traçam o retrato de um Brasil arcaico, desenhado a
partir da perspectiva histórica, profundamente enraizado no terreno dos bolsões
de pobreza, das áreas rurais e das regiões mais profundas da alma brasileira.
Esse retrato se contraporia a outro, pintado com as cores da modernidade, a
partir de matizes contemporâneos - instituições e regras, dados eleitorais e
estatísticas judiciais (Santos, 1993), surveyssobre cidadania e justiça
(Carvalho et alii, 1998), revelando um país caracterizado por desprivatização
do Estado, moral individualista, universalismo de procedimentos, participação
política, ativismo social e espaço público ampliado.
A referência a "retratos" sublinha o caráter de representações coletivas dessas
categorias. Não se trata de retomar a teoria do dualismo, aludindo à existência
de dois Brasis que se justapõem. Essa tese, muito difundida desde os anos 1930,
descreve o país a partir de uma percepção dicotomizada da realidade,
contrapondo conjuntos de atributos negativos a grupos de características
positivas. Do lado arcaico, o Brasil pobre, predominantemente rural,
oligárquico, clientelista. Do lado moderno, o Brasil urbano, industrializado,
democrático, plural, competitivo. Tanto em um quanto em outro plano, o país é
um só. Forma um sistema de complementaridades em que uma parte se nutre da
outra, no qual o jogo de interações vai articulando a reprodução e a mudança
sociais. A dualidade é uma constatação, não uma explicação; "deve ser concebida
como 'união dialética de contrários' e não como justaposição mecânica de
sociedades distintas, como supõe a maioria dos estudos sobre a diversidade
histórico-social no Brasil" (Ramos, 1983: 422).
Esta análise permite caracterizar esses fenômenos como estrutura e função,
indicar sua influência sobre práticas sociais, políticas e administrativas e
avaliar seu impacto sobre o funcionamento do Estado e suas estratégias de
reforma.
PATRIMONIALISMO
O tema do patrimonialismo se inscreveu na tradição do pensamento social
brasileiro como a base de uma das interpretações clássicas da formação do país.
Mostrado como uma das principais heranças da administração colonial, aos
brasileiros parece até surpreendente que não seja recorrentemente apontado, nas
ciências sociais lusas, como matriz do destino da civilização portuguesa. Como
se explica que o patrimonialismo esteja na raiz das disfunções do Estado
brasileiro e não seja visto como a causa principal da estagnação do Estado
português?
Muito do sucesso da tese do patrimonialismo se deve à gradativa e crescente
aceitação da obra clássica de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, publicada
originalmente em 1957, ampliada e totalmente refundida em 1975. O autor tinha o
ambicioso propósito de "abarcar, num lance geral, a complexa, ampla e
contraditória realidade histórica", em um "longo período, que vai do Mestre de
Avis a Getúlio Vargas", valorizando "as raízes portuguesas de nossa formação
política, [...] desprezadas em favor do passado antropológico e esquecidas pela
influência de correntes ideológicas, originárias da França, da Inglaterra e dos
Estados Unidos" (Faoro, 2001:14). Pretendia, assim, inaugurar uma interpretação
que se contrapusesse ou, pelo menos, se equiparasse às de Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque de Holanda, e que não se enquadrasse na moldura estreita do
marxismo ou mesmo de outras sociologias europeias ou anglo-saxônicas.
É claro que um trabalho que adota o patrimonialismo, o estamento e o feudalismo
como conceitos principais não pode deixar de ser tributário da herança
intelectual de Weber. Com efeito, foi Weber (1994) quem, ao descrever as três
formas de dominação legítima - carismática, tradicional e racional-legal -,
traçou um amplo panorama dos tipos ideais de sociedade tradicional, pois a
dominação tradicional e a formação social que lhe é correspondente se
caracterizam pela prevalência de um sistema de autoridade cujo fundamento maior
é a tradição, o "ontem eterno" que santifica os antigos costumes e alimenta o
conformismo - assim é porque sempre foi. Afirma-se, nesse sistema, a vontade do
senhor, cujos limites são fixados pela própria tradição, ou seja, as normas
válidas desde sempre. Em torno do senhor (ou do príncipe), gravita o "quadro
administrativo" - os dependentes pessoais ou parentes,os amigos e os fiéis-,
distribuindo-se opoder de mandode acordo com sua discrição.
O conceito de patrimonialismo aparece, na sociologia weberiana, no contexto da
dominação tradicional, ora como sinônimo, ora como um tipo específico, ao lado
do feudalismo. Assim, a dominação tradicional pode ser do tipo patrimonial ou
feudal. Já o patrimonialismo poderia ser de dois tipos - patriarcal (ou
sultanista) e estamental. As duas distinções colocam em primeiro plano o tipo
de relação que se estabelece entre o senhor e seus servidores, determinando
duas formas de administração.
Na estrutura patriarcal, os servidores mantêm uma relação de dependência
pessoal com o senhor, não tendo direitos sobre os cargos nem honra estamental;
ou são propriedades suas (escravos, servos e eunucos); ou são eleitos pela
afeição (favoritos, plebeus). Nessa situação de dependência, predomina o
arbítrio, contra o qual não há nenhuma garantia ou proteção. A essa forma
particular de despotismo Weber classifica de sultanato.
A estrutura estamental caracteriza-se pela relativa independência dos
servidores com relação ao senhor. Eles são investidos em seus cargos por
privilégio ou concessão, conquistando um direito em virtude de um negócio
jurídico e deles não podem ser despojados. A administração é exercida por conta
própria dentro de uma determinada jurisdição ou competência.
O feudalismo possui, ao mesmo tempo, elementos típicos de relações patrimoniais
e extrapatrimoniais - o despotismo patriarcal, com a devoção pessoal e o culto
à fidelidade, e a estipulação contratual de direitos e deveres.
Tomado como categoria principal, equivalente à dominação tradicional, ou como
categoria secundária, correspondente a uma forma particular de tradicionalismo,
o patrimonialismo weberiano compreende uma ampla série de variações que têm em
comum apropriedade da terra como fonte de poder, a tradição como fonte de
legitimidade e o quadro administrativo de "servidores" como agentes da
dominação.
Já o conceito de estrutura estamental é menos flexível. Caso particular de
patrimonialismo, ou configuração do feudalismo, o estamento tem esse quadro
como um conjunto de pessoas independentes, investidas em seus cargos por
privilégio ou concessão do senhor, ou em virtude de contrato de compra, penhora
ou arrendamento que lhes confere "direito e estabilidade":
Sua administração, ainda que limitada, é autocéfala e autônoma,
exercendo-se por conta própria e não por conta do senhor. [...] O
poder senhorial acha-se, pois, repartido entre o senhor e o quadro
administrativo com título de propriedade e de privilégio, e esta
divisão de poderes estamental imprime um caráter altamente
estereotipado ao tipo de administração (Weber, 1994:132).
É na utilização da categoria de patrimonialismo estamental que Faoro se afasta
de Weber e desenvolve sua própria teorização a partir da experiência histórica
de constituição, consolidação e cristalização da monarquia portuguesa. É a
proeminência da figura do rei proprietário, lavrador e comerciante que dá
singularidade ao caso de Portugal, em uma Europa onde predominava o feudalismo.
Ao casar-se com Henrique de Borgonha, Tereza, filha de Afonso VI, rei de Leão e
Castela, recebeu como dote paterno o Condado Portucalense, retomado dos mouros
e convertido em reino por seu filho Afonso Henrique em 1139. Foi pela espada
que o reino se formou, expandindo-se em direção ao sul pela reconquista dos
vastos territórios abandonados pelos sarracenos. Não tendo titularidade, essas
terras passam ao domínio particular do rei, que se torna, além de senhor das
armas, o maior proprietário do novo reino, cujo patrimônio em muito supera o do
clero e o da nobreza. A Revolução de Avis vem consolidar o poder monárquico,
reduzindo a influência senhorial, com a criação dos concelhos-traço de
uniãoentre orei e"opovo"-e o fortalecimento da burguesia comercial. As funções
públicas estavam totalmente separadas da propriedade:
A concessão de senhorio ou de uma vila, filha da liberalidade do rei,
não importava na atribuição de poder público, salvo em medida
limitada. [...] Os cargos eram, dentro de tal sistema, dependentes do
príncipe, de sua riqueza e de seus poderes. [...] O rei, quando
precisava do serviço militar da nobreza territorial, pagava-a, como
se paga um funcionário (Faoro, 2001:20).
Os concelhos, com suas contribuições, também concorriam para aumentar a renda
do príncipe, oriunda de seu patrimônio fundiário. Além dos forais, eram
inúmeras as fontes de renda - multas, direitos sobre cargos, réditos, jantar ou
colheita, e outras formas de gravar as atividades da agricultura, do comércio e
da indústria - sugadas pelo trabalho incansável dos mordomos, sob a chefia do
almoxarife, a serviço da Casa Real, sendo indistinta a riqueza privada da
pública (ibidem:22). O rei era senhor de tudo ou, pelo menos, um "sócio" com
quem todos deviam repartir seus ganhos.
Nesse novo sistema monárquico, não há a presença de uma camada de senhores
autônomos entre o rei e o vassalo, unidos, uns e outros, por vínculos
contratuais que possam limitar a autoridade do soberano, ou seja, não há traços
do feudalismo. Portugal passou do mercantilismo estatal ao capitalismo
politicamente orientado. Segundo Faoro, "o Estado torna-se uma empresa do
príncipe, que intervém em tudo, empresário audacioso, exposto a muitos riscos
por amor à riqueza e à glória: empresa de paz e empresa de guerra" (ibidem:40).
Mesmo no patrimonialismo português, orei não pode governar sozinho. Sem contar
com o concurso da nobreza territorial, forma um quadro administrativo de
servidores dotados de saber jurídico e honra estamental. São os doutores, os
letrados do estamento, espécie de nobreza funcionária, que, em nome do rei,
exercem dominação. O estamento, comunidade de poder quese projeta de cima para
baixo, "manda, governa, dirige, orienta, determinando não apenas formalmente o
curso da economia e as expressões da sociedade, sociedade tolhida, impedida,
amordaçada" (ibidem:63). Mas esse grupo não constitui uma classe social
inorgânica, gerada na mera comunidade de interesses - é marcado pela
desigualdade social e reúne indivíduos de todas as classes -, tampouco se
degrada em burocracia ou se reduz a uma comunidade de dependentes. Pouco a
pouco, separa os negócios sob sua jurisdição da propriedade particular do rei e
apropria-se de privilégios e favores como apanágios da honra estamental. Mantém
com o soberano uma relação de codependência, servindo com honra e lealdade, com
o fazer que obra e enriquece e o saber que ilustra e legitima. Na sociologia de
Faoro, o estamento deixa de ser uma categoria coletiva e plural (estamentos),
designando diversos grupos sociais, para afirmar-se como sinônimo de categoria
social dominante.
Seria desnecessário seguir o percurso de Faoro por mais de oito séculos de
história, em uma "viagem redonda", para mostrar como o patrimonialismo se
cristalizou como moldura social e política da vida brasileira, mantendo em
primeiro plano, autônomo, sobranceiro, tutelador e sufocante, o estamento
político. A história é quase imóvel e o argumento, reiterativo. Da Coroa
portuguesa à administração colonial, do Reino Unido ao Império brasileiro, da
Independência à República, da política dos governadores da República Velha ao
Estado Novo de Vargas, mantiveram-se intactos o regime patrimonialista e o
poder do estamento.
Escrita em linguagem culta e fartamente documentada, a obra de Faoro tornou-se
um clássico, reverenciada por várias gerações de cientistas sociais. É, ao
mesmo tempo, um objeto de erudição e "uma coisa pensada", confundindo as
instigantes categorias antinômicas propostas por Hannah Arendt (1987).
Influenciou inúmeros trabalhos, alguns dos quais também se converteram em
clássicos, como Bases do Autoritarismo Brasileiro, de Simon Schwartzman (1988),
A Querela do Estatismo, de Antonio Paim (1978), e Carnavais, Malandros e
Heróis, de Roberto DaMatta (1980). Não está, porém, imune a críticas, algumas
bastante acerbas.
O primeiro reparo que se faz a Faoroestá relacionado ao própriouso das
categorias weberianas. Como expresso anteriormente, a noção de patrimonialismo
estamental estaria bastante próxima do conceito de feudalismo. Quer dizer, o
estamento se afirma onde há uma relação contratual que lhe assegura autonomia.
A designação do servidor, ditada por escolha pessoal, seja por mérito, seja por
afeição, é própria do patrimonialismo patriarcal, ou sultanato (Campante, 2003:
158). Como, segundo Faoro, o feudalismo, com a dominação de uma nobreza
territorial autônoma, em relação contratual com o soberano, não existiu em
Portugal nem no Brasil, o estamento, português e brasileiro, não cabe na
extensa e flexível taxonomia weberiana. Seria de outra ordem, constituído e
notabilizado por obra e graça do rei.
A fidelidade à obra de Weber não acrescentaria méritos ao trabalho de Faoro. O
problema é de outra ordem. Está relacionado à transplantação e à utilização
adequada de conceitos. Ao rejeitar - muito apropriadamente, aliás - a hipótese
do feudalismo português e afirmar a proeminência do estamento político no
patrimonialismo luso-brasileiro, o autor coloca em causa uma das bases de seu
próprio modelo - a concentração de poder. Faoro não se cansa de repetir que o
patrimonialismo ibero-americano é, por natureza, centralizador. Trata-se de um
sistema hierarquizado que exerce uma força centrípeta sobre todos os domínios
do Império português, trazendo-os para próximo do rei e do estamento político
que lhe serve as decisões e os recursos. No feudalismo (estamental), há uma
"tensão" entre o rei e a nobreza territorial que se resolve pela via
contratual. No sultanato, o servidor tem poderes limitados e é um agente do
soberano, muitas vezes vigiado por outro servidor local ou itinerante. No
patrimonialismo estamental de Faoro, não há lugar para a descentralização, o
que poderia caracterizar uma ordem feudal.
Assim, para manter a solidez dos argumentos patrimonialistas (e
centralizadores), Faoro acaba por negligenciar a importância do mandonismo
rural na vida política brasileira. Os grandes proprietários de terras,
exercendo, longe do poder institucionalizado do Estado, a autoridade real e
simbólica, constituíam, em determinado momento, uma classe senhorial dotada de
poder econômico e de consciência de classe (para não dizer honra estamental).
A terceira crítica à obra de Faoro diz respeito ao imobilismo histórico que o
emprego da teoria do patrimonialismo estamental determina. Em oitocentos anos
de história, o patrimonialismo fez uma viagem redonda, fechado sobre si mesmo,
infenso às transformações econômicas, revoluções políticas, mudanças sociais,
transplantações geográficas e operações simbólicas. O estamento, "congelado",
manteve-se no centro do mercantilismo estatal e do capitalismo politicamente
orientado, atualizando-se para se reproduzir.
Três argumentos poderiam ser utilizados a favor de Faoro, ainda que para
sustentá-los se deva sucumbir a um anacronismo ex ante factum. Em primeiro
lugar, o modelo do patrimonialismo estamental poderia ser considerado uma
espécie de teoria da reprodução social apoiada na prevalência do capital social
como elemento instituidor da hierarquização e da ordem e motor de sua dinâmica
de transformação (Bourdieu e Passeron, 1977). Em segundo lugar, Os Donos do
Poderpode ser considerado um exemplo, avant la lettre,de história da longa
duração, descrevendo os mecanismos de conservação e transformação das
mentalidades ou representações sociais2. Por último, a teoria do
patrimonialismo de Faoro anuncia, descreve e estrutura a dinâmica intrínseca
que permite dar ao estamento uma capacidade adaptativa, assegurando-lhe a
condução do processo de transformação econômica em interação dinâmica com o
capitalismo mundial. Nesse sentido, o estamento foi moderno e modernizador, o
que, de certo modo, reduz o impacto do argumento que se segue.
A quarta crítica mais comum vê na análise do patrimonialismo uma condenação à
herança ibérica, que nos teria legado uma experiência histórica que "adotou do
capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa
de transmigrar" (Faoro, 2001:822), quer dizer, o liberalismo. Os Donos do
Poderseria um libelo estatofóbico que, ao demonizar o estamento, acaba por
condenar também o Estado que assenhoreou.
Souza denuncia a teleologia do argumento, a forma esquemática como Faoro
percebe o processo de desenvolvimento ocidental e acredita que seu ponto de
vista
é o do liberal clássico que percebe a singularidade do capitalismo
bem-sucedido e democrático segundo o modelo de uma sociedade que se
constitui antes do Estado, permitindo o florescimento tanto das
liberdades econômicas quanto das públicas e democráticas. Escapa a
Faoro que esse caminho, longe de ser a regra, foi a exceção do
desenvolvimento ocidental. Esse ponto é fundamental. É ele que irá
explicar de que modo a categoria a-histórica de estamento patrimonial
que o autor constrói possa transmutar-se quase que imperceptivelmente
na noção pura e simples de Estado interventor (Souza, 2000:171-172).
A mera leitura do texto, entretanto, não mostra, em Faoro, tantos pendores para
a louvação do liberalismo. Ao contrário, ele critica as perspectivas históricas
que tomam como única referência o
capitalismo moderno, tal como decantado por Adam Smith, Marx e Weber,
tratados os estilos divergentes como se fossem desvios, atalhos
sombreados, revivescências deformadoras, vestígios evanescentes.
[...] A sociedade capitalista aparece aos olhos deslumbrados do homem
moderno como a realização acabada da história - degradadas as
sociedades a fases imperfeitas, num processo dialético e não
mecânico, de qualquer sorte, substituindo o fato bruto ao fato
racional, que bem pode ser o fato idealizado artificialmente. No
fundo, a tese da unidade da história, acelerada, sendo criada, pelo
império do capitalismo (Faoro, 2001: 822).
A viagem redonda de Faoro se encerra no auge da era Vargas, quando o soberano
se converte em presidente populista, pai dos pobres, distribuindo benesses em
um sistema político fechado e autoritário, mas sugere a continuidade do
patrimonialismo nos anos subsequentes.
O que aconteceu nas décadas posteriores que justifica a permanência do tema na
agenda de pesquisa das ciências sociais e, sobretudo, nas representações do
Estado e do poder político?
Nos últimos sessenta anos, a partir do primeiro governo Vargas, o Brasil
empreendeu um enorme esforço de modernização, inclusive de suas instituições
públicas. Sob a regência do Estado, o desenvolvimento econômico baseado no
processo de industrialização pela substituição de importações permitiu a
superação do modelo agroexportador em declínio, a constituição de uma sociedade
urbano-industrial, a criação das estruturas de proteção e seguridade social e a
organização política pluralizada de vários segmentos sociais.
A ação estatal criou as condições para que se estabelecesse "um mercado onde os
diversos agentes econômicos pudessem movimentar-se em liberdade. A esfera
pública ampliou-se para criar os espaços de domínio privado" (Lustosa da Costa
e Cavalcanti, 1991:89). Na medida em que constituiu um setor público dos mais
equipados e eficientes do Terceiro Mundo, o Estado brasileiro tentou ser
moderno e modernizador. Isso não implica aceitar a tese do patrimonialismo
modernizante proposta por Paim (1978), ainda que se reconheça o caráter
autoritário, centralizador e estatizante do projeto de desenvolvimento nacional
do século XX, cujos resultados mais expressivos, em termos de crescimento
econômico, se deram em regimes de exceção.
Conduzida pelo estamento, apesar dele, ou mesmo contra ele, a modernização
brasileira se deu dentro dos marcos do domínio patrimonial e, por isso, jamais
logrou minar as bases dos interesses oligárquicos e estamentais que dele se
beneficiam. Prevaleceu a força da tradição legitimadora da privatização do
Estado, que se manteve como principal arena da política de grupos.
Qual é o impacto da obra de Faoro na análise do patrimonialismo sobre os
estudos e as propostas de reforma administrativa?
Em primeiro lugar, é preciso que se diga que a maioria dos trabalhos sobre
reformas faz referência à herança ibérica e à tradição patrimonialista como
obstáculos à modernização do Estado, da economia e da sociedade brasileira.
Características do patrimonialismo weberiano, como "os fundamentos
personalistas do poder, a falta de uma esfera pública contraposta à privada, a
racionalidade subjetiva e casuística do sistema jurídico, a irracionalidade do
sistema fiscal, a não-profissionalização e a tendência intrínseca à corrupção
do quadro-administrativo" (Campante, 2003:161), são automaticamente
relacionadas ao patrimonialismo estamental de Faoro e tomadas como causas da
ineficiência da burocracia governamental. Nessa perspectiva, o patrimonialismo
se manifestaria como realidade observável nas relações promíscuas entre agentes
do Estado e interesses particularistas, nas formas de arregimentação de quadros
e de distribuição de cargos típicas do spoil systeme do nepotismo, na
permanência de mecanismos de favorecimento e concessões privilegiadas e nas
variadas práticas de corrupção subsistentes.
Embora não haja, na literatura brasileira, muitos estudos empíricos com dados
factuais sobre essas manifestações, uma série de evidências pode ser colhida no
noticiário e assim informar uma alentada agenda de pesquisa. São exemplos
sempre lembrados de promiscuidade entre o público e o privado a persistência do
nepotismo nos poderes Legislativo e Judiciário, o processo de privatizações no
governo Fernando Henrique Cardoso, a forma de nomeação de titulares de cartório
e os processos de escolha dos concessionários de canais de rádio e televisão.
Mais importante do que a realidade observável são as representações sociais que
se constituem a partir da tomada de consciência da herança lusitana. Por meio
da imagem construída pelo noticiário e por análises históricas ligeiras, o
Estado passa a ser visto como propriedade de um grupo que tenta, a todo custo,
manter privilégios e vantagens pessoais contra os interesses populares. A
máquina é ineficiente, onerosa e perdulária; seus agentes, gananciosos e
inescrupulosos. Muitas vezes, os donos do poder são personificados nos
servidores públicos, vistos como "marajás".
Essa visão determina uma agenda negativa de reforma do Estado e culpabiliza um
dos elos mais fracos na cadeia de comando do Estado patrimonial. Afinal, quem
são os donos do poder? Por outro lado, seu viés estatofóbico nega o caráter
estratégico e funcional da intervenção do Estado na economia brasileira durante
o século XX.
A tese do patrimonialismo suscita duas atitudes intelectuais que produzem
consequências em termos de política de reforma:
O patrimonialismo está superado e, portanto, a reforma cogita corrigir
disfunções da administração burocrática.
O patrimonialismo é superável e, assim, a reforma deve agir a fim de
burocratizar o Estado e punir os comportamentos desviantes - nepotismo,
favoritismo, clientelismo e corrupção.
Não há quem considere que o patrimonialismo seja insuperável, mas imprecisões
conceituais, já apontadas por Carvalho (1997), acabam por confundir
patrimonialismo com clientelismo, corporativismo e, até mesmo, com simples
corrupção, indicando a permanência do fenômeno e magnificando sua dimensão
(Pinho, 1998).
A atitude contrária, que registra o completo desaparecimento do
patrimonialismo, orienta o foco para a administração burocrática (e suas
distorções) e informa estratégias de flexibilização orientadas para sua
superação, ensejando a possibilidade de eliminação de mecanismos de salvaguarda
dos princípios do universalismo, da isonomia e da equanimidade, ainda sujeitos
às vicissitudes da democracia e da cidadania no Brasil.
Finalmente, aceitar a hipótese sugerida pelo próprio Faoro, subscrita por
Beltrão e mesmo por Bresser-Pereira, de que o patrimonialismo tem, além de sua
dimensão institucional, uma vertente cultural, impondo-se como uma
"mentalidade" presente na sociedade brasileira, não implica propor estratégias
de "mudança cultural" dentro de uma concepção instrumentalizada da cultura ou
da cultura política. Ao contrário, trata-se de conduzir transformações nas
práticas administrativas dentro do espaço das representações sociais, quer
dizer, de gerar novas possibilidades de interação das normas, práticas e
representações.
CORONELISMO E MANDONISMO
Um dos temas recorrentes da sociologia política brasileira é o coronelismo.
Espécie de mandonismo local, típico dos sertões nordestinos, o coronelismo é a
expressão de uma realidade econômica, social e política mais ampla, encontrada,
no passado, em quase todas as regiões do país. Designa o sistema de dominação
exercido pelos potentados rurais.
A palavra deve sua origem ao posto mais elevado da Guarda Nacional, criada em
1831, em substituição às milícias existentes durante o período colonial. De
início, os oficiais da Guarda eram eleitos, mas, a partir de 1837, os coronéis,
majores e capitães passaram a ser nomeados, entregando-se esses postos aos
notáveis de cada lugar, de acordo com sua posição social. Para gozarem de suas
prerrogativas, os oficiais tinham de obter suas patentes pagando emolumentos e
averbações. Possuíam uniformes, com as insígnias correspondentes a cada posto,
que envergavam nas festas cívicas e religiosas e nas ocasiões em que precisavam
impor mais respeito.
A Guarda Nacional era um corpo auxiliar da tropa de linha, o exército regular.
Exercia função importante na manutenção da ordem pública, principalmente onde
não havia polícia nem guarda municipal. Em caso de guerra, atuava como força
auxiliar do Exército. Foi extinta em 1911, retirando dos grandes proprietários
rurais um forte instrumento de poder. No entanto, a designação de coronel ficou
associada aos chefes políticos municipais, em geral grandes proprietários de
terras que, durante a República Velha, e mesmo depois, controlavam votos e
tropas de jagunços.3
Assim como o patrimonialismo, o coronelismo também tem seu clássico. Publicado
em 1949, depois de aprovado como tese universitária na Faculdade de Filosofia
da Universidade do Brasil, Coronelismo, Enxada e Voto: O Município e o Regime
Representativo no Brasil,deVictorNunes Leal (1997), firmou-se como a referência
incontornável em qualquer discussão sobre o assunto. Como o próprio título do
livro indica, trata-se de um estudo sobre o papel do município na vida
político-administrativa do Brasil, examinando, historicamente, suas
atribuições, suas receitas, seu papel na organização policial e judiciária, a
eletividade de seus mandatários e aspectos da legislação eleitoral. Entretanto,
o primeiro capítulo traz as "Indicações sobre a Estrutura e o Processo do
'Coronelismo'", em que o autor discorre longamente sobre o tema, o que
estimulou um colega a sugerir que ele pusesse o coronelismo em primeiro plano
no título do livro, resultante da tese originalmente intitulada O Município e o
Regime Representativo no Brasil: Contribuição ao Estudo do Coronelismo.
Para Leal, o coronelismo é fruto de um compromisso entre o poder público
crescentemente fortalecido e os chefes políticos locais, notadamente os
senhores de terras, em franca decadência. É o produto da implementação do
regime representativo em uma estrutura social e econômica "inadequada". É uma
manifestação do poder privado, ou o que restou de sua antiga exorbitância
dentro da "ordem democrática". Tem como características secundárias "o
mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços
públicos locais" (ibidem:41).
O coronelismo prospera em um meio em que há muita pobreza e grande concentração
na posse da terra. Resultante da forma de ocupação do território ainda nos
tempos da colonização, com a distribuição de sesmarias, a estrutura fundiária
manteve-se concentrada mesmo com o parcelamento das heranças, uma vez que os
casamentos entre membros de famílias proprietárias mantinham no domínio dos
mesmos clãs as grandes fazendas. Por outro lado, os sitiantes, posseiros e
arrendatários viviam em precárias condições, tendo de tirar seu sustento e
remunerar o proprietário com a pequena produção da terra que conseguissem
lavrar. Os pequenos proprietários também viviam na pobreza e na dependência dos
grandes, a quem, muitas vezes, vendiam sua produção. Os próprios coronéis são
quase sempre pouco mais do que remediados, vivendo modestamente, sem muito
conforto, pois nem o excedente da produção nem o proveito que possam tirar das
modestas obras e serviços dos governos municipais, eventualmente sob seu
controle, lhes fornecem grandes rendimentos. Com seus recursos, eles têm de
arcar com as despesas eleitorais - do alistamento e da eleição em si. Segundo
Leal, "sem dinheiro e sem interesse direto, o roceiro não faria o menor
sacrifício nesse sentido. Documentos, transportes, alojamentos, refeições, dias
de trabalho perdido, e até roupa, calçado, chapéu para o dia da eleição, tudo é
pago pelos mentores políticos empenhados na sua qualificação e comparecimento"
(ibidem: 56).
O coronel é, em geral, homem empenhado no progresso de seu distrito ou
município, lutando por melhorias e obras, como escolas, estradas, postos de
saúde, campos de futebol, postos do correio, luz elétrica e redes de água e
esgoto. Para tanto, convém mais a ele dar sustentação ao partido governista.
Além de benefícios de interesse coletivo, o coronel também tem de prestar
muitos favores pessoais, desde arranjar emprego até oferecer asilo e proteção a
perseguidos pela Justiça. Para os adversários, contudo, nega pão e água. No
exercício do favoritismo ou da perseguição, transita em uma zona que se
encontra às margens da lei. O filhotismo o leva a trazer os agregados para
comerem na gamela municipal. Nas batalhas eleitorais, utiliza
inescrupulosamente o dinheiro, os bens e os serviços públicos municipais. A
contraface do filhotismo é o mandonismo. O coronel se serve da máquina
municipal ou das autoridades estaduais por ele nomeadas, como o delegado e o
coletor de impostos, para perseguir seus opositores. Para os amigos, pão; para
os inimigos, pau. É a troca de favores que está na base dos compromissos. É o
descumprimento de uma promessa ou uma desconsideração pessoal qualquer que
justifica a ruptura. Em geral, esta se dá paraque ocoronel possa voltar às
hostes do oficialismo quando seu patrono perder o espaço no governo estadual. O
sistema não estimula a rebeldia, que não oferece proveito àqueles que se
afastam do governo. O apoio oficial é fundamental para trazer benefícios
coletivos, oferecer favores, exercer pressão sobre os adversários e financiar
parte das despesas eleitorais.
O coronel não é um arrivista venal, mas é um realista, sempre atento à sua
sobrevivência, que depende do amparodo governo estadual:
A essência, portanto, do compromisso "coronelista" - salvo situações
especiais que não constituem regra - consiste no seguinte: da parte
dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo
nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual,
carta-branca ao chefe local governista (de preferência o líder da
facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao
município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar
(Leal, 1997:70).
Assim, o coronelismo nasce da falta de autonomia dos municípios, penalizados na
ordem republicana pela redução de suas atribuições, pelo excesso de encargos e
pela penúria orçamentária. Paralelamente ao enfraquecimento do poder local,
cresceu a autonomia extralegal dos chefes políticos, que, em troca de votos,
passam a opinar em todos os assuntos de interesse do município que se encontram
na competência do Estado ou mesmo da União.
Em suma, o coronelismo é um compromisso entre um poder público estadual
fortalecido e a reduzida influência social dos chefes políticos locais. É um
sistema hierarquizado de alianças que delega aos coronéis a distribuição de
benefícios e malefícios em troca da manipulação da vontade popular, o chamado
"voto de cabresto"4. Medra à sombra do governo; nutre-se do oficialismo. Nada
tem a ver com a antiga força dos senhores rurais do período colonial, autêntica
afirmação do poder privado, única autoridade efetiva nos vastos sertões do
Brasil.
Raymundo Faoro também se ocupou do coronelismo em sua extensa análise do
patrimonialismo brasileiro. Para ser coerente com o argumento do estamento
centralizador, Faoro acaba por minimizar o poder do coronel, colocando-o em
condição subordinada, como um "servidor" do governador, de quem recebe
delegação informal para exercer sua autoridade. Há um casamento entre o
coronelismo (municipal) e a oligarquia (estadual).
Embora, em geral, o coronel seja um homem de posses, para Faoro pode haver,
também, coronéis remediados que não sejam senhores de terras. Sua autoridade
não provém da riqueza, mas do reconhecimento que se dá ao poder que exercem,
recebido por delegação do governo central no Império e do governo estadual na
República em troca dos votos que carreiam para o partido oficial.
Segue, assim, atrilhaabertapor Victor Nunes Leal e o núcleo de seu argumento,
relacionado com o enfraquecimento do poder dos municípios e a relação de
dependência para com o governo estadual. O coronelismo emerge do
enfraquecimento dos municípios, com o esvaziamento de seus poderes e
atribuições e o estrangulamento da eletividade de seus mandatários, desde a
constituição republicana. Nesse quadro, estabelece uma relação de obediência
entre o governador, "intermediário dos favores e benefícios da União sobre as
comunas" (Faoro, 2001:708), e o coronel. Entre um e outro a relação é de
obediência.
Os coronéis não são, portanto, parte do estamento político-burocrático que
domina o Estado nacional. São um poder auxiliar, subordinado, que lhe serve à
distância, concentrado em aspectos da vida local. É no mínimo curioso que Faoro
passe praticamente ao largo da análise do municipalismo e das questões
relativas ao sistema representativo que constituem o objeto da tese de Leal.
Ora, no Portugal patrimonialista e na administração colonial, os
concelhosconstituíam uma força representativa da vontade dos munícipes contra a
afirmação do poder dos grandes proprietários rurais. No Império brasileiro,
houve uma amálgama dessas duas forças que, isoladas dos grandes centros e dos
interesses que neles se debatiam, exerciam sua dominação sem incomodar nem
serem incomodadas pelo governo central. O poder local era, pois, uma peça-chave
na sustentação da ordem estamental. Na República, o município enfraquecido e o
coronelismo dependente são o combustível do poder das oligarquias estaduais,
estas, sim, forças emergentes a confrontar o governo central e o estamento.
O terceiro livro que expõe o tema do coronelismo também se converteu em um
clássico. Coronel, Coronéis,de Marcos Vinícios Vilaça e Roberto Cavalcanti de
Albuquerque (1965), texto de leitura bastante agradável, reproduz os mesmos
argumentos de Leal. Restrito ao ambiente do Nordeste, o traço original dessa
pesquisa é a construção de perfis sociobiográficos de quatro remanescentes,
cada um com seu estilo, da mais pura estirpe do coronelismo nordestino.
Constituiu então uma novidade na ciência social brasileira, pois introduzia, à
moda dos pioneiros de Chicago, a história de vida como método de pesquisa
qualitativa. Chico Romão, Zé Abílio, Chico Heráclio e Veremundo são bem
diferentes entre si, mas, mesmo em suas particularidades, configuram um modelo
geral que, devidamente estilizado, poderia evoluir para a formulação do ideal-
tipo weberiano.
O ensaio introdutório e os quatro perfis constituem a crônica de uma morte
anunciada, como de resto também o fazem os outros textos clássicos. Os autores
pernambucanos descrevem a dependência dos coronéis com relação ao governo
estadual e registram a decadência do sistema que lhes dá sustentação. O voto
mercadoria acaba por se enquadrar na lei da oferta e da procura, podendo ser
vendido a quem por ele pagar mais. Por outro lado, os benefícios que o coronel
precisa levar para sua comunidade para demonstrar prestígio e assegurar
legitimidade se transformam em armas contraaprópria estruturadedominação.
Escolas, estradas, estações de rádio, empreendimentos industriais, tudo isso
contribui para acelerar os processos que transformam a estrutura socioeconômica
e minam as bases do coronelismo.
O estudo sobre o coronelismo e o mandonismo ganhou novo alento com os trabalhos
de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Tomado em perspectiva histórica, o
coronelismo se inscreve em uma longa tradição de mandonismo local, presente na
vida política brasileira desde a colonização. Sua permanência se deve à
conservação na estrutura social do latifúndio e da "família grande", em um jogo
de ação e reação com o poder central que progressivamente se afirma - pálido
ainda na Colônia; imbricado com o mandonismo local no Império; independente e
fortalecido na República, sobretudo a partir de 1930.
Seria ocioso retomar todo o desenvolvimento de seu raciocínio e seus argumentos
para mostrar a força do mandonismo em quatrocentos anos de história. Na
Colônia, as sesmarias latifundiárias, a família patriarcal, o trabalho escravo
e as câmaras plenipotenciárias constituíam a base da dominação senhorial. No
Império, um débil governo central, longe da numerosa população rural, apoiava-
se nos mandões, em um jogo de laisser-faire,de não interveniência nos assuntos
internos de um e outro, legitimando sua autoridade com as dragonas das patentes
da Guarda Nacional. Na República Velha, a emergência do coronelismo se deve ao
enfraquecimento da autonomia municipal, que era compensado pela forma peculiar
de funcionamento do sistema representativo, requerendo a chancela do voto para
confirmar as escolhas dos representantes. Todas essas transformações históricas
são minuciosamente descritas no ensaio sobre O Mandonismo Local na Vida
Política Brasileira e Outros Ensaios(Queiroz, 1976).
Nem a libertação dos escravos, nem o advento da República, nem o aumento da
dependência municipal imposto pelo regime de 1891 deram cabo do mandonismo. Ao
contrário, os chefes locais souberam se adaptar ao "trabalho livre" de
camponeses sem terra e de imigrantes estrangeiros, à ampliação da participação
política com a extensão do direito de voto e ao sistema de transação com o
poder emergente das oligarquias estaduais. Agora, a ideologia do favor dava
sustentação ao mecanismo de barganha que mantinha o coronel no centro da
intermediação.
O singular no estudo de Queiroz é a ideia de permanência, de sustentabilidade
do poder coronelista: "O centro da política continuava, malgrado todas as
limitações estabelecidas por lei, o município, e dentro do município, o
coronel, do mesmo modo que durante o Império" (1976:117). Ele se interpunha
entre a massa votante e o chefe político estadual, distribuindo favores,
conciliando interesses, arrebanhando eleitores. Vigia um acordo tácito: "[...]
o governo não se metia no município, onde o coronel tinha carta branca para
fazer o que quisesse, e em troco recebia o apoio do coronel" (ibidem:118).
O caso mais extremado de exercício do mandonismo, relatado por Queiroz, e
também citado por Leal e Faoro, é o do padre Cícero Romão Batista. Figura
emblemática de líder político e religioso, exerceu durante mais de cinquenta
anos o domínio do município de Juazeiro do Norte e de toda a região sul do
Ceará. Por doze anos prefeito da cidade, foi eleito e reeleito vice-presidente
do Estado e, com o apoio de outros coronéis, derrubou o presidente do Ceará,
Franco Rabelo, para restaurar o poder da oligarquia tradicional. Em seu
território agia sobranceiro, indiferente aos ditames do governo estadual, que
enviava embaixadores para cortejá-lo. Três presidentes estaduais5foram a
Juazeiro visitá-lo, em uma penosa viagem por estradas de terra de mais de 600
km. Em sua praça-forte, acolhia com hospitalidade quem o procurasse em missão
de paz, até mesmo bandidos de honra, como Lampião e seu bando. Tornou-se
célebre o pacto firmado em 4 de outubro de 1911, sob sua direção, por dezessete
chefes políticos do Vale do Cariri para fazer cessar hostilidades e impor a pax
"romana". O documento estabelecia o desarmamento, o apoio mútuo contra as
tentativas de golpe, a via do acordo para superar desavenças e o poder
moderador do chefe supremo do partido (Faoro, 2001:724).
No ensaio específico sobre o coronelismo, além da recuperação histórica, há a
perspectiva sociológica, a preocupação conceitual e o estabelecimento de
categorias de análise. O coronelismo é visto como "uma forma específica de
poder político brasileiro que floresceu durante a Primeira República, e cujas
raízes remontam ao Império" (Queiroz, 1976:163). O fenômeno persiste; forma um
sistema em que o coronel é o elemento polarizador em torno do qual os
indivíduos se distribuem no espaço social segundo diferentes níveis
hierárquicos, mas são todos "gente do coronel". É, portanto, um sistema de
poder, apoiado nas relações pessoais, diretas ou indiretas, que distribui
proteção e controla votos, convertidos em bens de troca. Embora estratificada,
a estrutura permite certa mobilidade ascendente, que se dá pela aquisição de
fortuna ou pela aproximação ao centro do sistema ou subsistema regional ou
local. Assim, existem coronéis em vários graus, desde os pequenos, dominando
diretamente certo número de eleitores, até os grandes, liderando um grupo de
outros coronéis. Os pequenos quase se equiparam aos cabos eleitorais, que
mantêm contato direto com os eleitores e intermedeiam os favores que recebem
dos coronéis. Essa multiplicidade de níveis constituía, na visão de Queiroz,
uma singularidade da política brasileira durante a Primeira República, traço de
sua estrutura socioeconômica apoiada em grupos de parentela consanguínea ou
econômico-política. Esse aspecto se transformou com o tempo, perdendo
relevância depois da Revolução de 1930. Por isso, Queiroz prefere designar os
chefes políticos, proprietários de terras ou não, que dominaram o meio rural
desde a Colônia de "mandões locais":
O coronelismo se integra, pois, como um aspecto específico e datado
dentro do conjunto formado pelos chefes que compõem o mandonismo
local brasileiro - datado porque, embora aparecendo a apelação de
"coronel" desde a segunda metade do Império, é na Primeira República
que o coronelismo atinge sua plena expansão e a plenitude de suas
características. O coronelismo é, então, a forma assumida pelo
mandonismo local a partir da Proclamação da República: o mandonismo
local teve várias formas desde a Colônia, e assim se apresenta como o
conceito mais amplo com relação aos tipos de poder político-econômico
que historicamente marcaram o Brasil (ibidem:172).
Trata-se, pois, de uma estrutura de dominação em que os dominantes dispõem de
vários instrumentos, principalmente o econômico, mas também de armas como a
opressão, a violência e a crueldade, "tão empregados e tão usuais quanto os
favores e os benefícios", para captar e conservar votos (ibidem:174). O regime
de proteção e coerção, pouco a pouco, cede lugar à barganha, na medida em que a
"igualdade" entre os eleitores e entre eles e os eleitos transformam o voto em
um valioso bem de troca.
Para Queiroz, o coronelismo está em declínio, vitimado pelo avanço do
crescimento demográfico, da industrialização, da urbanização. O aumento do
número de eleitores, o surgimento de camadas médias urbanas, a elevação dos
níveis educacionais, a melhoria do sistema de transportes e a ampliação do
acesso aos meios de comunicação são processos que concorrem para arruinar a
estrutura coronelista, uma vez que intensificam a diferenciação social. De
fato, eles encurtam distâncias sociais e geográficas, despersonalizam as
relações sociais e aumentam a consciência crítica, dificultando o exercício de
uma autoridade extralegal. A análise de Queiroz mostra, portanto, que vários
fatores conjugados determinaram a decadência da estrutura coronelista, fazendo-
se sentir de forma diferente segundo as características de cada região. Mas o
coronelismo, ou alguns de seus aspectos, ainda persistia na vida política
brasileira.
Muitos outros trabalhos foram escritos na esteira desses clássicos pioneiros,
sempre tomando como referência maior o Coronelismo,de Victor Nunes Leal,
conforme já repertoriava o trabalho de Carone (1971) e a bibliografia do texto
de José Murilo de Carvalho (1997). São diferentes nuanças, perspectivas de
análises e, sobretudo, estudos de caso que mostram, se não a permanência do
fenômeno, pelo menos o interesse por seu estudo. Convém mencionar, ainda que de
forma muito breve, três desses trabalhos, tomados quase ao acaso a partir do
fato de serem mais recentes.
João Gualberto (1995) relata o caso do Espírito Santo tomando como exemplo a
presença de Jerônimo Monteiro na vida política de um estado caracterizado pela
ocupação territorial por meio da imigração de europeus. O oligarca governou o
Espírito Santo de 1908 a 1912, mas influenciou a política do estado até sua
morte, em 1933, tendo elegido seu irmão, Bernardino Monteiro, presidente do
estado em 1916 e, ele mesmo, senador em 1918 e constituinte em 1933. O trabalho
de Gualberto também trata das heranças do coronelismo, oferecendo um breve
panorama da política estadual até meados dos anos 1960, destacando o capital
político transmitido aos populistas e tecnocratas. O principal legado é a
inscrição do coronelismo no imaginário político brasileiro, manifestando-se na
literatura e informando as representações sociais do poder local.
João Morais de Sousa (1995) estudou a vida política do município de Malta, no
interior da Paraíba, de 1953 a 1992, onde constata a conservação do poder
político nas mãos dos chefes locais, que se mantém mediante práticas de cunho
assistencialista, paternalista e clientelista. Entre vários outros aspectos,
pode-se questionar, nesse trabalho, a própria apresentação do caso de Malta
como uma estrutura coronelista, descrita de forma semelhante às de centenas de
outros municípios do Nordeste. No entanto, convém registrar as práticas que
indicam fazerem parte do repertório coronelista - assistência médica,
empreguismo, crimes eleitorais, perseguições, relações de compadrio, rituais
fúnebres e celebrações religiosas, e a conversão de direitos sociais, como a
aposentadoria rural, em favores. As categorias são confusas, pois embaralham
espécies, gêneros e famílias, mas oferecem bons exemplos do clientelismo que
preside as relações políticas no nível local.
Um dos trabalhos mais recentes sobre o tema do coronelismo é o de Araújo
(2006), uma tese de doutorado que, entre outros temas, trata da trajetória
política de José Sarney. A partir do Estado do Maranhão, fez-se deputado,
senador, presidente do Congresso e presidente da República. É, ainda hoje,
senador, chefe de clã familiar e político, pai da ex-governadora e senadora
pelo Maranhão e figura proeminente da República. O emprego do conceito de
coronelismo parece inadequado ao ser aplicado ao caso específico dos Sarney,
uma oligarquia poderosa, sim, que se alimenta do "sistema" baseado no
mandonismo local.
A propósito, Carvalho (1997) procura, sem muito sucesso, desfazer os equívocos
conceituais no uso das noções de mandonismo, coronelismo e clientelismo, cuja
distinção é fundamental para o estudo das relações entre o poder local e o
poder nacional, inclusive para este artigo. Valendo-se da releitura do clássico
de Leal, Carvalho procura acentuar as diferenças entre o coronelismo e o
mandonismo. Conforme assinalara Leal (1997), o coronelismo aparece como um
sistema político, datado da Primeira República, que descreve uma complexa rede
de relações quevai desde o coronel até o presidenteda República, nascida da
convergência de dois fatos - o surgimento da figura forte dos governadores
estaduais e a decadência econômica dos fazendeiros.
O mandonismo, conceito que se aproxima do caciquismo hispano-americano,
refere-se à existência local de estruturas oligárquicas e
personalizadas de poder. O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o
coronel como indivíduo, é aquele que, em função do controle de alguns
recursos estratégicos, em geral, a posse da terra, exerce sobre a
população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre
acesso ao mercado e à sociedade política. O mandonismo não é um
sistema, é uma característica da política tradicional (Carvalho,
1997:3).
Enquanto o coronelismo morreu em 1930 e foi enterrado em 1937, o mandonismo
existe desde a colonização e sobrevive, ainda hoje, em regiões isoladas, embora
tenda a desaparecer com a ampliação dos direitos de cidadania. O uso das
expressões "sistema" e "estrutura" para designar um e outro acaba por manter a
confusão. Apesar disso, a distinção proposta indica que o coronelismo designa
um sistema político, e o mandonismo uma característica pessoal do chefe
político, embora seja difícil distinguir um do outro. Parece razoável supor que
determinados sistemas políticos favorecem a emergência de tipos específicos de
chefia.
Nesta análise, preferiu-se considerar, como o faz Queiroz, o coronelismo uma
variedade de mandonismo, "um momento particular do mandonismo", como também
anotou Carvalho a respeito da visão de Leal. Nesse caso, o mandonismo é também
um sistema, que se transforma historicamente, e não o exercício do poder
absoluto, como pretendia Eul-Soo Pang (1979), mas sim um sistema de dominação
clientelista em que o poder pessoal e a arbitrariedade ainda dão algumas
cartas. O fato de o mandonismo aparecer como"uma característica do coronelismo"
só confirma a proximidade entre as duas categorias. Se "a história da
decadência do mandonismo confunde-se com a história da formação da cidadania"
(Carvalho, 1997:3), identifica-se também com a história do desenvolvimento da
poliarquia, da burocratização do Estado e do declínio do coronelismo.
Considerado dessa perspectiva, o mandonismo é um sistema que permanece. O
coronel, o patriarca do sertão, vestido em blusões de linho e calçado em
alpercatas, cercado de jagunços, tangendo gado, posseiros e eleitores,
distribuindo favores e fazendo justiça, vendo o rebanho e o mundo a partir dos
alpendres de suas casas de fazenda, não existe mais. Mas a política municipal
continua comandada por chefetes personalistas muitas vezes arbitrários no
exercício de seus limitados poderes. O coronel, proprietário de terras,
transfigurou-se no comerciante, no médico, no gerente de banco, que entram na
política local para modernizá-la e acabam por adotar as mesmas práticas
daqueles que substituem. Eles apoiam as oligarquias estaduais e o partido da
situação. Seus representantes no Congresso Nacional formam a maioria
parlamentar de todos os governos de ontem e de hoje. O traço forte dessa
política é o clientelismo. Nesse sentido, mais do que o mandonismo, o
coronelismo subsiste como representação social do Brasil profundo.
Existindo como dado de realidade ou como representação coletiva, o coronelismo
também informa os projetos de reforma do Estado. Com a visão do coronelismo
como uma força do atraso a sustentar o patrimonialismo e a solapar a eficiência
da administração pública, os reformistas tendem a ser "apolíticos" e
centralizadores. Acreditam que o poder local pode ser facilmente capturado
pelos mandões locais. Assim, convém manter políticas apoiadas na centralização
de recursos e no controle rígido sobre os repasses aos níveis inferiores de
governo.
Munidos de novos conceitos (rent-seeking society), atualizam estratégias de
insulamento (pós-)burocrático (Nunes, 1997), defendendo a criação de agências
autônomas, organizações sociais e outros instrumentos imunes à influência
"nefasta" da política partidária. Comprometidos com o ideário do gerencialismo,
engajam-se em governos "modernizadores" apoiados pelas mesmas forças que dizem
querer eliminar.
PERSONALISMO
Utiliza-se, aqui, o personalismo (ou "pessoalidade") para caracterizar uma
forma particular de hierarquização social baseada na distinção entre indivíduos
e pessoas proposta por Louis Dumont e introduzida na "sociologia do dilema
brasileiro" pelo antropólogo Roberto DaMatta (1980).
Às clássicas análises do patrimonialismo e do coronelismo vem se somar uma
interpretação do Brasil que coloca em primeiro plano a cultura e suas
manifestações. Trata-se de Carnavais, Malandros e Heróis,de DaMatta, livro
também já convertido em clássico, que tenta desvendar o dilema brasileiro como
um drama, a partir do estudo de seus rituais e de seus personagens principais.
O autor se propõe a discutir as peculiaridades de nossa sociedade, "o que faz o
Brasil, Brasil", o país de "carnavais e hierarquias, igualdades e
aristocracias, com a cordialidade do encontro cheio de sorrisos cedendo lugar,
no momento seguinte, à terrível violência dos antipáticos 'você sabe com quem
está falando?'" (ibidem, 1980:14).
Para construir essa interpretação, DaMatta apresenta um conjunto de ensaios em
que trata dos ritos do Carnaval e do Dia da Pátria, dos mundos da Casa e da
Rua, da comparação entre os carnavais do Rio de Janeiro e de New Orleans, do
ritual do"você sabe com quem está falando?", da figura do malandro e da
literatura de Guimarães Rosa, destacando as personagens emblemáticas da
malandragem, da vingança e da renúncia. São diversas ocasiões para chamar a
atenção para o caráter relacional da sociedade brasileira.
Todas as sociedades estabelecem formas de hierarquizar seus membros. No Brasil,
a hierarquização se reproduz em múltiplos planos, com critérios outros além do
eixo econômico dominante. Serve para compensar e complementar diferenciações
sociais básicas, incorporando classificações para cor, origem, educação,
relações pessoais etc.: "Aqui, as relações pessoais mostram-se muito mais como
fatores estruturais do sistema do que como sobrevivências do passado que o jogo
do poder e das forças econômicas logo irá colocar de lado e marginalizar"
(ibidem:192).
Na sociedade relacional, os requisitos do domínio racional-legal, ou seja, os
elementos que conferem racionalidade e legitimidade à dominação burocrática,
como a igualdade perante a lei, a universalidade na aplicação da norma e o
princípio da isonomia, estão sujeitos à hierarquização social que distingue
"indivíduos" de "pessoas" e posiciona seus membros de acordo com o peso de seus
relacionamentos. Por isso, a todo momento somos levados a introduzir elos
personalizados em atividades basicamente impessoais.
A presente análises e vale, sobretudo, dos insightsapresentados no capítulo
"Você Sabe com Quem Está Falando?". Essa expressão, de uso cada vez menos
frequente, sempre foi utilizada no Brasil para destacar aposição social de quem
aenuncia em uma situação na qual se sente "rebaixado" ou posto em igualdade de
condições em um momento em que esperava tratamento diferenciado ou obter
privilégios. Constitui um ritual que (r)estabelece a hierarquia em um universo
que tende ao igualitarismo. Coloca em primeiro plano uma hierarquia que se
deseja esconder, até por se considerar desnecessária, pois "cada qual deve
saber o seu lugar". É o contraponto do "jeitinho" (nossa maneira especial de
resolver as coisas), da malandragem e da cordialidade, características sempre
tomadas como referência para definir o modo de ser brasileiro. É, portanto, um
ritual que não se percebe como dramatização da afirmação das hierarquias,
"atualização de valores e princípios estruturais de nossa sociedade" (ibidem:
142), mas como uma manifestação de características pessoais indesejadas. O
ritual chama a atenção para conflitos reais ou latentes em uma sociedade que
tem aversão aos conflitos, concebidos
como presságios do fim do mundo, e como fraquezas - o que torna
difícil admiti-los como parte de nossa história, sobretudo nas suas
versões oficiais e necessariamente solidárias. Tomamos, então, o
partido de sempre privilegiar nossas vertentes mais universalistas e
cosmopolitas, deixando de lado uma visão mais percuciente e genuína
de nossos problemas (DaMatta, 1980:141).
Note-se que o ritual hierarquizante também é utilizado por camadas sociais
supostamente desprovidas de posições que possam evocar dominância. Essa
possibilidade destaca o aspecto relacional da posição de superioridade, pois
osubalternopodesevaler da posiçãodochefe, o empregado da do patrão, o parente
humilde da do patriarca poderoso, agindo como se nelas estivessem. Nesse
sentido,
a hierarquia parece estar baseada numa intimidade social. [...] As
relações podem começar como marcadas pelo eixo econômico do trabalho,
mas logo depois adquirem uma tonalidade pessoal, definindo-se também
no plano de uma forte e permanente moralidade. [...] Numa sociedade
assim constituída, onde as relações de trabalho somam-se a um
conjunto de laços pessoais regidos por valores tais como a intimidade
[...], a consideração, o favor[...], o respeito[...] e apreciações
éticas e estéticas generalizantes (como as categorias de limpo, bem-
apessoado, correto, sagaz, bom, de fino-trato, etc...), existem
possibilidades para uma hierarquização contínua e múltipla de todas
as posições no sistema, mesmo quando elas são radicalmente
diferenciadas ou formalmente idênticas (ibidem:148; ênfases do
autor).
Assim, além do eixo econômico dominante que prevalece nas sociedades demercado,
incorpora-se o capital de relações sociais como um elemento fundamental na
hierarquização social, criando-se um sistema múltiplo que serve para
estabelecer compensações e complementaridades e, ao mesmo tempo, reforçar a
estratificação. Essa dialética do sistema dificulta a tomada de consciência das
posições sociais e atualiza o mito da democracia racial, da mobilidade
instantânea e da cordialidade nas relações entre dominantes e dominados.
Na busca de construir uma compreensão da sociedade relacional, com base no
ritual do "você sabe com quem está falando?", DaMatta introduz a distinção
entre indivíduo e pessoa que recupera da literatura antropológica, sobretudo de
Marcel Mauss e Louis Dumont. Embora não fique explícito, parece claro que a
noção de pessoa está mais associada às sociedades tradicionais, e a noção de
indivíduo às sociedades modernas. Pessoas são englobadas por comunidades
totalizantes, expressam sentimentos coletivos, obedecem a regras tradicionais,
têm reduzida capacidade de escolha. Os indivíduos são livres, expressam
subjetividades, fazem as regras do mundo onde vivem e suas possibilidades de
escolha constituem direitos.
Considerada nesses termos, a distinção conceitual parece separar dois mundos
estanques, quando o que caracteriza a apropriação que dela faz DaMatta é
justamente sua dinâmica e as múltiplas possibilidades de combinação e gradação.
Assim como existem pessoas nas sociedades igualitárias de mercado, como os
Estados Unidos (very important people), há, em caráter excepcional, indivíduos
nos sistemas tribais, pessoas que se individualizam pela recusa da totalidade.
Existe, desse modo, uma complexa dialética entre o indivíduo e a pessoa,
havendo sistemas que privilegiam um ou outro. O Brasil caracteriza-se pela
importância atribuída às duas noções, quer dizer, pelo valor conferido às leis
universalizantes que promovem aigualdade dosindivíduos e, ao mesmo tempo, aos
critérios morais e afetivos que hierarquizam as pessoas.
DaMatta acredita que
por termos leis geralmente drásticas e impossíveis de serem
rigorosamente acatadas, acabamos por não cumprir a lei. E, assim
sendo, utilizamos o clássico "jeitinho" que nada mais é do que uma
variante cordial do "Você sabe com quem está falando?" e outras
formas mais autoritárias que facilitam e permitem burlar a lei ou
nela abrir uma honrosa exceção que a confirma socialmente (ibidem:
184).
Esses escapismos acabam por gerar desconfiança com relação às regras
universalizantes e atualizar a vigência do formalismo (Riggs, 1964; 1968), quer
dizer, a discrepância entre as normas prescritas legalmente e o comportamento
efetivo dos sujeitos.
O formalismo, entretanto, pode ser visto também como a expressão de um ideal de
sociedade e, portanto, como uma estratégia de mudança social:"A força da
leié,pois, uma esperança. Para os destituídos, ela serve como alavanca para
exprimir um futuro melhor (leis para nóse não contra nós) e para os poderosos,
ela serve como um instrumento para destruir o adversário político. Num caso e
no outro, a lei raramente é vista como lei, isto é, uma regra imparcial"
(DaMatta, 1980:185).
No universo das relações pessoais, a lei não é a expressão da ordem
igualitária, mas sim uma sanção generalizada, da qual não escapam aqueles que
conseguem flexibilizar sua vigência pela "especificidade do caso". Quem se
apresenta como "indivíduo" não é um cidadão completo; é um "zé-ninguém", uma
"não pessoa", alguém que não possui uma "identidade" que possa ser
hierarquizada em uma escala relacional - filho do ministro, amigo do deputado,
irmão do coronel, motorista do governador. Esse "indivíduo", para quem está dos
dois lados do balcão a burocracia pública, não é percebido como o patrão, o
cliente e a própria razão de ser do Estado e dos serviços públicos. É um
incômodo, um estorvo.
Uma das críticas que se faz ao trabalho de DaMatta é a mesma que se dirige às
teses de Faoro. Segundo essa perspectiva, as análises desses intérpretes da
realidade brasileira acabam por identificar a permanência de traços das
sociedades tradicionais, sobretudo em seus aspectos culturais, vale dizer, a
ação afetiva (Weber, 1994), as características da comunidade (Tönnies, 1947),
as formas de solidariedade mecânica (Durkheim, 1991) e outros elementos
holísticos. A crítica a essas concepções se refere a uma sociologia da
inautenticidade, que negariaa completude do processo de modernização
brasileira, deixando por toda parte as sombras e os escombros do passado
tradicional.
Souza (2000) aprofunda essa crítica em duas direções. Primeiro, mostra que as
noções de indivíduo e pessoa e os valores a elas associados não estão
vinculados a um esquema de estratificação social que os hierarquize, ou seja,
não permitem explicar "a imbricação entre domínio ideológico e acesso
diferencial a bens ideais ou materiais escassos" (ibidem:191). Segundo, nega a
nitidez da distinção entre os espaços da casa e da rua, onde transitam
conjuntos diferentes de valores, afirmando a ubiquidade dos valores veiculados
pelas instituições do Estado e do mercado. O mundo da casa não seria infenso à
lógica da economia monetária e à internalização do controle das pulsões imposta
pelo continuado exercício do monopólio da violência por parte do Estado
(ibidem:194-195).
Escapa aos objetivos deste artigo aprofundar esse debate. Para a discussão do
personalismo, é suficiente assinalar que a crítica de Souza é pertinente ao
identificar uma confusão entre esferas de ação e espaços sociais distintos, o
que permitiria mudar a percepção das formas de inserção do indivíduo (às vezes,
convertido em pessoa) na vida social. No entanto, exclui a possibilidade de que
se possa pensar as noções de indivíduo e pessoa e de casa e rua como
categorias, cuja gramática opera no mundo das representações, ora estabelecendo
vinculações com classes e grupos sociais, situações de gênero e gerações, ora
transitando com relativa autonomia entre esses espaços. Por outro lado, os
valores veiculados pelo Estado e pelo mercado, ainda que assimilados por toda a
sociedade, por vezes de forma antropofágica, podem sê-lo de maneira
diferenciada, segundo aquelas mesmas formas de segmentação social que definem
diferentes representações do mundo.
Essa observação é importante porque coloca em primeiro plano a forma ambígua
com a qual o personalismo se apresenta à sociedade brasileira e informa a
maneira como ela define a si mesma. Nesse caso, as situações concretas em que o
elemento relacional é evocado em uma relação impessoal são numerosas e,
conforme o caso, podem ser encaradas, com maior ou menor tolerância, como
recursos à hierarquização ou como sinal de flexibilidade e cordialidade.
Do ponto de vista dos reformadores, embora muitos deles possam se prevalecer da
posição privilegiada que ocupam na administração pública para fazer render seu
capital de relações pessoais, não há ambiguidade - o personalismo é sempre
visto de forma negativa.
De todos os clássicos das teorias do Brasil, DaMatta é provavelmente o menos
lido entre os reformadores, embora, em anos recentes, venha crescendo o número
de analistas que incluem a sociedade relacional no contexto da reforma do
Estado. É verdade que a dimensão cultural sempre esteve presente nas cogitações
dos estudiosos da mudança institucional, desde Visconde do Uruguai, Alberto
Torres, Oliveira Vianna, Guerreiro Ramos e Hélio Beltrão, mas, além de
reconhecerem a impossibilidade de mudar a cultura por decreto, pouco oferecem
em termos de proposições que não se circunscrevem no plano das transformações
estruturais ou da própria mudança institucional.
Se é certo que as instituições não se reproduzem da mesma maneira acima e
abaixo do Equador, quais consequências poderia ter para as propostas de reforma
administrativa a consciência de que vivemos em uma sociedade que distingue
indivíduos de pessoas, utiliza múltiplos critérios de hierarquização social e
se vale de práticas rituais como o "você sabe com quem está falando?" e o
"jeitinho"?
Qualquer que seja a disposição relativista dos estudiosos, é certo que a
pessoalidade e os rituais que a atualizam podem ser tomados como aspectos da
cultura brasileira que se projetam sobre a administração pública e se
contrapõem a princípios de universalidade, isonomia e equanimidade que devem
presidir as relações entre a administração pública e os cidadãos. Nesse
sentido, os esforços de reforma realizados até 1980 sempre se orientaram na
direção da burocratização do Estado, tentando impor o princípio da
impessoalidade e afastar dos negócios públicos quaisquer influências estranhas
a seu universo.
A partir de então, as propostas de reforma de cunho gerencialista têm se
orientado para a flexibilização da gestão pública e a incorporação de
organizações não governamentais à prestação de serviços públicos, em uma
tentativa de superar o modelo burocrático. O problema é que, ao abrir espaço
para a atuação de organizações de caráter particularista, com compromissos de
caráter moral, político ou religioso específicos, a reforma gerencial pode
ameaçar o universalismo de procedimentos.
Quando ainda há tantos déficits de institucionalidade democrática, a
superaçãodomodeloburocrático deve ser feita com muita cautela. A burocracia,
fundada na isonomia e na neutralidade, está na base dos sistemas igualitários.
Querer substituir de chofre o universalismo burocrático pelo particularismo das
organizações não governamentais pode ser uma temeridade em uma terra onde ainda
há fortes traços de mandonismo, clientelismo, nepotismo e fisiologismo. Querer
trocar a ética burocrática por pseudoincentivos pecuniários pode ser um
disparate.
Por outro lado, desde que não se imponha como um mecanismo de hierarquização e
discriminação, a pessoalidade, enquanto representação de uma relação menos
formal, fria e distante, pode ser vista como um elemento importante para
quebrar a rigidez dos sistemas burocráticos. No mundo privado, as estratégias
orientadas para a fidelização de clientes passam por um processo de
"pessoalização" das relações entre produtor e consumidor. No mundo dos serviços
públicos, a instituição da figura do médico de família é uma forma de
estabelecer uma relação baseada no conhecimento mútuo, uma relação
pessoalizada.
O desafio que se impõe aos reformadores é reconhecer a pessoalidade como uma
representação das relações entre indivíduos, propor medidas de caráter
universalista para reduzir seus impactos hierarquizantes e discriminatórios e
tirar proveito de sua valorização como elemento capazde"humanizar"as relações
entre a burocracia e os cidadãos (diferenciados em suas necessidades).
PRÁTICAS, REPRESENTAÇÕES, TEORIZAÇÕES E REFORMAS
O estudo das categorias centrais da sociologia política brasileira, usadas para
definir as relações entre o Estado e a sociedade, revela que o patrimonialismo,
o coronelismo e o personalismo constituem referências importantes para o debate
sobre a reforma do Estado. Elas informam as atitudes intelectuais, os
diagnósticos e as propostas de mudançasdos reformadores de todas as latitudes
conceituais e ideológicas. São conceitos curinga que se prestam a variados usos
e servem, algumas vezes, para apoiar até mesmo teses conflitantes. Tanto podem
se referir a aspectos da realidade observável quanto a reminiscências
históricas e apreciações ligeiras sobre a sociedade brasileira. São categorias
sociológicas e representações sociais.
No caso do patrimonialismo, verificou-se que constitui o conceito mais
frequentemente lembrado em todas as análises históricas e diagnósticos sobre o
Estado e a administração pública brasileira. A maioria dos estudos o toma como
uma etapa do desenvolvimento administrativo que teria deixado resíduos
patrimonialistas presentes em determinadas práticas de privatização da esfera
pública ou como um dado cultural que se entranhou na mentalidade brasileira.
Alguns poucos trabalhos, por causa do uso impreciso do conceito, confundindo-
o com o clientelismo, o corporativismo e até mesmo com a simples corrupção,
asseguram tratar-se de dado de realidade verificável em inúmeras evidências. No
primeiro caso, a atitude intelectual de reconhecimento da superação do
patrimonialismo leva a políticas de reforma orientadas para a desburocratização
e a flexibilização da gestão pública. No segundo caso, a atitude de denúncia da
presença do patrimonialismo leva a estratégias focadas na intensificação dos
controles administrativos, políticos e sociais. Uma terceira posição reconhece
a superação do patrimonialismo, mas constata as fragilidades dos direitos de
cidadania, do funcionamento de determina das instituições e dos mecanismos de
controle político e social, o que implica assegurar a vigência de alguns
princípios da administração burocrática - a universalidade, a isonomia e a
equanimidade. Em todos os casos, o patrimonialismo, como imagem simbólica e
representação, paira como uma sombra sobre o passado, o presente e o futuro.
Com relação ao coronelismo, embora ainda apareçam muitos estudos destinados a
comprovar sua permanência, seu uso como categoria de base para informar
análises e diagnósticos sobre a administração pública é mais implícito do que
manifesto. Mais uma vez, a confusão conceitual leva alguns analistas a tomarem
por coronelismo ou mandonismo manifestações de cliente lismo municipal. A
existência dessas práticas e os déficits de institucionalidade e competência
gerencial das administrações locais muitas vezes têm orientado a adoção de
estratégias centralizadoras na formulação e na implementação de políticas
públicas, com impactos na organização governamental e na distribuição de
competências entre níveis de governo. Os fantasmas do patrimonialismo e do
coronelismo informam reformas e estratégias "despolitizadas", políticas
concentradoras e controles centralizados apoiados no insulamento burocrático
(Nunes, 1997).
Como os demais conceitos, o personalismo às vezes é objeto de imprecisão
conceitual, sendo confundido com compadrio, filhotismo, nepotismo e outros
"vícios" supostamente herdados da sociedade tradicional. A não ser nos casos de
combate direto ao nepotismo, em geral fica implícito no discurso moralizante
dos reformadores. Tomado ora como um dado quase natural da sociabilidade
brasileira, ora como uma distorção a ser combatida (em geral, quando confundido
com outras formas de privilégio e favorecimento), o personalismo está situado
em um plano inconsciente, encoberto pelo manto do naturalismo ou pelo mecanismo
freudiano da projeção. Todos buscam valer-se de seu capital de relações
pessoais para evitar uma fila, acelerar um processo, obter uma concessão. Na
forma como está aqui descrito, o personalismo não pode ser superado por
projetos de reforma ou novas leis universalistas. As reformas e as políticas
públicas podem atenuar seus efeitos hierarquizantes e discriminatórios e tirar
proveito da valorização positiva que lhe é conferida para estabelecer relações
menos frias e distantes entre burocratas e usuários de serviços públicos.
Essas três categorias constituem expressões de práticas sociais e diferentes
formas de representar as relações entre o Estado e a sociedade, entre os
domínios público e privado. Suscitam atitudes mentais com relação à autoridade
e seus limites, à distribuição do poder político, à res publica, à burocracia e
à cidadania. Informam julgamentos e atitudes de políticos, reformadores,
burocratas e cidadãos.
Situar esses conceitos no contexto da reforma do Estado significa examiná-los
não só enquanto categorias definidoras de aspectos da realidade, mas também
como representações do mundo social e político. Significa desvendar as máscaras
impostas pelo naturalismo, revelar atitudes intelectuais implícitas em
diagnósticos aparentemente neutros e consistentes e identificar as respostas,
em termos de propostas de mudança, dos reformadores a suas próprias formas de
assimilação dessas noções. Significa, ainda, avaliar o alcance da influência
das práticas e representações que elas definem sobre o funcionamento da
administração pública brasileira e sobre as propostas para reformá-la.
Patrimonialismo, coronelismo e personalismo designam manifestações extintas ou
em vias de extinção que continuam a existir nos corações e mentes de
governantes, reformadores e cidadãos, instruindo comportamentos
eprojetosdemudança e, aqui eacolá,ensejando práticas.
NOTAS
1. A imagem simbólica é um dos dois instrumentos básicos da política simbólica
definida por Lucien Sfez, que compreende a fabricação de imagens e as operações
de ruptura-reunificação. É sempre uma representação da realidade, construída
por intelectuais e artistas, políticos e politicólogos, ficcionistas e
jornalistas, a partir de uma determinada comunidade cultural e linguística
(Lebenswelt). A fabricação dessas imagens (funcionais ao discurso e à prática
política) é, pois, tarefa cotidiana. A operação simbólica marca os momentos de
crise ou mudança (troca de poder), de reunificação, de coesão, de reconstrução
da identidade, e articula símbolo e ação (política), nos termos da Eucaristia,
uma espécie de speech actreal em suas consequências (cf. Sfez, 1988:48 e 89).
2. A história da longa duração é umadas manifestações da Nova História-
movimento de renovação da historiografia que nasceu na França no fim da década
de vinte do século passado, tendo como fundadores Marc Bloch, Lucien Febvre e
Fernand Braudel - que vai acentuar essa tendência temporal. A história das
mentalidades tem sido criticada por sua excessiva abrangência, sendo, pouco a
pouco, substituída pela história das representações, ou história cultural, que
dá conta das singularidades de classe sociais, gêneros e faixas etárias
(Chartier, 1988).
3. Jagunço ou capanga é a designação dada ao homem armado que, agregado a um
chefe político ou fazendeiro, age a seu serviço para impor sua vontade.
4. Essa expressão designa o conjunto de votos controlados por pequenos chefes
locais (os chamados "cabos eleitorais") que é dado a vereadores, prefeitos ou
deputados em troca de benefícios pessoais ou coletivos.
5. Na República Velha, assim eram designados os atuais governadores.